A Palavra Arquitetônica - Renato Leão Rego

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A palavra arquitetônica 1

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A p a l a v r a a r q u i t e t ô n i c a

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R e n a t o L e ã oR e g o

( O R G A N I Z A Ç Ã O E T R A D U Ç Ã O )

E d i t o r a A r t e & C i e n c i a

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A palavraarquitetônicaA palavraarquitetônica

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1999, by Editora Arte & Ciência

A palavra arquitetônica/ Renato Leão Rego.(organização e tradução) -- São Paulo: Arte & Ciência, 1999. 96p.; 21 cm

Vários autores

ISBN 85-86127-88-4

1. Arquitetura � Ensaios Críticos. 2. Arquitetura contemporânea.3. Arquitetura Moderna 4.Crítica de Arquitetura I. Rego, Renato Leão.

CDD - 720.1 - 724.9

Coordenação EditorialHenrique Villibor Flory

Editor e Projeto GráficoAroldo José Abreu PintoDiretora Administrativa

Luciana Wolff Zimermann Abreu Editoração Eletrônica

Marcela Cristina de SouzaCapa

Jefferson CortinoveRevisão

Letizia Zini Antunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Biblioteca de F.C.L. - Assis - UNESP)

Editora Arte & CiênciaRua dos Franceses, 91 – Bela VistaSão Paulo – SP - CEP 01329-010

Tel/fax: (011) 253-0746Na internet: http://www.arteciencia.com.br

Índice para catálogo sistemático:

1. Arquitetura: Ensaios críticos 720.12. Arquitetura moderna: Século XX: Crítica 724.9

P154

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A Ninha

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Sumário

Crítica de arquitetura e arquitetura, Renato Leão Rego...........................07

As belas-artes, Alvar Aalto........................................................................17

A responsabilidade do arquiteto, Alvar Aalto ........................................19

O espírito novo em arquitetura, Le Corbusier.........................................23

Forma e desenho, Louis Kahn..................................................................47

Sobre um pobre homem rico, Adolf Loos...................................................61

O princípio do revestimento, Adolf Loos.................................................67

Regras para quem constrói nas montanhas, Adolf Loos...........................73

Sobre o significado e a tarefa da crítica, Mies van der Rohe...................75

A arte de construir e o espírito da época, Mies van der Rohe ...............77

Os novos tempos, Mies van der Rohe.......................................................83

Estamos no ponto crítico dos tempos: a arte de construir como a expressão

de decisões espirituais, Mies van der Rohe..............................................85

Arquitetura e natureza, Frank Lloyd Wrigh ...........................................87

A destruição da caixa, Frank Lloyd Wright .............................................91

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CRÍTICA DE ARQUITETURA E ARQUITETURA

O tempo em que escrevo estas linhas está marcado pelapluralidade estética, na ambivalência e tolerância de padrões e va-lores distintos. A arquitetura, depois da falência ineludível de cânonesaté então poderosos, passou a espelhar uma certa incerteza nosrumos que tomaria aquela contestação já formalizada em algunsdos seus projetos da segunda metade do nosso século.

No panorama que a produção arquitetônica nos apresenta hojevemos, entre a herança do movimento moderno, marca sem dúvi-da alguma da arquitetura do século XX, negação, inovação e muitarevisão. Pauta-se, a arquitetura contemporânea, pela ausência deum paradigma comum. Arquiteturas, no plural, apresentam for-mas e métodos diferentes. Tamanha liberdade não é paralisante? Amenos que a sintonia voluntária com um destes ‘modelos’ ou aaceitação do ecletismo estabeleçam e fomentem a criação da novaarquitetura.

Pensar a arquitetura já é julgá-la.

Os textos aqui apresentados com um fim meramente didáti-co, há muito conhecidos de publicações estrangeiras, trazem, sobforma variada de manifesto, discurso e crítica, o olhar crítico queestabeleceu então as bases do projeto.

Resgatar tais posturas é amadurecer a crítica a elas dirigida,refutar impropriedades, traçar conexões, estabelecer origens e sóassim alumiar o percurso que chega até nossos dias. O que fare-mos dependerá do nosso juízo com relação às experiências passa-das. Ou não?

A arquitetura conforma, ou deveria conformar, como nos

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disseram grandes arquitetos, o espírito do seu tempo. A crítica,por conseguinte, deve ser capaz de sublinhar a conformaçãoarquitetônica do espírito de cada tempo – não só como memóriamas como projeto. Assim, ela é ora História ora Manifesto: realida-de e desejo.

Como reconhecemos estar ante critérios do nosso tempo?

Este fim de século inseriu no lugar da expressão ‘espírito dotempo’, tão cara aos ‘modernos’, o contexto. Debruçada sobre acultura e a comunicação, a arquitetura tem buscado outras estraté-gias, outras dramaturgias, por sobre a funcionalidade vazia, a par-tir do ‘espírito’ do lugar.

O que é a arquitetura? O que é a arquitetura contemporânea?O arquiteto ao menos lida com estas questões ao acercar-se doprojeto e, em seguida, força nós, espectadores, visitantes, habi-tantes, a fazermos as mesmas interrogações com um pronomerelativo: o que é essa arquitetura?, o que é essa arquitetura con-temporânea?

A posição relativa pode nos trazer a compreensão do está-gio atual do processo criativo em arquitetura e fornecer parâmetrosà compreensão do que se busca, do objetivo pretendido.

A arquitetura a caminhoConvenho que para se aprender arquitetura se faz necessário

conhecê-la e experimentá-la no corpo e no espírito, se tal divisãohouver. E é necessário apreendê-la, mediata ou imediatamente, emtoda sua amplitude e nos seus diversos paradigmas. A arquiteturaexperimentada estará pois aberta à análise, como qualquer outroaspecto da experiência, e esta análise não deixará de passar funda-mentalmente pela descomposição da arquitetura em elementos quea configuram, uma operação presente em qualquer ato de criação eessencial à compreensão da obra. Associamos, desse modo, ao pro-cesso cognoscitivo dos meios específicos do labor arquitetônico aquestão do juízo, do julgamento, que, em parceria com a narrativahistoriográfica da arquitetura ao longo da vida do homem, atribuivalores à obra arquitetônica ao considerar, naquela referida análise,

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a pauta, as instâncias, as razões e a significância que concernem àobra analisada.

A crítica de arquitetura na cultura moderna tem tido um papelequivalente ao da crítica de arte, que se tornou intrinsecamentenecessária à produção e afirmação da arte por conta da‘comunicabilidade não-imediata da obra’: elas desempenham a fun-ção mediadora entre o discurso do artista e a fruição do seu traba-lho.1 Sendo da sua competência reinseri-la no sistema geral dacultura, a crítica, como a professa Giulio Carlo Argan, deverá tra-çar um prolongamento da obra de arte que, a partir da esfera artís-tica, vai associá-la a outras atividades não-artísticas e até mesmonão-estéticas.

Na extensão da definição de Argan, o papel da crítica de ar-quitetura pode vir a assumir o caráter de instrumento didático, namedida mesma em que esclarece do objeto construído o ponto departida do projetista e o processo genético; da sua construção asintenções arquitetônicas, os seus meios e o seu funcionamento; dasua cultura os termos em que ora a reflete, ora a absorve. Dessemodo, e somente desse modo, aportações teóricas da arquiteturapoderão recolher a experiência completa da arquitetura, que há deconter, inclusive, a experiência do seu projeto. Nesta condição, osmundos da reflexão teórica e da experiência, paralelos e tangentes,distantes ou próximos por vazios de correspondência ou confli-tos, nunca deixariam de estabelecer o “aliciente para modificar ateoria e ajustar indefinidamente a prática”.2

Já foi dito, numa espécie de ‘psicologia’ do projeto, que odesejo de transformar o meio com sentido é aliviado por imagensafetivamente apreendidas, que atuarão como referentes edesencadeantes daquela ação. Estas ‘imagens’ mobilizadoras dofazer arquitetônico advêm do conteúdo sedimentado no imagináriodo homem, de cada homem: são, em geral, instâncias mentais ar-mazenadas de toda sorte, sensações produzidas por referênciasarquitetônicas visuais, reflexivo-verbais e contemplativas, proce-

1 ARGAN, G. C. Arte e crítica de arte. 2.ed. Lisboa: Estampa, p.128.2 SEGUÍ DE LA RIVA, J. Theoretical considerations concerningarchitectural design and its basic teaching. Madrid: ETSAM, não publicado.

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dentes de figuras ou coisas, absorvidas de situações ou ambientes,retidas da comunicação e da leitura, que concorrerão no processocriativo.3

Ativada a ação destas imagens retidas no exercício criativo, oolho crítico depreenderá de todas as formas experimentadas pelaarquitetura a implicância da sua existência, a validade dos seusprincípios, a prática dos seus meios ao extrair do velho o novo, daarquitetura uma realização periodicamente moderna, da constru-ção uma arte.

Até aqui estou tratando de dizer que da arquitetura, por meioda experiência das suas realizações e da formação do imagináriodo arquiteto, cabe deixar manifestar-se uma postura crítica funda-mental e, por que não, obrigatória frente ao seu objetivo ulterior: oprojeto da arquitetura.

PercursosA efetiva validade do pensamento exposto alinha-se com a

abrangência pedagógica do olhar crítico lançado por Lionello Venturiao considerar, na régua da sua crítica, fatores que participam dagênese da obra pelo fomento e constituição do imaginário do artis-ta, alargando então o universo da crítica da ‘pura visualidade’,segundo a qual o valor da obra era atributo só do seu dado visualpuro.

Venturi4, fazendo confluir história e crítica da arte, credita àtarefa de historiador um juízo de valor, e a exerceu servindo-sedos documentos existentes, do pensamento do artista e de seuscontemporâneos, artistas ou não. A crítica de Venturi tomava en-tão um sentido de abertura rumo a fatores culturais, sociais e his-tóricos, em geral excluídos do âmbito puramente estético, comoocorre com os esquemas ou constantes formais da teoria deWölfflin, que reduzem o estudo dos fenômenos artísticos à des-crição de suas características diferenciais. Haveria então uma dis-

3 Idem, ibidem.4 VENTURI, L. História da crítica de arte. Lisboa: Edições 70, s.d.

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tinção entre a síntese da obra de arte, operada pela criatividade doartista, e os seus elementos constitutivos, que podem separar-sedela, que podem encontrar-se em outras obras e que não se iden-tificam com a própria arte: de natureza variada, estes elementos,que compreendem da técnica ao ideal, assumem uma característi-ca comum frente à criação da obra de arte. Trata-se da historicidadedo fazer artístico, por meio daquilo que unia as personalidadescriadoras de cada período: o sujeito da obra não parte do nada,mas de um universo experimentado, de uma tradição que seu am-biente lhe oferece, presente na obra seja pela sua reafirmação, sejaainda pelo seu avesso, a revolta da negação. A imaginação do artis-ta não trabalha no vazio, mas de um modo historicamente concre-to, sobre o reservatório de ‘imagens’ assimiladas.

O ‘gosto’ do artista e do coletivo ao qual pertence, sob aforma de cultura dada, já histórica, funde-se à cultura que o pró-prio artista faz fazendo arte. O problema ora levantado por Venturi,que se torna relevante na produção contemporânea da arte, é opapel da cultura específica de cada artista: uma cultura que incidena construção da obra e, em parte, coincide com a da época e dolugar, a ponto de englobar problemas cognoscitivos, religiosos oumorais, além dos aspectos e problemas apenas próprios da arte,uma vez que para ele “a criatividade não está isolada, nem é isolávelda vida do homem”. É, sem dúvida, esta noção que leva Argan aafirmar que “fazer a história da cultura dos artistas, das suas idéi-as, preferências, intenções no campo da arte, significava natural-mente fazer a história daquilo que de ‘crítico’ se reconhecia noseu procedimento artístico”.5

Para além da pesquisa de Venturi, Erwin Panofsky6 relacio-nou a investigação no plano das estruturas formais – significantes– com a ‘Filosofia das formas simbólicas’ de Ernst Cassirer, tra-balho que se enquadrava no plano dos significados. O procedi-mento da iconologia em seu envolvimento culturalizante deu va-zão, pela tradição das imagens, ao sentido que jaz no sistema dasformas que cada artista faz depreender da sua experiência do mundo

5 ARGAN, op. cit., p.149.6 PANOFSKY, E. Estudios sobre iconología. 2.

ed. Madri: Alianza, 1976.

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real e cristaliza na obra: trata-se de uma história dos sintomas cul-turais que faz reconhecer os significados dos simbolismos dasimagens, temas e motivos artísticos em face dos contextos parti-culares de culturas e períodos históricos. As imagens criadas peloartista agora pesava também pelo que conotam ou dizem dos valo-res simbólicos imanentes a uma época. Panofsky devolvia à obrade arte a unidade desmembrada entre forma, tema e conteúdo.

O significado intrínseco àquelas imagens Panofsky vaiencontrá-lo indagando os pressupostos que revelam a atitude bási-ca de uma nação, um período, uma classe, uma crença religiosaou filosófica, qualificados inconscientemente pela personalidade econdensados na obra,7 o que faz do trabalho do historiador uma‘síntese recriativa’ e uma ‘investigação arqueológica’, dois pro-cessos entrelaçados, simultâneos, recíprocos. Estabelecem-se, des-se modo, as bases futuras para um estudo estruturalista, como acrítica de Renato De Fusco, que propõe entender globalmente osfenômenos arquitetônicos mediante uma ligação entre a arquitetu-ra e a experiência geral da cultura moderna, estabelecida por uma‘estético-crítica’.8

Indo ao amontoado de documentos reunidos então pelo his-toriador, nos vemos no ‘ateliê interior’ do artista e aí encontrare-mos um pouco de tudo: esboços, anotações, obras já feitas e re-produções antigas e modernas, material que o artista interessadoreunira e talvez seja utilizado, talvez não. Talvez sirvam não à obraem curso, mas a outra, em projeto talvez. São, como nos diz Argan,instrumentos mais que do seu trabalho, da sua poética.9 É o artistaalguém que faz e tem uma técnica, que certamente tem uma or-dem, porque pressupõe um projeto e uma série de atitudes proces-suais. A existência prática do fazer chamará de volta ao presente, àurgência do que se tem de fazer, experiências passadas, distantes,esquecidas ou quase. A ordem do fazer impõe recuperaçõesmnemônicas ao movimento da imaginação. Voltamos ao mundo

7 ARGAN, op. cit., p.17.8 Cf. DE FUSCO, R. La idea de arquitectura. Historia de la crítica desdeViollet-Le-Duc a Persico. 2.ed. Barcelona: GG, 1976.9 ARGAN, op. cit., p.57.

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das imagens experimentadas pelo nosso artista. A imagem, entãocitada e recitada até, contaminada por associações ou combina-ções ingênuas com outras imagens latentes na memória, é o docu-mento de uma cultura: a de um significante ao qual se podem atri-buir outros significados, no processo da ‘interpenetração criado-ra’.10

Mais moderna, a semiologia continuou a revelar dimensõesaté então ocultas ou sutilmente inscritas na obra, embora uma bus-ca ávida de significação – participando o receptor no universo cri-ado pela obra – tenha superado a busca até então exclusivista dosseus valores expressivos. Os rumos desta linha de pesquisa certa-mente se bifurcarão no ponto em que insistir nos signos gravadospelo artista na obra será crítica da ideologia e explorar o significa-do que tais signos possuem na vida ulterior da obra será registrara interpretação do observador a modo de uma ‘estética da recep-ção’.

Revendo hoje os vários desdobramentos da metodologia dahistoriografia da arte (fenomenologia, estruturalismo, semiologia),quaisquer que sejam os campos de abrangência da sua pesquisa –texto, contexto, metatexto – foi ficando cada vez mais claro que ahistória da arte é, sim, história da cultura, de uma cultura estruturadae dirigida pelo empenho operativo, na qual toda experiência passa-da permanece, adentrando o campo do epistémê foucaultiano, comouma virtualidade aberta à obra que se faz.

Transpondo a discussão para o campo da arquitetura, é destaexperiência que trata Manfredo Tafuri ao escrever que “qualquernova obra de arquitetura nasce em relação – de continuidade ou deantítese, é indiferente – com um contexto simbólico criado porobras precedentes, livremente escolhidas pelo arquiteto, comohorizonte de referência de sua temática, pelo que não tem qualquerimportância a continuidade ou afastamento histórico desse hori-zonte, relativamente ao presente”.11

10 Ibidem, p.28-34.11 TAFURI, M. Teorias e história da arquitetura. 2.ed. Lisboa: Presença,1988. p. 135.

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Se por um lado o que saiu diretamente do forno da fabulaçãonão se caracteriza propriamente por um nexo lógico límpido, nãosendo discurso mas sim expressão, pelo outro esta obra não secifra a um caos de sensações, mas é organização formal onde assensações experimentadas se fundiram e se disciplinaram. Enten-dendo-se a arte como linguagem, sua leitura deve ser entendidacomo processo técnico que flagra o sentido colocado mais oumenos conscientemente no seu texto. No nosso caso, é funda-mental extrair do objeto arquitetônico todas as instâncias – estéti-cas e simbólicas, funcionais e materiais – para, na reconstrução daconstrução que engendrara o artista, abarcar pela estrutura da quala obra é a tecitura, o seu sentido. (Cabe um parêntesis aqui paraincluir o esforço de Jorge Glusberg em propor a crítica de arquite-tura como um ‘sistema de sistemas’).12

Tendo em mente como referência a crítica operativaapresentada por Tafuri, concluiremos que a análise da arquiteturaterá como objetivo não um levantamento abstrato prêt-à-porter esim a projeção de uma orientação poética precisa, antecipada nassuas estruturas e resultante de análises históricas. Deparamo-nosaqui com a tarefa de reencadear circunstância passada – experiên-cia – e antecipação que a obra, quando realizada, vai fazer presen-te, recobrando aquela correlação implícita de passado e futuro quemenciona Argan quando afirma que cada invenção nasce da críticado passado, à qual se agrega um projeto para o porvir.

A caminho da arquiteturaReconhecido o golpe contra a ‘estética cartesiana’ desferi-

do em tempos pós-modernos, vemos que aquelas característicasformais, de cunho abstrato-geométrico e teor anti-naturalista e anti-histórico, fomentadas por uma racionalidade supra-individual, abs-trata e universal, deixam de prevalecer sobre os aspectos sensí-veis, emocionais e individuais da experiência artística que vêm re-tratando a socialidade heterogênea, mais complexa, movediça, quese sobrepôs à demarcação da modernidade.

12 GLUSBERG, J. Para uma crítica de arquitetura. São Paulo: Projeto, 1986.

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As teorias do lugar arroladas a partir dos anos 60,contextualismos de todos os matizes, representaram as tentativasde superar o utopismo moderno, sem resvalar na redução da ar-quitetura a mero significante, ainda que teorias da linguagem equestões de comunicação fossem a ordem do dia. DestacandoVittorio Gregotti13e a afirmação do projeto como intenção, balizadopela fenomenologia via Argan e pelo estruturalismo de Lévy-Strauss,sobressaía aí a arquitetura como ‘lugar simbólico’ reclamado empráticas que recorriam à experiência da história (da arquitetura, dacidade, da cultura), sem esquecer que a ela pertencia também oepisódio do movimento moderno, depurando a racionalidade mo-derna da sua dimensão instrumental e ideológica. Sua proposiçãoconciliava modernização e tradição, renovação e preservação.

Nem sempre esta atitude dialética se fez valer, daí assistir-mos uma série de revivalismos indiscriminados, tomados do pas-sado alheio, numa espécie de ‘memória sem memória’, como ar-gumenta Otíllia Arantes14. Uma certa ausência de projeto favore-ceu um repertório eclético de estilos, formas e técnicas, sem cri-térios seletivos, à disposição do usuário como mercadorias emequivalência na vitrine. Historicismo romântico, ecletismo comosincretismo de linguagens, fragmentação alçada à categoria de ele-mento ritual, a ‘correspondência’ do contexto e formas abertassão detectados como parte do ‘vitalismo estético polimorfo’ vi-gente. A ambigüidade, a contradição, o pluralismo, o relativismosão conceitos que caracterizam o epistema contemporâneo. A frag-mentação da experiência e sua tradução estética, já ensaiada naestética das vanguardas, intensifica-se, permeada pelo que MichelMaffesoli15 chama de placet futile, acantonado nos ângulos, es-quinas e detalhes que renderão a melhor fotografia. Difrata-se porentre nossa sociedade narcísica, em busca de si própria, da suaidentidade, um modo de agir animado por e pelo que é intrínseco,

13 Cf. GREGOTTI, V. Território da arquitetura. 2ed. São Paulo: Perspecti-va, 1994.14 ARANTES, O. Arquitetura no presente, uma questão de história. In:rquitetura, cidade e natureza. Org.:IABDN. São Paulo: Empresa das artes, 199315 MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.

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centrado sobre o que é da ordem da proximidade, uma espécie dereencantamento, ‘religação’ mística, sem objeto particular. É nes-sa ambiência (para usar uma palavra da moda) que a construçãodo espaço, hoje, recorre à sensação, procede por sedução, dispõeefeitos. A arquitetura se dá como acontecimento.

A arte de projetar anda se conformando em apreender a frag-mentação da experiência. Entre descontrução e construção, o ce-nário atual que se monta é um jogo de formas, fina celebração dossentidos, hedonismo consensual.

Nostalgias à parte, estou dizendo aqui que entre realismo ecrítica pode ser possível uma atitude sintônica com o reconheci-mento da complexidade social deste tempo, que não tento ressus-citar nenhum tipo de utopia que postulara o expediente do movi-mento do moderno. Permitam-me, já na conclusão, lançar um ou-tro argumento, de Valéry, segundo o qual a desordem deve apenassubjacer à criação, uma vez que esta se define por uma certa ‘or-dem’, esclarecida na articulação racional dos seus elementos.

Retomando a conclusão deste texto – a consideração da par-ceria história e crítica como instrumentos projetuais –, suacontraprova pode vir do programa estabelecido pelo regionalismocrítico, sabendo ele desviar-se de bricolagens e pastiches primári-os, apreender as lições do passado e os avanços tecnológicos dopresente, conduzir-se como ordem que dispensa a norma. Menci-onei no início a compreensão da arte como atividade histórica deLionello Venturi porque, ao se tratar de uma construção, como asde Álvaro Siza, por exemplo, cai-se numa teia que liga o arquiteto,sujeito que soma as experiências da arquitetura, sua interferênciano sítio, o lugar a ser ocupado por ela, na condição de paisagemantrópica, histórias portanto, sintetizadas no projeto, lição do pas-sado a ser experimentada no futuro

Marília, 1998. Renato Leão Rego

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Alvar Aalto

AS BELAS-ARTES1

Nos ambientes mais distintos de uma sociedade não seconhecem, resumidamente, mais que dois gêneros de arte – de umlado, se designa como realismo os quadros que representam, como máximo de exatidão possível, a Natureza, os homens e tudo queos rodeia. A esta arte se contrapõe a arte não figurativa, ou comose queira chamá-la, onde as formas surgem de concepções abstra-tas. Esta distinção é superficial, pois a arte, manifestação humanapor excelência, não pode ser dividida deste modo.

Há milênios a arte tem estado ligada à Natureza e ao homem,sem jamais separar-se dela, o que não significa que não possa selibertar e inovar.

Quanto aos arquitetos, seus trabalhos e seus programas sesituam em outros planos, e a inquietude que os atormenta – se sãotradicionais ou modernos – é ociosa e tão vã como a que distinguea arte realista da abstrata. Em arquitetura a postura é diferente. Osestilos históricos se opõem à invenção, enquanto que, nas belas-artes, trata-se de copiar ou não a Natureza.

A arquitetura não pode se livrar das contingências huma-nas, naturais; não deve fazê-lo jamais, pelo contrário, deve aproxi-mar-se da Natureza, dando a este termo uma acepção tão amplaque compreenda a sociedade, a cidade e os costumes. Quanto àexpressão arquitetônica, deve-se desenvolver com a mesma liber-dade que as belas-artes, permanecendo porém ligada ao homem eàs suas exigências.

1. Publicado em Fleig, K. (editor). Alvar AAlto, Obras 1963-1970. Barcelo-na: GG, s.d.

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Todas as tendências apontam, em suma, para o mesmo ob-jetivo, mas não posso me alongar nisto. Na pintura e na escultura,uma orientação nova surgiu, como na arquitetura. Mas não se deveconsiderar somente sua aparência, e sim analisar os fenômenosprofundos que provocaram a renovação das concepções artísti-cas. As artes devem-se inspirar no princípio da “expressão livre”,mantendo o homem no centro de suas inquietações.

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Alvar Aalto

A RESPONSABILIDADE DO ARQUITETO1

A organização de um interior depende não só das formasou das cores da habitação. É um ato mais complexo, cujas inci-dências têm origens longínquas e cujas raízes se situam na arte deconstruir as cidades, contexto do qual é impossível abstrair-se.

O próprio urbanismo, ainda que a palavra relacione esta ciên-cia com a cidade, não pode-se resumir ao estudo dela; as zonasperiféricas e a paisagem devem ser incorporadas a ele, como par-te de um todo maior onde se concentram a vida das pessoas e oconjunto de suas necessidades vitais.

No norte, esta região meio selvagem onde nasci, a disposiçãodos espaços é mais fácil de se tratar que nos países de grandedensidade da Europa central. A Finlândia é tão grande quanto aAlemanha, mas tem só quatro milhões de habitantes. Há, então,espaço de sobra e a interferência entre cidade e paisagem não apre-senta os problemas que existem em outras bandas. No entanto,não se extrai muita vantagem desta situação. Um país como a Fin-lândia tem tendência a confinar-se em certo provincianismo, imi-tando o que se faz em outros lugares; nos nossos dias ainda existea moda de imitar Hollywood, a cidade mais mal construída queconheço, quando se podiam aproveitar estas excelentes ocasiõespara moldar as construções por meio da incorporação racional daarquitetura numa paisagem organizada.

É verdade que não é fácil construir uma cidade nova nomeio de uma Natureza intacta, como não é freqüente que se pro-

1. 1957. Publicado em Fleig, K. (editor). Alvar A Alto, Obras 1963-1970.Barcelona: GG, s.d.

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ponha a um arquiteto: eis aqui um bosque e lá um lago – construauma cidade para 20.000 habitantes.

Para um país como a Alemanha, uma cidade semelhante pa-rece muito pequena, mas no norte resulta bastante importante.Oportunamente nestes dias, me perguntaram se as cidades euro-péias não caíram de moda, não estão superadas, inabitáveis até, ese não seria melhor só construir cidades novas. Não acho que sedeva ser tão radical.

A vida humana é feita ao mesmo tempo de tradição e de renova-ção. Não se podem rechaçar os valores tradicionais com o pretexto deque se devem substituir as coisas antigas por aquisições novas. Umacerta continuidade evita os inconvenientes das rupturas muito brus-cas. Assim, graças a intervenções conscientes, é possível manter nascidades vegetação suficiente para que se torne agradável viver nelas,tarefa sem dúvida difícil, porém realizável.

Perguntaram-me também se cada cidade finlandesa dispunhade um perito, pelo qual entendiam um arquiteto encarregado ex-clusivamente do urbanismo. Este funcionário existe, certamente,mas não é o ideal, pois as cidades implicam tal complexidade deproblemas que se deve excluir a idéia de que possam ser resolvi-dos por um só funcionário, mesmo sendo ele arquiteto.

Depois de construída uma cidade, é impossível modificá-laessencialmente. Falo aqui, em Munique, uma região da Europa ondeoutrora acamparam as legiões romanas, e não percebemos que aimplantação de certas cidades remonta a esses tempos, que seuscontornos, apesar das numerosas destruições e reconstruções, ain-da seguem os antigos traçados. Isto demonstra a perenidade dafisionomia urbana e a continuidade dos estabelecimentos. Poderiaesperar-se, então, que o público se interessasse por estas questões eque as melhores forças se empregassem em criar as bases para queas construções se integrassem harmoniosamente no contexto urba-no. A harmonia da construção é um dos maiores segredos da vida,quais são, pois, as suas premissas? Por que o ser humano está en-tregue à servidão de trabalhar, comer e abrigar-se? Os animais, sebem todos comam, nem todos possuem um abrigo. Mas, para ohomem, a habitação é primordial; sem morada não há civilização.

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R e n a t o L e ã o R e g o

Qual será a verdadeira solução? Uma casinha em um grandeparque, o isolamento de cada família, ou o amontoamento nas ci-dades? Ninguém sugeriu a solução ideal, e esta questão mal encon-trará sua resposta.

Lembro-me que um dia a URSS encarregou um arquiteto defazer plantas de cidades que correspondessem ao regime. Esteurbanista limitava a extensão das cidades a 150.000 habitantes;tivesse preferido menos, uns 60.000.

A sorte das cidades européias escapou aos urbanistas e pre-feitos, que não puderam impedir seu crescimento, além de ummilhão de habitantes. A partir deste momento, elas deixam de teralma e de ser governáveis. Qual foi, então, o resultado dos proje-tos russos Depois de vários anos de discussões, o governo che-gou à conclusão de que os intercâmbios intelectuais, fontes debem-estar, só podiam acontecer em uma grande cidade. E consi-derou liquidada a idéia de limitá-las a 150.000 habitantes.

Onde estão, portanto, as justas proporções? Devemos viverjunto da vegetação ou temos de nos amontoar para facilitar oscontatos intelectuais? Penso que as duas soluções são necessáriase viáveis.

Devemos prever vilas ou arranha-céus? O ideal seria viverem um arranha-céu com as vantagens de uma casa unifamiliar.Em Berlim, no meu prédio da Interbau, tentei essa experiência,mas duvido ter sido inteiramente bem sucedido, pois não é fácilconstruir um prédio que possua as vantagens da proximidade coma Natureza. Mas como temos necessidade das duas vantagens,devemos desenvolver tipos de arranha-céus onde a vida se aproxi-me ao máximo à da casa unifamiliar. As casas com fachada devidro e as sacadas onde se pode ver mexer cada dedo, cada inten-ção de quem as habita, não oferecem a intimidade que convém àvida privada. Temos de construir casas nas quais cada um se sintaem seu lar, independente dos vizinhos. Pois seja qual for o tipo devida que nos reserva o futuro, quando centenas de satélites gira-rem ao nosso redor, a família será sempre a célula humana natural.

É evidente que o homem vive duas vidas distintas: a vidacoletiva e a privada; estas duas instâncias se dão tão mal quanto o

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sonho e o trabalho. As casas que construímos têm que garantir, detodas as formas, a cada um, sua vida privada de um modo absolu-to. As soluções poderão diferir entre si, mas o princípio se man-tém. A arquitetura não é uma decoração superficial, deve ser oinvólucro de uma existência moral digna do homem. É assim comochego ao aspecto exterior da casa. Quando a decoração ou o orna-mento dominam, isto indica que a casa não mantém o contatoconveniente com a Natureza, comprovação que será endossadapor qualquer pessoa sensata.

Poderia lembrar, com um pouco de “esprit”, que os tecidos,em nossos interiores, são uma reminiscência da Natureza, poissimbolizam os prados verdes e as flores de um mundo perdidopelo homem que vive nas grandes cidades. No princípio, os vege-tais ofereceram o material para o mobiliário e as instalações dascivilizações primitivas. Os tecidos determinaram as atitudes, re-cordemos as tendas dos povos nômades.

Disse há pouco que as formas eram a expressão dos valoresmorais, ainda que seja impossível para mim definir o que se devefazer ou não fazer, preferir isto, evitar aquilo. Penso que a vidagrata num interior é uma necessidade fundamental baseada maisna ética que na estética.

As formas, ainda que diversas, são mais o resultado da atitu-de pessoal que da imitação dos estilos. O esnobismo se distanciadas exigências fundamentais.

A vida é, ao mesmo tempo, tragédia e comédia, e o ambienteda casa é o seu cenário. Os móveis, sua disposição, os tecidos e ascores devem ser adaptados ao desenrolar dos acontecimentos co-tidianos, assim como os trajes e os gestos, expressões da dignida-de humana.

As formas muito rebuscadas são hipocrisias que ninguém vaipreferir atendo-se aos princípios do bem-estar.

A indústria, com seus produtos racionais e úteis, auxilia o ho-mem quando quer se instalar convenientemente. Apoiando-se nasregras da dignidade e da conduta, as pessoas poderão se beneficiardo bem-estar que, em nossos dias, lhes oferecem o urbanismo, aarquitetura, o equipamento interior e todas as aquisições do nossotempo. A alma do homem só aspira a um pouco mais de luz.

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Le Corbusier

O ESPÍRITO NOVO EM ARQUITETURA1

Senhoras e senhores,

Queria, nesta noite, tentar mostrar que a arquitetura da épo-ca moderna tem abandonado suas vacilações, que possui a técnicasã e poderosa capaz de sustentar uma estética, já formulada, poroutra parte, por prescrições profundas; técnica absolutamente nova,pura e homogênea; estética que é o extrato de uma época total-mente renovada e que, depois de muitas guinadas e caminhos opos-tos, tem conseguido alcançar, no mais fundo de nós mesmos, asbases essenciais de nossa sensibilidade, as bases puramente hu-manas da emoção.

E talvez será então que tomaremos consciência de que estanova arquitetura, assim condicionada, é passível de grandeza ecapaz de acrescentar um novo elo na linha das tradições que fundano passado.

Vou começar fazendo desfilar diante de seus olhos uma sériede fatos.

1. Surgem objetos novos, assombrosos, temerários, anima-dos de grandeza, comovendo-nos, perturbando nossos cos-tumes.

2. Reina a precisão. A economia manda. Invencivelmente so-mos atraídos a um novo eixo. Começou outra época.Na at-mosfera pura do cálculo voltamos a encontrar certo espíritode clareza que animou o passado imortal. No entanto, a pre-guiça domina nossos atos e nossos pensamentos: pesadumes,recordações, desconfiança, timidez, medo,inércia.

1. Conferencia na Sorbonne em 12 de junho de 1924.

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3. Um século de ciência conquistou meios poderosos e desco-nhecidos até então. A matéria está em nossas mãos. Este sé-culo do aço é novo, diante dos milênios. Em todos os conti-nentes começa um imenso trabalho. Este espírito se comuni-ca de povo em povo e o progresso desencadeia suas conse-qüências.

4. Por todas as partes surgem interrogações. Sinais de inquie-tação. Testemunhos do desejo de conhecer. Presságios deatos que querem ser concisos e claros.

5. O homem está desejando. Seu coração, sempre um coraçãode homem, busca a emoção muito além da obra utilitária,aspira a satisfações desinteressadas. Dos novos fatos se des-prende uma poesia violenta e radiante. O coração tenta con-ciliar os fatos brutais com os padrões profundos e íntimos daemoção.

Vocês acabam de ver na tela uma série heteróclita de ima-gens; esta série, chocante ao extremo, surpreendente em todo caso,constitui o espetáculo quase cotidiano de nossa experiência; eestamos em um momento em que a cada dia se propõem tais ino-vações perturbadoras, contrastes tão surpreendentes que ficamostranstornados e, no mínimo, sempre fortemente comovidos.

Vocês viram antes o navio “Paris”, por exemplo, que lhesdeve ter parecido algo notável, magnífico; depois viram o salãodeste mesmo navio que, sem dúvida, lhes doeu na alma: parece, defato, assombroso encontrar, no coração de uma obra tão perfeita-mente ordenada, uma tal antinomia, um tal contrário, uma falta deunião, a bem dizer uma tal contradição: divergência total entre aslinhas mestres do navio e sua decoração interior; as primeiras sãoa obra científica dos engenheiros, a outra, dos chamadosdecoradores especialistas.

Também viram, na seqüência, as salas dos castelos deFontainebleau e Compiègne, assim como a galeria Colonna de Romaobras célebres, cheias de valores diversos, que pertencem a outraépoca: comparem-nas com o que, no nosso tempo, constitui omarco de nossa vida; parecem chocantes, deslocadas, e levamnosso espírito a admitir, com toda naturalidade, que é em outraparte onde devemos buscar o aprendizado.

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Mas em nossas escolas só se dá aos alunos um ensino base-ado nestas obras de outro tempo: assim se compreende facilmenteo mal-estar que reina nos espíritos e o absoluto estado de crise emque nos encontramos.

A seguir, lhes mostrei interiores de bancos americanos: sãode tal pureza, de tal precisão, de tal conveniência que estamosperto de achá-los belos. Foram projetados por um arquiteto, cer-tamente muito talentoso, que parece estar animado pela lógica epor uma grande clareza de espírito: no entanto, na “Bankers Ma-gazine”, que publica suas obras, este senhor acrescentou um con-vite aos leitores para que o visitassem e, a fim de atraí-los, nãoachou nada melhor que publicar o interior do seu escritório detrabalho. E nesta foto se vê uma ambiente mobiliado com baúsRenascimento e, num canto, até uma armadura de guerreiro,alabarda em punho, uma imensa mesa Luís XIII com enormes péstorneados e esculpidos, tapeçarias... O homem que mobília assimseu escritório é o mesmo que concebeu estes interiores de bancos,obras de lógica pura! Aí está o desacordo.

Mais uma coisa. No ano passado visitei, nos Alpes, os traba-lhos de um dique imenso; este dique será, certamente, uma dasobras mais belas da técnica moderna, uma das coisas maissubjugantes para quem tem a possibilidade de se entusiasmar: semdúvida o lugar é grandioso, mas o efeito produzido se deve, sobre-tudo, ao esforço combinado da razão, da invenção, do talento e daousadia. Um amigo me acompanhava, um poeta; tivemos o azar decomunicar nosso entusiasmo aos engenheiros que nos acompa-nhavam pela obra: tudo o que conseguimos foi riso e piadas, diriaaté inquietação. Aqueles homens não nos levaram a sério, talvezdissessem que estávamos loucos. Tentamos explicar que, se achá-vamos maravilhoso seu dique, era porque compreendíamos o quea envergadura de tais trabalhos, trasladada às cidades, por exem-plo, poderia trazer como transformações radicais. E, de repente,estes homens, que manuseiam o positivo, o lógico e o prático,exclamaram: “Mas vocês estão querendo destruir as grandes cida-des!, são uns bárbaros!, se esquecem das regras da estética!” Eramtotalmente diferentes de nós dois, pelo seu próprio estado de espíri-to: acostumados a conceber e executar obras de puro cálculo, reve-laram-se incapazes de imaginar, num campo diferente do seu, as

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conseqüências de sua própria atividade; transformaram-se em ho-mens de outro tempo.

Na verdade, vivemos um transtorno, e somos obrigados afazer uma revisão total de valores se quisermos tentar ver claro naatual situação e chegar a constatar que alcançamos um conceitodiferente daquele que podiam ter nossos pais e nossos avós; sequisermos chegar a apreciar que a vida que levamos é radicalmen-te oposta, distinta em todo caso, do que foi a vida das geraçõesque nos precederam.

Estamos diante de um acontecimento novo, de um espíritonovo, mais forte que tudo, que passa por cima de todos os costu-mes e tradições e que se difunde pelo mundo inteiro; as caracterís-ticas precisas e unitárias deste espírito novo são o mais universaise humanas que podem e, no entanto, jamais foi tão grande o abis-mo que separa a antiga sociedade da sociedade maquinista em quevivemos.

O nosso século e o século anterior opõem-se a 400 séculosanteriores: a máquina, baseada no cálculo, que nascera das leis douniverso, erigiu, frente às divagações possíveis do nosso espírito,o sistema coerente das leis da física; impondo suas conseqüênciasà nossa existência e forçando nosso espírito a um determinadosistema de pureza, modificou o marco de nossa vida: abriu-se umfosso entre duas gerações.

Diante deste fosso, devemos refletir, parar e tentar ver o quenos cabe resolver para começarmos a criar o mecanismo verda-deiramente atual da nossa existência.

Sem medir muito exatamente os feitos, somos, neste mo-mento, indivíduos revolucionados. Mal o percebemos. Participa-mos de uma vida rápida, apressada, dura, penosa, muitas vezesestressante, temos a impressão de que isto pode ser sempre as-sim, que cada dia se torna talvez um pouco mais difícil, mas nãotemos a sensação, repito, de que estamos completamente revolu-cionados com respeito ao período anterior.

Somente um olhar lançado à história vai nos permitir captartal mudança. De fato, se vêem, na vida dos povos, certos momen-tos em que a curva espiritual encontra seu ponto de inflexão, mar-cando a transição de uma forma de pensar a outra, de uma deter-

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minada cultura a outra totalmente diferente.

Permitam-me, para confirmar o que digo, tomar como exem-plo a Idade Média, que se seguiu ao período românico, por sua vezconseqüência de toda a cultura antiga. A transição aconteceu –não se pode dizer bem a data precisa – deu-se entre o ano 1000 eo 1200: homens vindos de todas as partes, novos povos, acaba-vam de misturar-se com povos antigos, um caos geral... mais tar-de, quando passa o tempo, com os séculos de distância necessári-os, nos damos conta, num belo dia, que intervieram modos depensar e atuar, modificando radicalmente tudo o que havia existidoaté então.

Se há um campo onde este fato é flagrante é o da arquitetura,pois oferece testemunhos característicos que escaparam aos rigo-res do tempo.

A arquitetura românica caracteriza-se, como sabem, por aber-turas de meio ponto, denotando o uso de formas de geometriaprimária, tradição de cultura antiga. Três séculos depois, eis quese passou, sem alardes, a um sistema bem distinto, de formasmuito complicadas, revelando uma estética completamente dife-rente. Foi uma revolução considerável, contudo, no momento emque se produzia, ninguém mediu a reviravolta.

E esta mudança atingiu muito mais do que geralmente se ima-gina.

Na época românica, a cidade era composta por prismas sim-ples; entre as formas desenvolvidas nas casas, dominava a hori-zontal: a geometria mais pura se afirmava em todas as partes, atéchegar a conferir à paisagem uma atitude muito precisa. Mal pas-sado um século, a cidade e a paisagem tinham se transformado,oferecendo ao olhar um aspecto radicalmente oposto.

Estamos no outono, plantam-se jardins: nos últimos dias planteidois. Vocês poderão constatar que o espírito humano age não sósobre as obras puramente humanas, como a arquitetura, mas in-clusive no que se vem chamando de natureza, moldando as paisa-gens, escolhendo as essências das árvores cujas característicasplásticas estejam dentro de num determinado sistema do espírito.

A natureza moldada pelo homem alia-se às casas que ele cons-

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trói. Viajando por vários países, nota-se que os modos de cultivodeterminam aspectos profundamente diferentes da paisagem; ascasas no campo unem-se num mesmo espírito. E não são só osclimas que ditam a forma do lugar.

O que quis mostrar é que se estabelece uma hierarquia entreos diferentes estados de espírito, entre os distintos sistemas doespírito, e que alguns talvez sejam superiores a outros. Isto, emtodo caso, permito-me afirmá-lo, porque para mim é uma certeza(e demonstrarei) que o espírito se manifesta pela geometria. Daídeduzirei que, quando a geometria é todo-poderosa, é que o espí-rito progrediu com relação ao tempo de barbárie anterior.

Não quero dizer com isto que a cultura da Idade Média fossebárbara, mas que estava arraigada em fatos ainda bárbaros, emum passado turvo e que se encontrava nos começos do seu desen-volvimento, enquanto que a cultura antiga, pelo contrário, haviachegado a importantes conclusões, manifestadas pelas geometria.

Mostrarei que a ascensão até a geometria se traduz no aspec-to desta obra humana que se estende desde a casa até o lugar. Vocêconhecem a casa tal como ela nasceu, mais ou menos normalmen-te, com o telhado sobre o muro primitivo: pouco a pouco, evoluinuma busca cada vez mais declarada da horizontal, até que, numperíodo de claridade intelectual como o Renascimento, alcança atodo-poderosa horizontal, a horizontal que no alto arremata a com-posição com uma linha categórica, enquanto que até este momen-to a composição se perdia nos pedaços oblíquos dos telhados,mansardas, etc. Aí, os telhados se escondem atrás de um áticocuja missão é mascarar uma obliqüidade que inoportunamente con-tradizia o princípio ortogonal da composição. Esta situação noRenascimento denota, inclusive contra as justas reivindicações darazão, esta aspiração do espírito rumo ao definido e à pureza.

Pois este é o surpreendente exemplo de um espírito que secultiva pouco a pouco e que se depura até o ponto de buscar osprocedimentos que lhe permitam realizar obras de pura geometriaou, pelo menos, obras onde a geometria possa realizar tudo o queé capaz de realizar, ou seja as proporções, que são a linguagem daarquitetura e que se expressam em sua maior perfeição no sistemaortogonal.

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Mas hoje dispomos dos meios para continuar magnificamenteesta ascensão à geometria, graças à invenção do concreto armado,que nos traz o mecanismo ortogonal mais puro, estamos de possede um meio ortogonal nunca possuído por época alguma, um meioque nos permitirá utilizar a geometria como elemento capital daarquitetura. Esta noite devo precisar, sobretudo, o valor e a impor-tância inigualável da geometria.

Acontece que, através de sucessivas etapas da arquitetura, oespírito se cultiva e se depura; por outra parte, os meios desenvol-vem-se e tornam-se cada vez mais precisos e poderosos: detecta-mos um meio que nos dá o ortogonal e a geometria pura, e deve-mos ressaltar com entusiasmo esta aquisição, pois ela nos permi-tirá abordar obras de alta arquitetura. Este espírito de geometria écertamente a coisa mais preciosa que hoje pode nos interessar.Mas, no momento atual da evolução, o reconhecimento deste es-pírito é um fato bastante novo.

Em 1920, quando fundamos a Esprit Nouveau com doisamigos – Ozenfant e Dermeé – , estávamos diante do fenômenocubista, então em plena potência: fonte de profundas invenções,ato violento de revolta e novo contato com os elementos da plásti-ca. Junto ao cubismo, o futurismo se entregava a estados de âni-mo insensatos, entusiastas, desbordantes, sem medida. Por últi-mo, o dadaismo, movimento de jovens, representava com esplen-dor este período da vida entre os 20 e 30 anos, quando se negatudo, quando não se acredita em nada que não se tenha comprova-do.

A Espírito Novo, neste momento, tinha por programa atuali-zar, se possível, um sistema construtivo. Não podíamos fazer maisque nos ocupar do maquinismo, estimando que era este o fenôme-no novo, o acontecimento da época. Agora nos atacam, e estesataques se acentuam. “Maquinismo – dizem – você sempre fala damesma coisa, já a conhecemos, você nos fere os ouvidos, vocênos chateia!”

Se já estão cansados de ouvir falar do maquinismo, é provada fabulosa rapidez com que as idéias se implantam: quando em-preendemos, num meio tumultuoso, nossas tentativas de depura-ção de idéias e de construção de um sistema coerente do espírito,

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baseando-nos na atual transformação da sociedade, do estado so-cial, éramos novos; somente podíamos encontrar gente que grita-va de satisfação ou de indignação diante do tumulto da máquina,diante da máquina metralhadora, do martelo pilão, da máquina fu-megante, da máquina devoradora de homens; nós, ao contrário,queríamos chegar a aprender a lição da máquina, a fim de abandoná-la depois ao seu simples papel, o de servir. Não queríamos admirá-la mais, e sim, estimá-la; queríamos classificar os acontecimentospara oferecer ao nosso coração, depois desta vitória da razão, oselementos pelos quais pode se emocionar.

Esta classificação que havíamos empreendido foi útil, pensoeu, para toda uma série de investigações que se seguiu, depois.

Naquele momento, também chegamos a precisar as condi-ções em que se desenvolvia o maquinismo, a lei da economia que éo meio pelo qual se guia todo trabalho moderno. Constatamos queo maquinismo está baseado na geometria e, finalmente, estabele-cemos que o homem vive, de fato, só de geometria, que esta geo-metria é, falando com propriedade, sua própria linguagem, que-rendo dizer com isto que a ordem é uma modalidade da geometriae que o homem só se manifesta pela ordem.

O que um homem faz primeiro é estabelecer o ortogonal di-ante de si, ajustar, pôr em ordem, ver claro; encontrou o modo demedir o espaço por meio de coordenadas sobre três eixos perpen-diculares. Este fenômeno de ordem é tão inato que podemos atéestranhar ter que falar dele. Mas não nos esqueçamos que saímosde um período – o final do século XIX – de reação contra a or-dem, de medo ante esta violenta instigação à ordem que trazia amáquina, e de reação terrível: não se queria ordem; o fato de orga-nizar a nova vida sobre o fenômeno da ordem é uma criação queremonta a alguns poucos anos.

O homem, afirmo, manifesta-se pela ordem: quando vocêssaem de trem de Paris, o que vêem aparecer aos seus olhos senãoum imenso pôr-em-ordem? Luta contra a natureza para dominá-la, para classificar, para se acomodar, em uma palavra, para insta-lar-se num mundo humano que não seja o meio da natureza anta-gonista, um mundo nosso, de ordem geométrica. O homem sótrabalha sobre geometria. Os trilhos são de um paralelismo absolu-

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to, os taludes são a realização de desenhos geométricos, as pon-tes, os viadutos, as barragens, os canais, toda esta criação urbanae suburbana que se desenvolve ao longo dos campos mostra que,quando o homem atua e quer fazer segundo sua vontade, conver-te-se em um geômetra e cria sobre a geometria. Sua presença setraduz no fato de que, apresentando-se sob um aspecto acidental,numa paisagem que é ato da natureza, o trabalho humano somenteexiste sob a forma de retas, verticais, horizontais, etc. E é assimcomo se traçam as cidades e como se fazem as casas, sob o reina-do do ângulo reto.

O fato de reconhecer neste ângulo um valor decisivo e capi-tal já é uma afirmação de ordem geral muito importante,determinante na estética e, conseqüentemente, na arquitetura.

Não obstante, a este respeito persiste a confusão. Em umlivro intitulado Eupalinos ou o arquiteto, Paul Valéry conseguiu,como poeta, dizer coisas sobre a arquitetura que um profissionalnão saberia formular, porque sua lira não está afinada neste tom:sentiu e traduziu admiravelmente muitas das coisas muito profun-das e muito puras que o arquiteto sente ao criar; no entanto, emum diálogo entre Sócrates e Fedro, Valéry segue um pensamentobastante desconcertante.

“Se te dissesse que pegasses um pedaço de giz ou carvão –disse Sócrates – e desenhasses na parede, o que desenharias? Qualseria teu gesto inicial?”

E Fedro pega um pedaço de carvão e risca no muro, respon-dendo:

“Parece-me que tracei uma linha de fumaça, vai, volta, une-se, enrola-se em si mesma, e me dá a impressão de um caprichosem objetivo, sem princípio, sem fim, sem mais significação que aliberdade do meu gesto no raio do meu braço.”

Não se admitirá sem estranheza que tal seja o gesto inicial deum homem. Para mim, que não sou filósofo, que sou simplesmen-te um ser ativo, parece que este gesto primeiro não pode ser vago,que no próprio nascimento, no momento em que os olhos se abremà luz, surge imediatamente uma vontade: se tivessem-me dito quetraçasse algo numa parede, parece-me que teria traçado uma cruz,que está feita de quatro ângulos retos, que é uma perfeição que

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traz em si algo divino e que é, ao mesmo tempo, um ato de possedo meu universo, porque nos quatro ângulos retos tenho dois ei-xos, apoio das coordenadas com as quais posso representar e mediro espaço.

Paul Valéry também parece chegar a esta conclusão. Um poucomais adiante, de fato, Sócrates diz da geometria: “Não conheçonada mais divino, mais humano, mais simples, mais poderoso...”

Elie Faure dizia-me certo dia: “Por que uma ponte é tãoemotiva?” Reconhecemos então que, entre as obras humanas detodos os tempos, a ponte era a única feita totalmente de geometria,tão pura que se mostrava nítida aos nossos olhos. Lançada sobre acaprichosa sinuosidade do rio, dos desprendimentos de terra oudas encrespadas massas de rochas, por entre a suavidade das matas,a ponte, como um cristal, cintila firme e voluntária entre o tumultoque a cerca. É a vontade humana escrita numa obra humana.

Mostrei-lhes, através das imagens desenhadas na lousa, queo homem, adquirindo pouco a pouco um instrumental formidável,descobre inconscientemente, encontra depois conscientemente, pelocálculo, o princípio essencial de suas atuações, encontra seus ‘pa-drões’: a lei da geometria.

Chega a sentir tanto mais o divino quanto mais renuncia aotrabalho de suas mãos pesadas, delegando-o à máquina que, base-ada na geometria, pode executar com toda a eficácia as concep-ções do seu espírito. O homem que pratica a geometria e que tra-balha segundo a geometria pode então atingir este nível de satisfa-ções superiores, chamadas de satisfações de ordem matemática, echegamos assim a admitir que, numa humanidade ocupada quaseexclusivamente com a geometria, como é o caso atual, as artes e opensamento não podem manter-se distantes deste fenômeno geo-métrico e matemático.

Acredito que, até agora, nunca tínhamos vivido um períodode tal geometria; se pensamos no passado, se tentamos imaginar oque era, nos surpreenderá ver que vivemos num mundo de geo-metria quase pura, de geometria humanamente pura, suficiente-mente pura a nossos olhos: tudo, ao nosso redor, é geometria;jamais vimos tão claramente formas, círculos, discos, retângulos,ângulos, francamente traçados com uma nitidez tão grande, tão

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categórica: cilindros, esferas puras. O maquinismo nos deu umimagem absolutamente nova do nosso mundo, imagem que osoutros séculos não podiam adotar. Os próprios grandes matemáti-cos, Pitágoras, Copérnico e tantos outros, se viram obrigados adar-se mentalmente estes deleites, enquanto que nós os temos co-tidianamente ao alcance das mãos.

Desde então, pode-se dizer que estamos preparados para ad-mitir uma arte formada, em grande parte, por elementos geométri-cos e orientada aos deleites matemáticos. A pintura, precedendo asdemais artes porque é um ofício mais facilmente realizável – nãodigo em concepção, e sim materialmente – e porque sua evoluçãoé mais rápida que a da arquitetura, que só pode ser conseqüênciade meios definitivamente adquiridos, a pintura já havia expressadoatravés do cubismo esta tendência ao espírito geométrico e às sa-tisfações de ordem matemática; os esforços que continuam o cubismoempurram cada vez mais neste sentido.

Não diria que o público acompanhou o movimento; ao con-trário, estamos diante de uma reação violenta, choque com retro-cesso, última onda como a reação romântica do final do séculoXIX, oposição, ódio e protesto contra a máquina. Hoje, estamosde novo em estado de protesto contra coisas que serão fatalmentenossas; estas queixas não têm outro efeito que fazer-nos perdertempo – as coisas seguem seu rumo. No campo das artes, nocampo da pintura, o fenômeno da geometria intervirá cada vezmais; a pintura até agora considerada normal, permitida, a de imi-tação, não poderá reinar exclusivamente. Será substituída por umconjunto de realizações plásticas novas que, por uma parte, vãolivrá-la do interesse que podia ter desde o ponto de vista represen-tativo – aludo ao cinema e à fotografia, que absorvem por si sótodas as curiosidades de ordem representativa – e que, pela outra,farão que só possa viver das relações existentes entre suas cores,suas massas, suas linhas, conseqüentemente, da proporção e dasqualidades de ordem matemática que aí se encontrarem. E, bementendido, por um indispensável nexo de união sensível com nos-so meio ambiente.

Chegamos, pois, ao fenômeno da geometria na arquitetura,em tempos que, estou convencido, já nos permitem começar a

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formulá-lo porque os meios existem.

Coisa que não teria acontecido há quinze ou vinte anos por-que não dispúnhamos, de maneira indiscutível, deste meio que é oconcreto armado.

Certo, o concreto armado existe há uns sessenta anos, massomente há pouco tempo é utilizado e admitido correntemente portodos. Este meio, convertido em usual e à disposição de todos, é,repito, de base ortogonal; logicamente, procede elementarmentedo ângulo reto; está, pois, feito para nos seduzir, porque contémum princípio fundamental do nosso prazer estético.

(Peço desculpas pelo que vou dizer, por tomar exemplos dosmeus trabalhos e de meu sócio, Pierre Jeanneret, na intenção defalar somente de coisas que conheço bem e, assim, evitar possí-veis erros.)

Estamos acostumados a buscar o fenômeno arquitetônicoexclusivamente no estudo dos palácios, que, evidentemente, re-presentam uma certa proposição. Mas vou falar meramente dacasa, que é um pretexto mais que suficiente para formular leis eregras da arquitetura. A arquitetura atual se ocupa da casa, da casanormal e corrente, para homens normais e correntes. Abandona opalácio. Estudar a casa para o homem comum, ‘plano’, é recupe-rar as bases humanas, a escala humana, a necessidade tipo, a fun-ção tipo, a emoção tipo.

A casa tem duas finalidades. É, em primeiro lugar, umamachine à habiter, ou seja, uma máquina destinada a dar-nos umaajuda eficaz para a rapidez e a exatidão no trabalho, uma máquinadiligente e atenta para satisfazer as exigências do corpo: comodi-dade. Depois, é o lugar útil à meditação, e finalmente o lugar ondea beleza existe e aporta ao espírito a calma indispensável; não pre-tendo que a arte seja um prato para todo o mundo, simplesmentedigo que, para certos espíritos, a casa deve oferecer o sentimentoda beleza. Tudo o que concerne às finalidades práticas da casa oengenheiro já o proporciona; o que diz respeito à meditação, aoespírito de beleza, à ordem reinante (e que será o suporte daquelabeleza), será da arquitetura. Trabalho do engenheiro por um lado,arquitetura pelo outro.

A casa procede diretamente do fenômeno do

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antropocentrismo, ou seja, que tudo se remete ao homem, e istopela razão bem simples de que a casa, fatalmente, só interessa anós mesmos e mais que qualquer outra coisa; a casa se adapta anossos gestos: é a concha do caracol. É necessário, portanto, queseja feita à nossa medida.

Remeter tudo à escala humana constitui, assim, uma neces-sidade; é a única solução que se pode adotar; é, sobretudo, o únicomeio de se ver claro no problema atual da arquitetura e que permi-te uma revisão total dos valores, revisão indispensável depois deum período que é, em suma, a última onda do Renascimento, aculminação de quase seis séculos de cultura pré-maquinista, perí-odo brilhante que veio a se romper ante o maquinismo, e que,contrariamente ao nosso, consagrou-se à magnificência exterior,palácios dos senhores, igrejas dos papas.

Mas, como já disse, nos encontramos frente a um fenômenonovo, o maquinismo; os meios para se construir uma casa à escalahumana estão totalmente mudados, prodigiosamente enriquecidos,opostos aos costumes, até o ponto em que nada do que nos che-gou do passado é de alguma utilidade e uma estética nova está seexperimentando. Estamos no começo de uma nova forma: é ela oque vamos tentar expressar.

O antropocentrismo, ou seja, o novo contato com a escalahumana, é, em uma palavra, brutal; estudar portas, estudar jane-las; a casa é uma caixa na qual abrem-se portas e janelas; portas ejanelas são elementos da arquitetura. Chegou-se a construir edifí-cios com portas de 12 e de 3 metros de altura – são tão inadequa-das umas quanto outras; relaxaram-se as medidas legais, criou-sepouco a pouco um código de medidas arbitrárias, enquanto con-servamos imutável nosso tamanho de 1,80m. Há que se fazer, pois,uma revisão das medidas, uma revisão dos elementos da arquite-tura.

Acabo de afirmar que portas e janelas são determinantes daarquitetura – não é um paradoxo e podemos comprová-lo estudan-do a história da janela.

Nos tempos dos romanos, as casas de Pompéia nos mos-tram que não havia, ou quase, janelas, somente grandes vãos aber-tos a jardins ou a pátios internos. O grande vão era a passagem de

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luz e, para a passagem do homem, havia também a porta.

Nos nossos países, o clima e um conceito diferente da vidadoméstica reclamavam outra coisa; mas fazer um buraco em ummuro era de uma grande dificuldade: era preciso construir sobreeste buraco, salvar a abertura; como o arco não podia ser muitogrande, as janelas eram pequenas.

Com o descobrimento do arco ogival e dos sistemas dearcobotante, realizou-se mais tarde a janela gótica, que permitiuganhar largura, como se vê nas catedrais; mas, na casa, ficavaimpossível superar determinada largura porque seria necessárioelevar demais o arco – os pés-direitos acabariam desmedidos. As-sim as janelas continuaram pequenas, porém multiplicaram-se. ORenascimento viu surgir as janelas com montantes de pedras quepermaneceram integralmente iguais até nossos dias; é de se desta-car, no entanto, o desaparecimento dos montantes, que já não seencontram nas construções desde Luís XIV; estas janelas se tor-nam, a cada dia, a melhor escala humana; no reinado de Luís XVI,fazem-se casas tipo em série, bastante adequadas à escala huma-na; e, finalmente, Haussmann, em suas obras de Paris, fixa a for-ma e a dimensão de uma janela que tem direito de cidadania emqualquer parte, que parece perfeita, ao ponto de permitir suporque já não se alterará mais. Não me detenho na janela pós 1900,falta de razões sérias, conseqüência de uma arquitetura de gesso epapelão surgida dos palácios da Grande Exposição.

Assim pois, toda estética arquitetônica deriva de um simplesato prático, a altura de uma planta, e vai se ver modificada por umnovo fenômeno técnico, o concreto armado.

As janelas, até este momento, não podiam alargar-se de modoútil porque seria necessário fazer vergas muitos longas, de difícilrealização, ou arcos que acabariam levantando demais os tetos.Mas agora a casa pode ser construída com estes pilares de con-creto armado que vocês já conhecem, de 15 a 20cm de seção eseparados uns 5m em média, deixando-se entre eles um certo va-zio e a casa construída antes com paredes de pedras já não seconstrói mais do que com estes pilares. A seguir, a nova casa devárias plantas apresentará uma fachada com aspecto de uma enor-me malha, constituída pelos pilares e pelas vigas de concreto ar-

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mado, que deixam entre si vazios totais.

Neste momento, fatalmente surgiu um problema, que passeia investigar, ainda sem conclusões, e que coloco em discussão, demodo que se possa chegar a um sistema lógico e defensável.

Para que, pergunto, encher este espaço, posto que foi dadovazio? Para que serve uma janela, senão para iluminar as paredes?E isto não é uma obviedade, é uma realidade arquitetônica profun-da. Se uma janela normal ilumina a parede em frente, ilumina me-nos as paredes laterais e não ilumina, em absoluto, o plano no qualfoi aberta: duas zonas de sombra inundam a metade do cômodo.Pelo contrário, se conservo vazio todo o espaço disponível, obte-nho a sensação arquitetônica primordial, fisiológica, capital, a daluz – se está a gosto na luz. Foi assim que cheguei a admitir queuma janela corrida, igual em área a uma grande janela vertical, lheé superior, já que permite iluminar as paredes laterais. (E, diga-sede passagem, tem também outras conseqüências práticas na dis-posição das habitações.)

Daí pode-se deduzir todo tipo de conseqüências, mas o quetento ressaltar é a força de um fenômeno antropocêntrico. Colo-co, antes de tudo, o homem em seu meio, perguntando-me o queele necessita para ter sensações agradáveis. Deduzo, então, queesta janela tem, fisiologicamente, uma vantagem. E é assim queme posiciono diante de um quadro arquitetônico singularmentetranstornado. (Aplausos)

Até 1900, quando se falava de casas, entendia-se pelo termoumas paredes e um telhado – eram as partes determinantes dacasa. Sem dizer uma sagacidade, podemos afirmar que as paredese os telhados já não existem, já não têm razão de existir. Tentareiexplicar o que vocês poderão tomar como uma piada.

Antes, uma parede tinha diferentes funções: servia para sedefender dos malfeitores; muros de cidades, de fortalezas, de ca-sas, tudo isto repousava sobre uma noção de defesa. Uma vezdesaparecida esta primeira finalidade, as paredes permaneceram,porque tinham outra função, a de suportar os pavimentos. Tinhamde ser grossas, já que eram feitas com pedras que dificilmente seuniam, sobretudo porque não se dispunha de aglomerante de forteaderência, quer dizer de argamassa; a argamassa não apareceu até

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o final do século XIX; não se dispunha mais que de barro, argilaou cal magra para juntar bem ou mal as pedras ou as lascas: erapreciso, pois, fazer paredes grossas para faze-las suficientementesólidas.

Quando surgem os cimentos artificiais, aglomerantes maisduros que a pedra, em seguida se pensa em fazer paredes menosgrossas. Mas esta tentativa, que levou à criação do concreto ar-mado, logo fez considerar a própria supressão dos muros portantes.Com os pilares empregados hoje em dia, tenho o direito de dizerque a parede está suprimida. Não tenho mais que tampar o interva-lo entre dois pilares para defender-me do frio, do calor ou dosintrusos, atentando que uma parede fina, porém dupla, é mais efi-caz que uma parede única e grossa.

Graças aos materiais modernos, a parede já está constituídasó por uma fina membrana de tijolos ou qualquer outro produtoque forme um fechamento, duplicada por uma segunda membranano interior; o que antes era um elemento portante converteu-se emum simples recheio; levando as coisas ao absurdo, poderia fazer,sem dificuldade e sem perigo, paredes de papel: a solidez do edifí-cio não se importaria.

Eis aí um fenômeno novo em arquitetura; já não tenho queutilizar espessuras enormes e grandes áreas de parede, que acarre-tavam um sistema estético determinado.

A técnica moderna nos conduz ainda a outras conseqüênci-as. O telhado inclinado era, antes, o único meio de evacuar aságuas da chuva. No entanto, desde o final do século XIX, o ci-mento Portland permite fazer coberturas planas, em terraço, abso-lutamente impermeáveis.

Sei que fazendo esta afirmação vou suscitar dúvidas, mas amantenho categoricamente. Se muitos construtores têm falhadonas coberturas em terraço é porque o abordaram mal, misturandovelhos princípios com novos procedimentos.

Antes, os telhados eram constituídos por uma armação demadeira, as chuvas eram captadas por calhas: não havia outro sis-tema. Mas hoje, uma superfície de concreto pode evacuar as águasda chuva já não ao exterior, mas ao interior da casa; há que seconstruir a cobertura em forma de concha.

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Este é um aperfeiçoamento importante. Chamado para cons-truir uma casa a 1.000m de altitude, num clima muito duro comfortes nevadas, tive que chegar a estudar o encadeamento dosfenômenos e constatar que uma inovação técnica traz consigo umasérie de conseqüências consideráveis e inesperadas.

As casas do Alto Jura têm estufas de cerâmica que expan-dem um suave calor em cada pavimento: se, por desgraça, intro-duzimos a calefação central, o calor se expandirá em todo o imó-vel, até a cobertura; a parte inferior da camada de neve em contatocom o telhado começará a derreter-se e a água escorrerá sobre astelhas, sob a capa de neve.

No entanto, no alto da parede, na parte baixa do telhado oefeito do calor cessa (pensem que o frio alcança às vezes –18o);imediatamente a água que escorria sobre a telha ou a ardósia secongela, formando estalactites de gelo penduradas nas calhas earrancando-as.

Mas, a introdução da calefação central tem conseqüênciasmuito mais graves, e eu as experimentei, às minhas custas, cons-truindo, na mesma altitude, um grande cinema de 1.200 lugares.Penso que esta experiência é uma experiência tipo, uma verdadeiraexperiência de laboratório, pois raramente as condições são tãolimpas. Minha sala de projeção, de área grande, estava coberta porum telhado sobre o qual se acumulava, em um dia, uma camada deneve de mais de meio metro de espessura. Sob as telhas, a calefa-ção central expelia do interior uma massa de ar quente. A este caloracrescentava-se, por volta de meia noite, o calor desprendido por1.200 espectadores. Fora, 20o de frio, no interior, 20 ou 30o decalor. Minha cobertura à noite fumaçava, como um enorme ebulidor:o vapor subia em nuvens até o céu! Entre a camada de neve e astelhas, escorriam milhares de litros de água...

Mas no ângulo da parede exterior com o telhado, a calefaçãocessava seus efeitos. Só o frio reinava, -20o! Sob a camada deneve, a água tinha impregnado as telhas, e também a neve. A calha,fora da parede, estava cheia de gelo; por cima, quer dizer, no beiraldo telhado, as telhas, a água e a neve formavam um bloco com-pacto de gelo. Ou seja, uma muralha de gelo, portanto uma bordaintransponível para a água que jorrava deste imenso telhado: os

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milhares de litros de água, seguindo a lei dos vasos comunicantes,encontraram sua saída mais além da primeira linha de telhas, emdireção ao interior, e passaram à sala de cinema! Dilúvio ao longodas paredes, no interior.

Conclusão lógica desta experiência tipo: o telhado deve serem côncavo, não convexo; a água deve ser evacuada ao interiorpor meio de condutores situados sob a influência do calor da casae, por conseguinte, com a impossibilidade de congelar. A neve per-manece tranqüilamente amontoada sobre o terraço, formando umexcelente isolante contra o frio.

Se esta é a única solução nos casos mais difíceis, estamoscertos de que esta solução é a solução tipo para todos os casos. Acobertura submetida à intempérie deve ser côncava e evacuar suaságuas no interior, desde que a calefação central tenha sido instala-da na casa.

A partir daí, tentem perceber as implicâncias estético-arquitetônicas que teria, num país inteiro, a supressão dos telha-dos e sua substituição por terraços.

Há uns quinze anos fundou-se na Alemanha um liga para adifusão das coberturas de terraço: as achavam bonitas, estetica-mente falando. Mas não se afrontara o problema pelo lado justo,não se deu a razão técnica que satisfaz o espírito, que tranqüiliza aconsciência e permite seguir adiante: com uma razão técnica queconfirma o espírito em seus direitos e o tranqüiliza, podemos en-tão admitir as belezas da geometria, do ortogonal, posto que aíestão, autorizadas a partir de agora, impulsionadas inclusive pelascondições técnicas essenciais do problema.

Por conseguinte, quando digo que já não há telhados, nemparedes, e que estes fatores atuam profundamente sobre a estéti-ca, me vejo obrigado a buscar uma nova estética.

Para poder ser formulada, esta estética precisa se acomodarem bases seguras: quais podem ser?

A fisiologia das sensações nos dá um ponto de partida útil.

Esta fisiologia das sensações é a reação de nossos sentidosfrente a um fenômeno ótico. Meus olhos transmitem aos meussentidos o espetáculo que lhes é oferecido. Diante destas várias

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linhas que traço na lousa, nascem outras tantas sensações diferen-tes: diante de uma linha quebrada ou contínua, até o sistema cardí-aco se vê influenciado; sentimos as sacudidas ou a suavidade dalinhas que observamos.

Acompanhemos as repercussões sobre nossa sensibilidadedestas sensações fisiológicas; chegaremos a fazer uma seleção: tallinha quebrada é desagradável, tal linha contínua é agradável, talsistema de linhas incoerentes nos afeta, tal sistema de linhas rítmi-cas nos equilibra, logo perceberão que se faz uma escolha, que seestabelece uma preferência e que se retorna, irremediavelmente,ao que os artistas têm feito e escolhido sempre, a umas linhas e aumas formas que satisfazem nossos sentidos.

Neste campo de linhas e formas que satisfazem nossos sen-tidos, verificamos uma vez mais que a geometria é onipotente.

A conseqüência será o emprego de formas de geometria pura;estas formas terão para nós um atrativo considerável, e isto porduas razões: em primeiro lugar, atuam claramente sobre nosso sis-tema sensorial; segundo, desde o ponto de vista espiritual, trazemem si a perfeição. São formas que foram geradas pela geometria,formas que chamamos de perfeitas, e cada vez que encontramosuma forma perfeita experimentamos uma grande satisfação. Sai-bamos que estamos numa época em que, pela primeira vez, graçasao maquinismo, vivemos em coabitação efetiva com as formaspuras da geometria.

Queria que aferissem como se concretiza a composição daobra arquitetônica e como o fenômeno geométrico da arquiteturadesemboca na precisão.

Disse que a questão técnica precede e é a condicionante detudo, que traz conseqüências plásticas imperativas e que leva, àsvezes, a transformações estéticas radicais: depois, trata-se de re-solver o problema da unidade, que é a chave da harmonia e daproporção.

Os traçados reguladores servem para resolver o problema daunidade.

Diz-se que pela garra se reconhece o leão; em outros termos,um leão tem todos os seus órgãos feitos de tal maneira que existe

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nele uma harmonia. Uma obra arquitetônica deve possuir os mes-mos níveis de harmonia, pela garra deve-se reconhecer o leão.

Quais são os fatores emotivos de uma arquitetura? O que oolho vê. O que vê o nosso olho? Vê superfícies, formas, linhas.Trata-se, pois, de criar a todo custo na obra arquitetônica odeterminante essencial da emoção, quer dizer, as formas excitan-tes que a constituem, que a animam, que estabelecem entre si re-lações apreciáveis, que proporcionem as sensações.

Aí exatamente está a invenção arquitetônica: relações, ritmos,proporções, condições da emoção, máquina de emocionar. Só otalento atua aqui.

Eis aqui como se estabelece o caráter emotivo da arquitetura:primeiro, o cubo geral do edifício lhes toca básica e definitivamen-te, é a sensação primeira e forte. Vocês abrem nele uma janela ouuma porta: imediatamente surgem relações entre os espaços assimdeterminados; a matemática está na obra. Pronto, isto é arquitetu-ra. Falta polir o trabalho introduzindo a unidade mais perfeita, ajus-tando a obra, regulando os diversos elementos: intervêm os traça-dos reguladores.

O traçado regulador foi muito empregado em certas grandesépocas, ao menos pelo que dizem excelentes historiadores da arte;isto é o que tenho lido, em particular, na admirável história daarquitetura de Choisy, que diz o suficiente para despertar em nós ogosto pela unidade.

Os traçados reguladores haviam caído em desuso neste últi-mo período: trata-se pois de tornar a lançar mão deste meio tão útile de ver por que caminho se chega ao traçado regulador.

Certa vez escrevi um capítulo sobre o traçado regulador: umano mais tarde recebia uma carta de um colega de Amsterdam,homem de grande valor, que tinha pelas costas uma carreira glori-osa de precursor. Em sua carta me dizia que sempre fizera traça-dos reguladores; ao mesmo tempo, me enviava seu livro. Aí en-contrei traçados contra os quais, pelo que me diz respeito, souobrigado a levantar-me.

Dá, por exemplo, uma fachada com torres acopladas; seutraçado regulador está formado por uma rede de diagonais pelasquais chega a fazer passar (não é difícil) todos os pontos da sua

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construção: já não se trata de um traçado regulador, é uma tela; deacordo com este pensamento, todos os bordados de ponto cruzestariam feitos com traçado regulador; o verdadeiro traçado regu-lador é o que chega a unificar, em suas características, tal elemen-to em relação ao conjunto, uns fragmentos em relação aos outros,que chega a revelar a relação matemática suscetível de animar re-gularmente todos os elementos da obra.

Indicarei rapidamente um ou dois, para tentar objetivar estemétodo que deve, de fato, conservar o máximo realismo e não cairnunca no palavrório nem, sobretudo, na ilusão dos gráficos erudi-tos.

(Demonstração na lousa, impossível de reproduzir sem a fi-gura.)

Vocês vêm como chego a enlaçar os elementos principaiscom os elementos secundários mediante uma relação geométricasensível e autêntica.

Para se chegar a estes traçados reguladores não existe umafórmula única, fácil de se aplicar; a bem dizer, é uma questão deinspiração, de verdadeira criação; tem que se encontrar a lei geo-métrica que está em potência em uma composição, que a regula edetermina; em um dado momento revela-se ao espírito e unificatudo; então acontecem alguns deslocamentos, algumas retifica-ções; uma harmonia perfeita reina, no fim, em toda a composição.

Para terminar, deixem-me dizer ainda algumas palavras sobreuma das características determinantes da arquitetura atual. Querofalar da cornija, que neste momento apresenta um problema gravee desencadeia posições antagônicas.

Do mesmo modo que não há paredes, nem telhado, chega-sequase normalmente a formular este princípio heróico, onerado deconseqüências: já não é possível a cornija. Nem parede, nem te-lhado, nem cornija, resultado inquietante de uma evolução técnica.Que conseqüências estéticas, pois!

Suprimir o valor da cornija é infligir um importante transtor-no aos hábitos adquiridos e isto já me custou muitos protestos,mais ou menos justificados. Mas, desde o ponto de vista estético,o único que me interessa definitivamente, admitir que a cornijadeva ser eliminada é aportar um elemento capital à redação de um

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2 Restam, no entanto, dois fenômenos por vencer: 1) o da porosidade dasargamassas geralmente empregadas, e sua opacidade: a água da chuva, no decorrerdas horas, filtra-se lentamente de cima abaixo, formando uma ‘baba’ momentâneamuito feia, que desaparece com o primeiro raio de sol. Mas por que limitar-se aargamassas que imitam pedra e não admitir os esmaltes brilhantes sobre os quaiseste fenômeno de porosidade não se produz? 2) Talvez se produza um efeito desifão por cima da aresta aguda do coroamento, em favor do plano vertical dafachada. Estudamos um coroamento de ferro laminado, perfil nítido e decisivoda casa contra o céu, e que serve de para-sifão.

novo código da arquitetura.

Na origem, a cornija respondia a uma idéia: suportar algo. Acornija primitiva no telhado que avançava a parede que o sustenta-va, princípio elementar que encontramos em todas as construçõesprimitivas; depois, com o desejo de faze-lo melhor, se sustentaramas vigas em balanço com mísulas de pedras; em seguida, colocou-se sobre as mísulas uma pedra horizontal sobre a qual se fizeramapoiar as vigas do telhado: tinha nascido a cornija. Nasceu. Mastambém vai desenvolver-se e converter-se no elemento principalde toda arquitetura: a cabeça, em certo modo, órgão sentimental. Acornija, como as ‘ordens’, toma o valor de um postulado. Impos-sível destroná-la sem uma razão válida!

De repente, surge um procedimento novo que suprime o te-lhado: manter a cornija se converte num paradoxo; já não é dese-nhada pelas mãos de um arquiteto, pelas mãos de um construtor.

Mas, dizem, a cornija protege a fachada. É, no entanto, umelemento caro de se fazer e estamos, por sorte ou desgraça, emuma época que obriga a buscar soluções mais econômicas. Filoso-ficamente, a economia é uma aspiração elevada. Assim pois acornija já não tem razão de ser, posto que bastará fazer com ci-mento uma aresta viva, nítida como a borda de uma tigela, queenviará as águas da chuva em direção ao deságüe central da cober-tura. E nego, até novo aviso, a eficácia da pretendida proteção quea cornija exerce sobre as paredes: a chuva cai mais ou menosobliquamente, para que queremos uma cornija que proteja 2 ou 3mde fachada de um arranha-céu de 200m? Para que uma cornija,mesmo em uma casa de dois andares?2

Eliminar a cornija, atualmente, é desembocar em uma conse-qüência estética considerável e verdadeiramente revolucionária. Ofato de eliminá-la e poder explicar esta eliminação logicamente, ofato de construir bem, de não fazer uma construção que seja incô-

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moda, que apresente avarias, representa uma das conquistas maiscaracterísticas da arquitetura atual. Chegamos a uma conclusãode ordem estética que é o aspecto simples.

O simples é o resultado da economia, e dou a esta últimapalavra o mais alto valor, porque tem o mais belo significado. Agrande arte é simples; as grandes coisas são simples.

Mas não nos esqueçamos jamais – e terminarei com isto –que se o simples é grande e digno é porque, por definição, é asíntese do complicado, do rico, do complexo. É um comprimido.Seria desolador ver-nos fracassar na moda do simples, se estasimplicidade não for mais que uma moda. E este é mais ou menoso senão que nos ameaça.

Por todas as partes se vêem coisas simples e nos extasiamosdizendo: é simples! Se é uma simplicidade que resulta de uma grandecomplexidade e de uma grande riqueza, tudo bem; mas, se é apobreza o que se expressa sob estas novas modalidades, como seexpressava antes sob as modalidades complicadas da decoração,não se ganhou nada, não se fez nenhum progresso.

Desejo que esta simplicidade seja, ao contrário, a concentra-ção, a cristalização de uma infinidade de pensamentos e de meios.

Assim, o traçado regulador, a supressão da cornija e do telha-do conduzem à simplicidade; mas esta simplicidade exige em tro-ca uma grande exatidão construtiva, uma precisão de intenção eum rigor de raciocínio absolutos; sobretudo requer o aporte daproporção, da relação matemática, se se propõe provocar este de-leite de ordem matemática que é, como tentei dizer no início destaconferência, uma das aspirações mais lícitas do nosso caráter deespírito moderno.

A este respeito, acho que a Exposição das Artes Decorativas,que será aberta no próximo ano, vai dar um golpe ao que ainda sechama de ‘artes decorativas’. Já não estamos em um tempo quepossa digerir a arte decorativa; a arte decorativa é um resto velhodo passado que já não tem razão de subsistir ante uma renovaçãotão completa do nosso estado mental. Logo estaremos fartos dosencantos um tanto obsessivos e fúteis da decoração e nos vere-mos diante do único problema que poderá nos seduzir, a pureza, acristalização, a coisa nítida, um pouco irremissível, dura talvez,

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mas tal como pode criá-la o estado de espírito a que nos terãoconduzido o maquinismo e suas inevitáveis conseqüências; umestado de espírito de época requer de nós concentração, violênciacontra nós mesmos. É este espírito de ordem geométrica, mate-mática, que será o dono dos destinos arquitetônicos. Da mesmaforma que a pintura, por meio de muitas guinadas, se dirige a taisdestinos, do mesmo modo a arquitetura, que se pauta pela exce-lência das relações, será o lugar da geometria pura.

A este respeito, o urbanismo, que é a coisa eminente sem aqual a arquitetura não tem sentido, que é a única razão de ser deuma arquitetura de época, o urbanismo que bate à porta com pan-cadas fortes, sacudindo todas as torpezas pela potência e rapidezcom que se impõe o acontecimento moderno, o urbanismo, digo,vai nos proporcionar, sobre traçados geométricos, cidades novas,que poderão estar tão bem intra-muros como extra-muros. O ur-banismo se dedicará à grande cidade e não irá construir novascidades em países novos e desconhecidos: está feito para ser apli-cado ao estado atual das cidades atuais. Chegaremos a traçadosnovos das cidades: quer se trate de Paris, Londres, Moscou ouRoma, estas capitais deverão transformar-se totalmente sobre seupróprio meio, por mais esforço que custe, por radical que deva sero transtorno. E aqui também, repito, o único guia possível será oespírito de geometria.

(Aplausos.)

Terminarei esta conferência oferecendo aos seus olhos foto-grafias destinadas a objetivar as idéias que acabo de expressar.

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Louis Kahn

FORMA E DESENHO1

Um jovem arquiteto formulou-me esta pergunta: “Sonhocom espaços maravilhosos, espaços que surgem e se desenvol-vem fluidamente, sem começo nem fim, feitos de um material con-tínuo, branco e ouro. Por que quando traço a primeira linha sobreo papel, tratando de fixar o sonho, ele acaba desmerecido?”

É uma pergunta interessante. Aprendi que uma boa perguntatem mais valor que a mais brilhante das respostas. Esta é umapergunta que se relaciona com o comensurável e o incomensurá-vel. A natureza – a natureza física – é comensurável. As emoçõese a fantasia não têm medida, não têm linguagem, e os sonhos decada um são distintos. Entretanto, tudo o que se faz obedece àsleis da natureza. O homem é sempre maior que suas obras porquenunca pode expressar completamente suas aspirações. Para seexpressar através da música ou da arquitetura deve recorrer a meioscomensuráveis como a composição e o desenho. A primeira linhasobre o papel já é uma medida do que pode ser expressado de fato.A primeira linha sobre o papel já é uma limitação.

“Então – perguntou o jovem arquiteto – qual é a disciplina,qual é o ritual que pode nos acercar à psique? Porque é nesta aurasem matéria nem linguagem onde sinto que o homem verdadeira-mente é.”

Volte ao Sentimento, afaste-se do Pensamento. No Senti-mento está a Psique. O Pensamento é o Sentimento mais a presen-ça da Ordem. A Ordem, feitora de toda a existência, não tem Von-

1. Artigo publicado na Revista “Architectural Desing” em abril de 1961.

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tade de Ser. Prefiro a palavra Ordem em lugar de Conhecimento,porque o conhecimento pessoal não chega a expressar o pensa-mento de forma abstrata. Esta Vontade de Ser está na Psique. Tudoo que queremos criar tem seu princípio, exclusivamente, no senti-mento. Isto que é verdade para o cientista, igualmente o é para oartista.

Mas preveni o meu interlocutor de que contar só com o Sen-timento e ignorar o Pensamento significa não realizar.

Disse o jovem arquiteto: “Viver e não realizar é intolerável.Os sonhos trazem implícitos a vontade de ser e o desejo de ex-pressar essa vontade. O Pensamento é inseparável do Sentimento.Então, de que maneira o Pensamento pode participar da criação,de modo que esta vontade psíquica possa ser mais cabalmenteexpressada? Esta é minha segunda pergunta.”

Quando o sentir pessoal transcende a Religião (não em umareligião, mas na essência da religião) e o Pensamento nos leva àFilosofia, a mente se abre à compreensão. Compreensão da virtualvontade de ser de, digamos, determinados espaços arquitetônicos.A compreensão é combinação do Pensamento e do Sentir nummomento em que a mente se encontra em uma relação mais estrei-ta com a psique, origem do que uma coisa quer ser. Este é o come-ço da Forma. A Forma implica uma harmonia de sistemas, umsentido de Ordem e do que individualiza uma existência. A formanão tem figura nem dimensão. Por exemplo, ‘colher’ (o conceitode colher) caracteriza uma forma que possui duas partesinseparáveis – o cabo e o receptáculo côncavo – enquanto queuma colher implica um desenho específico feito em prata ou ma-deira, grande ou pequena, profunda ou não.

A Forma é o “quê”. O Desenho é o “como”. A Forma éimpessoal, o Desenho pertence ao designer. Desenhar é um atocircunstancial, depende do dinheiro de que se dispõe, do lugar, docliente, da capacitação. A Forma não tem nada a ver com as con-dições circunstanciais. Em arquitetura, caracteriza uma harmoniade espaços adequada a certa atividade do homem.

Reflita então sobre o que caracteriza, abstratamente, osconceitos “casa”, “uma casa”, ou “o lar”. “Casa” é o conceito

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abstrato de espaços convenientes para se viver neles. “Casa” éportanto uma forma mental, sem configuração nem dimensão. Emcâmbio, “uma casa”, é uma interpretação condicionada destes es-paços. Isto é desenho. Na minha opinião, o valor de um arquitetodepende mais de sua capacidade de apreender a idéia de “casa”,que de sua habilidade para desenhar “uma casa”, que é um atodeterminado pelas circunstâncias. “O lar” é a casa e seus ocupan-tes. “O lar” varia de acordo com o ocupante.

O cliente para quem se desenha uma casa diz ao arquiteto assuperfícies de que necessita. O arquiteto cria espaços a partir des-tas indicações. Uma casa criada desta maneira para uma famíliadeterminada deve possuir a qualidade de servir também a outrafamília. Desta maneira o desenho reflete sua fidelidade à Forma.

Imagino a escola como um meio ambiente constituído porespaços nos quais pode-se estudar satisfatoriamente. As escolascomeçaram com um homem, que não sabia que era um mestre,discutindo suas experiências, sob uma árvore, com uns poucosque, por sua vez, ignoravam que eram estudantes. Estes últimos,refletindo sobre o que se falara e sobre o útil que lhes tinha sido apresença daquele homem, desejaram então que seus filhos tam-bém escutassem a um homem semelhante. Logo se construíramos espaços necessários e apareceram as primeiras escolas. A apa-rição da escola era inevitável porque formava parte dos desejos dohomem.

Nossos vastos sistemas educacionais, agorainstitucionalizados, surgiram destas pequenas escolas, mas o espí-rito dos seus primórdios se esqueceu. Os locais que hoje requeremnossas instituições são estereotipados e pouco sugestivos. As sa-las uniformes, os corredores com seus armários e o resto dasdependências estão dispostos pelo arquiteto em busca de uma res-posta supostamente funcional que não exceda os limites métricose orçamentários rigidamente impostos pelas autoridades. Estasescolas, ainda que agradáveis, são pobres de arquitetura porquenão refletem o espírito daquele homem que ensinava debaixo daárvore. No entanto, todo sistema de escolas que seguiu aqueleprincípio não teria sido possível se o próprio princípio não estives-

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se em harmonia com a natureza do homem. É provável que avontade de ser da escola existisse antes mesmo que circunstânciado homem sob a árvore.

É bom para a mente voltar aos primórdios porque o começode toda atividade estável do homem é o seu momento mais mara-vilhoso. Nele se encontram todo seu espírito e toda sua riqueza, eé nele que constantemente devemos buscar inspiração para resol-ver nossas necessidades atuais. Podemos contribuir para o en-grandecimento de nossas instituições brindando-lhes nosso modode sentir esta inspiração mediante a arquitetura que lhe oferece-mos.

Reflita então sobre o significado de escola, em contraste como de uma escola ou instituição. A instituição é a autoridade que nosexpõe as necessidades às quais devemos responder. Uma escola,um desenho específico, é o que a instituição espera de nós. MasEscola – o espírito Escola, a essência da vontade de ser – é o queo arquiteto deve expressar por meio do seu desenho.

Isto é o que distingue o arquiteto do mero desenhista.

Na escola como reino dos espaços aptos para o estudo, o hallde entrada – que para a instituição é só uma área de x metrosquadrados por aluno – se converteria em um generoso espaço dotipo Partenón, que convidaria os alunos a entrar. Os corredores,de dimensões mais amplas, abertos aos jardins, se transformariamem verdadeiras salas de aula, propriedade dos estudantes. Nesteslugares, os rapazes se reuniriam com as moças e poderiam discutiras aulas dos professores. Se estes espaços fossem também utiliza-dos nas horas de aulas, e não só nos intervalos, eles se converteri-am em lugares de reunião, oferecendo assim a oportunidade deintercâmbio e de estudo. Neste sentido viriam a ser classes depropriedade dos alunos. As classes deveriam refletir seu uso atra-vés da variedade espacial e não manter uma semelhança de dimen-sões de tipo familiar, porque uma das maiores qualidades do mes-tre que ensinava sob a árvore era a de reconhecer a individualidadede cada homem. Um mestre ou um aluno que se encontra numahabitação diante de uma chaminé, rodeado por pouca gente, não éo mesmo quando se encontra em uma grande habitação junto com

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muitas pessoas. O refeitório pode estar no sótão, ainda que o tem-po que se permaneça ali seja pequeno? O momento de descanso darefeição não é também parte do ensino?

Enquanto estou sozinho, escrevendo no meu escritório, te-nho sensações das mesmas coisas diferentes das que tinha quan-do, falando sobre elas, me dirigia há poucos dias a um grupo nu-meroso em Yale. O espaço é forte e dá o tom. Além disso, o con-ceito de que cada pessoa é um indivíduo distinto sugere também anecessidade da variedade de espaços, e da variedade de iluminaçãonatural e de orientação relativa dos recintos e o jardim. Este tipo deespaços é capaz de produzir novas idéias para o programa de ensi-no, para uma melhor vinculação entre o mestre e o aluno, parauma maior vitalidade no desenvolvimento da instituição.

A compreensão do que caracteriza os espaços ideais parauma escola, por parte do instituto de ensino que a demanda, obrigao arquiteto a inteirar-se do que a Escola quer ser, quer dizer, tomarconsciência da forma Escola.

Neste mesmo sentido gostaria de me referir a uma IgrejaUnitária.

No primeiro dia falei diante da congregação usando uma lou-sa. Das discussões do ministro com os homens que o cercavamdeduzi que o aspecto formal, a concepção formal da atividadeUnitária, baseia-se no Questionamento. O eterno Questionamentodo por quê acontece tudo. Eu tinha que chegar a compreender quevontade de ser e que ordem de espaços expressava oQuestionamento. Esbocei um diagrama na lousa com a intenção deque servisse como esquema da Forma da igreja; claro que de modoalgum era o desenho que eu sugeria. Rabisquei um quadrado cen-tral, dentro do qual coloquei um sinal de interrogação. Digamosque este seria o santuário. O circundei com uma galeria, destinadaàqueles que não desejassem penetrar no santuário. Em volta dogaleria rabisquei um corredor, limitado pelo círculo exterior, quecontinha o espaço destinado à escola. Estava claro que a Escola,na qual se originava o Questionamento, se converteria no muroque a cercava. Isto era a expressão da forma da igreja, não seudesenho.

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Com relação a isto, considerarei por um momento o signifi-cado da Capela numa universidade. Este significado radica nosmosaicos, nos vidros coloridos, nos efeitos de água e outros arti-fícios conhecidos? Não se trata mais do lugar de um ritual inspira-do que poderia expressar-se pelo gesto de um aluno que passaperto da Capela, depois que um bom mestre lhe tenha mostrado overdadeiro sentido da dedicação ao trabalho? O aluno nem sentenecessidade de entrar.

Este lugar, que no momento não descreverei, possui umagaleria para quem não deseja entrar. A galeria, por sua vez, estárodeada por uma varanda, para quem não quiser passar pela gale-ria. A varanda dá para o jardim, para quem preferir não passar porela. O jardim tem uma parede e o aluno pode estar do lado de fora,dirigindo-se à capela com um gesto. Trata-se pois de um rito ins-pirado, não estabelecido, e é a base da forma Capela.

Voltemos à Igreja Unitária. Minha primeira solução foi umafigura completamente simétrica: um quadrado. As classes forma-vam a periferia do edifício, cujos ângulos estavam ocupados porsalas maiores. No espaço central situavam-se o santuário e a gale-ria. O desenho tinha uma disposição muito similar à do diagramaque tinha esboçado na lousa. No começo a idéia agradou a todos,até que os interesses particulares de cada um dos membros docomitê começaram a minar a rígida geometria em que se baseava.Mas a premissa original da escola ao redor do santuário se manti-nha.

Ajustar-se à circunstância é justamente o papel que competeao desenho. Durante uma discussão com os membros do comitê,alguns insistiram em que o santuário devesse ficar completamenteseparado da escola. Eu o aceitei, provisoriamente, e coloquei entãoo auditório num lugar à parte e o conectei com a escola medianteuma pequena circulação. Logo perceberam que a hora do cafezinho,depois da cerimônia, exigia várias salas próximas ao santuário, eque, como agora elas se encontravam num bloco independente,não chegavam a cumprir sua função, sendo necessário duplicarseu número. Além disso, as classes, com a separação, perdiam opoder de evocar seu objetivo religioso e intelectual, de modo que

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voltamos a agrupá-las ao redor do santuário. O desenho final dife-re do primeiro, mas a forma se mantém.

Quero dizer mais alguma coisa sobre a diferença que existeentre forma e desenho, sobre a concepção, sobre os aspectoscomensuráveis e incomensuráveis do nosso trabalho e de suaslimitações. Giotto foi um grande pintor. Porque foi um grande ar-tista, pintou céus diurnos de cor negra, pássaros que não podiamvoar, cachorros que não podiam correr e homens mais altos queas portas. Um pintor tem destas prerrogativas. Não tem por queresponder aos problemas da gravidade, nem considerar as ima-gens tais como as conhecemos na vida real. Como pintor, expres-sa uma reação frente à natureza e, por meio de seus olhos e suasreações, nos ilustra a natureza do homem. O escultor modifica oespaço com objetos que também são expressão das suas reaçõesdiante da natureza. Não cria espaços, os modifica. O arquiteto criaespaços.

A arquitetura tem limites. Quando tocamos os muros invisí-veis dos seus limites é quando conhecemos melhor o que elescontêm. Um pintor pode conceber quadradas as rodas de um ca-nhão para expressar a futilidade da guerra. Um escultor tambémpode moldá-las quadradas. Mas um arquiteto deve fazê-las redon-das. Ainda que a pintura e a escultura tenham um belo papel noreino da arquitetura, assim como a arquitetura o tem nos reinos dapintura e da escultura, todas elas são regidas por disciplinas distin-tas. Pode-se dizer que a arquitetura não consiste simplesmente emcobrir as áreas determinadas pelo cliente. É a criação de espaçosque evocam o sentimento do seu uso adequado.

Para o compositor, a folha de música é um registro visível doque ele ouve. O projeto de um edifício deve – do mesmo modo –poder ser lido como uma harmonia de espaços iluminados. Cadaespaço deve ser definido pela sua estrutura e pelo caráter de suailuminação natural. Mesmo um espaço concebido para permane-cer às escuras deve ter luz suficiente – proveniente de algumamisteriosa abertura – que nos mostre quão escuro de fato é. Éclaro que não falo das áreas minúsculas que servem espaços mai-ores.

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Um espaço arquitetônico deve revelar, por si mesmo, a evi-dência de sua formação. O que não acontecerá se ele estiver mol-dado dentro de uma estrutura maior concebida para um espaçomaior, porque a escolha da estrutura é sinônimo da escolha da luzque dá forma a este espaço. A luz artificial é apenas um brevemomento estático da luz; é a luz da noite e nunca pode se igualaraos matizes criados pelas horas do dia e pelas maravilhas das esta-ções.

Um grande edifício deve começar com o incomensurável;depois submeter-se a meios comensuráveis, quando se encontrarna etapa do desenho, e ao final deve ser de novo incomensurável.O desenho – fazer coisas – constitui um ato comensurável. Nestemomento é como se o desenhista fosse a própria natureza física,já que na natureza física tudo é passível de medida, mesmo o queainda não se mediu, o caso da distância até as estrelas mais distan-tes, que algum dia, supomos, também poderemos medir.

O que é incomensurável é o espírito psíquico. A psique seexpressa por meio do sentimento e do pensamento, e eu acreditoque permanecerá para sempre incomensurável. Intuo que a Vonta-de de Ser psíquica invoca a natureza para realizar-se naquilo quequer ser. Eu penso que uma rosa quer ser uma rosa. A Vontade deSer homem se concretiza na existência por meio das leis da nature-za e da evolução. O resultado é sempre inferior ao espírito de ser.

Do mesmo modo, um edifício tem de começar em uma auraincomensurável e concretizar-se por meio do comensurável. É aúnica maneira de construirmos; a única maneira de chegar a serconcretiza-se através do comensurável. É preciso respeitar as leis,até que, no fim, o edifício passa a ser algo vivo, evoca qualidadesque são, de novo, incomensuráveis. O desenho, enquanto demons-tração da quantidade de tijolos, dos sistemas construtivos e decálculo, está finalizado; o espírito de ser do edifício ocupa entãoseu lugar.

Tomemos por exemplo o bela torre de bronze erguida emNova York (por Mies van der Rohe).

É uma dama de bronze, de beleza incomparável. Mas sabe-mos que tem corpetes de 15 andares porque não se vê o

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contraventamento, ou seja, aquilo que faria dela um objeto contrao vento expresso com beleza, assim como a natureza expressa adiferença entre o musgo e o junco. A base deste edifício deveriaser mais larga que a parte superior; as colunas superiores que dan-çam como fadas, e as de baixo, crescendo loucamente, não tem asmesmas dimensões porque não são a mesma coisa. A concepçãoda forma de uma torre deveria ser mais expressiva das forças im-plícitas nela. E ainda que a primeira tentativa de desenho tendessea ser feia, a fidelidade à forma terminaria por fazer-se bela.

Estou construindo um edifício na África, num lugar bem pró-ximo ao Equador.

A luminosidade é insuportável; todas as pessoas parecemnegras quando observadas à luz. A luz é necessária, mas também éuma inimiga. Com o sol implacável a pino, a hora da sesta sedescarrega como um trovão. Vi por lá muitas cabanas construídaspor nativos. Não há arquitetos entre eles. Mas voltei muito impres-sionado com a inteligência que aqueles homens demonstraram aoresolver os problemas do sol, da chuva e do vento. Percebi que acada janela deve opor-se uma parede livre para receber a luz do diae que esta parede deve ter uma abertura ao céu. Deste modo, aparede modifica a luminosidade e não anula a visão; além disso,evita-se o contraste causado pelas manchas de luz e sombra queprojetaria qualquer treliçado disposto diante da janela. Também pudeperceber a efetividade do uso da brisa como isolante, coisa que sepode conseguir por meio de um teto-sombreiro solto e separadoda cobertura impermeável por um espaço de aproximadamente1,80m. Estes desenhos de janela, parede e proteção de sol e chuvamostrarão ao homem comum a forma de vida em Angola.

Estou projetando um original laboratório de pesquisa em SanDiego, na Califórnia.

É assim que começou o programa: o diretor, um homem fa-moso, me ouviu falar em Pittsburgh. Mais tarde veio até a Filadél-fia ver o edifício que eu tinha projetado para a Universidade daPennsylvânia. Saímos juntos num dia chuvoso.

“Um belo edifício – disse-me -, não imaginava que podia serbonito um edifício tão grande. Que área tem?”

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“10.140 m2.”

“É mais ou menos o que precisamos.”

Este foi o começo do programa das áreas. Mas disse maisalguma coisa que se converteu na Chave de toda a ambientaçãoespacial: que a pesquisa médica não é um produto exclusivo damedicina ou das ciências físicas, mas também das pessoas emgeral. Quis dizer que qualquer pessoa versada em humanas, ciên-cias ou artes, pode contribuir para conformar este ambiente men-tal de investigação capaz de conduzir às grandes descobertas cien-tíficas.

Livre das restrições de um programa ditatorial, foi uma gran-de experiência participar no projeto de um programa de desenvol-vimento de espaços, sem precedentes. Isto só foi possível porqueo diretor era um homem com um senso único do entorno comofonte de inspiração, e podia sentir a vontade de ser e sua apreensãona forma dos espaços que eu sugeria.

O que no princípio foi só a necessidade de laboratórios eseus serviços incluiu depois jardins enclausurados, escritórios co-locados sobre galerias e espaços para reuniões e descanso, entre-laçados com outros espaços sem nome para maior expansão doambiente geral.

Os laboratórios podem caracterizar-se como uma arquiteturade ar depurado e áreas adaptáveis. A mesa de mogno e o tapetecorrespondem à arquitetura dos Escritórios.

Meu edifício para Pesquisas Médicas da Universidade daPennsylvânia incorpora a concepção de que os laboratórios cientí-ficos são essencialmente escritórios e que deve existir uma sepa-ração entre o ar que se respira e o ar viciado que se deve eliminar.As plantas comuns de laboratórios colocam as áreas de trabalhode um lado do corredor público e as escadas, elevadores, quartospara animais, dutos e outros serviços, do outro lado do mesmocorredor. Este corredor é, ao mesmo tempo, o veículo de escapedo ar nocivo e de abastecimento de ar respirável. A única diferençaentre o espaço de trabalho de um homem e de outro é o númerocolocado nas suas portas.

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Desenhei para a Universidade três torres-escritório, nas quaiscada homem pode trabalhar em sua especialidade; cada escritóriodestas torres tem sua própria sub-torre escada e uma sub-torre deevacuação para ar isótopo, ar infeccioso e gás nocivo. Um edifí-cio central que reúne as três torres principais abriga a área deserviços que, nas plantas comuns, está usualmente colocada dooutro lado do corredor. Este edifício central tem aletas para absor-ver o ar puro, independentemente das sub-torres de evacuação dear viciado. Este desenho, produto da consideração do uso particu-lar destes espaços e dos serviços que requerem, expressa o caráterdo laboratório de pesquisas.

Um dia visitei o lugar enquanto se erguia a estrutura pré-fabricada do edifício.

O braço de 61 metros da grua levantava elementos de 25toneladas e os colocava no lugar como se fossem palitos de fósfo-ro. Detestava aquela grua pintada chamativamente, aquele mons-tro que humilhava meu edifício fazendo-o parecer fora de escala.Observava seus movimentos múltiplos, calculando por quanto tem-po aquela ‘coisa’ dominaria o lugar e o edifício, até que se pudessetirar dele uma boa foto.

Agora, contudo, estou contente com esta experiência porqueme fez ver o significado da grua no desenho, e me permitiu com-preender que a grua é só uma prolongação do braço humano, domesmo modo que um martelo. Comecei então a pensar em ele-mentos de 100 toneladas elevados por gruas ainda maiores. Estesgrandes elementos constituiriam somente as partes de uma colunacomposta, cujas uniões seriam como esculturas em ouro e porce-lana e guardariam habitações, em diferentes níveis, com pisos demármore. Estas uniões representariam as estações dentro da aber-tura maior, cujo fechamento estaria formado por vidros sustenta-dos por montantes de cristal, com cabos de aço inoxidável entre-laçados como eras para ajudar o vidro e os montantes contra ovento.

A grua se convertera em um amigo e um estímulo à con-cepção de uma forma nova.

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As instituições das cidades podem ser enobrecidas pelo po-der dos seus espaços arquitetônicos.

A casa comunal da aldeia deu lugar à prefeitura, que já não éum lugar de reunião. Mas sinto a Vontade de Ser deste lugar napraça porticada, onde brincam as fontes, onde novamente se en-contram o jovem e a moça, onde se podem receber e atender osvisitantes ilustres, onde podem se reunir em grupos as sociedadesque mantêm nossos ideais democráticos.

O automóvel alterou por completo a forma da cidade. Acre-dito ter chegado o momento de se fazer uma distinção entre aarquitetura do Viaduto para o automóvel e a arquitetura das ativida-des humanas. A tendência a combinar as duas arquiteturas nummesmo desenho confundiu o sentido do planejamento e datecnologia. A arquitetura do Viaduto chega à cidade desde áreasexteriores. Neste ponto deve-se desenhá-la com maior cuidado e,a custo alto, colocá-la estrategicamente em relação ao centro.

A arquitetura do viaduto inclui a rua que, no centro da cidade,quer ser um edifício (um edifício com um espaço subterrâneodestinado às tubulações para evitar interrupções do trânsito quan-do elas necessitem ser reparadas). A arquitetura do Viaduto repre-sentaria um conceito completamente novo do movimento da rua.Distinguiria os movimentos staccato de arranco e freada do ônibusda arrancada do carro. As avenidas de acesso rápido, que limitamáreas, são como rios. Estes rios precisam de portos. As ruas inter-mediárias são como canais que precisam de cais. Os portos são asentradas gigantescas destinadas a expressar a arquitetura do freio.Estes terminais da arquitetura do Viaduto teriam garagens no seucentro, hotéis, prédios de apartamentos e lojas na periferia, e cen-tros comerciais no nível da rua.

Esta posição estratégica em volta do centro da unidade cons-titui uma proteção lógica contra a destruição da cidade pelo auto-móvel. Em certo sentido, os problemas do automóvel e da cidadeimplicam em uma guerra, e o planejamento do novo crescimentodas cidades não deve ser visto como um ato agradável, mas simde emergência. A distinção entre as duas arquitetura – a arquiteturado Viaduto e a das atividades do homem – poderia dar lugar a uma

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lógica do crescimento e a uma postura empresarial razoável.

Recentemente, um arquiteto da Índia fez uma conferência naUniversidade sobre os excelentes novos trabalhos de Le Corbusiere sobre os seus próprios. No entanto, pareceu-me que os belostrabalhos que mostrava estavam fora do contexto e sem arranjo.No final da conferência me pediram um comentário. Senti-me im-pelido a ir à lousa e a desenhar no centro uma torre de água, largana parte superior e estreita em baixo. Rabisquei aquedutos que seespraiavam da torre, semelhantes aos raios de uma estrela. Istoimplicava futuras árvores e terra fértil e começo de vida. Os edifí-cios ainda existentes, porém agrupados em volta do aqueduto, te-riam uma disposição e um caráter cheios de sentido. A cidade teriaforma.

Não desejo que daquilo que eu disse se deduza um sistema depensamento e trabalho que leve rigidamente da concepção da For-ma à do Desenho. O Desenho também pode induzir a concepçãoda Forma. Esta interação, em arquitetura, constitui uma fonte cons-tante de estímulo.

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Adolf Loos

SOBRE UM POBRE HOMEM RICO1

Quero lhes contar de um pobre homem rico. Tinha di-nheiro e bens, uma mulher fiel que, com um beijo na testa, o livra-va das preocupações que traziam os negócios, de um bando defilhos, que teria causado a inveja do mais pobre dos seus trabalha-dores. Seus amigos o adoravam, pois tudo o que empreendia pros-perava. Mas hoje a situação é muito, muito diferente. E assim acon-teceu.

Um dia, disse este homem a si mesmo: “Você tem dinheiro ebens, uma mulher fiel e filhos, pelos quais o invejaria o trabalhadormais pobre. Mas, você é feliz? Sabe que há pessoas que necessi-tam de tudo o que lhe invejam. Mas as preocupações deles sãoafugentadas por uma grande fada, a arte. E o que é a arte paravocê? Nem sequer de nome a conhece. Qualquer adventício podeapresentar o cartão de visita e o seu mordomo lhe abrirá de par empar. Mas você ainda não recebeu a arte em sua casa. Sei bem queela não virá. Mas vou a sua procura. Ela deve se instalar e habitarminha casa como um rei.”

Era um homem de muito vigor, o que pegava, o fazia comenergia. Era costumeiro nos seus negócios. Assim, neste mesmodia, recorreu a um famoso arquiteto, dizendo a ele: “O senhor meponha arte, arte entre minhas quatro paredes. O gasto não impor-ta.”

O arquiteto não deixou que o dissessem duas vezes. Foi àcasa do homem rico, jogou fora todos os seus móveis, fez vir umexército de assentadores de parquê, estucadores, envernizadores,

1. Artigo publicado no “Neues Wiener Tagblatt” em 26 de abril de 1900.

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pedreiros, pintores de paredes, entalhadores, encanadores,instaladores, tapeceiros, pintores e escultores, e zás!, sem se no-tar, havia prendido, empacotado, bem guardado a arte entre asquatro paredes do homem rico.

O homem rico era mais do que feliz. Mais do que feliz passe-ava pelos novos cômodos. Onde quer que olhasse havia arte, arteem tudo e por tudo. Pegava arte quando pegava a maçaneta, senta-va-se sobre arte quando se sentava em uma poltrona, apoiava suacabeça em arte quando cansado a apoiava nas almofadas, seu pése afundava em arte quando andava pelos tapetes. Se deleitavacom a arte com enorme fervor. Desde que seu prato também haviasido decorado com motivos artísticos, cortava o seu boeuf àl’oignon com energia redobrada.

Elogiavam-no, invejavam-no. As revistas de arte glorifica-vam o seu nome como um dos primeiros no reino dos mecenas,seus cômodos foram retratados, comentados e explicados paraservir de modelo às cópias.

E o mereciam. Cada recinto constituía uma determinada sin-fonia de cores. Parede, móveis e tecidos estavam combinados damaneira mais refinada. Cada objeto tinha seu lugar adequado eestava ligado aos demais por umas combinações maravilhosas.

O arquiteto não tinha esquecido de nada, absolutamente nada.Cinzeiros, talheres, interruptores, tudo, tudo havia sido combina-do por ele. E não se tratava das artes arquitetônicas vulgares, não,em cada ornamento, em cada forma, em cada prego estava ex-pressa a individualidade do proprietário. (Um trabalho psicológicocuja dificuldade qualquer um reconhecerá).

O arquiteto, no entanto, recusava todos os elogios modesta-mente. Porque, dizia ele, estes ambientes não são meus. Lá nafrente, no canto, há uma estátua de Charpentier. E, assim como eucensuraria qualquer um que afirmasse ter desenhado uma sala ten-do usado apenas uma das minhas maçanetas, do mesmo modo eunão posso dizer que estes ambientes tenham sido concebidos pormim. Estas eram palavras nobres e conseqüentes. Certo entalhador,que talvez empapelara sua sala com papel pintado por Walter Cranee que, apesar disto, se atribuía os móveis que aí se encontravam

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por tê-los projetado e executado ele mesmo, se avergonhava até ofundo da sua negra alma ao inteirar-se destas palavras.

Voltemos, depois desta divagação, ao nosso homem rico. Jádisse quão feliz era ele. Uma grande parte do seu tempo ele dedi-cou, desde então, só ao estudo da sua casa. Logo se deu conta deque devia estudá-la. Havia muito o que memorizar. Cada objetotinha seu lugar preciso. O arquiteto tinha agido bem com ele. Ti-nha pensado em tudo antecipadamente. Para a menor caixinha ha-via um lugar definido, feito intencionalmente para ela.

A casa era cômoda mas, para a cabeça, esgotante demais.Por isso, nas primeiras semanas, o arquiteto vigiou a forma comoatuavam para que não incorressem em nenhum erro. O homemrico se esforçava. Mas aconteceu que, distraidamente, deixou umlivro que tinha na mão na gaveta destinada aos jornais. Ou quebateu a cinza do charuto naquele buraco da mesa destinado aocandelabro. Quando apanhado um objeto, o adivinhar e buscar oantigo lugar que lhe correspondia não tinha fim e certa ocasiãoteve o arquiteto que consultar os desenhos dos detalhes para voltara encontrar o lugar de uma caixa de fósforos.

Onde as artes aplicadas tinham conseguido tais triunfos,não podia ficar atrás a música aplicada. Esta idéia preocupava de-mais o homem rico. Fez uma solicitação à companhia de bondes,pela qual tentava que seus veículos utilizassem o motivo de sinosde Parsifal no lugar de sons sem sentido. Na companhia não lhederam a mínima. Ainda não davam suficiente acolhida a idéiasmodernas. De quebra, lhe permitiram pavimentar, por sua conta, aárea em frente à sua casa de modo que todo veículo estivesseobrigado a passar diante dela ao ritmo da Marcha de Radetzky. Ascampainhas elétricas das suas salas também foram providas detrechos de Wagner e Beethoven e todos os profissionais da críticade arte elogiavam sobremaneira o homem que havia aberto umnovo domínio para “a arte nos artigos de uso.”

Como se pode imaginar, todas estas melhorias fizeram aohomem ainda mais feliz.

Mas não se pode esconder que ele procurava passar o menor

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tempo possível em casa. É que, de vez em quando, se quer des-cansar um pouco de tanta arte. Ou você poderia viver em umagaleria? Ou estar sentado meses inteiros em ‘Tristão e Isolda’?Enfim, quem lhe censuraria por acudir novamente ao café, ao res-taurante ou aos amigos e conhecidos para reunir forças para estarem sua casa? Imaginara outra coisa. Mas, a arte requer sacrifíci-os. Já havia feito tantos. Os olhos se umedeciam. Pensava emmuitas coisas velhas pelas quais tinha tido tanto carinho e que, devez em quando, davam saudade. A poltrona grande! Seu pai sem-pre descansara nela. O velho relógio! E os quadros! Mas a arte oexige! Antes de tudo, não esmorecer!

Uma vez, celebrara seu aniversário. A mulher e os filhos oencheram de presentes. As coisas lhe agradaram demais e lhe de-ram uma alegria cordial. Logo chegou o arquiteto para comprovarse tudo estava em ordem e dar respostas a questões difíceis. En-trou na sala. O dono veio contente ao seu encontro pois tinhamuitas perguntas a fazer. Mas o arquiteto não percebeu a alegriado dono. Tinha descoberto algo muito esquisito e empalideceu:“Mas que sapatilhas o senhor está usando!”, exclamou com vozpenosa.

O dono olhou seu calçado bordado. E respirou aliviado. Des-ta vez se sentia totalmente inocente. As sapatilhas tinham sido con-feccionadas fielmente de acordo com o desenho original do arqui-teto. Por isso replicou com ar de superioridade:

“Mas, senhor arquiteto, esqueceu-se? As sapatilhas, o se-nhor mesmo as desenhou!”

“Certamente!”, trovejou o arquiteto, “mas para o quarto. Osenhor está estragando todo o ambiente com essas duas horríveismanchas de cor. O senhor não se dá conta?”

O dono da casa compreendeu imediatamente. Tirou rapida-mente as sapatilhas e se alegrou tremendamente de que o arquitetonão achara insuportáveis também suas meias. Dirigiram-se ao quartoonde o homem rico pôde voltar a calçar as sapatilhas.

“Ontem”, começou timidamente, “comemorei meu aniversá-rio. Os meus me encheram de presentes. Mandei chamá-lo, queri-

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do senhor arquiteto, para que nos aconselhe sobre qual é a melhormaneira de dispor os objetos.”

A cara do arquiteto se alargava visivelmente. Então estalou:

“Como lhe ocorre deixar-se presentear com alguma coisa!Eu não lhe desenhei tudo? Eu não pensei em tudo? O senhor nãoprecisa de mais nada. O senhor está completo.”

“Mas”, permitiu se replicar o dono da casa, “ainda vou podercomprar-me alguma coisa!”

“Não, o senhor não pode! Nunca mais e nada mais! Só mefaltava esta. Coisas que não foram desenhadas por mim. Não fiz obastante permitindo o Charpentier? A estátua que rouba toda a famado meu trabalho! Não, o senhor não pode comprar nada mais!”

“E se meu neto me der um trabalho do jardim de infância?”

“Pois o senhor não pode aceitá-lo!”

O dono da casa estava estupefato. Mas ainda não se dava porperdido. Uma idéia, já a tinha, uma idéia!:

“E se quisesse comprar-me um quadro da Secessão?”, per-guntou triunfante.

“Experimente pendurá-lo em algum lugar. O senhor não vêque não há lugar para mais nada? O senhor não vê que, para cadaquadro que eu lhe pendurei, eu compus uma moldura na parede,no muro? Não pode deslocar um só quadro. Experimente o senhorcolocar um novo quadro.”

Então produziu-se uma mudança no homem rico. O homemfeliz se sentiu de repente profunda, profundamente desgraçado.Viu sua vida futura. Ninguém podia proporcionar-lhe alegria. De-veria passar sem desejos diante das lojas da cidade. Para ele já nãose criava mais nada. Nenhum dos seus podia lhe dar seu retrato,para ele já não existiam mais pintores, mais ofícios manuais. Esta-va podado do futuro viver e respirar, devir e desejar. Ele sentia:Agora devo aprender a vagar com meu próprio cadáver. Certo:Completo! Acabado!

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Adolf Loos

O PRINCÍPIO DO REVESTIMENTO1

Para o artista todos os materiais são igualmente valiosos,mas não são igualmente adequados a todos os fins. A solidez e aprodução exigem materiais que, com freqüência, não estão de acor-do com a finalidade própria do edifício. Estabeleçamos que o ar-quiteto tenha a missão de fazer um espaço aconchegante e cômo-do. Os tapetes são aconchegantes e cômodos. Este espaço poderiaser resolvido colocando-se um deles no chão e pendurando outrosquatro de modo que formassem as quatro paredes. Mas com tape-tes não se pode construir uma casa. Tanto o tapete como a tapeça-ria requerem uma armação construtiva que os mantenha semprena posição adequada. Conceber esta armação é a segunda missãodo arquiteto.

Este é o caminho correto, lógico e real que se deve seguir naarte de construir. A humanidade também aprendeu a construir nes-ta mesma ordem. Primeiro foi o revestimento. O homem buscavaabrigo das inclemências do tempo, proteção e calor durante o sono.Buscava cobrir-se. A manta é o detalhe arquitetônico mais antigo.A princípio era feita de peles ou de produtos da arte textil. Estacoberta devia ser estirada em algum lugar se quisessem abrigartoda uma família. Logo apareceram também as paredes, para darproteção lateral. E nesta ordem se desenvolveu o pensamentoarquitetônico, tanto na humanidade como no indivíduo.

Há arquitetos que trabalham de outro modo. Sua fantasia nãoforma os espaços, mas as paredes. O que ficar entre as paredessão os espaços. E, para estes espaços, escolhem depois alguma

1. Artigo publicado no “Neue Freie Presse” em 4 de setembro de 1898.

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forma de revestimento que lhes pareça adequada. Isso é arte pelocaminho empírico.

Mas o artista, o arquiteto, sente primeiro o efeito que queralcançar e vê depois, com seu olho espiritual, os espaços que quercriar. O efeito que quer criar sobre o espectador, seja somentemedo ou espanto como na prisão, temor a Deus como na igreja,respeito ao poder do Estado como no palácio, piedade como dian-te de um monumento fúnebre, sensação de comodidade como emuma casa ou alegria como em um bar, este efeito vem dado pelosmateriais e pela forma.

Cada material tem sua própria linguagem formal e nenhumdeles pode assumir a forma de outro. Porque as formas resultamda utilidade e da fabricação de cada material, surgiram com o ma-terial e através dele. Nenhum material permite intromissões emseu rol de formas. Quem ousa faze-lo é marcado pelo mundo comofalsificador. E a arte não tem nada a ver com a falsificação, com amentira. Seus caminhos são cheios de espinhos, porém limpos.

A torre da catedral de Santo Estevão de Viena podia ser feitade concreto e colocada em qualquer outro canto, mas já não seriauma obra de arte. O que vale para o campanário de São Estevãovale também para o palácio Pitti, e o que vale para o palácio Pittivale também para o palácio Farnese. E, seguindo com estes edifí-cios, chegaríamos aos nossos dias e nos encontraríamos diante daarquitetura do nosso Ring. Um tempo triste para a arte, um tempotriste para os poucos artistas que havia entre os arquitetos de en-tão, que eram obrigados a prostituir sua arte para favorecer osinteresses do populacho. Só a alguns o destino permitia encontrarum proprietário que pensasse em coisas grandes e outorgasse aoartista a liberdade de trabalhar a seu gosto. O mais feliz de todoseles com certeza foi Schmidt. Depois dele veio Hansen, que, quan-do as coisas iam mal, procurava consolo construindo comterracota. Certamente quem teve de suportar grandes tormentosfoi o pobre Ferstel, que, no último instante, foi obrigado a revestircom concreto partes inteiras da fachada da sua universidade. Osoutros arquitetos desta época, salvo poucas exceções, estavamlilvres de tais sentimentos.

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Isto mudou? Dispensem-me de responder esta pergunta. Ain-da domina, na arquitetura, a imitação e a arte do sucedâneo. Sim,ainda mais que então. Nos últimos cinco anos encontra-se inclusi-ve gente que se fez defensora desta tendência em arquitetura – umapós o outro, anonimamente, já que a coisa não lhe parecia sufici-entemente limpa -, de modo que o arquiteto de sucedâneos já nãotem mais necessidade de sentir-se discriminado. Hoje já se reco-brem as fachadas com desembaraço e se penduram as “pedrasportantes” com justificação artística, sob a cornija principal. Acer-quem-se, arautos da imitação, produtores da falsa marchetaria, doacochambre-você-mesmo-a-janela-de-sua-casa, dos cântaros depapier marché! Em Viena está florescendo uma nova primavera, osolo está recém adubado!

Mas, o espaço aconchegante coberto totalmente com tapetesnão é uma imitação? As paredes não estão feitas de tapetes? Claroque não. Estes tapetes só querem ser tapetes e não paredes depedra, jamais quiseram mostrar-se como tais, nem por sua cornem por seu desenho, apenas querem deixar bem claro seu signi-ficado como revestimento da superfície da parede. Cumprem suafinalidade segundo o princípio do revestimento.

Como já mencionei no início, o revestimento é mais antigoque a construção. As bases do revestimento são diversas. Assimcomo é proteção contra a inclemência do tempo, como a pintura aóleo sobre a madeira, aço ou pedra, pode ter motivos higiênicos –o caso das peças esmaltadas no banheiro para proteger a superfí-cie da parede, e outras vezes tem uma finalidade concreta, como oefeito da pintura colorida das estátuas, das tapeçarias nas paredesou dos painéis de madeira. O princípio do revestimento, termocunhado por Semper, se estende também à natureza. O homemestá revestido com uma pele, a árvore com uma casca.

Deste princípio do revestimento eu formulo também uma leiperfeitamente determinada que chamo de lei do revestimento. Queninguém se assuste. As leis, dizem, caracterizam uma evolução.Mas, os velhos mestres nunca precisaram de leis. Certo. Onde oroubo fosse coisa desconhecida, seria desnecessário impor leisque o castigassem. Quando os materiais usados para revestir não

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eram imitações, não fazia falta nenhuma lei contra eles. Mas acre-dito que chegou a hora de estabelecê-la.

Tal lei diz assim: a possibilidade de que o material revestidose confunda com o revestimento deve ser excluída em todos oscasos. Para casos particulares, esta frase teria que dizer: pode-sepintar a madeira com qualquer cor, menos com uma – cor demadeira. Para uma cidade como Viena, cujo conselho de exposi-ções decidiu pintar todo o madeiramento do seu pavilhão ‘comomogno’, no qual a imitação é o único motivo de decoração damadeira, esta frase é muito atrevida. Parece que aqui há pessoasque acham isso elegante. Já que os bonde, os trens e em geral todaconstrução de vagões provêm da Inglaterra, eles são os únicosobjetos de madeira que estampam cores puras. Eu me atrevo adizer que qualquer veículo – sobretudo os da linha elétrica – meagrada mais com cores puras que, seguindo os padrões de belezadaqui, fossem pintados como mogno.

Mas, em nosso povo cochila, ainda que funda e enterrada, averdadeira noção do elegante. De outro modo, na companhia debondes, a primeira e a segunda classes não estariam pintadas deverde, já que a terceira é cor de madeira.

Certa vez provei a um colega, de um modo drástico, estanoção inconsciente. Em um edifício, no primeiro andar, havia doisapartamentos. Ao inquilino de um deles ocorreu pintar, por suaconta, a esquadria das janelas, que originalmente eram marrom, debranco. Então fizemos uma aposta de que levaríamos um certonúmero de pessoas diante do edifício e, sem chamar a atençãodeles para a diferença das janelas, perguntaríamos em qual dosapartamentos lhes parecia morar o João e em qual morava o Con-de Fulano de Tal, ambos inquilinos hipotéticos. Todos apontarama janela pintada de madeira como casa do João. Desde então meucolega só as pinta de branco.

A imitação da madeira é naturalmente uma invenção do nossoséculo. Na idade média pintavam a madeira, em geral, de vermelhogritante, e no Renascimento, de azul, no Barroco e no Rococó,branco por dentro e verde por fora. Nossos camponeses, aindalúcidos, a pintam com cores puras. Quando estamos no campo

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vibramos com o portão ou a cerca verde, ou as treliças verdesdiante de uma parede recém pintada de branco. É uma pena queem alguns lugares se comece a imitar o gosto da nossa comissãode exposições.

Ainda se lembra da indignação moral da indústria artística dosucedâneo quando os primeiros móveis pintados a óleo chegaramda Inglaterra. Mas a bronca dessa boa gente não se dirigia à pintu-ra em si. Em Viena, quando se utilizava madeiras brancas, elastambém recebiam pintura a óleo. Mas que os móveis ingleses ou-sassem luzir suas cores com tanta franqueza e liberdade, em vezde imitar madeira nobre, isso sim enfurecia aqueles santos. Vira-ram a cara e davam a impressão de que nunca usáramos a pinturaa óleo. Provavelmente estes senhores são da opinião de que seusmóveis e trabalhos de madeira com seus falsos veios eram tidoscomo de madeira nobre.

Se, com este ponto de vista, não cito nomes, acho que mere-ço o agradecimento deles.

Aplicado aos estucadores, o princípio do revestimento diria oseguinte: o estuque pode resolver qualquer ornamento menos um– a imitação da construção de tijolo aparente. Poderia se pensarque dizer tamanha evidência é desnecessário, mas há pouco mechamaram a atenção para um edifício cuja parede estucada estavapintada de vermelho e com o desenho de juntas brancas. A tãoquerida decoração de cozinhas imitando pedras também se encai-xa aqui. E assim, todos os materiais que servem para revestir umaparede, como tecidos, papéis, telas, não podem representar nuncanem pedras nem tijolos. E daqui também se pode entender por queas meias de malha que usam nossas bailarinas têm um efeito tãoantiestético. Em uma palavra, a roupa de malha pode estar tingidade qualquer cor, menos cor de carne.

Um material de revestimento pode conservar sua cor naturalquando o material revestido também é desta cor. Desse modo euposso pintar o aço negro com betume, posso cobrir uma madeiracom outra (tornejado, marchetaria, etc. ) sem ter que colorir amadeira que cobre. Eu posso revestir um metal com outro metalatravés do fogo ou galvanizando-os. Mas o princípio do revesti-

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mento proíbe que mediante uma pintura se imite o material que hápor baixo dela. Assim, a aço pode ser betumado, pintado a óleo ougalvanizado, mas nunca tapado com cor de bronze, ou seja comuma cor metálica. Também merecem ser mencionados aqui asplacas de cerâmica refratária e de pedra artificial que, por um lado,imitam o pavimento do terraço (mosaico) e, por outro, imitamtapetes persas. Sem dúvida há pessoas que acreditam – as fábricasconhecem bem sua clientela.

Mas não, vocês, imitadores e arquitetos de sucedâneos, es-tão equivocados. A alma humana é algo demasiado alto e sublimepara que possam enganá-la com seus truques e recursos. A oraçãoda pobre camponesa chegará com mais força e mais rápido ao céuse é feita em uma igreja construída com material autêntico que sefeita, com o mesmo fervor, entre paredes de gesso pintadas commármore. Nosso corpo miserável está, é certo, em seu poder. Sódispõe de cinco sentidos para diferenciar o autêntico do falso. E láonde o homem, com todos os sentidos, já não alcança mais, co-meça o seu domínio, lá está o seu reino. Mas, uma vez mais, vocêsestão equivocados. Pintem no teto de madeira bem, bem alto osmelhores efeitos: os pobres olhares acreditarão e as tomarão comode verdade. Mas a psique divina não acreditará em sua falácia. Vê,na melhor marchetaria pintada “como autêntica”, pura pintura aóleo.

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Adolf Loos

REGRAS PARA QUEM CONSTRÓI NAS MONTANHAS

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Não construa de modo pitoresco. Deixe que os maciços,as montanhas e o sol produzam este efeito. O homem que se vestede modo pitoresco não é pitoresco, é um palhaço. O camponêsnão se veste pitorescamente e, no entanto, o é.

Construa tão bem quanto possa. Nem mais, nem menos. Nãose sobreesforce. Tampouco se submeta intencionalmente a umnível inferior àquele que, por sua origem e formação, lhecorresponde. Ainda que seja na montanha. Fale com os campone-ses na sua língua. O advogado vienês que só fala em dialeto com ocamponês há de deixar de existir.

Preste atenção às formas que constrói o camponês, já quesão parte da substância que advém da sabedoria dos seus antepas-sados. Mas, busque o fundamento da forma. Se os avanços datécnica têm permitido o aperfeiçoamento da forma, há que seempregá-la sempre assim: aperfeiçoada. O trilho se desprende datrilhadora.

A planície exige uma disposição arquitetônica vertical. Asmontanhas, horizontal. A obra humana não deve competir com aobra divina. O observatório dos Habsburgo estraga o bosque vienês,enquanto o templo dos hússares se incorpora à paisagem harmoni-osamente.

Não pense na cobertura, mas sim na chuva e na neve. Assimpensa o camponês. E por isso constrói nas montanhas o telhado

1. Artigo publicado no anuario Schwarzwald’Schen Schulanstalten” , 1913

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mais plano que lhe permitem seus conhecimentos técnicos. Naszonas montanhosas a neve não deve deslizar-se quando ela quer, esim quando o camponês o desejar. Por isso o camponês tem desubir ao telhado sem que haja o menor perigo à sua vida e, então,tirar a neve. Nós também temos que criar a cobertura mais planapossível de acordo com nossas condições técnicas.

Seja sincero. A natureza só pode suportar a sinceridade. Sedá bem com pontes treliçadas, mas se distancia dos arcos dosarcos góticos com pináculos e seteiras.

Não tema que lhe pichem por não ser moderno. Só estãopermitidas aquelas transformações no modo de construir tradicio-nal que signifiquem melhorias, do contrário conserve os sistemastradicionais. Pois a verdade, ainda que tenha milhares de anos, sedá melhor com a gente que a mentira que caminha ao nosso lado.

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Mies van der Rohe

SOBRE O SIGNIFICADO E ATAREFA DA CRÍTICA

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Não receiem que eu vá contribuir à longa sucessão dereprovações e ataques. Juízos equivocados não são esperados nocurso natural dos fatos?

A crítica é assim tão fácil? A verdadeira crítica não é tão raraquanto a verdadeira arte? Gostaria, contudo, de chamar sua aten-ção para os pré-requisitos básicos de qualquer crítica, pois acredi-to que sem tal esclarecimento não poderá haver crítica verdadeira,e se pedirá da crítica aquilo que ela não está apta a responder.

A crítica é o exame de um feito com relação a seu significadoe valor. Para tanto é necessário posicionar-se em relação ao objetoa ser examinado, ter contato com ele. Isto não é fácil. As obras dearte têm uma vida própria. Não são acessíveis a todos. Para que seexpressem, deve-se abordá-las em seus próprios termos. Esta é aobrigação do crítico.

Outra obrigação da crítica diz respeito à graduação de valo-res. Aí a crítica encontra sua escala de medida. A verdadeira críti-ca está, no fim, a serviço do valor.

1. Publicado em Das Kunstblatt” , 14, no 6, 1930.

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Mies van der Rohe

A ARTE DE CONSTRUIR E OESPÍRITO DA ÉPOCA

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Não são as realizações arquitetônicas dos tempos primiti-vos que fazem seus edifícios nos parecer tão significativos, massim a particularidade de que os templos antigos, as basílicas roma-nas e também as catedrais da Idade Média são menos o trabalhoindividual de personalidades que criações de toda uma época. Quempergunta, ao ver tais edifícios, quais os nomes ou o que a persona-lidade fortuita dos seus construtores queria dizer? Estes edifíciossão, pela sua própria natureza, totalmente impessoais. São repre-sentativos do espírito da sua época. Este é o seu significado. Sóassim podem se tornar símbolos do seu tempo.

A arte de construir é sempre o espírito de uma época apreen-dido no espaço, nada mais. Só quando esta verdade simples forclaramente reconhecida, estará efetivamente direcionado o esfor-ço pelos fundamentos de uma nova arquitetura. Até então deverápermanecer um caos de forças confusas. Por esta razão, uma ques-tão como a natureza da arte de construir é de importância decisiva.Deve-se entender que toda arte de construir nasce da sua própriaépoca e só pode se manifestar ocupando-se de tarefas vitais comos meios do seu próprio tempo. Nunca foi de outro modo.

Por esta razão, é um esforço inútil usar conteúdos e formasde edifícios primitivos hoje. Aí, até mesmo o talento artístico maisforte fracassará. Vemos freqüentemente excelentes arquitetos fra-cassarem porque o trabalho deles não satisfaz o espírito da sua

1. Publicado em Der Quer Schunitt”, 4, no 1, 1924

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época. Em última instância, apesar do seu enorme talento, sãodiletantes, já que o entusiasmo com que concordam com a coisaerrada é irrelevante. É a essência o que importa. Não se pode iradiante enquanto se olha para trás, e não se pode ser o instrumentodo espírito da época se se vive no passado. Observadores distan-tes caem no mesmo velho erro quando responsabilizam a épocapor tais tragédias.

Toda a energia da nossa era está direcionada ao laico. Osesforços dos místicos continuarão esporádicos. Apesar de nossacompreensão da vida ter se tornado mais profunda, não construi-remos catedrais. Até mesmo o grandiloqüente gesto dos românti-cos nada significa para nós, uma vez que percebemos, por trásdele, seu vazio formalista. Nosso tempo é nada patético, não apre-ciamos os grandes gestos mas sim a racionalidade e o realismo.

As demandas do nosso tempo por realismo e funcionalidadedevem ser satisfeitas. Se isto é plenamente assumido, os edifíciosdo nosso tempo demonstrarão a grandeza de que nosso tempo écapaz, e só um tolo diria o contrário.

Questões de natureza comum são de interesse capital. O in-dividual se torna cada vez menos importante – seu destino não nosinteressa mais. Os êxitos decisivos em todas as áreas são de or-dem objetiva e seu autores, na maioria, desconhecidos. É aqui queo grande marca do nosso tempo aparece. Nossas obras de enge-nharia são exemplos típicos. Diques gigantescos, extensos com-plexos industriais e pontes importantes surgem com uma destrezanatural imensa, sem mencionar o nome dos seus construtores.Ademais, estas estruturas mostram os meios técnicos que tere-mos de empregar no futuro.

Se compararmos o peso pesado do aqueduto romano com aagilidade de uma grua moderna, ou as volumosas construçõesabobadadas com a impetuosa falta de gravidade das recentes es-truturas de concreto armado, teremos noção de quanto nossa for-ma e expressão diferem daquelas de então. Os métodos de produ-ção industrial vão exercer sua influência. A objeção de que sãoapenas estruturas funcionais é irrelevante.

Se rejeitarmos todos os pontos de vista românticos, reco-

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nheceremos que as estruturas de pedra da antigüidade, as cons-truções de tijolo e concreto dos romanos e as catedrais medievaisforam incríveis proezas da engenharia – e pode-se estar certo deque o primeiro edifício gótico foi tido, no seu entorno românico,como um corpo estranho.

As nossas construções somente serão arquitetura quando,satisfazendo sua finalidade, tornarem-se instrumentos do espíritoda nossa época.

A finalidade de um edifício é o seu verdadeiro significado. Osedifícios de todas as épocas atenderam propósitos, e alguns bas-tante concretos. Estes propósitos eram, contudo, diferentes notipo e no caráter. A finalidade do edifício sempre foi decisiva (e ocaracterizava). Determinava sua forma sagrada ou profana.

Nossa histórica educação não tem clareado nossa visão des-tas coisas, por isso sempre confundimos efeito e causa. Isto con-tribui para a crença de que os edifícios existem para o bem daarquitetura. Até mesmo a linguagem ritual dos templos e catedraisé o resultado de um propósito. Este é a regra e não a exceção. Acada época, o propósito da edificação modifica sua linguagem,assim como seus meios, seu material e sua técnica.

As pessoas que têm apreço pelo essencial (e cuja profissão éocupar-se com antigüidades) sempre tentam ressaltar os resulta-dos de épocas passadas como paradigmas para o nosso tempo erecomendam velhos métodos de trabalho como meio para o su-cesso artístico. Ambos são equívocos; não podemos nos valer denenhum deles. Não precisamos de paradigmas. Aqueles sugesti-vos métodos artesanais, nos nossos dias, provam que eles sequertêm noção das inter-relações do novo tempo. O próprio artesanatonão é mais que um método de trabalho e uma forma de economia.

(E aqui, de novo, são os historiadores quem recomendamuma forma antiquada, outra vez o mesmo erro. Aqui, também, elesconfundem forma com essência). Acredita-se sempre que o arte-sanato é melhor e atribui-se a ele um valor ético inato. Não sendonunca o método de trabalho que tem tal valor e sim o própriotrabalho.

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Como nasci numa velha família de canteiros, estou acostu-mado a trabalhos artesanais, e não só como observador da estéti-ca. Minha receptividade à beleza do trabalho manual não me impe-de de reconhecer que o artesanato como forma de produção daeconomia está morto. São raros os verdadeiros artesãos aindavivos na Alemanha, seu trabalho pode ser adquirido somente porpessoas muito ricas. O que realmente importa é algo totalmentedistinto. Nossas necessidades têm assumido tamanhas proporçõesque não podem mais ser atendidas com meios artesanais. Isto cla-ma o fim dos trabalhos manuais: não podemos mais salvá-los, maspodemos aperfeiçoar os métodos industriais até o ponto em queobtenhamos resultados comparáveis ao artesanato medieval. Quemquer que tenha a coragem de afirmar que ainda podemos sobrevi-ver sem a indústria deve prová-lo. A necessidade de apenas umaúnica máquina abole o artesanato como um sistema econômico.

Tenhamos em mente que todas aquelas teorias sobre o arte-sanato foram formuladas por estetas sob o clarão da luz elétrica.Eles começam sua campanha com papel que foi produzido pormáquinas, impresso por máquinas e encadernado por elas. Se al-guém dedicasse somente um porcento a mais de cuidado paramelhorar a má encadernação do livro, (faria um grande serviço àhumanidade) reconheceria por este exemplo a imensidão de possi-bilidades que os métodos de produção industrial oferecem. Trazeristo à tona é nossa tarefa. Como estamos apenas na fase inicial dodesenvolvimento industrial, não podemos comparar imperfeiçõese hesitações iniciais com uma cultura do artesanato altamenteamadurecida.

Esta eterna preocupação com o passado é nossa ruína. Elanos impede de cumprir a tarefa à mão da qual só pode surgir umaarquitetura suprema. Velhos conteúdos e formas, velhos meios emétodos de trabalho têm, para nós, somente valor histórico. Avida nos enfrenta diariamente com novos desafios, e eles são maisimportantes que toda essa bobagem histórica. Demandam gentecriativa, gente que enxergue longe, que não tenha medo de resol-ver cada tarefa sem preconceito de fio a pavio e que não penseexcessivamente nos resultados. O resultado é simplesmente um

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subproduto. Toda tarefa representa um novo desafio e leva a no-vos resultados. Nós não resolvemos problemas de forma mas pro-blemas de construção, a forma não é a meta e sim o resultado denosso trabalho. Esta é a essência de nossa dedicação – e este pon-to de vista ainda nos isola de muitos. Até da maioria dos mestresda arquitetura moderna. Mas nos une com todas as disciplinas davida moderna.

Muito do conceito da edificação não está, para nós, preso àsvelhas formas e conteúdos, como também não está conectado amateriais específicos. Estamos muito familiarizados com o charmedas pedras e dos tijolos, mas isto não nos impede de usar, hoje,vidro e concreto, metal e vidro, considerando-os como materiaistotalmente equivalentes. Em muitos casos, estes materiaiscorrespondem melhor aos propósitos hodiernos.

(O aço se aplica hoje em arranha-céus como esqueleto estru-tural, e o concreto armado provou ser, em muitos casos, um exce-lente material de construção. Se já se constrói um edifício comaço, é difícil entender porque se deveria então fechá-lo com pare-des maciças de pedra e dar-lhe a aparência de uma torre. Até mes-mo do ponto de vista da segurança contra incêndio isto não sejustifica. É um absurdo parecido com revestir uma estrutura deconcreto armado com uma manta. Em ambos casos, mais idéiasao invés de mais materiais atingiriam a meta.)

Os propósitos de nossas obras são, na maioria, muito sim-ples e claros. Basta reconhecê-los e formulá-los, então eles con-duzirão a significativas soluções arquitetônicas. Arranha-céus, edi-fícios de escritórios e estruturas comerciais praticamente exigemsoluções compreensivas, claras, e estas só podem ser invalidadasse repetidamente tentamos adaptar estes edifícios a atitudes e for-mas antiquadas.

O mesmo se aplica ao edifício residencial. Aí, também, cer-tos conceitos de casa e cômodos levam a resultados impossíveis.Ao invés de simplesmente desenvolver uma residência que satisfa-ça seu objetivo - a saber: organizar a moradia - alguns a tomamcomo um objeto que demonstra ao mundo até onde chegou seuproprietário no reino da estética.

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Uma residência deve servir somente à moradia. O lugar, ainsolação, o programa dos cômodos e os materiais de construçãosão fatores essenciais para o projeto de uma casa. A edificaçãodeve ser formada de acordo com estas condições. As velhas ima-gens-comuns devem desaparecer e no seu lugar surgirão residên-cias que são funcionais em todos os aspectos. O mundo não setornou mais pobre quando a carruagem foi substituída pelo auto-móvel.

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Mies van der Rohe

OS NOVOS TEMPOS1

Os novos tempos são um fato: existem, quer digamos simou não a eles. Mas, não são nem piores nem melhores que outrostempos. São um simples dado e, em si mesmo, indistinto. Por issonão me demorarei em descrever os novos tempos e apontar suasrelações e esclarecer sua estrutura básica. Igualmente, não quere-mos superestimar a mecanização, a padronização e aestandardização. Até mesmo as novas condições sócio-econômi-cas, nós as tomaremos como fato.

Todas estas coisas seguem seu caminho cego, fatal. O que édecisivo é somente o modo como nos posicionaremos diante des-tes dados. É aqui que começam os problemas do espírito.

O que importa não é “o que” mas somente o “como”. O queproduzimos e os meios pelos quais o fazemos, espiritualmente,não nos dizem nada. Se construímos em pavimentos ou térreo, emaço ou em vidro, isto não é uma questão de valor espiritual. Apon-tar a centralização ou a descentralização no planejamento urbano éuma questão prática, não de valores. E o que é decisivo é exata-mente esta questão de valores.

Devemos estabelecer novos valores e apontar metas básicasa fim de obter novos critérios. Pois o significado e a justificativade cada época, inclusive os novos tempos, consiste em estabele-cer condições para que o espírito possa existir.

1. Publicado em Die Form” , 5, no 15, 1930

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Mies van der Rohe

ESTAMOS NO PONTO CRÍTICO DOSTEMPOS: A ARTE DE CONSTRUIR COMO

A EXPRESSÃO DE DECISÕES ESPIRITUAIS1

A arte de construir não é o objeto de uma especulação inte-ligente, na verdade, somente é entendida como um processo vital,uma expressão da habilidade do homem ao posicionar-se e ao do-minar seu entorno. Um conhecimento da época, suas incumbênci-as e seus meios são pré-requisitos necessários para o trabalho doarquiteto, a arte de construir é sempre a expressão espacial dedecisões espirituais.

O tráfego cresce. O mundo encolhe mais e mais, mais e maischega aos mais remotos ermos. Consciência do mundo e consci-ência da humanidade são os resultados.

A economia começa a ditar as regras, tudo está a seu serviço.O aproveitamento torna-se lei. A tecnologia traz com ela atitudeseconômicas, transforma matéria em força, quantidade em qualida-de. A tecnologia pressupõe o conhecimento das leis naturais e tra-balha com suas forças. O uso mais efetivo da força é introduzidodeliberadamente. Estamos no ponto crítico dos tempos.

1. Publicado em Innendekoration”, 39, no 6, 1928

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Frank Lloyd Wright

ARQUITETURA E NATUREZA

Minha receita para uma casa moderna: primeiro, um bomlugar. Escolha aquele no ponto mais difícil – escolha o lugar queninguém quer – mas, escolha um que tenha características que odistinga: árvores, individualidade, uma imperfeição de qualquer tipoaos olhos do empreendedor. Tudo isto quer dizer distanciar-se dacidade. Então, parado num ponto deste lugar, contemple o entornoaté descobrir o que é charmoso. Qual é a razão para você quererconstruir aí? Descubra. Construa, então, sua casa de modo quevocê ainda possa ver, desde aquele ponto, tudo aquilo que lhe pa-recera charmoso, e muito mais, sem perder nada daquilo que vocêvira antes da casa construída. Se a arquitetura é correta, a associ-ação arquitetônica acentua o caráter da paisagem.1

Primeiro, um estudo da natureza dos materiais que você es-colheu usar e das ferramentas que você empregará, buscando des-cobrir, em ambos, as qualidades características que satisfaçamseu propósito. Segundo, com o ideal de uma arquitetura orgânicacomo guia, reuna estas qualidades para atender seu propósito demodo que a imagem daquilo que você criar tenha integridade ou seadeqüe naturalmente, ignorando noções preconcebidas de estilos.O estilo é um subproduto do processo e resulta do homem ou damente em atividade. O estilo da coisa, portanto, será o homem – édele. Deixe sua forma em paz.2

Em todo caso, o que é arquitetura? É a vasta coleção detantos edifícios que têm sido construídos para agradar o gosto

1.Discurso `a Association of Federal Architects”, 1938.2. Publicado na Revista The Architectural Records”, maio, 1914.

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diferente de vários senhores da humanidade? Penso que não. Não,eu acho que arquitetura é vida, ou, pelo menos, é a própria vidatomando forma e, por isso, é o registro mais verdadeiro da vidacomo ela foi no passado, como é hoje ou como será então. Assim,penso ser a arquitetura um Grande Espírito. Não pode ser somentealgo que consista de edifícios construídos pelo homem naterra...hoje na maioria simplesmente empilhados ou prestes a ser...Aarquitetura é aquele grande espírito criativo vivo que, de geraçãoem geração, age, persiste, cria, de acordo com a natureza do ho-mem e suas circunstâncias, conforme mudem. Isto é arquiteturade fato.3

Assim, fazer de uma residência uma completa obra de arte,por si mesma expressiva e bela, intimamente ligada à vida moder-na e apropriada para se viver nela, acomodando livre e agradavel-mente as necessidades individuais dos residentes enquanto entida-de harmoniosa, incorporando na cor, no padrão e na natureza asdemandas da utilidade e, ainda, uma expressão deles no seu aspec-to – esta é a grande oportunidade americana na arquitetura. Autên-ticos fundamentos para uma cultura autêntica. Uma vez fundada,tornar-se-á uma nova tradição: um largo passo à frente daquelamoda imposta quando uma residência era um composto de ambi-entes isolados: cômodos para conter meras agregações de mobília,faltando conforto e utilidade. Uma entidade orgânica, este edifíciomoderno, quando comparado à insensata e antiga agregação departes. Seguramente, temos aqui o mais alto ideal de unidade en-quanto uma solução mais íntima para expressão de uma vida noseu próprio entorno. Uma coisa ao invés de muitas; uma grandecoisa ao invés de uma coleção de coisas pequenas.4

Nenhum edifício verdadeiramente italiano parece incomo-dado na Itália. Todos estão contentes com o ornamento e a corque naturalmente carregam. As pedras e as árvores naturais e asencostas ajardinadas concordam com eles. Onde quer que os ci-

3.Publicado em Wrigth, F. Ll. An Organic Architeture: The Architeture ofDemocracy. Londres: London Humphries & Co. , 1939.4. Publicado em Wright, F. Ll. Ausgfuhrte Bauten und entwurrfe. Berlim:Wasmuth, 1910.

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prestes cresçam, lá, como o toque da mão de um mágico, tudo seresolve numa composição harmoniosa e completa.

O segredo deste charme inefável seria procurado em vão noar rarefeito da escolástica ou nos ateliês de qualquer das pedantesbelas-artes. Faz parte da própria terra, como um punhado úmido edoce dela. Tão simples que, para as cabeças modernas, treinadasna ginástica intelectual do gosto “cultivado”, pareceria de poucaimportância. Tão perto do coração está que é quase universalmen-te ignorado, sobretudo pelos estudiosos.

Quando pegamos a estrada, nos atraem flores de uma corviva incomum ou de uma aparência charmosa. Tomados por elas,aceitamos generosamente sua graça perfeita. Mas, procurando osegredo deste charme inefável, descobrimos que as flores, cujoapelo mais óbvio chamou primeiro nossa atenção, são nativas, in-timamente ligadas à textura e ao tipo da folhagem que há sob ela.Descobrimos a conformidade entre a forma daquelas flores e osistema no qual as folhas estão dispostas no galho. Daí somoslevados a perceber uma maneira característica de crescimento e adescobrir um tipo resultante de estrutura que primeiro tomou for-ma nas raízes escondidas na terra cálida, sempre úmida pela co-bertura de humo. A estrutura – como agora podemos observar –estende-se do geral ao particular, chegando assim às flores, quenos atraem, revelando, em suas linhas e forma, a natureza da es-trutura que as sustenta. Temos aí algo orgânico. Lei e ordem são oprincípio da graça e da beleza completas. A beleza é a expressão decondições fundamentais na linha, na forma e na cor, fiéis àquelascondições e parecendo existir para completá-las de acordo comalgum desenho original inspirado.5

5. Publicado em Wright, F. Ll. Ausgfuhrte Bauten und entwurrfe. Berlim:Wasmuth, 1910.

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A DESTRUIÇÃO DA CAIXA1

Acho que, conscientemente, comecei a tentar destruir acaixa pela primeira vez em 1906 – no projeto do Edifício Larkin.Encontrei a abertura natural que procurava quando (depois de umagrande briga) finalmente empurrei as torres das escadas para alémdos cantos do edifício principal, transformando-as em elementosindividuais, auto-portantes. Aí a coisa começou a acontecer, comovocê pode perceber.

Havia sentido esta necessidade de elementos bem cedo naminha carreira. Você verá esta sensação crescendo, tornando-semais aparente um pouco mais tarde na Igreja Unitária: talvez, sejalá onde você encontrará a primeira expressão verdadeira da idéiade que o espaço interno é a realidade do edifício. Na Igreja Unitáriaé onde eu penso tê-la alcançado, esta idéia de que a realidade deum edifício não se reduzia mais a paredes e cobertura. Aflorouentão este senso de liberdade, que se tornou, para vocês, a arqui-tetura de hoje, a qual chamamos de arquitetura orgânica.

Você pode ver lá, na Igreja Unitária, como lidei, naquele tem-po, com este grande problema arquitetônico. Você perceberá osentido do salão se construindo – um espaço não enclausurado,mas mais ou menos livre para se revelar. Na Igreja Unitária, vocênotará as paredes, de fato, desaparecendo, o espaço interior abrin-do-se ao exterior, o exterior penetrando. Vai ver reunidos em tornodeste interior, emoldurando-o, vários elementos livres relaciona-dos ao invés de paredes que o encerram. Veja, você agora pode

1. Publicado em The Junior Chapter of American Institut of Architects”,1952.

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propor elementos de vários tipos para delimitar o ambiente e agrupá-los em torno do espaço interior sem aquela sensação de encaixotá-lo. Mas, o mais importante é, acima de tudo, a sensação de abrigoestendido, expandido, que dá o indispensável sentido de proteçãoao mesmo tempo em que libera a visão do homem para além dasparedes. Este sentido primitivo de abrigo é o que uma arquiteturade qualidade sempre deve ter. Se, em um edifício, você denota nãosó proteção de cima, mas também liberação do interior em direçãoao exterior (o que se sente na Igreja Unitária e em outros edifíciosque construí), então você possui o segredo importante de deixar oespaço interior manifestar-se.

Agora devo tentar mostrar a você por que a arquitetura orgâ-nica é a arquitetura da liberdade democrática. Por quê? Bem...

Aqui, suponhamos, está sua caixa: uma grande abertura nela,ou aberturas pequenas se você preferir, claro.

O que você tem aí agora é um contêiner quadrado. Certo?Alguma coisa não se ajusta à nossa profissão liberal de caráterdemocrático, uma coisa essencialmente anti-individual. Aí vocêpode notar (mais ou menos) o que faz o aluno de arquitetura dequase todas as nossas escolas.

Nunca quis ser um engenheiro. Infelizmente, fui educadocomo um deles na Universidade de Wiscosin. Mas, sei o suficientede engenharia para saber que nos ângulos externos de uma caixanão é onde estaria o apoio mais econômico, se você fizesse delaum edifício. Não, a uma certa distância de cada canto em todos oslados é onde, invariavelmente, se encontrariam os pontos de apoiomais econômicos. Concorda?

Agora, quando você lança apoios nestes pontos você cria umpequeno balanço nas extremidades que encurta a distância entrepilares e deixa a esquina livre ou aberta na medida que você esco-lher. Os cantos todos desaparecem se você preferir por aí deixarentrar ou sair espaço. Ao invés de construção de pilares e vigas, atradicional caixa edifício, você agora tem um novo sentido da cons-trução de edifícios através do balanço e da continuidade. Ambossão novos elementos estruturais, uma vez que agora fazem parte

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da arquitetura. Mas, em todo o mundo, tudo o que se vê hoje destaliberação radical do espaço é a janela de canto. Nesta pequena alte-ração do pensamento, porém, reside a essência da mudançaarquitetônica da caixa para o plano livre e a nova realidade que é oespaço ao invés da matéria.

Deste ponto em diante podemos falar, então, de arquiteturaorgânica, ao invés de arquitetura clássica. Vamos lá. Estas paredeslaterais deslocadas tornam-se algo independente, não mais paredesque encerram o ambiente. São planos de apoio separados, algunsdo quais podendo ser encurtados, estendidos ou perfurados, ouocasionalmente eliminados. Estes planos auto-portantes sustentama cobertura. E a cobertura? Elevada, ela fica realçada como umaesplêndida sensação de abrigo, mas um abrigo que não escondenada quando, desde dentro, se olha para fora. É uma forma deabrigo que realmente causa a sensação do exterior entrando ou dointerior estendendo-se para fora. Sim, você tem agora uma ampli-tude que é realmente a liberação deste espaço interior ao exterior:liberdade onde antes existia aprisionamento.

Você pode aperfeiçoar a imagem da liberdade com aquelesquatro planos; de qualquer modo, a circunscrição da caixa mor-reu. Algo se transforma, e algo na natureza da planta ou dos mate-riais aparece naturalmente como possibilidade. Vou adiante: se estaliberação funciona no plano horizontal, por que não funcionaria noplano vertical? Ninguém nunca olhou para o céu lá em cima atra-vés do ângulo superior da caixa, olhou? Por que não? Porque acaixa sempre tinha uma cornija no topo. Era adicionada aos ladospara que a caixa não parecesse tanto uma caixa, e sim, mais clás-sica. Esta cornija era o elemento que fazia da sua caixa convenci-onal, clássica.

Agora – para seguir adiante – no Edifício Johnson, você nãotem nenhuma sensação de encerramento em qualquer dos ângu-los, superiores ou laterais. Você está vendo o céu e sentindo aliberdade do espaço. As colunas são projetadas para ficar em pé esustentar o teto, a coluna é feito uma parte do teto: continuidade.

A velha idéia de um edifício, como você vê, já se foi. Tudoantes destes pensamentos libertadores de balanço e continuidade

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tiveram efeito, era a construção pilar e viga: superimposição deuma coisa sobre a outra e repetição de laje sobre laje, sempre so-bre pilares. E agora? Estabeleceu-se um uso natural do vidro con-soante com esta nova liberdade espacial. O espaço agora podeentrar ou sair de onde há vida, espaço como um componente dela.Por isso a arquitetura orgânica é a arquitetura na qual você sente evê tudo isto acontecer como uma terceira dimensão. Muito chatoque os gregos não saibam deste novo uso do aço e do vidro comouma terceira dimensão. Se tivessem conhecido o que eu estoutentando descrever aqui, você não teria de pensar muito sobre istohoje, as escolas há muito teriam ensinado estes princípios a você.

Seja como for, este senso de espaço (espaço vivo pela tercei-ra dimensão), não é aquele senso, ou sensação de arquitetura, deque falara, um implemento para caracterizar a liberdade do indiví-duo? Penso que sim. Se você recusa este sentido liberado da cons-trução você não está jogando fora aquilo que é mais caro à nossavida humana e mais promissor como um novo campo para a ver-dadeira expressão artística criativa em arquitetura? Haverá algomais? Por tudo isto, e mais, é que eu tenho brigado, a vida toda,pelo fim da cavilosa velha caixa. Tenho tido um tempo tão curio-so, controverso, interessante, nesta batalha que eu mesmo me tor-nei controverso. A suspeita está sempre pronta.

Agora, voltando às minhas próprias experiências: depois doedifício do Templo Unitário, como disse, eu pensava ter algo gran-dioso nas mãos. Estava me sentindo, imagino eu, como um profe-ta devesse se sentir. Pensava freqüentemente: bem, ao menos aquiestá o nascimento genuíno de um pensamento, de um sentimentoe de uma oportunidade nesta era da máquina. Este é o meio moder-no. Eu o realizei! Naturalmente, lembro-me bem, tornei-me cadavez menos tolerante e, suponho, intolerável. Arrogante, acredito,seria a palavra certa. Eu a escutei muito.

Bem, sempre acontece alguma coisa quando você é despro-porcionadamente arrogante.

Certo dia fui para o meu estúdio em Taliesin para descansar.Apanhei um pequeno livro que eu acabara de receber do embaixa-dor japonês nos Estados Unidos. Chamava-se O livro do Chá,

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escrito por Okakura Kakuzo. Me pergunto quantos de vocês oleram. Bem, naquele livrinho eu encontrei citações do grande poe-ta-profeta Laotze, coisas que ele disse quinhentos anos antes deCristo. Ao virar as páginas, de repente dei de topo com isto: “Arealidade da edificação não consiste nas quatro paredes e o teto, esim no espaço entremeio onde se vive.” Curioso! Jamais o haviavisto antes. Mal podia acreditar no que lia e o reli inúmeras vezes.

Bem...bem...por um ou dois dias andei desiludido comigomesmo: sentia alguma coisa parecida a uma vela sendo arriada.Até que, me sentindo bem, recomecei a raciocinar.Pensei...ora...espere aí: Laotze o disse. Sim. Mas, eu o construi.Aí me reergui e tenho passado bem desde então, arrogância intocada- obrigado.

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