A Palavra e Suas Representações Na Teoria Da Relevância-LIVRO

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A PALAVRA E SUAS REPRESENTAÇÕES NA TEORIA DA RELEVÂNCIA Nilsa Teresinha Reichert Barin* As pessoas dirigem a palavra umas às outras sempre movidas por alguma intenção. Por meio desse comportamento verbal, geralmente bem articulado, o processo inferencial pode ser alcançado, e mais, com o êxito esperado pelo comunicador. A comunicação, em todas as suas formas, exige a participação ativa de quem a produz e de quem a recebe, com o propósito essencial e intencional de alcançar o interocutor. Com esse intuito, a Teoria da Relevância, nos anos oitenta, abriu uma nova possibilidade para a análise da comunicação em que processos inferenciais são realizados naturalmente pelas pessoas e que, enquanto processos interpretativos, devem ser julgados como eficientes ou não. Nesse processo, a palavra é fundamental para o desenvolvimento da língua, pois, em diferentes contextos, pode desempenhar papéis essenciais ou não, mas sempre, em qualquer caso, transforma experiências subjetivas do mundo em significados compartilhados. Embora seja considerada recente, a Teoria da Relevância, de amplo potencial descritivo e explanatório, certamente auxilia na representação da palavra em diferentes contextos e, assim, procura desvendar os múltiplos aspectos da significação no processo comunicacional.

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A PALAVRA E SUAS REPRESENTAÇÕES NA TEORIA DA RELEVÂNCIA

Nilsa Teresinha Reichert Barin*

As pessoas dirigem a palavra umas às outras sempre movidas por alguma

intenção. Por meio desse comportamento verbal, geralmente bem articulado, o processo

inferencial pode ser alcançado, e mais, com o êxito esperado pelo comunicador. A

comunicação, em todas as suas formas, exige a participação ativa de quem a produz e de

quem a recebe, com o propósito essencial e intencional de alcançar o interocutor. Com

esse intuito, a Teoria da Relevância, nos anos oitenta, abriu uma nova possibilidade para

a análise da comunicação em que processos inferenciais são realizados naturalmente

pelas pessoas e que, enquanto processos interpretativos, devem ser julgados como

eficientes ou não.

Nesse processo, a palavra é fundamental para o desenvolvimento da língua, pois,

em diferentes contextos, pode desempenhar papéis essenciais ou não, mas sempre, em

qualquer caso, transforma experiências subjetivas do mundo em significados

compartilhados. Embora seja considerada recente, a Teoria da Relevância, de amplo

potencial descritivo e explanatório, certamente auxilia na representação da palavra em

diferentes contextos e, assim, procura desvendar os múltiplos aspectos da significação

no processo comunicacional.

O modelo ostensivo inferencial: a Teoria da Relevância

Desde os anos 60, quando a Lingüística Textual surgiu para avaliar o que faz de

um texto um texto, muitas discussões teóricas orientaram-se por esse complexo

fenômeno de proposições semânticas como uma das formas específicas de manifestação

da linguagem.

* Professora do Curso de Letras do Centro Universitário Franciscano - UNIFRA, RS

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Inicialmente, o texto era visto como uma unidade superior à frase ou apenas uma

combinação de frases. Para as teorias pragmáticas, o texto é um fenômeno psíquico,

ocasionado por processos mentais, concebido como resultado parcial de nossa atividade

comunicativa que compreende operações e estratégias que têm lugar na mente humana e

que são postas em ação em situações concretas de interação social. Dessa perspectiva,

textos são resultados da atividade verbal de indivíduos socialmente atuantes que

coordenam suas ações no intuito de alcançar um fim social em conformidade com as

condições sob as quais essa atividade verbal se realiza. Entretanto, possibilidades de

processamento de informação inerentes à compreensão humana têm sido

insuficientemente discutidas nas abordagens conhecidas da Lingüística Textual.

Na década de 80, A pragmática cognitiva, como a Teoria da Relevância, de Dan

Sperber e Deirdre Wilson, abriu novas possibilidades de análise do processo

comunicacional, privilegiando o caráter inferencial não-demonstrativo da compreensão,

isto é, um processo inferencial que é espontaneamente realizado pelo ser humano em

forma de hipóteses e que pode ser julgado como bem-sucedido, malsucedido ou como

mais ou menos eficiente. Os autores da Relevância desenvolvem uma teoria da

comunicação voltada para a compreensão de enunciados, com ênfase na ostensão, que

focaliza as evidências dos pensamentos do comunicador, e na inferência, que modifica e

aumenta o conhecimento dos interlocutores envolvidos em atos de comunicação

naturalmente intencionais. Um dos aspectos fundamentais dessa teoria cognitiva é

defender duas propriedades inseparáveis da comunicação humana: da parte do

comunicador, ela deve ser ostensiva; da parte do ouvinte-leitor, deve ser inferencial,

pois este processará as informações a partir do comportamento ostensivo do emissor.

É da natureza de todo ser humano prestar atenção ou se preocupar com estímulos

que vêm ao encontro de seus interesses: a Teoria da Relevância caracteriza uma

abordagem pragmático-cognitiva que toma por base um aspecto inerente à cognição

humana – os indivíduos prestam atenção apenas a fenômenos que lhes parecem

relevantes.

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Como qualquer outro efeito perceptual, um enunciado pode ou não atrair nossa

atenção. Para Sperber e Wilson (1995), o emissor, ao produzir um enunciado, torna

mutuamente manifesto, ou mais manifesto, um conjunto de suposições – uma intenção

de informar e de alcançar efeitos cognitivos. Assim, o enunciado é um efeito ostensivo,

uma evidência direta da intenção informativa do falante. Na verdade, o modelo explica

como o emissor atrai a atenção do ouvinte-leitor por estímulos ostensivos e o modo

como este processa inferências em sua atividade interpretativa. O esforço de

processamento mental requer algum esforço de atenção, memória e raciocínio, enquanto

que o efeito cognitivo é alcançado quando houver alteração do modo como o sujeito vê

o mundo, isto é, suas crenças e suposições.

Conforme postulam Sperber e Wilson(1995), toda informação que chega até nós

de forma involuntária, forte em efeitos contextuais e econômica no esforço de

processamento, caracteriza um ato de ostensão. No texto em geral, a mensagem deve ser

“um estímulo ostensivo e relevante” para atrair a atenção do leitor-ouvinte a fim de que

possa ser processado inferencialmente. Nesse quadro teórico, se os enunciados não

constituírem estímulos ostensivos, serão apenas signos vazios. Para demonstrar como se

dá a interpretação, os autores apresentam um sistema inferencial em que os sujeitos

podem construir hipóteses através da percepção, da decodificação lingüística, das

deduções e do conhecimento enciclopédico armazenado na memória.

Para a teoria, uma informação é considerada relevante se for ao encontro de

suposições que o ouvinte já tem armazenadas sobre o mundo, tendo como resultado uma

nova suposição. Pode, no entanto, uma informação confirmar uma suposição que já se

tem ou pode contradizê-la. A essa mudança de opinião a que o indivíduo está sujeito,

com base no processo comunicativo, Sperber e Wilson(1995) deram o nome de efeitos

contextuais(cognitivos).

Nesses termos, estendendo o processo inferencial à questão da leitura,

podemos dizer, via paráfrase de Francis Bacon, que lemos não para refutar ou

contradizer, nem para crer ou pressupor, nem para achar assunto ou conversa, mas

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para pensar e considerar. Se conseguirmos fazer o nosso interlocutor –o aluno-

pensar, teremos atingido o nosso objetivo na docência.

A leitura é um trabalho extremamente sofisticado, porque há várias atividades

que devem ser realizadas para processarmos a comunicação. Como afirma

Kleiman(2001), “ignoramos muitas vezes, na prática, o fato de a leitura ser a

atividade cognitiva por excelência”. O complexo ato de ler e compreender começa a

ser desvendado se aceitarmos o caráter multifacetado desse processo que envolve

percepção, memória, processamento, inferência, dedução e contexto.

A leitura é um processo de seleção como um jogo, onde há avanços e recuos

para a correção, não é linear, progride em pequenos blocos e não produz compreensões

definitivas.

Nessa perspectiva de compreensão de textos ou enunciados, a Teoria da

Relevância é essencialmente preocupada com a compreensão de enunciados numa

abordagem de textualidade diferente das teorias lingüísticas de texto até então

conhecidas, defendendo, em perspectiva pragmática, que coesão e coerência não são

fatores de textualidade tão absolutamente necessários para a construção de sentido do

texto e que, muitas vezes, são meros recursos de linguagem dos quais o sentido não

depende.

Toda atividade cognitiva - ou interpretativa - humana depende, de certa forma,

da interação entre os conhecimentos internalizados ao longo da vida e da aquisição de

novas crenças. Esse conhecimento de mundo, também chamado de enciclopédico, é o

que está armazenado em nossa memória, ajudando a suprir as lacunas ou vazios

encontrados no texto oral, escrito ou mesmo na comunicação não-verbal na busca de

inferências para a compreensão.

Sem dúvida, os conhecimentos de mundo ajudam a preencher lacunas

encontradas nos textos, porque são informações armazenadas na memória e ativadas

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sempre que houver necessidade, resultando normalmente em inferências acionadas por

informações cognitivas e sensório-perceptuais do indivíduo, do seu contexto mental,

bem como do seu contexto sociocultural. Como a noção de inferência está ligada a

conceitos pragmáticos, o autor de textos ( e aí se incluem as propagandas ) se vê diante

de alguns conflitos, pois, embora não possa ter certeza do que o seu público vai inferir,

busca tornar acessível e reveladora a sua intenção de comunicar e informar.

Para S-W (1995), o contexto deve ser entendido num nível de representações

mentais, como um conjunto de suposições trazidas à mente durante o processamento do

enunciado ou texto. Enquanto seleciona o contexto para processar as suposições, o

ouvinte/ leitor é guiado pela busca da relevância, porque tenderá a construir as

representações mais relevantes possíveis dos fenômenos disponíveis e a processá-las

com o menor custo possível, visando à eficiência da compreensão.

Percebe-se, assim, que os autores da Teoria da Relevância vinculam a linguagem

fortemente à cognição humana, defendendo a possibilidade de que aquilo que é

comunicado é algo que pode ser representado na mente, isto é, um pensamento, um

desejo, atitudes ou crenças. Nesse sentido, configuram pensamentos como

representações conceituais, enquanto contrárias a representações sensórias ou a estados

emocionais, e acreditam que suposições são os pensamentos do indivíduo como se

fossem representações do mundo real. Nesses termos, S-W(1995, p.68) definem a noção

de inferência como:

É o processo cognitivo conceitual pelo qual uma suposição é aceita como verdadeira ou provavelmente verdadeira, baseada na força da verdade ou provável verdade de outras suposições.

Considerando esse quadro teórico, as representações semânticas codificadas

lingüisticamente na comunicação humana são estruturas mentais abstratas que devem

ser inferencialmente completadas e enriquecidas com base nas intenções do

comunicador, ou seja, a estrutura lingüística da sentença apenas subdetermina o que é

inferencialmente comunicado, implicando que a semântica lingüística, ao mapear

expressões da linguagem natural em conceitos, é apenas um input para um processo

inferencial de compreensão, conforme Silveira (1997 a).

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O modelo de código tradicional que sustentava os processos de produção e

compreensão de textos e entendia a comunicação como apenas a transmissão de uma

mensagem, sem considerar o contexto que é fundamental para a Teoria da Relevância,

era uma estrutura que se aplicava a situações em que os interlocutores compartilhavam

o domínio da mesma variedade lingüística e com o mesmo desempenho, o mesmo

conhecimento prévio. E isso não existe. O que se entende no modelo de código é o

princípio de codificar e decodificar idéias, empacotar e desempacotar apenas. No

exemplo “Você não vai se mexer?”, a Teoria de Código responde sim ou não à

pergunta, porque não considera a influência do universo cultural cognitivo e, por isso,

não entende a pergunta como uma ordem, um pedido de ação, uma ameaça ou uma

repreensão. No modelo inferencial , a resposta não será sim ou não. Imaginemos o

seguinte contexto: a mãe preocupada vendo o filho deitado e despreocupado no sofá e

diz: - você não vai se mexer? O enunciado será compreendido como um pedido de ação,

uma ameaça, um alerta, etc..

No exemplo a seguir, citado por Silveira e Feltes(1997), o modelo inferencial

explicita a questão:

Paulo: - Você quer café?

Ana: - Café me manteria acordada.

Existem duas possibilidades interpretativas: ou é um aceite porque Ana precisa ficar

acordada por qualquer motivo ou é uma recusa porque precisa dormir.Esses fenômenos

de difícil tratamento pelo modelo de código foram abordados por Grice através da

noção de implicatura e foi ele quem deu o impulso para uma nova abordagem do

modelo comunicacional. Em sua teoria, diz que há um hiato entre a construção

linguística(enunciado) e a compreensão do ouvinte e isso precisava ser preenchido não

mais por uma mera decodificação e sim por inferências. Segundo Grice, o processo

inferencial poderia explicar o que tradicionalmente se tem chamado de explícito e

implícito das mensagens, afirmando que há um acordo razoável entre falante e ouvinte.

Esse foi o ponto de divergência entre pragmaticistas de orientação cognitiva, como

Sperber e Wilson. Para os autores da Relevância, a hipótese do conhecimento mútuo

não pode ser garantida, logo a hipótese não se sustenta. No exemplo: duas pessoas estão

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olhando para a mesma coisa, podem identificá-la de modos diferentes e não reconhecer

ou compreender os mesmos fatos.

No exemplo que segue, também retirado de Silveira e Feltes(1997), A e B

caminham por uma rua histórica e A diz: “- Como é linda esta igreja!” B, que até então

não havia reconhecido a construção como sendo a de uma igreja, diz: “-Realmente, é

uma igreja muito bonita.”

Esse exemplo mostra particularidades na comunicação: A e B não tinham como

conhecimento mútuo a suposição(conjunto de conceitos) de que a construção é uma

igreja.Assim, de fato, é no curso da comunicação que essa suposição se torna manifesta,

isto é, é aceita e inserida num contexto de suposições partilhadas. A isso Sperber e

Wilson(1995) chamam de ambiente cognitivo mútuo e a comunicação visa justamente à

alteração dos ambientes cognitivos dos interlocutores. Vejamos o exemplo de um

conjunto de suposições candidatas a constituir o contexto para a interpretação do

enunciado. O exemplo, com pequenas alterações, é recuperado de SILVEIRA e

FELTES, 1997, p.48:

A - Uma cerveja?

B – Sou mórmon.

A partir da resposta de B, A naturalmente poderá entender, com o apoio da

memória cógnita ou enciclopédica, as seguintes suposições possíveis:

-Cerveja é uma bebida alcoólica.

-Mórmons não bebem álcool.

-B não bebe álcool.

-B não quer cerveja.

-B não quer qualquer tipo de bebida alcoólica.

O contexto, definido como um conjunto de suposições, inclui informação

proveniente do meio físico, informação recentemente processada, armazenada na

memória de curto prazo, e informação da memória de longo prazo. Diferentes graus de

relevância são possíveis no modelo: quanto mais efeitos cognitivos e menos esforço de

processamento, maior a Relevância; quanto menos efeitos cognitivos e maior o esforço

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de processamento, menor a Relevância; um maior esforço de processamento

compensado por mais efeitos cognitivos, aumenta a Relevância.

O processo de interpretação-compreensão vai-se constituindo aos poucos e não é

dado, como muitos acreditam, a priori; o indivíduo direciona sua atenção a um conjunto

de estímulos e suposições. Existem quatro diferentes formas de se obter suposições com

diferentes graus de força:

a)por input perceptual ( estímulos sensório-perceptuais);

b)por input linguístico ( as frases, a palavra, o texto);

c)pelo conhecimento enciclopédico estocado na memória;

d)por deduções.

Ainda, no exemplo anterior, se A visse B aceitando um copo de vinho em outra

ocasião, em nível de input visual, A eliminaria, definitivamente, a suposição de que B é

mórmon.

Assim, entendemos que ostensão significa chamar a atenção ( com enunciados

ou simplesmente por palavras) e provocar no leitor muitos efeitos cognitivos com baixo

custo de processamento mental, revelando as intenções do comunicador. A

comunicação ostensiva requer uma participação ativa do comunicador quanto do leitor-

ouvinte, pois este deve prestar atenção ao estímulo ostensivo. Desse modo, o Princípio

da Relevância se aplica a todas as formas de comunicação e os indivíduos cujo ambiente

cognitivo(as idéias) o comunicador está tentando modificar são os destinatários do ato

de comunicação, considerando que a comunicação nem sempre é bem-sucedida, como

defendem as teorias conhecidas de texto.

A palavra: conceitos e ‘relevância’ pragmática

O estudo da aquisição da língua, conforme preveem os pesquisadores, revela que

a criança conhece infinitamente mais do que a experiência revela. As crianças pequenas,

de forma impressionante, adquirem palavras a todo momento, compreendidas de modo

sutil, mas que, seguramente, vão muito além de qualquer dicionário. Se observarmos

como as palavras se comportam nos diferentes discursos, imediatamente observamos

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que são elas as portadoras principais da idéia e do sentimento, traduzem a realidade das

coisas e despertam imagens mais fortes, conforme postula Lapa( 1998). As palavras,

certamente, encontram-se subordinadas a uma escala de valores, há as que carregam, de

fato, o sentido da frase, outras estabelecem a ligação entre as idéias. Conforme o autor,

na vida prática, o caráter vertiginoso da informação e da civilização exige, muitas vezes,

economia vocabular, pois a multiplicação desnecessária de palavras não é bem-vinda e,

no bom estilo, o equilíbrio é a ordem; o ideal é dizer ou escrever na medida exata, com

clareza e segurança. Como elas podem revestir-se de vários significados, cada um

apreende o que particularmente interessa no momento da interação. Ouvimos inúmeras

vezes que uma simples palavra pode resumir o universo, isto é, uma única palavra pode

suscitar diferentes possibilidades significativas, abrangendo os domínios do pensamento

e da vida.

Segundo Lapa(1998, p.12),

o seu poder evocador não conhece limites. Vemos, pois que, em volta de cada

palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera

fantasiosa e sentimental que constitui seu valor expressivo. Há, evidentemente

palavras mais evocadoras que outras. O bom escritor saberá aproveitá-las, para

suscitar mais vivas e variadas imagens. Mas uma coisa é necessária a quem deseja

conhecer a fundo a sua língua e utilizá-la para fins artísticos: pensar e sentir as

palavras como se elas fossem feitas de novo, e evocar o objeto a que se referem com

a amior frescura e vivacidade possível.

Para Faulstich (1992, p.37), “palavra é uma sequência de um ou mais fonemas

suscetível de uma transcrição, compreendida entre dois espaços em branco; representa,

então, toda unidade emitida na linguagem falada ou escrita”. Para a linguista, a palavra

é unidade essencial do texto, pois, conforme suas considerações, o processo de escrita,

mediado pelas palavras, pode ser todo metaforizado, como na poesia, por exemplo, e

assim as palavras precisam ser mais cuidadosamente escolhidas, para que o leitor atinja

a intenção do comunicador. Para a autora, há diferenças entre ‘palavra’ e ‘vocábulo’,

pois este, segundo sua justificativa, “é unidade de língua efetivamente empregada em

um ato de comunicação; representa uma unidade particular, com significado, usada na

linguagem falada ou escrita”(p37).

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Para Sperber e Wilson (1995), os conceitos funcionam, por hipótese, como um

endereço possível para a compreensão de enunciados. Para cada tipo de informação

haveria uma entrada específica: entrada lógica(as interpretações, ou informações de

caráter computacional), entrada enciclopédica (conhecimentos prévios que variam de ao

longo do tempo e de indivíduo para indivíduo) e entrada lexical(informações

linguísticas). Nessa entrada lexical que, segundo a Teoria da Relevância, comporta a

informação sintática e fonológica, podemos situar a palavra, considerada pela teoria

como um input lexical. Para os autores, a construção do conteúdo de um enunciado

envolve, portanto, habilidade para:

1º identificar as palavras que o constituem;

2º recuperar os conceitos a elas associados;

3º aplicar as regras dedutivas ( entrada lógica).

A partir dessa concepção teórica, podemos entender a palavra, entre outras

possibilidades, como um componente lexical em forma de estímulo linguístico, um

input que provoca expectativas no ouvinte. Vejamos uma possibilidade de análise em

um anúncio publicitário da Coca-cola em que a palavra, como entrada lexical ou como

input linguístico, é um estímulo altamente relevante para o processamento da

informação. Em geral, os anúncios se valem das palavras como fortes elementos de

persuasão. Nos anúncios, as palavras não são apenas informativas, mas escolhidas com

alto grau de intenção. São ostensivas e argumentativas e, muitas vezes, são ‘alma’ e

‘coração’ de um anúncio para mudar opiniões e crenças. Como postula Carvalho (2007),

a linguagem publicitária reveste-se de palavras que consideram o receptor ideal para o

produto anunciado. Para isso, os vocábulos são selecionados cuidadosa e

ostensivamente para atrair a atenção da plateia, sensibilizando-a, e atingir seu propósito

maior: a venda do produto. Embora exista alto grau de complexidade no planejamento

de um anúncio, Carvalho (2007) esclarece que o vocabulário utilizado nesse tipo de

gênero é, normalmente, desprovido de recursos que dificultem sua leitura e

compreensão.

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Coca-Cola : sempre um sucesso

Pode-se observar, nessa peça publicitária, que o comunicador, especialmente a

partir da palavra ‘Coca-cola’, do enunciado ‘sempre um sucesso’ e do input visual da

propaganda, que resgata o passado através da fita cinematográfica do início do século e

do disco de vinil long play (LP), caracterizando o tempo presente através do CD

moderno (e do próprio advento da telecomunicação que presenciou a conquista das

grandes transformações tecnológicas e científicas), provoca no leitor uma suposição

contextual fortemente implicada:

S1- A Coca-Cola, do passado ao presente, sempre foi um sucesso.

Dessa suposição inicial, podem-se derivar outras suposições como S2, S3 e

uma conclusão (C) implicada:

S2 – A qualidade da Coca-Cola ‘sempre’- do passado ao presente – foi um

sucesso.

S3 – A Coca-Cola acompanhou o sucesso do avanço tecnológico.

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C – Se, até hoje, a Coca-Cola é um sucesso que se manteve, ela, mais do que

qualquer outra marca de refrigerantes, além de ter presenciado o passado e de

pertencer ao momento atual, simboliza o próprio futuro.

Essa conclusão implicada mostra que o anunciante exigiu mais esforço de

processamento do receptor do que seria necessário caso tivesse explicitado mais

diretamente a sua intenção nesse sentido, como num exemplo do tipo “Beba sempre

Coca-Cola”. Os apelos ostensivos e intencionais do comunicador através da palavra

‘Coca-cola’ podem ainda provocar outras inferências, como em S4, S5 e S6, a partir das

representações contextuais acessadas cognitivamente pelas palavras always,

toujours ,zawsze, siempre e ‘sempre’, sobre as quais há expectativa de Relevância:

S4 – a palavra ‘sempre’, nos vários idiomas, representa o sucesso da Coca-cola

nos países correspondentes.

S5 – O sucesso da Coca-cola pode ser estendido aos demais países,

considerando a universalidade dessa marca de refrigerante no tempo e no

espaço.

S6 – Da América à Europa, a Coca-cola é o refrigerante de maior sucesso.

S7 – Se você quiser fazer parte desse sucesso, você deve beber Coca-cola.

Assim, as suposições S4, S5, S6 e S7 são implicações contextuais que o

anunciante, com o intuito de que seu enunciado seja altamente relevante, parece desejar,

com fortes indícios linguísticos e perceptuais, tornar manifestas ao receptor.

É possível notar, mais uma vez, que, neste anúncio, o esforço extra de

processamento foi exigido do receptor. Entretanto, esse esforço extra é compensado

pela obtenção de vários efeitos cognitivos que desafiam a mente do potencial

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consumidor. Em vez de usar palavras que evidenciem a temporalidade para situar o

passado/ presente / futuro, os autores da peça preferiram levar o leitor à associação com

imagens que representam esses períodos de tempo, respectivamente, a fita

cinematográfica e o long play de vinil (passado), CD (presente) e o símbolo da Coca-

cola como projeção no futuro. Nesse sentido, o texto publicitário alcança Relevância

ótima, porque, além de evidenciar a qualidade do produto e persuadir o leitor a beber

somente esta marca de refrigerante, cuja marca é universal, constitui um modo mais

econômico de garantir uma grande variedade desses efeitos. Possivelmente,

características tão ostensivas contribuíram para a construção e compreensão desse texto.

Percebe-se que a ligação entre o enunciado ‘Sempre um sucesso’, o input

visual da marca ‘Coca-cola’, a própria palavra ‘Coca-cola’ e os termos em diferentes

idiomas do advérbio ‘sempre’ se dá num nível pragmático-cognitivo, de natureza

contextual e inferencial, como a própria Teoria da Relevância propõe.

Nessa expectativa, certamente, outras possíveis compreensões poderão ser

consideradas, o que evidencia o enorme universo em que essa teoria se encontra e

certifica, com clareza, que uma abordagem pragmática pode simplificar análises

semânticas e, quem sabe, resolver ‘problemas’ com que muitos pesquisadores têm se

confrontado.

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