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FACULDADE SÃO BENTO Por Valdeliz Correa França A PERSPECTIVA NIETZSCHIANA SOBRE A HISTÓRIA DE UM ERRO São Paulo 2014

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FACULDADE SÃO BENTO

Por Valdeliz Correa França

A PERSPECTIVA NIETZSCHIANA SOBRE A HISTÓRIA DE UM

ERRO

São Paulo

2014

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VALDELIZ CORREA FRANÇA

A PERSPECTIVA NIETZSCHIANA SOBRE A HISTÓRIA DE UM

ERRO

São Paulo

2014

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Faculdade São Bento, como exigência parcial

para a obtenção da licenciatura em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni

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DEDICATÓRIA

Dedico aos meus filhos e netos este trabalho, afinal, foi a partir do

incentivo e da compreensão deles que este projeto tornou-se possível.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Dr. José Carlos Bruni, pela paciência e

dedicação que me ajudaram a chegar a termo na meta acadêmica que me propus.

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“Qual a melhor maneira de subir esse monte?”

Apenas suba, não pense!

(Nietzsche, 2007, p. 25).

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SUMÁRIO

Resumo.....................................................................................................................04

Introdução................................................................................................................05

Capítulo I – A Dissolução do Mundo Verdadeiro - Uma Crítica Sobre a Moral........12

1.1- O Fim da Cultura Trágica na Grécia...............................................................17

1.2- O Cristianismo Como Paradigma da Degeneração instintual........................21

Capítulo II – Contemporaneidade e Morte de Deus.................................................36

2.1- O Niilismo Como a Verdadeira Face do Mundo...........................................39

Considerações Finais..............................................................................................44

Referências Bibliográficas......................................................................................48

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Resumo

Segundo a visão do filósofo Nietzsche, o mundo ocidental foi montado às

custas de uma moral específica, chamada por ele de: moral ascética. Com isso ele

quis evidenciar o alto grau de alheamento produzido por este constructo. Nosso

trabalho objetiva analisar sinteticamente as principais conclusões do filósofo alemão

sobre tal tema e, com isso, mensurar o valor filosófico da intuição nietzschiana para

contemporaneidade.

Palavras chaves: Nietzsche, Transvaloração, Moral, Contemporaneidade.

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INTRODUÇÃO

No prólogo do livro Crepúsculos dos Ídolos, Nietzsche diz que este seu

livro é uma verdadeira “declaração de guerra” (Nietzsche, 2010, p.8). Com tal

enunciado o filósofo alemão quis denotar a terrível seriedade de sua questão. Suas

teorias estariam na base do grande questionamento aos valores ocidentais, suas

palavras prenunciariam a derrocada de muitos dos valores chamados de supremos.

Este espirito bélico demonstrado pelo filósofo era uma metáfora da

conquista tortuosa que ele deveria seguir até o cumprimento de sua meta. Fazer

guerra contra as ideias e crenças tidas como verdadeiras, significava neste contexto

uma real batalha gnosiológica. Diferente de uma filosofia pautada na busca da “paz”,

sinônimo aqui de tranquilidade filosófica, a filosofia nietzschiana propunha uma

senda agonística, ou seja, uma forma de filosofar a partir dos “opostos”. O termo

agonístico, lançado como adjetivação à maneira de filosofar de Nietzsche, explica-

se pelo prefixo “agón” denotativo de batalha que em junção etimológica com o

restante do termo, pode ser entendido como a filosofia da batalha ou uma guerra

entre opostos, que sempre gera um momento novo de síntese.

A imagem principal usada por Nietzsche para exemplificar a sua postura

era a do martelo, isto porque esta figura de linguagem revelava a necessidade de

desconstrução em relação a variadas crenças dentro e fora do reino da filosofia. É

por isso, que o filósofo alemão, dentro deste projeto de desconstrução teorética

declarou que seu hábito era “fazer perguntas com o martelo” (Nietzsche, 2010, p. 7).

Agir desta maneira era uma forma de questionamento ácido em relação à todas as

verdades existentes, ao “bater” na superfície reluzente de muitas de nossas crenças

tidas como absolutas, Nietzsche ouvia o som oco que revelava a falta de

preenchimento das lacunas existentes.

Os valores supremos foram expostos como máscaras que ocultavam o

enorme vazio de sentido de nossas crenças morais.

Para o filósofo alemão o verdadeiro pensador deve ser um sujeito

vigoroso em sua proposta de entendimento, afinal, “apenas o excesso de força é

prova de força”. (Nietzsche, 2010, p. 07). O novo pensador por ótica de Nietzsche,

deveria produzir uma transvaloração de todos os valores, o que significa questionar

impiedosamente todas as crenças pensadas como “nobres”.

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Transvalorar dentro deste contexto é o mesmo que transvalorar todos os

valores, o que implica no movimento de superação de todas as crenças vigentes. Na

verdade, a metáfora da guerra é bem apropriada à intenção nietzschiana, o filósofo

da transvaloração deveria estar pronto para ferir e ser ferido dentro deste campo de

batalhas valorativas. Para ele “até no ferimento se acha o poder curativo”

(Nietzsche, 2010 p. 7), ou seja, ferir-se significa arriscar-se criativamente no projeto

de transvaloração da tábua de valores estabelecida a priori.

A imagem de um filosofar a base de marteladas se ajusta a conclusão

nietzschiana que diz que: “há mais ídolos do que realidades no mundo” (Nietzsche,

2010, p. 07). O título do livro a ser examinado em nossa dissertação “Crepúsculos

dos Ídolos”, livro este que servirá como principal embasamento de nosso trabalho

acadêmico, insinua que para existir uma verdadeira filosofia é necessário que certos

ídolos morram.

O termo ídolos dentro deste conjunto de ideias filosófica, aplica-se a toda

noção filosófica pensada como absoluta neste sentido, idólatra é todo aquele que

busca irrefletidamente verdades inquestionáveis para si.

Com o martelo na mão Nietzsche visava despedaçar as nossas mais

“sagradas” verdades, não pensou em poupar nenhuma delas. Sua investida

iconoclasta baseava-se num método extremamente revolucionário, que o filósofo

alemão normalmente denominava de genealógico. Tal método pressupunha o

questionamento generalizado das ideias e crenças em relação ao mundo. Diferente

da crença ingênua em verdades dadas naturalmente, Nietzsche percebia uma

montagem histórica das mesmas, por isso, todas as crenças tinham uma origem

humana, demasiadamente humana. Esta percepção aguda do filósofo é bem

resumida ao dizer: “o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se” (Nietzsche,

2010, P08). Revelar as coisas ocultas, neste contexto genealógico significa

averiguar quais as condições objetivas e subjetivas que levaram a criação de um

determinado valor.

É lógico que ao proceder genealogicamente em busca das razões

humanas para criação dos valores, Nietzsche se colocou frontalmente contra as

correntes idealistas de seu tempo. De maneira especial o filósofo se opôs à vertente

hegeliana que dizia que o racional permeava e dava forma a tudo aquilo que existia

em nosso universo material. Nietzsche não acreditava que o real era racional, ao

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contrário, para ele nossa razão muitas vezes era a causa de deturpação do real

sensível que nos tocava pela ação dos instintos, dizendo isso de outra maneira,

diferente de um idealista que acreditava num mundo das ideias, que seria a

verdadeira causa de ordenação do nosso mundo material, sendo este mundo

material apenas sombra do mundo real do espírito, Nietzsche acreditava que nossa

vivência material era a verdadeira causa dos múltiplos e quase infinitas ideias a

respeito do mundo.

Portanto, a filosofia nietzschiana busca entender como pôde o homem

sofrer uma “desnaturalização”, ou seja, como pôde se tornar o único animal

valorador do universo. É por isso que em seu livro “Assim Falava Zaratustra”, ele

concluiu: “Vossos juízos de valor e nossas teorias do bem e do mal são meios de

exercer o poder. Valoradores, eis o amor secreto que brilha em vossos corações,

que fremem e se desbordam” (Nietzsche, 2007, p.159).

No texto supracitado, Nietzsche coloca o ser humano como um ser

intencionalmente valorador. Para o homem não existe nenhuma relação no mundo

que fuja de seus critérios valorativos, por meio de seus muitos juízos de valor, ele

cria suas verdades morais. O interessante é que após esse ato de fabricação moral,

o artífice normalmente se esquece de que criou as próprias verdades que entesoura

como verdades em “si”. Por meio de um processo de alienação o criador acaba por

se ver como criatura, dissociando-se do processo causal de suas reluzentes

verdades.

É por esse motivo que no capítulo primeiro da presente monografia nos

propomos analisar “A Dissolução do Mundo Verdadeiro ― Uma Crítica Sobre a

Moral”, parte onde estudaremos quais as objeções que Nietzsche levantou em

relação ao mundo perfeito de Platão.

O filósofo alemão acreditava que a noção dual que afirmava a existência

de dois mundos, um verdadeiro e essencialmente imutável e, um outro falsa cópia

grosseira do verdadeiro, era uma perigosa falsificação da realidade. Ele buscou uma

unificação das partes que haviam sido dissociadas tendenciosamente por alguns

filósofos idealistas, entre estes Sócrates e Platão figuravam como os iniciadores de

tal engano.

Desconstruir a quimera de um mundo perfeito das ideias, pela sua faceta

ácida, segundo Nietzsche, se constituía num “trabalho sombrio” (Nietzsche, 2010,

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p.7), afinal o pensador da transvaloração revelaria o imenso “buraco” ocultado a

partir deste ideal de perfeição extramundano. A dualidade entre um pretenso mundo

verdadeiro e um outro falso, cópia de um original transcendental, para o filósofo

alemão se constituiria numa anulação de nossa vivência terrena. Seu viés filosófico,

pela crítica feita á Sócrates e Platão, denunciava a vontade covarde do idealista

fugir das premências mundanas, ambos negavam a corporeidade em prol de uma

alma pretensamente encarnada no corpo.

Na verdade, a ideia de um mundo verdadeiro, segundo os critérios do

método genealógico, escondia uma moral negativa que privilegiava a anulação de

nossa objetividade humana. Portanto, a moral inventada por Sócrates e Platão, era

em sua essência uma moral desumanizadora, isso porque, o sujeito se condicionava

a negar sua realidade atual visando uma outra realidade incorpórea após a sua

morte física. Neste sentido, o futuro idealizado acabava por acachapar toda

realidade presente, na moral idealista a esperança toma lugar da atividade real.

É importante que se diga que ao criticar coisas como “alma”, “mundo

perfeito”, “verdade”, entre outras ideias debatidas por Sócrates e Platão, Nietzsche

não visava um desmentido teológico, afinal sua descrença visava revelar a extensa

teia valorativa construída no âmbito da moral idealista. Sendo assim, seu ateísmo

era um instrumento de desconstrução de tudo aquilo que era considerado

“absoluto”, e, só secundariamente sua critica voltava-se para as ilusões

propriamente religiosas.

Por este motivo, no segundo capítulo de nossa monografia pretendemos

examinar o estridente anúncio nietzschiano sobre a “morte de Deus” e, assim

procedendo, esperamos entender como esse fatídico anúncio prenunciou o fim de

muitos dos valores ocidentais.

Na realidade “morte de Deus” é um apelo sintético às diversas

transformações que o mundo passaria com o fim da crença ingênua em uma

realidade metafisica, realidade esta que era pensada até o século XIX como pré-

organizadora de nossa realidade humana.

Falar da morte de Deus, dentro do contexto nietzschiano, significa falar

sobre os novos alicerces da contemporaneidade, bem ao estilo de um profeta ou

aedo, ele vislumbrou o nascimento de novos valores para o mundo, ao mesmo

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tempo que prenunciou a derrocada de valores milenares tidos até então como

imutáveis e perenes.

O termo “Deus” no âmbito da teoria transvalorada, equivale meramente à

noção de um “valor”. Assim, morte de Deus significa morte de todos os valores

cridos como absolutos. Ainda hoje, muitas pessoas confundem o famigerado

anúncio da morte de Deus, como um ataque à religião e, se é verdade que a crítica

nietzschiana abalou indiretamente os alicerces das diversas teologias ocidentais,

seu interesse filosófico de maneira alguma se resumia numa tentativa vulgar de

atacar apenas os “deuses” das religiões. Para ser fiel ao espírito do filósofo alemão,

devemos entender que os chamados “ídolo” se referem a todas as chamadas

verdades inquestionáveis, portanto não só as chamadas verdades religiosas, mas

também, algumas verdades chamadas de cientificas e racionais, deveriam ser

colocadas em xeque.

A crítica construída através do livro “Crepúsculos dos Ídolos”, se irradia

ao âmbito geral de todas as crenças chamadas de sublimes, assim a pertinência de

tal livro se explica pela sua enorme relevância contemporânea, com tal escrito,

Nietzsche foi além do seu tempo e pôde, antever um mundo multidiscursivo onde a

ideia de uma única verdade não se sustentaria mais. O cenário que presenciamos

atualmente justifica a derrocada valorativa prenunciada no século XIX pelo filósofo

genealógico, hodiernamente vivemos num mundo “desencantado” onde todas as

verdades são relativas, dependendo única e exclusivamente da perspectiva daquele

que valora.

No último capítulo de nosso trabalho, nos propormos a examinar a

possibilidade de existência de um novo mundo transvalorado. Neste capítulo

visaremos elencar as razões que levaram Nietzsche à insinuação de um mundo

mutável e sempre remodelado segundo a movimentação perspectivista de seus

atores.

Falar de um mundo novo é na verdade falar de uma nova posição

valorativa dos homens, ou seja, o mundo que verdadeiramente mudará, será

sempre o mundo construído pela ótica moral dos envolvidos.

Estudar a obra nietzschiana é de alguma forma estudar o crepúsculo de

ídolos, afinal os novos valores só serão possíveis quando nossas crenças mais

íntimas forem examinadas genealogicamente. De uma forma radical o ato de

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transvaloração implica na superação de crenças domésticas, transvalorar é desafiar

a si mesmo enquanto sujeito avaliador de sua própria moral. É por isso que no

âmbito de sua obra “A Vontade de Poder”, Nietzsche confessa:

Sou cheio de desconfiança e de malignidade contra o que se chama de “ideal”: eis aqui o meu pessimismo: o ter reconhecido como os “sentimentos mais elevados” são uma fonte de calamidade, isto é, de apequenamento e de rebaixamento dos valores do homem (Nietzsche, 2008, p. 65).

Nas palavras supracitadas, Nietzsche declara que a sua maior qualidade

como investigador da moral era a “desconfiança”. Seu método sempre baseou-se na

decomposição sistêmica de tudo aquilo que valoramos milernamente como sagrado.

Atacar ideias, dentro desta nova gramática valorativa, significa não poupar nada,

executando assim um exame meticuloso de suas razões causais.

O mundo ideal, para o filósofo alemão, era na verdade um projeto de

apequenamento do homem. Através da crença metafisica em um mundo melhor

além do homem, os homens reais evitavam as transformações reais que deveriam

executar neste mundo.

Na tese nietzschiana, não existe nenhum mundo que não comece e

termine no próprio homem, portanto o homem é o núcleo de todas as

transformações executadas em sua realidade. Dizer isto, significa, dizer que o

homem é o começo e o fim de toda planificação mundana, só a sua vontade conta

como bússola valorativa. É por isso que retoricamente Nietzsche inquire o novo

pensador: “Você é genuíno? Ou apenas um ator? Um representante? – enfim, não

passa da imitação de um ator” (Nietzsche, 2010, p. 15). Com estas belas palavras,

com certo tom de ironia filosófica, o filósofo alemão demonstra o quanto devemos

estar engajados na construção consciencial de um projeto pessoal para nossas

vidas, o homem é o artífice de seu próprio destino. Neste sentido, não basta ser

apenas ator, alguém que passivamente só tem a responsabilidade de colocar sobre

o seu rosto uma mascara forjada por outros, de forma ativa devemos ser “autores“

da nossa própria história pessoal.

Portanto, o nascimento de um novo mundo depende particularmente da

postura valorativa que assumirmos. Transvalorar não é apenas desconstruir ídolos,

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mas também, ter potência para criar novos valores condizentes as nossas

necessidades reais.

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CAPÍTULO I

A DISSOLUÇÃO DO MUNDO VERDADEIRO - UMA CRÍTICA SOBRE

A MORAL

A filosofia Nietzschiana é uma filosofia nascida de uma crise. Com isto

estamos querendo dizer que o movimento formador deste pensamento foi e continua

a ser um movimento singular na história do ocidente.

O mundo existente no final do século XIX, no qual o filósofo alemão

estava inserido, estava passando por profundas transformações. Nietzsche

conseguiu perceber muitas destas mudanças circundantes e, por intermédio de sua

filosofia, revelou a fonte maior desta crise ocidental.

No capítulo IV de seu livro O Crepúsculo dos Ídolos, ele pretendia

denunciar como o chamado “mundo verdadeiro” se tornou uma aviltante fábula.

Como filósofo genealogista, Nietzsche buscou rastrear os momentos iniciais da

construção da noção de mundo que os ocidentais tinham em seu tempo. Para o

mesmo, a cosmovisão organizada lentamente por Sócrates e Platão constituía a

verdadeira raiz da crença de mundo que ainda predominava corretamente no final

do século XIX.

Buscamos delinear a “história de um erro” o filósofo alemão buscou

entender como pode o mundo ficar cindido em duas partes antagônicas, uma delas

verdadeira e a outra falsa e obscura.

Segundo a visão Nietzschiana, o pressuposto de um mundo verdadeiro

que se opunha a um mundo material falso, era a verdadeira razão de muitos de

nossos infortúnios existenciais, Ele concebia essa dualidade como um ato de

vilipêndio em relação à verdadeira vida sensível, quando os filósofos de seu tempo,

inspirados pela verdade socrático-platônica afirmavam a cisão do mundo existente,

Nietzsche via nesta afirmação dualista uma verdadeira negação ao verdadeiro

mundo.

Mais do que uma negação qualquer, a negação que separava o mundo

em duas partes distintas foi interpretada pelo filósofo genealogista como uma

negação covarde, afinal, ao ir contra a efetividade do mundo material, covardemente

os homens ficavam na expectativa de um mundo verdadeiro e transcendente a ser

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conquistado só após a morte física. Este dualismo deletério foi interpretado da

seguinte maneira por Nietzsche: “o mundo verdadeiro, inalcançável, indemonstrável,

impossível de ser prometido, mas, já enquanto pensamento, um consolo, uma

obrigação, um imperativo” (Nietzsche, 2006, p.31). De acordo com as palavras

supracitadas, algo “indemonstrável” tornou-se por fim a verdadeira meta do mundo

civilizado, segundo está lógica nefasta, a crença em uma metáfora foi transformada

em um imperativo universal. Negando-se a viver o mundo efetivo, os homens se

habituaram a viver prospectivamente um mundo do “além”, é nesse sentido que

aconteceu uma superação do ideal em relação ao real.

Dentro deste contexto crítico, o dualismo implantado por Sócrates e

Platão constituiu, segundo a leitura que Nietzsche fez deste fato, um ato de

distanciamento em relação às coisas do mundo sensível, após a cisão do mundo em

duas partes antagônicas, o mundo da sensibilidade foi interpretado como um

sombrio mundo falso e, simetricamente contrário a este simulacro, estava o

pretenso mundo verdadeiro das ideias. Esta ideia de um mundo luminoso que se

opunha visceralmente a um mundo trevoso da efetividade sensível, para Nietzsche,

era uma maneira de desvalorizar tudo aquilo que realmente existia. Em nome de um

mundo verdadeiro, se ocultava uma forte aversão a tudo aquilo que

verdadeiramente podia ser experienciado pelos viventes.

Esta distinção maniqueísta é de fato fácil de justificar quando observamos o

diálogo entre Sócrates e o seu discípulo Eutidemo, acerca da realidade superior e

transcendental da alma:

– qual é a diferença, Eutidemo, entre o homem imoderado e o animal mais estúpido? Em que se diferencia o bruto que jamais toma o bem por guia e vive apenas para o prazer? Só os moderados podem examinar o que existe de melhor em todas as coisas, distribuindo-as por gênero na prática e na teoria, escolher o bem e recusar o mal (Xenofonte, 2004, p. 254).

Segunda a lógica interna deste curto fragmento, o avanço racional de um

indivíduo deve proporcionar-lhe condições de exercer o autocontrole instintual. No

viés de Sócrates o homem moderado é aquele que se sacrifica para alcançar o alto

domínio de sua carnalidade e, só a partir deste ato puro de consciência, o mesmo

mereceria o epíteto de “animal racional”.

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Na mesma linha argumentativa de Sócrates, seu discípulo Platão, que de

fato deve ser considerado o verdadeiro sistematizador do dualismo metafísico

ocidental, evidencia um grande desprezo pelo corpo. Em seu Fédon, texto onde o

filósofo idealista considera o corpo como a verdadeira fonte de todos os nossos

males, podemos ler: “... enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida

nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade”

(Platão, 2004, p. 127).

Assim, segundo a ótica platônica, neste mundo ilusório da matéria, nós

não nos relacionamos com as coisas verdadeiras, só com as sombras: “... é

impossível conhecer alguma coisa pura, enquanto temos corpo” (Platão, 2004, p.

128). Enfim, para nos tornarmos espiritualizados, segundo Platão, temos que negar

nossa corporeidade: “Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da

verdade, a não ser afastando-se do corpo e tendo relação com ele apenas o

estritamente necessário, sem deixar que nos atinja com as suas imundices” (Platão,

2004, p. 128).

Em nome de uma pretensa alma imortal, tendo como objetivo real uma

evidente vontade de duração ou de permanência da identidade, o homem aprendeu

com Platão a cultivar invertidamente uma vontade negativa em relação ao seu

corpo. Em outras palavras, o homem começou a cultuar a própria morte disfarçada

como virtude: “os verdadeiros filósofos trabalham com o objetivo de trabalhar para a

morte e, esta só lhes afigura horrível” (Platão, 2004, p. 129).

A visão de mundo socrático-platônico revelava um terrível desprezo e

ódio contra a vida efetiva, essa metafísica da morte tinha como principal qualidade a

negação absoluta do homem real. Em nome da alma tanto Sócrates como seu

discípulo Platão supervalorizaram uma ilusória unidade transcendente chamada de

alma.

É por isto que Nietzsche em tom de desabafo escreveu:

Sócrates foi um mal-entendido: toda moral do aperfeiçoamento também a cristã, por um mal-entendido... A mais crua luz do dia a racionalidade a todo o custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos foi ela mesma doença, uma outra doença – e de modo algum um caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à “felicidade”... ter de combater os instintos – eis a fórmula da decadence enquanto a vida acende, felicidade é igual a instinto (Nietzsche, 2006, p. 22).

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O filósofo Nietzsche, bem diferente da visão clássica que atribui a

Sócrates o papel de um herói emancipador, uma espécie de “salvador” que

conduziu o ocidente à senda verdadeira da virtude racional, ele via o filósofo grego

como um grande inimigo da vida forte, o mesmo promovia com sua metafísica o

adoecimento do sujeito real, enfraquecimento que se escondia por detrás da

reluzente promessa de aperfeiçoamento.

Dentro do viés ácido adotado por Nietzsche, toda moral que negava a

primazia do corpo era na verdade uma automutilação da vontade efetiva de vida,

somente o fluir instintual poderia nos conduzir a um “mundo verdadeiro”, mundo que

em sentido estrito não passava do mundo ativo de nossa sensibilidade carnal.

Como cópia do platonismo, o cristianismo para Nietzsche sempre abrigou

em seu núcleo um ativo rancor contra a vida, segundo ele, as tão evidentes lógicas

do ressentimento e do desdém em relação a tudo que é mundano e efêmero,

mostrou os pilares ocultos fixados por Platão no cristianismo.

Para o filósofo alemão, a própria imagem de Deus dos cristãos representava a pura

personificação da atrofia e degeneração instintual, daí sua conclusão de que: “o

conceito cristão de Deus – Deus como Deus dos doentes, [...] Deus como espírito –

é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foi alcançado na terra”

(Nietzsche, 2007, p. 23).

A imagem de Deus na interpretação nietzschiana é concebida como a

representação sintomática do estado doentio dos cristãos:

Onde, de alguma forma declina a vontade de poder, há sempre um retrocesso psicológico também, uma decadence. A divindade da decadence mutilado em seus impulsos e virtudes mais viris, torna-se por necessidade o Deus dos fisiologicamente regredidos, dos fracos. [...] quando os pressupostos de uma vida ascendente, quando força bravura, soberania, orgulho são retirado do conceito de Deus, quando passo a passo ele decai a símbolo de um bastão para cansados de uma âncora de salvação para todos que se afogam, quando se torna Deus-de-gente-pobre, Deus-de-pecadores, Deus-de-doentes [por excellence] [...] talvez represente o nadir descendente dos tipos divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração eterna afirmou-se desta! e Deus da hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! (Nietzsche, 2007, p. 22-23).

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A pregação socrática de sua racionalidade desencarnada que,

posteriormente foi sistematizada por Platão e popularizada pelo cristianismo, para

Nietzsche não era mais do que um sintoma de doença e, no sentido mais profundo,

a verdadeira substância ideológica envenenadora da vida forte no Ocidente. Por

isso, bem cedo em seus escritos Nietzsche percebeu que quando o cristianismo

tentava explicar o sofrimento humano, o que verdadeiramente fazia

subterraneamente era condicionar os viventes à aviltante ideia de valor expiatório do

sofrimento, nesta metafísica de moribundos o sacrifício dos instintos seria a única

forma de salvar a alma. Esta é a razão da afirmação nietzschiana: “a fé cristã é,

desde o principio sacrifício: sacrifício de toda a segurança do espírito – é, ao mesmo

tempo servilismo, autoescarnecimento, automutilação” (Nietzsche, 2005, p.65 ).

Com essas palavras Nietzsche evidencia a forte dicotomia que foi

implantada platonicamente no cristianismo. Nesta ótica dual a chamada realidade

divina é colocada como o inicio da vida real do homem, enquanto a realidade

material é encarada como uma deturpação dessa essência verdadeira. A

interpretação nietzschiana ajuíza esta cosmovisão como uma automutilação, ou

seja, amar o outro mundo é na verdade promover uma aleijadura na vida sensível

real.

Segundo o pesquisador Wanderley Rosa, escritor do livro O Dualismo na

Teologia Cristã, essa clivagem conceitual tanto no cristianismo como em sua maior

fonte, o platonismo, levou o ocidente a uma leitura dicotômica no que se refere ao

corpo. Sobre isso, podemos ler:

Os dois mundos estão presentes no homem; na alma (mundo das ideias) e no corpo (mundo das coisas). O corpo, como coisa que é, participa imperfeitamente de uma ideia, enquanto que a alma pertence ao mundo eterno e divino das ideias [...] Para Platão a alma é incorruptível, imortal e preexistente ao corpo. Mas, uma vez encarnada, ela perde seu contato com o mundo perfeito das ideias, assim, o corpo é um cárcere para a alma. O verdadeiro filosofo deseja a morte para se libertar do corpo (Rosa, 2010, p. 21).

Esse tipo de moral que obriga o indivíduo a se posicionar como inimigo de

sua materialidade, como foi muito bem interpretado por Wanderley Rosa, leva

sempre a uma visão pessimista, o corpo é sempre pensado como um peso

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desnecessário à alma. O mundo imaginário do além é no final das contas uma

escolha do “nada”, escolher o sobrenatural ao invés de escolher a naturalidade

palpável do corpo é uma maneira de anular covardemente tudo aquilo que existe e

poderá vir a existir como devir material.

Mas afinal, como pode o homem grego ser conduzido tão aviltantemente

a esse dualismo negativo? Quais as condições circunstanciais que levaram a

filosofia grega à interpretação platônica do mundo?

Neste ponto de nosso estudo, é necessário responder antes de

prosseguirmos, essas pertinentes indagações contextuais.

1.1. O FIM DA CULTURA TRÁGICA NA GRÉCIA

Dentro da filosofia nietzschiana tanto a imagem de Sócrates como a de

seu discípulo Platão, representaram marcos de mudança na visão de mundo de

nossa cultura ocidental. A partir deles, aprendemos a valorizar uma espécie de

razão desencarnada e, essa escolha, levou-nos ao combate das forças instintuais

ativas em nosso corpo.

Esta nova tendência gnosiológica foi interpretada por Nietzsche, não

como um avanço na natureza do homem, mas sim, como declínio do vigoroso modo

trágico de pensar dos gregos, em seu viés critico, o modelo socrático-platônico, não

representou elevação de espírito como habitualmente é interpretado, esse novo

paradigma teria sido para o filosofo genealogista o início do longo processo de

amansamento dos ocidentais.

Descrevendo sinteticamente o caminho desta decadência, Nietzsche

escreveu:

– Uma moral altruísta, uma moral em que o egoísmo se atrofia – é, em todas as circunstancias, um mau indício. Isto vale para o indivíduo, isto vale especialmente para os povos. Falta o melhor, quando o egoísmo começa a faltar. Escolher instintivamente o que é prejudicial para si, ser atraído por motivos “desinteressados” é praticamente a forma da decadence. “Não buscar sua própria vantagem” – isto é apenas a folha de parreira moral para cobrir um fato bem diferente, ou seja, fisiológico: “não sou mais capaz de encontrar minha vantagem”... desagregação dos instintos! O ser humano está no fim, quando se torna altruísta. Em lugar de dizer ingenuamente “eu não valho mais nada”, a mentira moral diz na boca

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do decadent: nada tem valor – a vida não vale nada... (Nietzsche, 2006, p. 83).

Nas palavras supracitadas Nietzsche diz que uma moral que é capaz de

fazer o indivíduo se posicionar como um elemento secundário no mundo, é, em

todos os sentidos, uma moral antinatural que se opõe à vida efetiva ao dizer que um

absoluto supra empírico, não importa se chamarmos de “Deus” ou “civilização”, é a

real meta do sujeito, fazemos uma escolha negativa, com isso abandonamos o

campo fértil de nossas paixões mundanas.

O chamado altruísmo ocidental, teria genealogicamente começado por

Sócrates e, para Nietzsche esse foi o momento desviante em que a vitalidade grega

começou a ser perder, para ele a “desagregação dos instintos” é um fenômeno

gerado por uma nova maneira de se relacionar com o mundo. Quando negamos as

nossas naturais inclinações egoísticas em prol de um desinteressado humanitarismo

racional, colocamos o corpo em segundo plano, coisa que representa na episteme

nietzschiana um evidente sinal de decadência existencial. O fraquejar de nosso

visceral egoísmo primário, segundo a visão critica de Nietzsche, seria um sintoma

existencial de degeneração da espécie.

Fazendo uma avaliação dos escritos da juventude de Nietzsche, o

pesquisador Alan Sampaio, em sua obra Origem do Ocidente: a antiguidade grega

no jovem Nietzsche, escreveu o seguinte sobre a apreciação nietzschiana em

referência s degeneração da vitalidade ocorrida na Grécia arcaica:

... “os novos tempos” são decadentes, faze-se necessário retornar a Grécia para encontrar “iluminação”. O ocidente esqueceu-se das forças quais recônditas que impulsionaram a cultura; é preciso regressar à origem desta civilização para encontra-las atuantes. [...] Nietzsche busca os vestígios da origem esquecida, encoberta pela racionalidade do homem teórico e pela religiosidade cristã. Ele pretende compreender a cultura a partir de sua forma arcaica, a cultura trágica dos gregos, a Grécia foi sempre, para ele, parâmetro de cultura e pensamento oposto aos modelos da tradição cristã. [...] Há em Nietzsche uma postura arcaizante, uma simpatia pela vitalidade dos gregos (Sampaio, 2008, p. 53).

Sampaio em sua análise ressalta que desde os primeiros escritos,

Nietzsche percebeu no processo histórico de nosso mundo ocidental uma

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desvitalização das forças instintuais, é como se o ocidente se constituísse a partir de

uma “atrofia”, o desenvolvimento de nossa cultura dentro desta ótica, representou o

abandonar das forças dinâmicas que inicialmente sustentavam o homem grego.

Originalmente a cultura grega baseava-se num paradigma “trágico” o que

naturalmente obrigava os antigos gregos a desenvolverem uma consciência trágica

ante os variados fenômenos da existência. Os antigos helenos não buscavam

atenuar o peso esmagador de uma existência sem sentido. Em seus variados mitos

trágicos, segundo a leitura nietzschiana, eles manifestavam o derrisório fim inócuo

da existência humana.

Em sentido cronológico, a filosofia socrática e, posteriormente, sua

continuadora ideológica, o cristianismo, colocaram fim à época forte da Grécia

heroica, essa nova ordenação cultural fez uma nova releitura da noção de virtude. O

homem virtuoso já não era mais aquele que arriscava sua vida em prol de uma

busca continua por domínio, mas sim, aquele que buscava a preservação a todo o

custo. Num movimento de apequenamento, à ânsia natural de poder foi substituída

por uma ânsia doentia de preservação da própria vida. A covardia intitulada como

nova práxis foi simbolicamente tipificada pela crença alienante numa alma, para

Nietzsche o consolo oferecido pela crença da imortalidade era um disfarce que

visava ocultar a potente desvitalização que o homem sofria.

A imagem forte e nobre do guerreiro, segundo os ditames desta nova

gramática valorativa, foi lentamente sendo apagada e, superada pela imagem do

homem, covarde que se comportava como um reles escravo, ao invés deste

segundo buscar a vivência real de seus instintos, substitutivamente, buscava agora

a crença consoladora e vazia no mundo do além. Nietzsche encarou essa mudança

de direção existencial como o verdadeiro motivo de criação da nova moral

transcendente, ao contrário de buscar a realidade sensível, mesmo às custa da

angustia inerente à consciência trágica, buscou com essa nova disposição à

fraqueza por detrás do consolador “mundo verdadeiro”. Isso fez com que Nietzsche

escrevesse:

– A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres, aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginaria obtem reparação (Nietzsche, 2004, p. 28-29).

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O ingresso na nova moral de escravos representou um compromisso com

o ressentimento, deixando de atuar como ser real, capaz de mudar sua história pela

ação direta no mundo, o instinto degenerado de escravo levou o homem a buscar

covardemente uma reparação póstuma no além.

Nesta nova moral do ressentimento, o desejo de vingança é transformado

numa ânsia por “verdade”, ânsia esta que afastou radicalmente o homem de seus

instintos. Descrevendo em sua Genealogia da Moral a terrível inversão produzida

pela nova moral de escravos, Nietzsche escreveu:

Enquanto toda moral nasce de A um triunfante Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não um “fora“, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento, a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo é reação (Nietzsche, 2004, p.29).

Como veremos no próximo capítulo, a fixação de uma moral baseada no

“Não” representou para Nietzsche o início de um niilismo reativo, postura existencial

que obrigou o homem desdenhar da efetividade de seus instintos em prol de uma

vida maior tida como verdadeira. Entretanto, ainda falando sobre o motivo de

degeneração do espírito guerreiro dos antigos gregos, é importante acrescentarmos

que a negatividade da moral de escravo se baseava numa referência

“suprassensível” que visava neutralizar as forças reais de mudança deste mundo.

Dentro desta mesma linha de enfraquecimento dos instintos fortes,

segundo a interpretação linear oferecida por Nietzsche, o cristianismo surgiu

historicamente como uma representação tardia desta moral de ressentimento. Com

o cristianismo aconteceu uma verdadeira canonização da vontade de nada, o lado

forte da vida é substituído pela fraqueza daquele que se distanciavam das coisas

mundanas com o propósito de ganhar a vida verdadeira numa pretensa realidade

supra empírica pós-morte.

Genealogicamente Nietzsche percebeu que o surgimento de uma religião

que apontava para o além como meta, era uma máscara que visava ocultar o

enfraquecimento e o cansaço do lado forte da vida e, segundo a interpretação

histórica deste filósofo, esse cansaço “cristão” foi usado como principal principio de

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formatação de nossa cultura ocidental. Às custas de uma inversão medonha da

releitura cristã, repentinamente tudo que era fraco e degenerado foi valorado como

algo sublime, ou seja, o dualismo referencial inicialmente proposto pela moral

socrático-platônica foi elevado ao seu grau maior. De fato, o aperfeiçoamento da

moral desvitalizante de Platão, segundo a nova ordenação cristã, é um ponto alto na

investigação genealógica produzida por Nietzsche, por isso cabe-nos entender mais

minuciosamente as razões de tal marco referencial.

1.2. O CRISTIANISMO COMO PARADIGMA DA DEGENERAÇÃO

INSTINTUAL

Na filosofia nietzschiana, as palavras cristianismo, cristão, moral cristã ou

mesmo cristo, são termos que devem ser encarados com uma conotação peculiar à

tese crítica do filósofo alemão, grande parte das vezes essas palavras são usadas

como sinônimo de conceito de “ Ocidental”.

Portanto, o uso do termo “cristianismo” é muitas vezes uma referência

não à religião cristã em si, mas em sentido mais amplo, à cultura ocidental. Da

mesma maneira, às vezes o termo cristão significa apenas “o homem ocidental”, ou

seja, a referência ao universo cristão é muitas vezes um simples apontamento

histórico do processo degenerativo vivido pelos ocidentais. Podemos comprovar

facilmente o que acabamos de afirmar com o seguinte fragmento:

... e nós, homens do conhecimento de hoje, nós, ateus e anti metafísicos, também nós tiramos ainda nossa flama daquele jogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão e que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... Mas como, se precisamente esse se torna cada vez mais sensível, se nada mais se revela divino, exceto o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se revela como nossa mais longa mentira? – neste ponto é necessário parar e refletir longamente (Nietzsche, 2004, p. 140).

Neste curto fragmento, termos como “Deus”, “crença cristã” e mesmo a

alusão feita a Platão, contextualmente indicam apenas a crença que temos em

categorias racionais; nesse sentido, Nietzsche está afirmando que mesmo após a

derrocada das variadas metafísicas das religiões, a nossa crença em uma razão

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pura e neutra que nos conduziria inefavelmente à verdade, não deixa de ser em

certo sentido uma “metafísica”.

Assim sendo, o próprio termo metafísica é redimensionado com uma nova

conotação nas letras nietzschianas. Elasticamente a palavra metafísica não fica

restrita às cosmovisões religiosas, dentro da critica nietzschiana, todo elemento

cultural é de alguma maneira um apelo a um absoluto metafísico. Podemos ver

claramente isso quando Nietzsche ao examinar a essência da linguagem escreveu:

A linguagem pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazemos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isto é, da razão. [...] A “razão” na linguagem: Oh, que velha e enganadora senhora! Receio que nós não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática... (Nietzsche, 2006, p. 28).

De uma forma irônica o filósofo genealogista demonstra que quando nós

usamos as palavras, pensamos ingenuamente que manipulamos as “coisas” e, ao

dar nome às coisas do mundo, exercitamos o uso da função valorativa sem

entender bem quão artificial é na realidade essa valoração nominativa. Portanto ao

se referir ao “cru fetichismo”, no âmbito da metafísica da linguagem, Nietzsche tenta

evidenciar como levamos a sério o valor atribuído às coisas, no fundo,

inconscientemente, a operacionalidade linguística não é apenas a descrição do que

há no mundo, ela é a verdadeira causa da crença primitiva na identidade das coisas.

E por isso que Nietzsche numa atitude de desabafo confessa que provavelmente há

uma impossibilidade estruturalmente humana de se relacionar com o mundo sem

nomina-lo. O aspecto mais negativo deste fetichismo linguístico é aquele que faze-

nos acreditar que nossa criação é na verdade o nosso próprio criador.

Falando sobre os momentos iniciais desta metafísica da negação

estribada em categorias imanentemente racionais, a filósofa brasileira Viviane Mosé

escreveu:

... o niilismo [...] não é privilégio da modernidade, ele nasce juntamente com a crença nas categorias da razão, presentes na filosofia deste Sócrates. A crença nas categorias da razão é a causa do niilismo nós medimos o valor do mundo por categorias que se referem a um mundo inventado. Quando Nietzsche se refere ao niilismo como negação da vida, ele se refere a toda história da

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metafísica construída sobre estes pilares. A ideia de verdade, justificação de toda busca racionalista, implica avaliação da vida; falar da verdade é assumir a vontade de identidade, de ser, de essência, e isso é negar o tempo em nome da eternidade, e negar a vida em nome da morte (Mosé, 2005, p. 43).

Segundo o que é dito por Mosé, Nietzsche em seus escritos faz equivaler

à busca pela “verdade” a um passo em direção ao nada: há um vazio que se

esconde atrás de uma bela fachada de sentido. A busca lógica pela identidade das

coisas, dentro deste viés crítico, é apenas uma busca pautada na engenhosidade

humana, ou em outros termos, foi o homem com sua capacidade valorativa que

forjou um “rosto” para a existência, rosto este, que nada mais é do que a edição de

sua própria face. Assim sendo, como foi muito bem dito por Mosé, quando o homem

escolhe a vida eterna, em detrimento à vida carnal do agora, na verdade o mesmo

escolheu a morte.

Toda esta negatividade que é dissimulada atrás de palavras belas como

“verdadeiro”, “racional”, “eterno”, entre tantos outros termos fabricados inicialmente

pela moral socrático-platônico-cristã, deve ser encarado como um recurso de

controle executado pelos que Nietzsche chamou de "fracos e degenerados". Esta

fraqueza ocidental cumpriu historicamente um propósito muito relevante na

manutenção gregária do homem, isso fez com que Roberto Machado em seu livro

Nietzsche e a Verdade escrevesse:

Desde o início, a investigação nietzschiana sobre o conhecimento não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente político ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre a verdade e a mentira tem uma origem moral. Articulação do conhecimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar como a exigência de verdade surge da existência da coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gregária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligados (Machado, 1999, p.38).

Concordantemente ao que foi dito por Machado, o filósofo Nietzsche,

mesmo em seus primeiros escritos, relacionou a questão do conhecimento com a

vida social, consequentemente, ele sempre achou intuitivamente que o tipo de

conhecimento produzido, por um grupo social é sempre a expressão indireta de sua

própria vitalidade ou o oposto disto, de sua franca degeneração.

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Isso indica que Nietzsche percebeu muito cedo que quando o

cristianismo tentava "explicar" o sofrimento humano, o que fazia na verdade era

condicionar o homem à própria ideia nefasta do valor expiatório do sofrimento. No

cristianismo o sofrimento transforma-se em redenção.

O filósofo italiano Gianni Vattimo percebeu como o filósofo Nietzsche foi

feliz nessa leitura sobre a essência oculta da negação cristã:

No que diz respeito ao cristianismo em particular, todos os seus dogmas se apresentou como uma "história", destinada a explicar a condição humana mediante conceitos como os de criação, pecado, pena e redenção: O homem com suas decisões aparece nesta história apenas como último elo de uma corrente de fatos que escapam à sua iniciativa (Vattimo, 2010, p. 36).

O mesmo autor supracitado, ainda se demorando sobre os efeitos

deletérios nascidos da vontade de verdade que o cristianismo assimilou da moral

socrático-platônica, acrescentou:

A vontade de verdade implica o medo do devir e do movimento próprio dos homens medíocres que não sabem dirigir e dominar as coisas e concebem a felicidade como imobilidade, também é sobretudo a moral, enfim, é um produto do instinto de vingança [...] a moral cristã que domina nossa mentalidade é um produto dos homens inferiores que, diante da livre criatividade dos grandes homens, criam uma tábua de imperativos em que dominam as virtudes do rebanho e da passividade, procurando transformar em sinais de superioridade moral aquelas que são características de uma inferioridade e fraqueza (Vattimo, 2010, P. 37).

A interpretação que Vattimo faz da leitura Nietzschiana sobre a moral

cristã, é de fato muito coerente com o espírito das letras nietzschianas, em sua

crítica genealogista o filósofo alemão sempre olhou para a "história sagrada" com

uma arguida dose de suspeita, ou dizendo isso de outra maneira, para o mesmo, a

pretensa grandeza de conceitos como "Deus", "vida eterna", "espírito", entre outros

nomes veneráveis, eram apenas simulacros que ocultavam a mediocridade e

pequenez de seus idealizadores degenerados. Não era força de espírito mais sim a

fraqueza do mesmo que obrigou os homens a criarem todas essas fantasias

mirabolantes.

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Os pretensos fatos históricos organizados pelo cristianismo são neste

caso “prisões conceituais”. Aparentemente a histórica judaico-cristã e o desfilar

cronológico de elementos históricos ordenados inefavelmente por uma “lei divina”;

porém na ótica crítica Nietzsche essa visão conjuntiva nada mais era do que uma

armadilha epistemológica. A promessa de um paraíso, como prêmio último no final

da história sagrada, nada mais seria do que o anseio dos fracos por uma identidade

que anulasse plenamente a mutabilidade do mundo real.

Ao contrário do cristianismo oferecer a plenitude do espírito, para o

filósofo alemão, o mesmo gerava o vazio de sentido ocultado habilmente atrás da

ideia de um sentido maior pós-morte. Com a finalidade de denunciar como o

cristianismo era alienante ao prometer o reino dos céus, Nietzsche compara o

mesmo a uma outra ideologia niilista: o budismo, justificando o motivo de sua

comparação, ele escreveu:

Com minha condenação do cristianismo não quero ser injusto com uma religião a ele aparentada, que pelo número de seguidores até o supera: o budismo. As duas são próximas por serem religiões niilistas – religiões de decadence, as duas se diferenciam de modo bastante notável. [...] O budismo é mil vezes mais realista do que o cristianismo – ele carrega a herança da colocação fria e objetiva dos problemas, ele vem após séculos de continuo movimento filosófico, o conceito de “Deus” já foi abolido quando ele surge. O budismo é a única religião realmente positivista que a história tem a nos mostrar, até mesmo em sua teoria do conhecimento [...] ele já não fala em combater o pecado, mas sim, fazendo inteira justiça à realidade, em combater o sofrimento. Ele deixou para traz – algo que o diferencia profundamente do cristianismo – a trapaça consigo mesmo que são os conceitos morais – ele se acha, usando a minha linguagem, além do bem e do mal (Nietzsche, 2007, p. 24).

Neste fragmento, embora Nietzsche também considere o budismo uma

religião niilista, portanto estruturalmente decadente, quando esta religião é

comparada ao cristianismo a mesma se mostra menos alienante. Seu compromisso

com a realidade é maior, elementos como “Deus” ou “pecado” foram

desconsiderados como relevantes, por isso, seu grau de falseamento é em tudo

menor do que acontece no cristianismo.

O budismo mesmo sendo essencialmente niilismo, não adota em seu bojo

a noção de pecado. Por isso o budista diferente do cristão visa entender e combater

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o sofrimento, tal pensamento é essencialmente amoral, não projeta

antropomorficamente nossas intenções num mundo natural. É por isso que falando

do famigerado hábito cristão de ver pecado em tudo Nietzsche pode concluir:

O cristianismo tem por base a rancume [o rancor] dos doentes, o instinto voltado contra os sadios, contra à saúde [...] Eis a fórmula, in hoci signo nasceu a decadence, – Deus na cruz – não se compreende ainda o terrível pensamento oculto por traz deste símbolo? – Tudo que sofre, tudo que esta na cruz é divino... Todos nos estamos na cruz, portanto somos divinos... Somente nós somos divinos... o cristianismo foi uma vitória, uma mentalidade mais nobre sucumbiu a ele – o cristianismo foi, até agora, o grande infortúnio da humanidade (Nietzsche, 2007, p. 62).

Diferentemente do budismo que se foca no sofrimento, o cristianismo com

a sua metafísica converteu o sofrimento em pecado, assim dentro desta gramática

valorativa o próprio pecado acaba por divinizar-se e, o sujeito inserido dentro dessa

lógica do sofrimento, desejará para remissão de sua alma sofrer como seu próprio

salvador sofreu. Em sua crítica ao cristianismo Nietzsche reconheceu nessa visão

salvífica um movimento degenerativo que se opõe a autoestima do fiel. Ao contrário

de um movimento ascendente, a metafísica cristã seria então pura negatividade,

promovendo no crente uma passividade mórbida de espírito.

Comentando sobre essa potente estratégia de “enfraquecer para

dominar”, Fernando de Morais Barros em seu livro A Maldição Transvalorada,

escreveu:

...dizer que a civilização esteja genealogicamente filiada à interpretação cristã do existir significa, antes de mais nada, dizer que ela se encontra abismada nesse processo de enfraquecimento, de aplicação de um prodigioso training moral sobre o animal homem a fim de torna-lo, para utilizar a terminologia nietzschiana, paulatinamente “amansado” (Barros, 2002, p.70).

Toda nossa ocidentalidade foi construída sob o olhar moral do

cristianismo e, a partir desta única lente interpretativa, todo sofrimento foi

compreendido como um meio de ajuste do homem em relação a um propósito divino

maior. É por isso que Nietzsche recorrentemente acusou o cristianismo de ser o

“grande infortúnio da humanidade”, ou seja, como comentou Barros, a leitura feita

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pelo cristianismo se constituiu como a mais potente “máquina” de amansamento

pensada pelo homem.

Dentro deste contexto crítico, Nietzsche ataca o cristianismo não por

qualquer motivo teológico, e sim, o mesmo deveria ser combatido por causa da sua

operacionalidade nadificante, portanto transvalorar o cristianismo seria no ponto de

vista do filosofo alemão livrar-se da vontade negativa que orienta toda nossa cultura

ocidental. O espírito dessa crítica ácida de Nietzsche foi muito bem interpretado

pelas seguintes palavras de Scarlett Marton:

Inimigo implacável do cristianismo, Nietzsche nele encontrará um adversário que julga à sua altura. Conta inverter o sentido que ele procurou dar à existência humana; espera subverte-lo. Pretendendo substituir o homem pelo além-do-homem, quer por-se como marco na história do ser humano (Marton, 2009, p. 83).

Na doutrina transvalorada da proposta por Nietzsche, a substituição do

homem comum pelo chamado além-do-homem representa um momento de

ultrapassagem em referencia a tudo aquilo que é pequeno em nosso espírito,

transvalorar é, portanto, praticar o mundo de uma outra maneira. A transvaloração é

essencialmente uma atitude em relação a vida, nesse sentido transvalorar é livrar-se

da covardia reativa do niilismo.

É importante ressaltar nesta altura do nosso estudo que nos escritos

nietzschianos o termo cristianismo nem sempre se refere à prática cristã original. Na

verdade, Nietzsche faz uma clara distinção entre o “cristianismo” vivido por Jesus e

o “cristianismo” criado após a morte do carpinteiro judeu.

Referindo-se a prática do próprio Jesus que segundo sua interpretação

concebia sua verdade de uma forma ingênua, escreveu:

Esse “portador de boa nova”, morreu como viveu, como ensinou – não para “redimir os homens”, mas para mostrar como se deve viver. A prática foi o que ele deixou para a humanidade: seu comportamento ante os juízes, ante os esbirros ante os acusadores e todo tipo de calúnia e escárnio – seu comportamento na cruz. Ele não resiste, não defende seu direito, não dá um passo para evitar o pior, mas ainda, ele provoca o pior... E ele pede, ele sofre, ele ama, com aqueles, naqueles que fazem mal. [...] Não defender-se, não encolerizar-se, não atribuir responsabilidade... Mas tampouco resistir ao mal – ama-lo (Nietzsche, 2002, p.42).

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A figura representada pelas letras nietzschianas difere muitissimamente

da imagem comum aceita como a verdadeira representação do que foi Jesus. Ao

contrário de um ávido doutrinador, o Jesus nietzschiano aparece com uma

personificação de uma atitude prática em relação à vida. Em sua ótica, o Jesus

verdadeiramente histórico não estava interessado em prometer um paraíso no além-

morte, mas sim preocupava-se em supervalorizar “agora”: ele dizia, não à vida

eterna em prol de uma vida intensamente vivida com amor no “hoje”.

Essa leitura que Nietzsche faz de Jesus, nega frontalmente o dualismo

platônico que posteriormente seria inserido no cristianismo. Para o filósofo alemão,

Jesus em nenhum momento aceitou uma ruidosa antagonia entre corpo e alma, com

uma postura monista o carpinteiro unificava carne e espírito num mesmo ser

integral.

Dentro de uma nova luz a imagem do Jesus nietzschiana aparece como

um ser de posicionamento amoral, o mesmo não buscava provocar amor em seus

ouvintes à custa do medo de pecar. Diferente dos líderes religiosos do seu tempo, o

carpinteiro judeu queria ensinar a todos os seus discípulos que para conseguirem o

reino dos céus precisariam transformar-se moralmente em crianças. Nesse sentido,

seus seguidores bem ao modelo de ingênuas crianças, deveriam ser honestos

existencialmente em seu propósito de vida.

Aos olhos de Nietzsche o Jesus por detrás do mito era um sujeito de

“arrebatador encanto”. Com sua singela mensagem que defendia a crença em

transformar o mundo pelo amor, o filósofo alemão encarava o judeu de uma forma

essencialmente paradoxal, para ele esse sedutor mensageiro de boas novas era

uma “mistura de sublime, enfermo e infantil” (Nietzsche, 2007, p.38).

Ao chamar Jesus de enfermo e infantil Nietzsche estaria ressaltando uma

postura radicalmente ingênua para um adulto - afinal, sua mensagem apelava para

uma superação absoluta das variadas contradições humanas. Por intermédio do

amor, pensava Jesus, o homem poderia se converter num elemento de equilíbrio

existencial.

Ao invés de prometer um alémcheio de sentido, Jesus tentou convencer

seus contemporâneos da possível existência de um reino além do bem e do mal

neste mundo. Para ele era o próprio homem que deveria produzir essa harmonia

terrena, daí, sua constatação: “A “Boa Nova” é justamente que não mais existem

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oposições; o reino do céu pertence às crianças, a fé que aí se exprime não é a fé

conquistada – ela esta aí, existe desde o começo, é como que o infantilismo

recuado para o plano espiritual” (Nietzsche, 2007, p.38).

Esse reino humano vislumbrado por Jesus não prevê conflito entre

opostos, uma harmonia primaveril parece ser o núcleo deste infantilismo ideal.

Por causa de sua imaturidade, Jesus não se apercebeu que aquela sua

mensagem logo estaria em confronto com o poder constituído. Sua pregação

despertou o ódio e a inveja dos que se mantinham no poder aos custos das diversas

contradições sociais.

Escrevendo sobre esta postura pouco prudente de Jesus, Nietzsche

teceu em seu Zaratustra o seguinte comentário:

Na verdade, morreu demasiado cedo aquele hebreu, a quem honraram os pregadores da morte lenta, e para muitos foi uma fatalidade que morresse tão cedo. Esse Jesus hebreu não conhecia nada mais que as lágrimas e a tristeza do hebreu, e o ódio dos bons e dos justos; e assim lhe acometeu o desejo da morte. Por que não permaneceu no deserto longe dos bons e dos justos! Talvez tivesse aprendido a viver e amar a Terra e também o riso! Crede-me, meus irmãos! Morreu muito cedo, se tivesse se retratado de sua doutrina teria vivido até minha idade! Mas, era bastante nobre para retratar-se! (Nietzsche, 2008, p. 105).

Colocando sua interpretação na boca de seu personagem Zaratustra,

Nietzsche conclui que, se Jesus tivesse permanecido mais tempo no deserto, longe

dos seus futuros algozes legalistas, provavelmente teria tido uma vida mais longa.

Portanto, sua morte não foi uma fatalidade, ao contrário até, foi de alguma forma

provocado pelo seu comportamento desafiador.

O embate entre Jesus e seus inimigos “políticos” é frisado da seguinte

maneira por Nietzsche:

Foi sua revolta contra “os justos e bons” contra “os santos de Israel, contra hierarquia da sociedade – não contra sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, a ordem, a formula; foi a descrença nos homens mais elevados, o não pronunciado contra tudo que era sacerdote e teólogo. [...] Foi um criminoso político, na medida em que criminosos políticos eram possíveis em uma comunidade absurdamente apolítica. Isto o levou à cruz: a prova disso é a

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inscrição da cruz. Ele morreu por sua culpa – falta qualquer razão para dizer, por mais que tenha dito, que ele morreu pela culpa dos outros (Nietzsche, 2007, p. 34-35).

Semelhante ao fragmento que a pouco recolhemos do Zaratustra, neste

curto trecho retirado de O Anticristo, Nietzsche ressalta gritantemente a postura anti-

institucional do jovem Hebreu. Sua pregação “apolítica” não podia ser mais

“política”, os detentores do poder constituído logo viram nessa nova doutrinação um

possível perigo sistêmico, tudo aquilo que Jesus pronunciou em seu tempo, foi

interpretado perturbadoramente por seus contemporâneos.

Jesus com sua postura se levantou contra o ideal sacerdotal que visava

dualisticamente partir o mundo em duas partes moralmente distintas. Os sacerdotes

sabiam muito bem que para dominar o povo era necessário contar com a culpa e,

prometer uma futura redenção dos “pecados” numa vida pós-morte.

Assim para Nietzsche a morte de Jesus levou não a “ressurreição” do

verdadeiro Jesus, mas sim a fabricação de um cristianismo bem diferente do que

fora na boca do próprio Jesus. Portanto, na leitura do filósofo alemão, o cristianismo

posterior à morte de Cristo era tudo, menos “cristão”. Criou-se uma instituição que

dependia particularmente deste Cristo falsificado, invenção que serviu

propositalmente aos interesses da classe dominante daquela época.

A igreja criada após a morte do carpinteiro sempre dependeu, segundo a

visão de Nietzsche, desta deturpação histórica, afinal com a ilusão de um cristo

ressuscitado afirmou-se indiretamente a existência de dois mundos antagônicos.

Falando desse falseamento histórico Nietzsche escreveu:

Não à realidade. Não à verdadeira história... E mais uma vez o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo enorme crime contra a história – simplesmente riscou o ontem, o anteontem do cristianismo, inventando para si uma história do cristianismo inicial. Mais ainda, falseou a história de Israel mais uma vez, para que ela perecesse como pré-história do seu ato: todos os fatos falaram do seu “redentor”... Depois a igreja falseou até a história da humanidade tornando-a pré-história do cristianismo... (Nietzsche, 2007, p.49).

Na visão nietzschiana, a igreja simplesmente deturpou toda história da

humanidade com interesse de ajustá-la à ideia de um redentor que viria redimir os

fracos e inocentes a partir de sua ressurreição. Na verdade, para o filósofo

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genealogista, a ideia da ressurreição era apenas um símbolo da aversão que a

igreja impunha diante do mundo sensível vivido por seus adeptos. O Cristo

ressuscitado era uma afirmação metafórica do valor do “espírito” e, invertidamente

um ataque à futilidade da vida normal.

Por isso, o cristianismo que se estruturou a partir da morte de Cristo,

dependeu essencialmente da criação de uma falsa história. Dizer que o Cristo

espiritual era o verdadeiro Cristo, era nesta intenção a-histórica, uma forma de

negar a importância do mundo material, ao mesmo tempo em que era a fixação sutil

da noção dual de mundo distintos que visceralmente se opunham.

As consequências da crença em um mundo bipartido, foram ressaltadas

por Nietzsche no seu livro O Anticristo, da seguinte maneira:

Quando se coloca o centro de gravidade da vida, não na vida mas no “além” – no nada – despoja-se a vida do seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, toda a natureza no instinto [...] viver de modo que já não há sentido em viver, essa torna-se o sentido da vida... (Nietzsche, 2007, p 50).

Na interpretação nietzschiana, o cristianismo forjou a história de um erro,

ou seja, o instinto foi pensado como algo perigoso no caminho da elevação humana.

A carne era nesta visão um terrível obstáculo ao aperfeiçoamento do espírito.

Nietzsche encontrou na versão cristã uma deturpação do real, semelhante à visão

platônica e o cristianismo também “demonizou” a vida terrena em prol de uma vida

pretensamente superior no além.

Em sentido prático, essa visão de mundo gerou aquilo que Nietzsche

chamou de ideal ascético, um comportamento negativo em relação às coisas do

mundo. O asceta era aquele que queria viver o mundo do espírito enquanto estava

ainda na “carne”, essa lógica na crítica nietzschiana é a lógica de quem escolhe

camufladamente o nada. Ascetismo significa então uma degradação da efetividade

da vida real em prol de uma vida assumida covardemente como melhor, portanto o

ascetismo não passa de um subproduto da degeneração instintual sofrida no início

da história de nossa civilização.

Assim, a interpretação que Nietzsche faz da história é uma interpretação

pautada em um “suspeita”, para o genealogista, a moral forjada pelo cristianismo

platonizado foi apenas um instrumento de repressão dos instintos. Com tal moral na

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mente, o “cristão”, ou se quisermos o homem ocidental, aprendeu a ser em essência

inautêntico, negando pela sua falta de coragem toda efetividade de seu corpo.

Entretanto essa fraqueza espiritual padronizada como virtude começou a

mudar a partir do século XIX. A partir desse novo momento a moral cristã começou

a ser questionada frontalmente, o que desencadeou um verdadeiro processo de

dessacralização da antiga moral socrático-platônica-cristã.

Em sua obra Genealogia da Moral, depois de descrever como a doutrina

cristã sintetizou o desvio histórico iniciado por Platão, Nietzsche começou a abordar

a questão do declínio do cristianismo vivenciado já em seu tempo:

Suponho que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando irreversível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um considerável declínio da consciência de culpa do homem; assim, não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a história total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira] O ateísmo é uma espécie de segunda inocência são inseparáveis (Nietzsche, 2004, p.73).

Como cerne deste fragmento nietzschiano, encontramos a forte

insinuação de que a partir do século XIX entramos num estágio novo de avaliação

do mundo. Segundo sua interpretação, o homem moderno atingiu uma condição

crítica nunca antes ambicionada. Nesse novo movimento epistemológico iniciado

com a modernidade, o homem começa a avaliar os “critérios” usados pelos

criadores de valor, dessa maneira a visão essencialista e ingênua que levava em

conta um “valor em si” é radicalmente abalada.

Como já tivemos chance de explicar, sempre que Nietzsche fala do

declínio da fé no Deus cristão, o mesmo se refere mais profundamente a pretensão

ocidental de atingir uma verdade absoluta e sua crítica se refere ao questionamento

ácido que inaugura-se com o início da modernidade. Nietzsche sintetizou esse

processo de desconstrução da moral ocidental na formula do anúncio da morte de

Deus. Tal enunciado não era propriamente um mero desmentido ateísta, bem mais

do que isso, Nietzsche apontava por essa síntese enunciativa o novo caminho que a

sociedade passava a trilhar.

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Objetivamos no próximo capítulo examinar como o homem

contemporâneo tem lidado com esse novo paradigma multidiscursivo, visamos

assim, entender quais as novas interpretações morais produzidos no âmbito da

vacância do antigo Deus Cristão.

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CAPÍTULO 2

CONTEMPORANEIDADE E MORTE DE DEUS

Como vimos no capitulo anterior, toda a noção de ocidentalidade esteve

por muito tempo ligado à uma visão dual da existência, por isso a moral apregoada

desde Sócrates foi aquela que apontava teleologicamente para a vida supra

sensível, como meta última da vida. Assim, por muito tempo os homens foram

ensinados a viver a vida terrena como uma breve passagem para uma vida maior,

ou em termos simplificados, o que era material era apenas um degrau para o

espiritual.

Com a modernidade e particularmente, a partir do século XIX, esse

cenário teleológico começou a sofrer fortes modificações. Em linguagem poética

Nietzsche colocou na boca de seu Zaratustra a nova visão que nascia no ocidente:

Agora que estou curado, ser-me-ia um sofrimento e uma tortura acreditar em semelhantes fantasmas. É deste modo que falo aos que acreditam em além-mundos. Sofrimentos e impotência criaram todos os além-mundos, e esse breve delírio de felicidade que só conhece quem mais sofre [...] esse outro mundo, oculto aos homens, esse desumanizado e inumano mundo, é um nada celeste; e as entranhas do ser não falam ao homem, a não ser que elas falem a própria voz do homem [...] um novo orgulho me ensinou o meu eu, e eu ensino aos homens, não mais afundar a cabeça na areia das coisas celestes, mais ergue-la desassombradamente, essa cabeça terrestre, que dá sentido a terra (Nietzsche, 2007, p. 48).

Através dessa metáfora, o filósofo alemão revela que com o nascimento

da modernidade o que ascende das entranhas do ser já não é mais a voz de uma

divindade, mas sim, a voz de uma razão plenamente humanizada. Neste trecho do

Zaratustra Nietzsche fala de uma nova postura epistemológica do homem moderno,

de certa maneira, o que conta neste novo momento é a própria voz do homem, não

mais vozes de um pretenso além-mundo.

No Zaratustra temos a síntese de um movimento irreversível e

dessacralização dos antigos ideais supremos do mundo ocidental. Com essa nova

postura intelectual a modernidade se configurou como o momento histórico mais

propicio para a emancipação dos atores sociais.

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Sobre esse movimento corrosível de dessacralização, a já citada filósofa

Viviane Mosé teceu as seguintes palavras:

O que caracteriza a modernidade, na perspectiva de Nietzsche, é o processo de substituição de valores decorrentes da “morte de Deus”. Aqui os valores humanos: os valores pautados no absoluto, na essência, serão substituídos pela crença na consciência, no sujeito. O que emerge da modernidade é uma nova instância de avaliação: o julgamento divino vai ser substituído pelo julgamento humano, dado com o nascimento de uma razão consciente de si. O que marcou a modernidade é o nascimento de uma subjetividade autônoma e consciente de si, fundada em uma racionalidade igualmente autônoma, capaz de julgar, discernir, dirigir. É a razão cientifica moderna que mata Deus, substituindo o desejo de eternidade pelos projetos futuros (Mosé, 2005, p.43).

Como bem ressaltada por Mosé, o sujeito da modernidade, sujeito

subjetivamente emancipado, passa a ser o próprio avaliador do seu destino terreno.

Neste novo momento Deus deixa de ser pensado como substrato do sentido e do

valor. Deus dentro deste mundo plenamente humanizado não é mais a garantia

última para a verdade, aliás, toda a verdade agora é relativizada pelos critérios

norteadores da razão.

Porém, antes de prosseguirmos no entendimento da nova faceta da

modernidade é oportuno visitarmos o próprio aforismo usado por Nietzsche para

anunciar a morte de Deus:

O homem louco. Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado. O homem louco se lançou por meio deles e transpassou-os com o seu olhar “para onde foi Deus”, gritou ele, já lhes direi. Nós o matamos – você e eu – somos todos seus assassinos. Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizermos nós, ao desatar a terra do seu sal? Para onde se move ele agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda “em cima” e “em baixo?” não vagamos como através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que ascender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? –

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também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nos o matamos! (Nietzsche, 2007, pp. 47-48).

Segundo a lógica interna desse conhecido aforismo de sua A Gaia

Ciência, a morte de Deus representa um momento singular na história humana.

Para Nietzsche tal morte foi a inauguração de uma nova época no mundo dos

homens, época esta em que os homens se viram sós e absolutamente

desamparados no mundo.

Portanto a morte de Deus reclamou o necessário nascimento de um novo

tipo de homem.

Com a modernidade, o homem se via diante de uma encruzilhada, isso

porque, a morte de Deus representou uma nova condição existencial nunca antes

vivido pelo mesmo. Diante do vácuo deixado pela morte da antiga divindade o

homem teve que decidir que tipo de novo ser seria. Nietzsche dando continuidade

ao aforismo citado há pouco, descreve as possibilidade deste novo homem da

seguinte maneira:

Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sangrou inteiro sob os nossos punhais. Quem nos limpara este sangue? – com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza deste ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer digno dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa deste ato, a uma história mais elevada que toda a história até então! (Nietzsche, 2007, p. 148).

Muitos intelectuais desatentos viram no anúncio da morte de Deus

apenas um vulgar protesto ateísta.

Porém, o que percebemos nas entrelinhas deste interessante aforismo vai

muito além deste ateísmo vulgar. O homem louco ambicionava ser o anunciador de

um novo momento histórico vivenciado pelo novo homem da modernidade. Sua voz

perturbadora apontava para um momento simbólico de ultrapassagem. Ao se referir

a “uma história mais elevada que toda história até então”, seu interesse era enfatizar

a singularidade do novo momento que se seguia à insólita morte de Deus: O homem

a partir de então poderia decidir se tornar um Deus e assim superar positivamente a

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vacuidade da antiga divindade, ou, o oposto disto, sucumbir ao vazio criado pela

morte de Deus.

O aspecto negativo derivado da morte de Deus foi poeticamente ilustrado

no aforismo em questão pela ironia dos homens do mercado. O sorriso corrosivo de

tais fanfarrões denunciava um ateísmo implícito já presente largamente na época de

Nietzsche. A falta de percepção histórica, denunciada pelo desdém dos homens do

mercado em relação à morte de Deus, mostrava que os “loucos” eram essas

apáticas figuras. Já o homem louco, na verdade nada tinha de louco,

metaforicamente este homem perturbador apontava para o grande vazio moral

presente em seu mundo.

Ao se referir ao enfraquecimento do chamado “sentido religioso”,

Nietzsche por intermédio da metáfora ateísta do homem louco anunciava uma nova

época em que nenhum sentido valorativo se sustentaria por si. Ou seja, ao

questionar a razão da crença em um Deus morto, dizia indiretamente que todo o céu

de ideais sustentado milenarmente pelo ocidente desabou ruidosamente. Como um

verdadeiro arauto do espírito da contemporaneidade Nietzsche aplicando o seu

método genealógico de investigação foi o primeiro filósofo a perceber que o homem

nunca mais seria o mesmo, o mesmo seria tomado por uma desconfiança crônica

não tendo mais condição de se vincular ingenuamente a nenhuma referência

absoluta. Comentando em sua obra Niilismo, Criação, Aniquilamento – Nietzsche e

a Filosofia dos Extremos, o especialista Araldi escreveu o seguinte sobre a postura

interpretativa do filósofo alemão:

O evento decisivo da modernidade é a morte de Deus, que em sua conotação niilista, guia à ruina os valores da tradição que davam um sentido ao mundo. Para o filósofo alemão, esse tema não possui um significado de um enunciado metafísico sobre a existência ou não de um ser superior, nem é uma mera expressão literária ou figura estética. A morte de Deus é um evento longamente preparado e necessário no processo de moralização do mundo, que, por fim, ocasiona a derrocada da interpretação moral, que é assumida pelos homens morais como perda total de sentido, abrindo um vazio em suas vidas desmundanizadas (Araldi, 2004, p. 68).

O que Araldi faz no trecho supracitado é evidenciar o aspecto bifacial do

fenômeno chamado por Nietzsche de niilismo. Neste sentido o niilismo dentro do

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seu aspecto positivo surge na obra nietzschiana como uma espécie de fonte para à

modernidade. Para o pesquisador em questão, “o evento longamente preparado e

necessário” significou o enfraquecimento sistêmico do sentido metafisico que o

mundo gozava antes deste angustiante marco. Como explicou Araldi, Nietzsche não

tinha o objetivo de uma mera negação teológica da religião, na verdade, sua

percepção indo além interpretou o declínio das nossas mais “luminosas” certezas

tradicionais.

Dizer que o Deus da religião já estava em estado de putrefação, dentro

do cenário histórico do chamado niilismo no século XIX, significava o apodrecimento

dos últimos lastros morais que sustentavam o ocidente. Deste momento em diante o

homem perdeu a sua ingenuidade. Este evento catastrófico não era em tudo uma

coisa negativa, com a dessacralização do mundo o mesmo foi obrigado a

desenvolver uma outra relação com as coisas existentes, o vazio de sentido lhe

obrigou a perceber que as coisas do mundo não possui valor algum em si próprias.

A crise do “sobrenatural” era apenas índice de uma nova maneira de conceber o

mundo.

Debruçando-se sobre este novo paradigma que questiona todo e

qualquer “paradigma único”, o filósofo Heidegger no seu profundo comentário sobre

Nietzsche escreveu o seguinte texto sobre a necessidade de positivar esse

momento tenebroso do ocidente:

A destruição dos valores supremos, até aqui não emerge de mera busca de uma destruição cega e de uma vã renovação. Ela emerge de uma penúria e de uma necessidade de dar ao mundo o sentido que não o degrada a uma mera passagem para um além. É preciso surgir um mundo que torne possível aquele homem que desdobra a sua essência a partir de sua própria plenitude valorativa. Para tanto, contudo, carece uma transição da travessia de uma conjuntura da qual o mundo parece desprovido de valor, mas que exige ao mesmo tempo um novo valor. A travessia do estado intermediário precisa perceber esse estado como tal de maneira mais consciente possível. Para isso é necessário reconhecer a proveniência desse estado intermediário e trazer à luz a causa primeira do niilismo. É somente a partir dessa consciência no estado intermediário que emerge a vontade decisiva de sua superação. (Heidegger, 1998, pp. 58-59).

Segundo a visão de Heidegger, a única forma de superação daquele

ambiente trevoso que se abateu sobre o homem, sendo este uma percepção mais

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clara da derrocada geral de seus nobres valores, só se daria se o homem se

tornasse cônscio de suas causas mais profundas. Como o famoso comentador diz

nas entrelinhas, a destituição dos valores cridos até então como supremos,

dependendo da postura existencial assumida pelo novo homem não precisaria ser

necessariamente o “fim da linha”. Em seu viés interpretativo, Nietzsche indicava com

o anúncio da morte de Deus um momento singular de transição, dentro deste

contexto aparentemente desvitalizante: o homem precisaria reinventar o mundo a

partir de sua própria força demasiadamente humana.

O enorme vazio de todos aqueles atores envolvidos naquele novo cenário

lúgubre, é muito bem sintetizado pelo próprio Nietzsche ao levantar a questão: “o

que significa o niilismo” e, como resposta temos: “– Que os valores supremos

desvalorizavam-se. Falta o fim; falta a resposta ao por que” Nietzsche, 2008, p. 29).

Neste curto fragmento Nietzsche revela-nos que toda crença ligada à

metafisica religiosa cessa; por isso, o novo homem ainda angustiado em seu nível

mais radical com a notícia da morte de Deus, precisará reunir todas as suas forças

para cumprir essa gigantesca tarefa de transvaloração.

Porém, essa angústia existencial desmedida era segundo as letras

nietzschianas um fenômeno positivo ligando o homem à aquilo que existe de mais

real no mundo, ou seja, a abismal falta de sentido que nos assedia constantemente.

2.1. O NIILISMO COMO A VERDADEIRA FACE DO MUNDO.

Em seu livro Vontade de Poder, Nietzsche nos avisa que: “O niilismo esta

à porta: de onde nos vem esse mais inquietante de todos os hospedes?” (Nietzsche,

2008, p. 27).

Ao chamar o niilismo de “o mais inquietante a todos os hospedes”

Nietzsche queria evidenciar uma latência presente em todos os seus

contemporâneos, ao contrário da percepção da morte de Deus ser uma coisa

distante dos homens como foi outrora, a descrença estava arraigada internamente

na essência do homem contemporâneo. Como já dissemos anteriormente, para o

filósofo alemão é exatamente a dolorosa consciência da falta de certezas

metafisicas para o mundo que inaugurou o período que chamamos de modernidade.

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Esse hospede em sentido negativo pode ser pensado como um sinônimo

de desorientação moral, com a morte do sagrado tradicional os contemporâneos

vagavam sem sentido ultimo para suas vidas. Foi essa grande crise moral instalada

a partir do grande evento da morte de Deus que levou Heidegger ao seguinte

comentário:

Se Deus morreu, enquanto fundamento supras sensível e enquanto meta de tudo que é efetivamente real, seu mundo supra sensível das ideias perdeu sua força vinculativa, e sobretudo a sua força que desperta e edifica, então nada mais permanece a que o homem se possa agarrar, e segundo o qual se possa orientar (Heidegger, 1998, p. 251).

Como comentado por Heidegger, dentro da gramática nietzschiana o

conceito de morte de Deus aponta fundamentalmente para o fim das ideias

metafisicas que asseguravam o “verdadeiro” a partir da insinuação de um

suprassensível ordenador. Na modernidade a nova consciência dizia internamente

que não adiantava apelar para nada maior do que o próprio homem, o mesmo daí

em diante seria o deus valorativo de seu próprio destino.

A divisão feita por Platão e incrementada pelo cristianismo de dois

mundos antagônicos, um verdadeiro e o outro falso cessa, com isso os

contemporâneos começam a encarar a face brutal da existência, nova face que

denuncia angustiantemente o grande vazio que se escondia atrás da dourada

máscara do sobrenatural.

A falência crônica de todos os nossos grandes ideais, levou o homem

contemporâneo a uma postura crítica nunca antes imaginada. Daí, o enunciado

nietzschiano que diz: “O mundo verdadeiro” – uma ideia que para nada mais serve,

não mais obriga a nada –, ideia tornada inútil, logo refutada; vamos elimina-la!

Neste trecho de seu livro Crepúsculos dos Ídolos, Nietzsche sintetiza a

nova percepção pós morte de Deus, sem um avalista sobrenatural para seus

comportamentos terrenos, os homens desenvolveram novos ditames para suas

vidas, leis que passaram a ser entendidas como meras convenções humanas.

Portanto, o niilismo contemporâneo significa antes de mais nada uma

nova postura avaliativa. De forma radical o homem moderno passa a entender que

os valores são produzidos pelos seus próprios esforços valorativos, ao invés de leis

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eternas e essencialmente suprassensíveis, a modernidade revela o caráter mutável

e impermanente de todas as coisas que existem, o que inclui inicialmente todos os

nossos ditames morais.

Na contemporaneidade o mundo se torna móvel e transitório, diversas

fissuras começam a se revelarem como múltiplas interpretações do mesmo “real”,

todo vazio cósmico possa a jorrar violentamente, fenômeno este que perturba

profundamente a concepção antiga de um mundo estável e plenamente inteligível.

O antigo reino do além que outrora era pensado como fiel da balança é

lentamente destituído de sua antiga legitimidade, a razão antropocêntrica passa a

funcionar como índice valorativo de todas as coisas reais. Foi essa nova percepção

que levou Mauro C. Simões a analizar da seguinte maneira a frase Deus está morto:

A frase de Nietzsche “Deus está morto” [...] não deve ser tomada como uma postura pessoal, ateia [...] A morte de Deus pode ser interpretada então, como desaparecimento da noção de além, ela é a supressão da crença em outro mundo transcendente ao nosso, este dualismo constitui um traço essencial e fundamental de nossa cultura. Essa depreciação do aqui e a valorização de um alhures pode se caracterizar naquilo que Nietzsche chamava de platonismo (Simões, 2003, pp. 64-65).

O fim do além mundo no contexto nietzschiano representa a eclosão de

uma consciência niilista, o novo homem sabe que não lhe resta nenhum traço do

divino no mundo, ou seja, não existindo nenhum sinal transcendental pré

estabelecido para sua vida, o mesmo deverá produzir a sua própria moral.

É lógico que esta nova paisagem de um mundo radicalmente

humanizado, levou grande parte das pessoas a um sentimento interno de

desorientação, a modernidade nasce com o fim de nossas maiores certezas. Se

referindo a este terrível desconforto existencial, sentido por seus contemporâneos

Nietzsche em sua obra A Gaia Ciência escreveu:

Na velha Europa de hoje, parece-me que a maioria das pessoas ainda necessita do cristianismo: por isso ele continua a ser alvo de crença. Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia lhes ser refutado mil vezes – desde que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por “verdadeiro” [...] alguns ainda precisam da metafisica mas, também a imperiosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista por grande número de pessoas, a exigência de querer ter algo firme [...] também isso é

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ainda a exigência de apoio, de suporte, em suma, o instinto de fraqueza que, é verdade, não cria religiões, metafisicas, convenções de todo o tipo, mas as conserva (Nietzsche, 2007, p.240).

O filósofo neste trecho evidencia que nem todas as pessoas conseguem

aceitar a gélida ideia de um mundo desprovido de sentido, por isso em sua opinião,

grande parte de seus contemporâneos não estavam dispostos a superar a antiga

“vontade de verdade” e, pensa Nietzsche, a razão positivista que se espalhava

universalmente em seu tempo, guardava em seu núcleo muito das crenças antigas

que defendiam a ideia metafísica de verdades inquestionáveis e absolutas.

A crítica em referencia ao iluminismo é uma crítica muito pertinente neste

contexto, afinal, na vacância do antigo Deus das religiões a própria “razão” estava

sendo divinizada como um ente absoluto. No fragmento supra citado o filósofo

alemão compara inteligentemente a nova crença “científico-positivista” às antigas

metafisicas religiosas, em seu alvitre toda e qualquer fé em um pretenso “absoluto”

seria indiretamente uma estratégia que visa ocultar o vazio deixado pela morte de

Deus.

Avançando nesta crítica contextual de seu tempo, Nietzsche continua a

escrever:

A fé mais desejada, mais urgentemente necessitada, quando falta vontade: pois a vontade é, enquanto afeto de comando, o decisivo emblema da soberania e da força. Ou seja, quanto menos sabe alguém comandar tanto mais anseia por alguém que o comande, que comande severamente – por um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária [...] Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem que ser comandada, torna-se “crente”, inversamente, pode-se imaginar um prazer e força, na auto determinação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é sem se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até a beira de abismos. Um tal espírito seria um espírito livre por excelência (Nietzsche, 2007, p.241).

O fascínio de ser comandado por algo maior, seja esse “maior” um ideal

político, científico, humanitário, entre tantos outros ideais possíveis, é para

Nietzsche apenas um sintoma de enfraquecimento da vontade individual. Nesse

contexto, este “absoluto” que vem de fora como pretensa vontade maior, pensa

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Nietzsche, é apenas uma tentativa desesperada de minimizar a nova percepção do

vazio teleológico. Por causa desta forma covarde de encarar o grande vácuo moral,

o sujeito apelava para uma consciência de rebanho qualquer.

Na interpretação nietzschiana, o crente de todo o tipo é sempre um

sujeito exteriorizado que tenta fugir de si mesmo, e, diante desse empenho de

evasão, esse covarde usa diferentes roupagens para ocultar sua angústia

existencial, na verdade, suas crenças e certezas são prisões que fecham em si a

condição positiva deste sujeito criar uma ficção particular para sua vida.

Com este posicionamento ácido, o filósofo genealogista tenta revelar que

tanto a religião, a ciência, como até mesmo a filosofia podem servir de rota de fuga

para o homem moderno. Existe para Nietzsche uma relação evidente entre a

“grandiosa força” de uma crença e a fraqueza da vontade daquele que crê; segundo

este viés interpretativo, a impotência se retroalimentaria pelo agir reativo que coloca

o comando de nossas vidas nas mãos de um “outro absoluto”.

O homem moderno ao enfrentar a imensurabilidade fenomênica do

mundo que o cerca, precisa ser forte a ponto de superar seu desejo por eternidade

sem se desiludir absolutamente. Portanto, a argumentação nietzschiana em relação

“a história de um erro” indica que o homem nessa nova fase mundana precisa ser

forte para superar a negação do divino a partir de sua própria afirmação. Nietzsche

demonstrou em seus escritos que os valores supremos da civilização nada mais são

que invenções humanas por isso a antiga reverência diante destas crenças são

julgadas por ele desnecessária, precisando ser ultrapassadas pela reverência à

inventividade do ser humano. Por isso, fazemos nossa as seguintes palavras do

filósofo brasileiro Marcos O. Silva: “Ter espiritualidade é estar interessado nas

grandes realizações do “espirito”, mesmo que se entenda por espírito só aquilo que

é pertinente à materialidade humana” (Silva, 2012, p. 140).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos, depois de ter terminado o percurso estabelecido para a

presente monografia, ter evidenciado que para o filósofo Nietzsche a verdadeira

história de um erro começa com a criação de um mundo ideal, que por muito tempo

serviu como contraponto de tudo aquilo que vivíamos neste mundo material.

Durante nossa investigação nos esforçamos para situar historicamente como

se deu segundo a visão nietzschiana, o abandono do espírito forte dos gregos

antigos em prol de uma moral socrático-platônico-cristã, moral esta que justificou

temerariamente a fraqueza e a covardia escolhida como “virtude”.

Nas primeiras páginas desta monografia, delineamos panoramicamente como

ocorreu o encontro entre o platonismo e o cristianismo nascente, tentamos traçar

oportunas convergências entre estas duas escolas de pensamento. A partir das

convergências traçadas percebemos que o cristianismo dualístico e ascético passou

a estruturar uma espécie de platonismo para as massas, tentando assim, perpetuar

o esvaziamento mundano começado por Sócrates e Platão.

Em consequência desta inversão o cristianismo supervalorizou a negação

dos sentidos como via maior de ascensão. Isto fez com que surgisse uma moral de

escravidão, moral esta que privilegiava as promessas de um além tranquilo como

verdadeira meta para o ser humano, postura que levava automaticamente à

anulação do interesse pelas coisas humanas e reais. Com esta postura criou-se um

valor existencial que apontava para o mundo das ideias como o mundo verdadeiro,

assim, o plano da efetividade terrena foi colocado como um patamar abaixo daquele

a ser alcançado após a morte.

Vimos também que a crença em uma alma imortal foi usada como suporte

para a auto depreciação do corpo. A partir desse momento o corpo começou a ser

interpretado como maior de todos os obstáculos à vida espiritual, dentro desta

leitura o corpo não passava de uma sórdida prisão, um cárcere aviltante que

impedia a visão do mundo verdadeiro.

Neste sentido, a crítica nietzschiana tentou evidenciar a forte negatividade

desta visão platônico-cristã do mundo. Para o filósofo alemão a negação do corpo e

do mundo foram as verdadeiras causas da terrível degeneração dos instintos fortes,

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vislumbrando as delicias do mundo sobrenatural, os homens aprenderam a

desconsiderar tudo aquilo que realmente existe de efetivo no mundo.

Na interpretação de Nietzsche este foi o início daquilo que ele chamou de

“niilismo negativo”, postura inconsciente que tirou o valor do mundo, transferindo-o

para um pretenso além. O niilista negativo é aquele que ao se deparar com o vazio

da existência se desespera, camuflando sua grande angústia atrás de uma máscara

colorida de eternidade suprassensível.

A crítica filosófica contemporânea estriba-se particularmente esta ácida

constatação nietzschiana, afinal, a própria religião já não oferece mais a certeza e o

consolo que antigamente oferecia. Vimos isto neste trabalho ao estudarmos o

famoso anúncio da morte de Deus.

Por muito tempo este aforismo que traz o anúncio da fatídica morte de Deus,

foi interpretado por alguns como mero desmentido religioso, se confundindo,

portanto, com o mero ateísmo vulgar. É lógico que esta postura foi usada

ideologicamente por alguns com a finalidade de desclassificar e rebaixar a

importância e amplitude do grande projeto de transvaloração proposto pelo filosofo

Nietzsche.

Tentamos evidenciar que tal anúncio nos escritos nietzschianos como uma

síntese de seu audacioso projeto de transvaloração de todos os valores, por isso,

embora suas teses nasçam de um ateísmo acidamente corrosivo, descrença que

afronta toda e qualquer verdade absoluta, seu projeto vai muito além de uma

tentativa de superação teológica, em sentido mais amplo, morte de Deus significa a

morte de todas os nossos valores mais sublimes.

Transvalorar dentro deste novo paradigma proposto por Nietzsche, significa

abandonar a ideia ingênua que defende uma moral dada naturalmente, em seu viés

filosófico, não existe um “valor” em si, todos os valores são inventados pelos seres

humanos em dadas circunstâncias específicas, por isso cabe ao pensador

contemporâneo fazer uma genealogia dos valores.

Em nossa pesquisa verificamos que o método genealógico desenvolvido por

Nietzsche visou desconstruir a moral até chegar às suas matrizes primárias. É

possível dizer que o método genealógico incorporava em seu núcleo muito da antiga

metodologia pensado pelos céticos gregos, seu movimento transvalorativo só se faz

possível após a "epoche" dos antigos. Porém, além da suspensão dos juízos, o

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método nietzschiano busca o esclarecimento genealógico da fonte de todos os

juízos. Genealogia dos valores é um sinônimo da busca das razões genuínas que

deram causa às nossas crenças morais.

Por isso, na metodologia criada por Nietzsche, a impossibilidade em

chegarmos à verdade última não se dá pela imperfeição de nosso aparelhamento

perceptível ou por uma limitação cognitiva pessoal, tal impossibilidade liga-se ao fato

de simplesmente não existir nenhuma verdade no mundo. Aliás, a própria crença

que faz existir um “mundo”, já é uma disposição artificial criada pelos humanos. Na

natureza não temos, segundo a visão de Nietzsche, nenhum “cosmo”, temos sim,

um “caos” (A Gaia Ciência, p. 109). Que só ganha sentido depois de ser filtrado

pelas redes de nosso conhecimento. Portanto, na genealogia Nietzschiana,

conhecer não é um ato simples de desvelamento da verdadeira natureza das coisas,

é antes o próprio ato de conferir natureza às coisas.

Essa maneira ácida de filosofar acaba por reduzir toda a verdade a uma mera

aparência, só existe um verdadeiro ser das coisas a ser desvelado, o verdadeiro e

único ser das coisas é o devir, a malha de transformações contínuas que se opõem

a um efêmero ser da efetividade em dado “instante”.

A essência da filosofia nietzschiana se realiza na radicalização da “suspeita”,

ou seja, a suspeita é a mola mestra do método genealógico. Explicando de outro

modo, operar a partir da suspeita significa manter-se distante da avaliação moral

tradicional, representa uma postura aberta em relação à aquilo que é pesquisado.

Como vimos em nossa monografia, com seu método genealógico Nietzsche

não poupou nem mesmo a ciência. Para ele devemos suspeitar até mesmo da

neutralidade racional, na verdade, a avaliação nunca é neutra, todo e qualquer juízo

que fazemos do mundo é sempre uma interpretação nascida de interesses

específicos. Dai, Nietzsche encarar o iluminismo de seu tempo como uma nova

maneira de forjar fraudulentamente um sentido absoluto para o mundo, neste caso,

a ciência estaria apenas ocupando o lugar da antiga religião onipotente.

Esperamos em um trabalho futuro esclarecer melhor as possíveis relações

entre o método genealógico nietzschiano e as outras possibilidades valorativas

preconizadas por Nietzsche em seu projeto de transvaloração. Acreditamos que no

momento os primeiros esforços em direção a um trabalho mais profundo e mais

sistematicamente relevante foi dado pelas poucas páginas oferecidas em nosso

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trabalho. Iniciar a caminhada é o primeiro ato a fim de atingir uma meta mais

audaciosa, por isso, ficamos felizes em dar estes primeiros passos em direção a

algo maior.

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