A PERCEPÇÃO DO CRIME FEMININO NA COMARCA DE …
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A PERCEPÇÃO DO CRIME FEMININO NA COMARCA DE MALLET/PR (1935-1983)
Geovana Betu
(Unicentro) Resumo: O presente artigo, trata-se de cinco processos criminais que contem mulheres acusadas de homicídio. Nosso objetivo é analisar como as práticas criminalizadas foram percebidas pela sociedade malletense. Levando em consideração não apenas o fato que ocasionou a abertura do inquérito e posteriormente o processo, mas fatores externos, que foram levados em conta e acabaram ganhando destaque no discurso das testemunhas, principalmente por se tratarem de mulheres. Pretendemos, identificar as motivações, quem eram essas mulheres, qual o espaço que elas faziam parte e como elas foram percebidas pela sociedade local, rompendo comportamentos socialmente constituídos. Afinal, historicamente a mulher foi condicionada a viver no espaço privado, pertencia a ela cuidar da casa, do marido e dos filhos. Cabia a elas, comportamentos geralmente identificados como docilidade e submissão, onde a mulher seria incapaz de cometer crimes. A partir das análises, observamos nos discursos das testemunhas, que na maioria das vezes, a causa dos atos violentos cometidos por mulheres, são compreendidos como uma reação, devido sucessivas agressões e outras práticas de violência que elas vêm sofrendo, em grande parte por seus companheiros. Desse modo, pensamos a prática da violência, além do seu significado que é exercer ou empregar a força contra o outro, mas como instrumento de sobrevivência e resistência. Palavras Chaves: Processos Crimes; Homicídio; Mulheres Rés.
Introdução
Neste artigo analisamos cinco processos criminais1 que possuem mulheres
acusadas de praticarem homicídio. Para tal analise, utilizamos autores que
trabalharam com processos criminais na historiografia, especificamente no Brasil e
abordaremos a temática de violência e relações de gênero. A partir de aspectos
contidos nas fontes, é possível identificar as atribuições de papeis ao masculino e ao
1O Centro de Documentação e Memória é um órgão vinculado ao campus de Irati da UNICENTRO, possui cerca de 15mil processos, desde 1907 até 2000, contendo processos das comarcas de Irati, Imbituva, Mallet, Prudentópolis, Teixeira Soares, São Mateus do Sul, São João do Triunfo, Palmeira, Castro, Rio Negro, Tibagi, Ipiranga, Campo Largo e São José dos Pinhais. Para mais informações e acesso aos processos, visite o site: https://www3.unicentro.br/cedoci
feminino. Para tal reflexão utilizaremos o conceito de Scott, gênero como categoria
histórica de analise.
Historicamente, a violência fez parte das relações sociais e das civilizações.
Segundo Robert Muchembled2, desde o século XIII no Ocidente, a violência passou
por um processo gradativo de monopolização pelo estado que estabeleceu relações
de força, com o intuito de combater atos violentos praticados fora do âmbito estatal.
Nos primórdios a violência era sinônimo de força, fazendo parte sobretudo, do cenário
masculino, ligada à virilidade e proteção. Na modernidade, o homem passa de
másculo, protetor e viril, para o adjetivo de homens delinquentes.
Paulatinamente a vida passou a possuir um valor legal e a violência passou
a ser um tabu. As pessoas violentas passaram a ser consideradas selvagens. Como
diz Muchembled: “a violência se tornou profundamente inaceitável para os que se
julgam civilizados”3. Porém, vale lembrar que o controle estatal da violência jamais
significou sua aniquilação. Mesmo oculta, a violência sempre permaneceu no cerne
das relações sociais.
Buscaremos aqui, identificar as formas de violência existente nos autos,
analisando não apenas a violência que originou a denúncia, mas outras situações que
o uso da violência está presente, como por exemplo; no dia a dia, na rua, na casa ou
no trabalho.
Os processos criminais como fonte histórica
No Brasil, a utilização dos processos criminais como fonte cresceu na década
de 1980, a partir de autores como Sidney Chalhoub, Boris Fausto, Mariza Corrêa,
Maria Sylvia de Carvalho Franco e Celeste Zenha, dentre tantos. Por meio dos
processos, além dos crimes e dos atos violentos, podemos identificar questões como
relações de parentesco, amizades, desavenças, aspectos do cotidiano e os lugares
de sociabilidade. Estamos diante de vários enunciados, os quais, corroboram para a
produção de um discurso jurídico, que produzirá ao fim, inocentes ou culpados. De
acordo com Rosemberg e Souza:
2MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012. 3Ibidem. p. 237.
No processo-crime, existe uma pluralidade de vozes que se cruzam, se esbarram e se complementam num mesmo processo. Acondicionadas na justeza dos discursos, as falas são expressas de maneira díspar. Não se pode atribuir o mesmo estatuto a uma sentença, a um bilhete anônimo juntado aos autos, a um recorte de jornal, a um depoimento de um analfabeto, ao inquérito do delegado (e, portanto, de origem policial), ao parecer do promotor (de origem judiciária). Claro que a manipulação por parte dos responsáveis pela confecção dos autos deturpa e limita os discursos, mas o processo crime não pode ser encarado como uma peça monolítica. Assim, cada um dos elementos presentes deve ser abordado com um cuidado singular e essencial4.
Seja ré, vítima, testemunhas ou judiciário, cada um vai apresentar um
enunciado sobre o ocorrido, apresentando aspectos do cotidiano, o comportamento
dos envolvidos, amizades e falatórios, por exemplo. A partir dos desfechos
identificamos relações pessoais, sociais e culturais. Como diz Mariza Corrêa, “os
processos são fábulas, parábolas construídas pelos juristas, cuja visão ordena a
realidade de acordo com normas legais (escritas) preestabelecidas, mas também de
acordo com normas sociais (não escritas) que serão debatidas perante o grupo
julgador”5.
Nos processos, que possuem mulheres indiciadas como rés, identificamos
sobretudo falatórios e questões conjugais. Rosemary Almeida6 em sua tese sobre
mulheres acusadas de praticarem crimes, concluiu que o baixo índice de mulheres
que praticam violência, pode ser justificado pelo fato das mulheres, em grande parte,
estarem à margem do espaço público e consequentemente do mundo do crime. Visto
que a figura feminina foi por muito tempo construída socialmente para desempenhar
as tarefas de mãe e esposa. No caso das mulheres acusadas nesses processos que
vamos analisar, cabe levantar questionamentos, sobre como esses crimes praticados
por mulheres foram percebidos pelo Poder Judiciário e pela sociedade.
Diante de tantas limitações impostas as mulheres, por meio dos processos,
percebemos que as elas circularam e adentraram vários espaços, geralmente
4ROSEMBERG, André e SOUZA, Luís Antônio Francisco. Notas sobre o uso de documentos judiciais e policiais como fonte de pesquisa histórica. UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 5, n.2, p. 159-173 - dez. 2009. p.168-169. 5CORREA, Mariza. Morte em família: Representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal,1983. p. 24. 6ALMEIDA, Rosemary de O. Mulheres que Matam. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
delimitados pelo sexo masculino. Michele Perrot7, em seus estudos, fez emergir o
papel atuante das mulheres como atrizes e agentes sociais de suas próprias histórias.
Durante muito tempo, as mulheres foram silenciadas, dominadas e invisíveis na
sociedade. A atuação da mulher era restrita ao lar e a família.
Além de Michelle Perrot, Mariza Corrêa8 também, repensou em seus estudos
a relação entre os crimes cometidos por mulheres e os comportamentos atribuídos a
elas. Afinal, o perfil feminino era caracterizado como dócil, frágil e submisso. A
violência e o crime, sempre foram pensados como assunto de homens; os atos viris,
a necessidade de provar sua masculinidade, de dominar o espaço o qual estão
inseridos, são questões que desde a infância estão atreladas ao comportamento
masculino.
Para abordar tais questões utilizaremos o gênero como uma categoria de
análise histórica. Segundo Scott9 as relações entre homens e mulheres não devem
ser pensadas separadamente e as concepções, sobre feminino e masculino são
reconstruídas, negociadas e ressignificadas simultaneamente de acordo com a
temporalidade. No caso desses processos encontramos um vasto espaço temporal,
duas gerações de mulheres e mudanças nos códigos penais, por exemplo. O gênero
enquanto categoria de análise, consiste em repensar padrões culturais e
comportamentos pré-estabelecidos a homens e às mulheres. Para Scott:
[...] o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” -
a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos
homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens
exclusivamente sociais de identidades subjetivas de homens e de mulheres.10
Com isso, há necessidade de compreender a importância dos sexos, a
amplitude dos papéis sexuais e o simbolismo atrelado aos sexos. Segundo Scott, o
gênero é formado pelas diferenças entre os sexos, diferenças essas construídas
7 PERROT, Michele. História dos excluídos: mulheres, escravos, presidiários. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
8 CORREA, Mariza. Morte em família: Representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro:
Edições Graal,1983. 9 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre. Vol.20, nº 2, jul/dez, p.71-99, 1995. 10 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre. Vol.20, nº 2, jul/dez, p.71-99, 1995. p.75.
social e culturalmente embasadas nas relações de poder percebidas. Ao longo do
desfecho dos autos e dos enunciados, faremos nossas reflexões.
Nesses processos encontramos cinco mulheres com vidas diferentes e que
viveram em tempos diferentes, o fator que os ligam, é o fato de serem acusadas de
praticarem homicídio. O primeiro caso ocorreu em 1935, Bronislava11 contou em seu
depoimento que era vítima frequente de violência, ameaçada e acusada de traição.
Toda vez que o marido bebia, tinha que ter cuidado para não ser agredida novamente.
Desta vez, era meio dia, ela estava preparando o almoço para sua família, quando o
marido que por sinal havia bebido, gritou lá do terreiro para a mulher ir tocar os
terneiros12 que estavam no mandiocal do vizinho. O marido alegou que a mulher não
estava com roupa apropriada para sair de casa. A vítima estava com uma moranga13
em uma das mãos e com o machado na outra, atingiu a esposa com a moranga e ela
em um movimento brusco, a mulher pegou o machado e lhe feriu, deixando-o
atordoado. Com medo de que o marido revidasse, Bronislava deferiu mais golpes
contra o marido que veio a falecer.
Segundo Paulo, uma das testemunhas: “Francisco não tinha boa conduta, era
péssima quando são e principalmente quando se encontrava em estado de
embriaguez”14, Paulo ainda comentou que a vítima duvidava da fidelidade de sua
esposa. Em certa ocasião, um senhor para quem a vítima trabalhava, foi até a
residência deles, jantou e após sair da lá, Bronislava foi espancada pelo marido,
alegando que o homem foi lá, apenas para vê-la.
Segundo Bassanezi, o bom casamento dependia da conduta da mulher. Eram
os esforços femininos que garantiam filhos felizes e maridos satisfeitos. Segundo a
narrativa de outras testemunhas a acusada sempre zelou pela sua família, tanto que
perante o juiz ela alegou que agiu em legítima defesa, buscando proteger sua vida e
a vida dos seus filhos.
Catarina e Rosa, tiveram mais uma coincidência na forma que foram
acusadas, mulheres que sem utilizar facas ou machados foram denunciadas pelos
homicídios de seus respectivos maridos, Francisco e Pedro.
11BR.PRUNICENTRO.PB003.1/115.9 (utilizaremos apenas o primeiro nome dos envolvidos) 12Cria da vaca de até um ano de idade, conhecido também por bezerro. 13 Espécie de uma abóbora. 14 BR.PRUNICENTRO.PB003.1/ 115.9
No dia 24 de agosto de 1948, Catarina achava-se em seu domicilio, quando o
marido chegou do trabalho embriagado15. Os dois tiveram alguns desentendimentos
e a vítima ameaçou a ré, com um tição. Devido a situação, a denunciada foi com os
filhos pernoitar na casa de sua comadre. Segundo a denúncia, a mulher deixou o
rancho que morava com fogo aceso e o marido embriagado, não voltando naquela
noite para casa. Catarina, alegou que saiu da casa para proteger a própria vida. No
dia do ocorrido a vítima tinha chegado em casa bêbado, jogou o tição na mulher
prometendo matá-la, só que o mesmo atingiu a casa. No dia seguinte, ainda na casa
dos compadres, a declarante soube do incêndio e de que o marido estava carbonizado
nos escombros. A comadre da denunciada, disse que a mesma chegou na sua casa
pedindo socorro, pois Francisco estava bêbado e havia prometido lhe matar. De
acordo com a testemunha, Francisco era trabalhador, porém sempre que bebia
brigava com a família. Outras testemunhas apresentaram um discurso semelhante,
alegando que a vítima ficava agressivo após ingerir bebida alcoólica.
Rosa e Pedro16, no dia 08 de outubro de 1949, haviam ido passear na casa
da irmã da denunciada. Na volta a vítima chegou em uma casa de negócios “tomar
uns traguinhos e comprou mais uma garrafa de cachaça e levou para casa”17,
conforme disse a denunciada no depoimento. Ela contou que o marido tomou toda a
garrafa, ficando embriagado, conta que chamou o marido para ir dormir, mas o mesmo
recusou. Então, ela e os cinco filhos foram se deitar. No outro dia, por volta das seis
horas, a filha mais velha encontrou dentro de um balde, o colete do pai queimado. A
jovem, foi até um quarto do lado da cozinha e encontrou o pai queimado. Segundo a
acusada, o marido pediu um copo de água e contou que tinha se queimado. Ele pediu
para a esposa passar óleo na queimadura, disse que não sabia como tinha
acontecido, só sabia que ele tinha se queimado com um lampião que estava em cima
do fogão. A depoente ainda disse:
Quis levar o seu marino no Hospital de Malet e ele não quis então a depoente disse que mandava chamar o médico em casa ele também não concordou e domingo vendo que seu marido não passava bem resolver de telegrafar sem ele saber para o Doutor Benghi, sendo que na segunda feira o Dr veio em
sua casa e vendo o seu marido mal resolveu de leva-lo para o Hospital.18
15BR.PRUNICENTRO.PB003.1/ 277.18 16BR.PRUNICENTRO.PB003.1/297.19 17BR.PRUNICENTRO.PB003.1/297.19. p.3. 18BR.PRUNICENTRO.PB003.1/297.19. p.4.
Pedro, ficou cerca de 11 dias no Hospital e o médico o mandou para a casa,
vindo a falecer no mesmo dia. Segundo as testemunhas, a vítima tinha o costume de
beber, a testemunha também de nome Pedro alegou “que era difícil chegar na casa
de Pedro e encontrar ele são, que sempre estava embriagado e que por esse motivo
veio acontecer de ele se queimar”.19
Outra testemunha que foi visitar Pedro, disse que a própria vítima contou, que
estava escorado no fogão e ao acender um cigarro pegou fogo o paletó, se queimando
acidentalmente. O Promotor Público, após ler os autos, deu o caso por encerrado,
pois concluiu que a denunciada não possuía envolvimento algum com a morte do
acusado. O mesmo se queimou acidentalmente, ficando gravemente ferido,
ocasionando sua morte. As duas foram denunciadas por questões que, ao que tudo
indica, não dependeram delas para acontecer. Percebemos que as mulheres eram
impostas a práticas, que faziam com que as mesmas se sentissem na “missão” de
proteger, cuidar de seus maridos.
O próximo crime ocorreu em 14 de março de 1965, segundo a denúncia, Ana
estava em completo estado de embriaguez e teve uma discussão com seu marido
José. Os dois agrediram-se mutuamente e a denunciada em posse de uma faca de
cozinha, deferiu vários golpes no marido, ocasionando vários ferimentos de natureza
grave, que o levou à morte no dia seguinte. Disse que foi casada há 26 anos com a
vítima, tiveram dois filhos, afirmou que o casamento foi bom, até o momento em que
o marido começou a beber há 15 anos.
De acordo com o depoimento da testemunha Hilário, ele estava voltando para
casa e encontrou o filho mais velho de José. O menino foi até ele contar que o pai
estava machucado. Hilário resolveu chamar outros dois vizinhos, um também de nome
José e outro que se chamava Miguel. Juntos, foram até o Delegado de Polícia e
voltaram até a casa da vítima, encontrando-o acamado e com ferimentos na barriga.
Segundo a testemunha, a vítima estava com as tripas de fora, visto isso, o Delegado
mandou os três vizinhos colocarem José no carro e levaram até o Hospital local.
Segundo o depoimento dos vizinhos, o casal tinha o vício da embriaguez, pois eram
acostumados a beber e acabavam brigando. A indiciada informou na Delegacia que
19BR.PRUNICENTRO.PB003.1/297.19. p.7
tinha os vícios de fumar e beber, Ana ainda disse em seu depoimento que estava
arrependida, mas que agiu em defesa da família, pois o marido costumava beber e a
maltratava ela e os filhos. No dia do crime, ela diz que o marido;
“avançou em sua direção proferindo palavras de baixo calão, em face do que, na eminencia de ser atacada por seu marido a depoente usando uma faca de cozinha deferiu-lhe um golpe na região abdominal, que seu marido, costumava agredir a depoente, inclusive causando-lhe ferimentos”20.
Como Ana confessou a autoria do crime, ela chegou a ser presa em flagrante,
porém, a defesa alegou que o filho mais velho era deficiente, incapaz e precisava dos
cuidados da mãe. Como a mesma se justificou, dizendo que agiu em sua defesa e na
defesa dos filhos, foi concedido o pedido de liberdade provisória, respondendo o
processo em liberdade. Em julho do mesmo ano, o Promotor Público, reconheceu a
ação da denunciada, agindo em legítima defesa e ela foi absolvida em primeira
instância.
O quinto processo diz respeito a Marta21. A ré foi acusada de matar o marido
e por tentativa de ocultação do cadáver. De acordo com a denunciada, o marido saiu
cedo para trabalhar, logo depois o marido voltou até a casa, pegou um guarda-chuva
e uma faca de cozinha, ela perguntou se o marido retornaria para o almoço, mas ele
não respondeu. A tarde, a denunciada mandou a filha ir até a serraria perguntar por
Dionizio, chegando lá a moça foi informada que o pai não havia aparecido e então, o
dono da serraria mandou três homens procurarem pela vítima. Segundo Carlos, uma
das testemunhas, ele e mais dois companheiros de trabalho foram até a casa de
Dionizio e falaram que iam buscar pela vítima, Marta encontrava-se bastante nervosa
e ao vê-los disse: “não adianta se baterem nesse mato sujo, procurem ali em cima”22.
Com isso, os três voltaram para a serraria e o patrão decidiu que fosse chamada a
polícia. No dia seguinte quando Aloise, um dos companheiros de trabalho, voltava do
almoço encontrou a vítima, já sem vida no meio de uma propriedade rural, a cerca de
150 metros da estrada.
Com a vítima foi encontrada uma mala escolar, que ele levava o café para o
serviço, a faca e o guarda-chuva, conforme a denunciada contou que o marido havia
20BR.PRUNICENTRO.PB003.1/555.35 .p.37 21BR.PRUNICENTRO.PB003.1/757.77 22BR.PRUNICENTRO.PB003.1/757.55. p. 17
saído de casa. Carlos alegou que ao darem a notícia à Marta, ela se recusou a ir até
o local ver a vítima e se negou a receber o corpo do marido para o velório. Segundo
a testemunha, o corpo de Dionizio ficou no máximo uns dez minutos na casa e foi
levado para ser sepultado. Por meio dos discursos das testemunhas, percebemos que
o comportamento Marta causou estranhamento na vizinhança. De acordo com as
testemunhas o falatório era de que a esposa teria sido a autora do crime, que eles
brigavam muito e ela mesma mostrou o lado que o corpo poderia ser encontrado.
Ainda dizem que na segunda feira dia que o marido desapareceu a indiciada estava
com o varal cheio de roupa e lençóis.
A filha de Dionizio e Marta, também foi depor, segundo a moça, no domingo
à noite após a festa, seu pai estava bêbado e insistiu para que ela e sua mãe irem até
uma novena nas proximidades. No dia seguinte quando o pai saiu de casa a jovem
estava dormindo, segundo suas declarações:
No dia 19, dia do desaparecimento do seu pai, o tempo estava brusco, sujeito à chuvas; que naquele dia, sua mãe resolveu lavar diversas roupas da casa, inclusive a roupa que seu pai havia usado no dia da festa, isto é, a camisa cor de rosa, a camiseta e a calça preta, lençóis, fronhas toalhas, e outras roupas, lavando o acolchoado que o casal usava, isto é, um acolchoado de penas, que invés de usarem colchão, era sobreposto palha de milho, a qual era coberta com pano o qual servia como colchão, que sua mãe também lavou o referido pano que cobria a palha e trocou de palhas, sendo que a declarante não se lembra se a palha velha foi jogada fora ou queimada, que a declarante diz que a mãe dela trocou a palha do quarto dela e de seu pai porque estava suja; que sua mãe não trocou a palha de sua cama e também não lavou a roupa de cama da declarante; [...] que seu pai era uma pessoa
esquia magra franzina com pouco peso [...].23
Outras testemunhas afirmaram a mesma coisa, que Marta estava com os
varais cheios de roupa de cama e toalhas, e que Dionizio ela um homem franzino, já
Marta era uma mulher de grande estatura24. Segundo o testemunho de Carlos a
indiciada, possuía condições físicas para arrastar o corpo da vítima até o local onde
foi encontrado.
No desfecho percebemos que os indícios apontados pelo crime se tornam
mínimos se comparados aos rumores das testemunhas. Como afirma Grinberg, “é
justamente na relação entre a produção de vários discursos sobre o crime e o real que
está a chave da nossa análise. O que nos interessa é o processo de transformação
23BR.PRUNICENTRO.PB003.1/757.55 P.75 24BR.PRUNICENTRO.PB003.1/757.55 P.107
dos atos em autos, sabendo que ele é sempre a construção de um conjunto de
versões sobre um determinado acontecimento.”25 É a partir dos depoimentos que
descobrimos as relações de amor e ódio entre os envolvidos.
No processo de Marta, esses discursos sobre suas atitudes suspeitas se
repetem. Segundo Adelaide, algumas pessoas dizem que a filha de Marta poderia não
ser de Dionizio, pois, a denunciada dizia para a vizinhança que poderia ter se casado
com outro, casou com a vítima por influência da família, mas que ela não gostava do
marido. A filha do casal foi intimada novamente para depor. Ela disse:
que a mãe da declarante não lavou roupas de cama; tendo lavado somente roupas da declarante e as do pai da mesma; que a declarante não narrou na delegacia que sua mãe tinha lavado roupas de cama; que seus pais nunca brigavam; que seu pai tomava uns aperitivos mas não se embriagava; que
seu pai as vezes discutia com Leopoldo, mas não era discussão grande.26
A partir desse trecho, observamos que ocorreu uma mudança significativa,
pois no depoimento anterior, a jovem contou detalhes sobre as roupas de cama e
toalhas que a mãe tinha lavado. Tendo inclusive, trocado as palhas da cama. Novas
testemunhas foram intimadas para depor e novas alegações foram feitas. A
paternidade de Lídia estava sendo questionada e a possibilidade da vítima não
conseguir ter relações sexuais, não conseguindo consequentemente ter filhos.
Segundo Alexandre:
ao lavar o cadáver constataram que o mesmo possuía o membro muito pequeno, não possuindo assim condições de relacionamento sexual nem de gerar filhos; que quando a acusada casou, a mesma queixou-se para a mulher do depoente que a vítima não mantinha relações com a mesma,
mesmo após três meses de casamento.27
Nos enunciados das testemunhas, percebemos que Marta é constantemente
reafirmada como a autora do crime. Indiretamente, o fato de colocarem em dúvida a
paternidade da filha e afirmarem que a vítima era incapaz de ter relações sexuais e
gerar filhos, colocou em dúvida a fidelidade e a honra da denunciada. Para as
testemunhas, as relações sexuais entre o casal seriam impossibilitadas, devido o
tamanho do órgão sexual da vítima. Porém este não seria uma justificativa para a
denunciada matar o marido. Percebemos a sexualidade do casal em jogo, sendo uma
25GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). O historiador e suas fontes. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009. p 128. 26BR.PRUNICENTRO.PB003.1/757.55 P.133 27BR.PRUNICENTRO.PB003.1/757.55 p.142
linha de fuga para eventuais seduções, traições e maus entendidos. Por causa de tais
testemunhos, a sexualidade do casal estava exposta, os interesses dos depoentes
estavam mais destinados a questionar a lealdade da mulher do que encontrar o
culpado pela morte de Dionizio.
A partir dos desfechos dos casos, notamos como o comportamento feminino,
era visto pelo Judiciário e pelas testemunhas. O fato de serem mulheres acusadas,
fez a atenção se voltar ao comportamento e a conduta das rés, ficando claro que se
mantém a dicotomia dos papéis masculino e feminino.
Considerações finais
Identificamos que as mulheres acusadas de homicídio antes de se tornarem
rés, foram vítimas, tiveram suas vidas marcadas pela violência física ou simbólica. Ao
praticarem os crimes, foram expostas perante a sociedade, suas vidas migraram do
espaço privado para o público e justificaram seus atos na defesa da honra e da família.
Nessa direção afirma Rodrigues, em sua tese de doutorado, fazendo referência a
Julian Pitt-Rivers:
a honra é ao mesmo tempo um sentimento e um fato social; por isto torna-se fundamental não apenas a aspiração a este valor por parte do indivíduo, mas o seu reconhecimento público. É por conseguinte, individual e coletivo, integrante e constituinte dos grupos sociais. A honra e o comportamento por ela ditado, igualmente, variam de acordo com as relações sociais e gênero
existentes em sociedade.28
De acordo com os discursos das rés, exceto Marta, todas agiram em caso de
necessidade e em legítima defesa, buscando proteger a moral e preservar a vida. No
caso de Marta, a sua fidelidade tornou-se um agravante, porém, as informações
agitaram mais a sociedade malletense do que o Judiciário, pois Marta foi julgada e
absolvida. Agir em defesa da honra era algo comum da época, a honra era o principal
adjetivo para qualificar uma pessoa. Como observou Michele Perrot, “a honra é mais
moral do que biológica”29, é parte essencial do capital simbólico da família e deveria
ser mais protegida e preservada possível. A honra da mulher estava ligada ao papel
28RODRIGUES, Andréa da Rocha. Honra e Sexualidade-Juvenil na Cidade de Salvador, 1940-1970. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em História. Salvador, 2007. 29 PERROT, Michele. Dramas e conflitos familiares. IN: História da Vida Privada. Trad. Denise Bottamn. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, 266.
de boa filha, esposa e mãe. A mulher não deveria se deixar levar pelos prazeres da
vida.
A partir dos relados identificamos, que ao contrário do que propõem Scott30 ,as
relações entre homens e mulheres eram ser pensadas separadamente, onde as
mulheres ficavam em casa e atendiam as vontades do marido, como é o caso de
Bronislava (1935), que deixou o almoço para atender o chamado do marido e que teve
sua vestimenta criticada por ele. Logo, Catarina e Rosa, foram acusadas da morte dos
seus respectivos maridos, sem terem relação alguma com o ocorrido. Os próprios
autos concluíram que elas não tiveram nenhum envolvimento na morte dos
companheiros. Os mesmos morreram de forma acidental, após a ingestão de bebidas
alcoólicas.
Além de Bronislava, Catarina e Rosa, no processo que Ana é acusada,
ocorrido em 1965, também identificamos o álcool como um dos fatores que
desencadeou o crime. Segundo os enunciados Ana também fazia o uso do álcool e
isso é salientado no processo, remetendo que o fato dela ingerir bebidas alcoólicas
não era um comportamento “ideal” para uma mulher. Dezoito anos depois, Marta foi
acusada, e além do crime, teve sua fidelidade colocada em questão. Marta em
nenhum momento confessou a autoria do crime, entretanto, nos enunciados
percebemos que as testemunhas buscaram encontrar a justificava do crime,
adentrando à vida privada do casal, questionando o casamento, a vida sexual do casal
e a paternidade da filha.
Nesses processos encontramos mulheres que fugiram dos padrões
culturalmente impostos as mulheres, de submissão e docilidade. Buscaram sobretudo,
defender a sua honra e a honra da família, assim como tradicionalmente empregado
aos homens, as mulheres também matam para se defender e para continuar vivas. E
as mulheres que não mataram, mas foram acusadas, foram justamente acusadas
devido sistema patriarcal da época, onde cabia a mulher cuidar do seu marido, em
qualquer circunstância. Todas as acusadas foram absolvidas pelo Poder Judiciário,
passando despercebidas como autoras dos crimes. Entretanto, percebemos que não
passaram despercebidas pelos olhos da sociedade.
30 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre. Vol.20, nº 2, jul/dez, p.71-99, 1995.
Referências:
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Revista Territórios e Fronteiras V.1 N.2 – Jul/Dez 2008. ROSEMBERG, André e SOUZA, Luís Antônio Francisco. Notas sobre o uso de documentos judiciais e policiais como fonte de pesquisa histórica. UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 5, n.2, p. 159-173 - dez. 2009.
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