A polêmica das hidrelétricas do rio...

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Philip Fearnside Departamento de Ecologia,lnstituto Nacional de Pesquisas da Amazônia A polêmica das hidrelétricas do rio Xingu As represas das hidrelétricas planejadas para a bacia do Xingu, na Amazônia, inundariam terras indígenas em floresta tropical e emitiriam gases de efeito estufa. Ao que tudo indica, a proposta de construir apenas a hidrelétrica de Belo Monte nesse rio, descartando os outros projetos, é um cenário fictício. Mesmo que a proposta seja confiável, sabe-se que grande parte da energia gerada será usada por indústrias que beneficiam alumínio para exportação. É preciso mudar esse quadro, evitando fornecer energia subsidiada a indústrias de uso intensivo de eletricidade, que geram poucos empregos, e criando novos mecanismos de avaliação criteriosa de empreendimentos de grande porte, que permitam inclusive, quando for o caso, impedir a construção. 60 • CI~NCIA HOJE· vol. 38 225 O projeto de construção da hi- drelétrica de Belo Monte (fi- gura 1), no rio Xingu, no Pará, é foco de intensa controvérsia, em função de sua magnitude e de seus impactos ambientais e so- ciais. A hidrelétrica terá uma área estimada de reservatório peque- na (440 km-] e uma capacidade instalada grande (11.181,3 MW), mas para assegurar a geração constante de energia será essen- cial construir também, mais aci- ma, a represa de Altamira (mais conhecida pelo nome anterior, Babaquara), que regularizaria a vazão do rio Xingu, mas inunda- ria uma vasta área (6.140 km-). Além dessas, outras quatro bar- ragens foram inicialmente plane- jadas para a bacia do Xingu. Tais represas, como o antropó- logo norte-americano Darrell Posey (1947-2001) afirmava, não ameaçam apenas um grupo de índios. Devido à enorme diversi- dade de culturas indígenas na re- gião do Xingu, estariam em peri- go 37 etnias, de quatro troncos lingüísticos diferentes, com lín- guas tão afastadas quanto o por- tuguês e o chinês. Entre os gru- pos ameaçados está o kaiapó, que, em fevereiro de 1989, organizou o Encontro de Altamira, para pro- testar contra as represas plane- jadas. Em um momento tenso do evento, uma mulher kaiapó, Tuíra, encostou seu facão no ras- to do representante da empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletranorte), José Antônio Muniz Lopes, para enfatizar a rei- vindicação de que as barragens não fossem construídas. Uma das represas inundaria parte do Par- que Indígena do Xingu (figura 2). o Encontro de Altamira - des- crito no livra Tenotã-mõ: alertas sobre as conseqüências dos pro- jetos hidrelétricos no rio Xingu, organizado pelo engenheiro e geógrafo Oswaldo Sevá Filho (http://www.irn. org/programs/ latamerica/pdf/TenotaMo.pdf) - foi decisivo para uma 'evolução' dos planos oficiais para o Xingu. Como concessão aos povos indí- genas, a Eletronorte mudou o nome da usina de Kararaô para Belo Monte - os kaiapó não admi- tiram o uso da palavra kararaô, de conotação religiosa. Na mes- ma época, a Eletronorte anunciou que retiraria as outras represas do Plano 2010 (que, em 1987, listou 297 barragens planejadas no país, das quais 79 seriam na Amazônia), mantendo neste ape- nas Belo Monte, e que faria um 'relevantamento da queda' do Xingu (reavaliação da topografia ao longo do rio). Isso tem sido in- terpretado - erroneamente, inclu- sive por líderes indígenas - como uma admissão oficial de que as outras represas (em especial a

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Philip FearnsideDepartamento de Ecologia,lnstituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

A polêmica das hidrelétricasdo rio XinguAs represas das hidrelétricas

planejadas para a bacia do Xingu,

na Amazônia, inundariam terras

indígenas em floresta tropical

e emitiriam gases de efeito estufa.

Ao que tudo indica, a proposta

de construir apenas a hidrelétrica

de Belo Monte nesse rio,

descartando os outros projetos,

é um cenário fictício. Mesmo que

a proposta seja confiável, sabe-se

que grande parte da energia

gerada será usada por indústrias

que beneficiam alumínio para

exportação. É preciso mudar esse

quadro, evitando fornecer energia

subsidiada a indústrias de uso

intensivo de eletricidade,

que geram poucos empregos,

e criando novos mecanismos

de avaliação criteriosa

de empreendimentos de grande

porte, que permitam inclusive,

quando for o caso, impedir

a construção.

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Oprojeto de construção da hi-drelétrica de Belo Monte (fi-

gura 1), no rio Xingu, no Pará, éfoco de intensa controvérsia, emfunção de sua magnitude e deseus impactos ambientais e so-ciais. A hidrelétrica terá uma áreaestimada de reservatório peque-na (440 km-] e uma capacidadeinstalada grande (11.181,3 MW),mas para assegurar a geraçãoconstante de energia será essen-cial construir também, mais aci-ma, a represa de Altamira (maisconhecida pelo nome anterior,Babaquara), que regularizaria avazão do rio Xingu, mas inunda-ria uma vasta área (6.140 km-).Além dessas, outras quatro bar-ragens foram inicialmente plane-jadas para a bacia do Xingu.

Tais represas, como o antropó-logo norte-americano DarrellPosey (1947-2001) afirmava, nãoameaçam apenas um grupo deíndios. Devido à enorme diversi-dade de culturas indígenas na re-gião do Xingu, estariam em peri-go 37 etnias, de quatro troncoslingüísticos diferentes, com lín-guas tão afastadas quanto o por-tuguês e o chinês. Entre os gru-pos ameaçados está o kaiapó, que,em fevereiro de 1989, organizouo Encontro de Altamira, para pro-testar contra as represas plane-jadas. Em um momento tensodo evento, uma mulher kaiapó,Tuíra, encostou seu facão no ras-

to do representante da empresaCentrais Elétricas do Norte doBrasil (Eletranorte), José AntônioMuniz Lopes, para enfatizar a rei-vindicação de que as barragensnão fossem construídas. Uma dasrepresas inundaria parte do Par-que Indígena do Xingu (figura 2).

o Encontro de Altamira - des-crito no livra Tenotã-mõ: alertassobre as conseqüências dos pro-jetos hidrelétricos no rio Xingu,organizado pelo engenheiro egeógrafo Oswaldo Sevá Filho(http://www.irn. org/programs/latamerica/pdf/TenotaMo.pdf) -foi decisivo para uma 'evolução'dos planos oficiais para o Xingu.Como concessão aos povos indí-genas, a Eletronorte mudou onome da usina de Kararaô paraBeloMonte - os kaiapó não admi-tiram o uso da palavra kararaô,de conotação religiosa. Na mes-ma época, a Eletronorte anunciouque retiraria as outras represasdo Plano 2010 (que, em 1987,listou 297 barragens planejadasno país, das quais 79 seriam naAmazônia), mantendo neste ape-nas Belo Monte, e que faria um'relevantamento da queda' doXingu (reavaliação da topografiaao longo do rio). Isso tem sido in-terpretado - erroneamente, inclu-sive por líderes indígenas - comouma admissão oficial de que asoutras represas (em especial a

maior, Babaquara) não serão cons-truídas. No entanto, a empresajamais prometeu deixar de cons-truir essas ou outras represas norio (mudando os locais e os no-mes, por exemplo). Reavaliar a to-pografia do Xingu talvez alterelocalização, altura e outros aspec-tos das barragens, mas não evita-rá a inundação das áreas de flo-resta e de terras indígenas.

Após o Encontro de Altamira,a menção das cinco barragensplanejadas acima de Belo Montedesapareceu abruptamente dodiscurso público da Eletronorte.Em 1998, porém, Babaquara rea-pareceria de repente, com o nomede Altamira. Está listada no pla-no decenal da Eletrobrás para1999-2008 em uma tabela debarragens importantes para futu-ra construção (a ser completadaem 2013). Desde então, essa hi-drelétrica, de 6.588 MW, entrousem alarde nas apresentações ofi-ciais dos planos. As outras quatro- lpixuna (1.900 MW), Kakrai-moro (1.490 MW), Jarina (620MW) e lriri (770 MW) - conti-nuam ausentes de discussão pú-blica.

A 'versão preliminar' de umnovo estudo de impacto ambiental(ElA) para Belo Monte foi lançadaem 2002 pela Fundação de Am-paro e Desenvolvimento de Pes-quisa (Fadesp), organização civilde interesse público associada àUniversidade Federal do Pará. Aescolha da Fadesp, feita em setem-bro de 2000 sem licitação, gerougrande controvérsia descrita nolivro Hidrelétricas na Amazô-nia: predestinação, fatalidade ouengodo?, do jornalista Lúcio Flá-vio Pinto. Críticas incluíram fa-lhas primárias apontadas em es-tudos desse tipo feitos pela mes-ma organização, para as hidroviasTocantins-Araguaia e Tapajós-Teles Pires (ambos os relatóriosforam rejeitados). O ElA para BeloMonte foi embargado pela Justi-ça federal em maio de 2001, masuma liminar de outro tribunal

permitiu que o es-tudo continuasse, ea versão prelimi-nar foi completadaantes que a lími-nar fosse derruba-da em 2002.

Durante esseperíodo ocorreuo 'apagão', quan-do as regiões não-amazônicas do paístiveram que racio-nar eletricidade esofreram blecau-tes repetidos devi-do à falta de águanos reservatóriosdo Centro-Sul dopaís (ver 'A águade São Paulo e afloresta amazôni-ca', em CHn° 203).Em maio de 2001,o então presidenteFernando Henri-que Cardoso emi-tiu medida provisória estabele-cendo o prazo máximo de seismeses para a concessão de apro~vação ambiental para projetos deenergia, mas a medida expirousem ter conseguido abreviar aaprovação de Belo Monte.

Recentemente, uma nova usi-na (de capital chinês e brasileiro)de produção de alumina em Bar-carena (PA) foi incluída nas ne-gociações econômicas com a Chi-na, após a visita do presidente Luíslnácio Lula da Silva àquele paísem 2004. Será a maior do mundoquando completada. Acordos des-se tipo, que dependem do forne-cimento intensivo de eletricida-de, tendem a fazer com que os es-tudos de impacto ambiental e oprocesso de licenciamento paraas barragens planejadas se tor-nem meros enfeites decorativos.

Pressões para uma aprovaçãoveloz de Belo Monte continuaram.Em março de 2004, o presidentechamou seus ministros para exi-gir que achassem maneiras decontornar impedimentos arn-

Barragem de (Kokraimoro \PARÁ

bientais para concluir projetos deinfra-estrutura adiados no país,incluindo 18 barragens hidrelé-trícas. Em 13 de julho de 2005, oCongresso Nacional aprovou, emtempo recorde, a construção deBelo Monte, mesmo sem a apro-vação do estudo e do relatório deimpacto ambiental (ElA e RIMA).Várias organizações não-governa-mentais entraram com uma re-presentação na Procuradoria Ge-ral da República contestando adecisão, e a Procuradoria da Re-pública no Pará pediu uma AçãoDireta de lnconstitucionalidadecontra o Decreto Legislativo (na788), por falta de consulta às po-pulações afetadas, entre outrasfalhas. O Supremo Tribunal Fe-deral rejeitou o processo em 1Q dedezembro de 2005 com base emfalhas processuais, e a prepara-ção de uma nova ação começou.

Os benefícios sociais obtidos emtroca dos impactos das hidrelé-tricas planejadas para o Xingu sãomuito menores que os previstos ~

OPINIÃO

Figura 1.A Hidrelétricade Belo Montee os locaismencionadosno texto

abril de 2006 • CIÊNCIA HOJE· 61

OPINIÃO

Figura2.Áreasindígenasafetadas pelasbarragensna baciado rioXingu

• Lagos dasbarragens

• Terras indígenas

• Parque Nacionaldo Xingu

oficialmente, porque grande par-cela da energia produzida se des-tinaria a empresas multinacio-nais de alumínio, que geram pou-cos empregos. A usina da Albrásem Barcarena (PA), por exemplo,emprega apenas 1.349 pessoas(dado de dezembro de 2004), masusa mais eletricidade que a cida-de de Belém, com 1,2 milhão dehabitantes. O setor de alumínioemprega apenas 2,7 pessoas, noBrasil, por GWh de eletricidadeconsumida, triste recorde supe-rado apenas pelas usinas de fer-ro-liga (1,1 empregos/GWh), tam-bém voltadas à exportação - maisdetalhes sobre o tema podem serobtidos no livro Energia no Bra-sil: para quê? para quem? - crisee alternativas para um país sus-tentável, do engenheiro CélioBermann, da Universidade de SãoPaulo.

O debate sobre o fornecimentode energia e a substituição de com-bustível fóssil precisa ir além decálculos simples de combustívelversus kWh gerado. No caso das

grandes represas na Amazônia,não é necessariamente verdadeque, se uma usina não for cons-truída, uma quantidade de com-bustível fóssil equivalente à ener-gia que seria gerada terá que serqueimada. Isso só ocorreria se gran-de parte dessa energia fosse parafins essenciais, como o consumode residências e de indústrias vol-tadas para o mercado doméstico,e não para indústrias eletrointen-sivas, como a de alumínio. O alu-mínio que o Brasil exporta é be-neficiado usando energia - a pre-ços baixos - gerada em hidrelétri-cas construídas com o dinheiro doscontribuintes e dos consumidoresresidenciais brasileiros.

A hidrelétrica de Belo Monte emsi é apenas a 'ponta do iceberg' doimpacto do aproveitamento do rioXingu. Os principais problemasseriam trazidos pelas represasprevistas rio acima, presumin-do-se que o 'embalo político' de-corrente da aprovação de Be-lo Monte aniquilaria o sistema

de licenciamentoambiental - aindafrágil - brasileiro.Para a maioria dosobservadores nãoligados ao setorelétrico, esse é oquadro provável,que levaria à im-plantação das ou-tras represas. Noentanto, as autori-dades desse setorse esforçam pa-ra dissociar BeloMonte de seu prin-cipal impacto, queseria o de 'abrir aporteira' para asmegabarragensplanejadas a mon-tante.

Seria difícil en-contrar outro localcomo o escolhidopara construir BeloMonte, onde o rio

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tem um desnível de 87,5 m emum trecho relativamente curto euma vazão média de 7.851 m3/se-gundo (média de 1931 a 2000).Embora o fluxo d'água varie mui-to ao longo do ano, o que reduz opotencial de geração de energia(sem outras represas que regula-rizem esse fluxo), a questão prin-cipal levantada pela hidrelétricade Belo Monte é mais profundaque seus impactos diretos: o queestá em debate é o modo comosão tomadas as decisões sobre aconstrução de barragens. Em umBrasil ideal, Belo Monte poderiatrazer boa parte dos benefíciosque seus promotores anunciam.No Brasil real de hoje, porém, aobra teria impactos sociais e am-bientais desastrosos, com poucavantagem para a população.

A simples existência de BeloMonte forneceria a justificativatécnica para instalar outras repre-sas rio acima, as quais inunda-riam vastas áreas de terra indíge-na, quase todas sob floresta tropi-cal, e trariam outros problemas.Todos os anos, por exemplo, o ní-vel das águas do lago de Baba-quara cairia 24 m, na época seca,expondo um lamaçal de 3.580km". Este seria colonizado porplantas herbáceas, que apodrece-riam sob a água quando o nívelsubisse na estação das chuvas. As-sim, Babaquara seria uma fontepermanente de emissão de meta-no, um gás poderoso de efeito es-tufa (ver 'Gases de efeito estufaem hidrelétricas da Amazônia',em CH n° 211).

A dificuldade de aprovar a ver-são inicial da usina de Belo Mon-te, que incluía os benefícios daregularização da vazão por repre-sas instaladas rio acima, levou àelaboração de novo projeto, queaparentemente dispensa essa re-gularização. No entanto, o estudorevisado (atual), logo após admi-tir que a opção de não consideraras outras barragens deveu-se à"necessidade de reavaliação des-te inventário sob uma nova ótica

econômica e socioambiental",afirma expressamente: "Frise-seque a implantação de qualquerempreendimento hidrelétricocom reservatório de regulariza-ção a montante de BeloMonte au-mentará o conteúdo energéticodessa usina." Isso indica que arestrição da análise oficial a BeloMonte é uma conveniência paraobter a aprovação do projeto. Naverdade, nem a Eletronorte, nemqualquer autoridade governa-mental, prometeram não cons-truir barragens a montante - ape-nas adiaram uma decisão sobreelas. Esse é o ponto crucial daquestão.

Um provérbio árabe - "se umcamelo mete o focinho na tenda,o corpo vai logo atrás" - encaixa-se bem no caso da usina de BeloMonte. Um beduíno que deixe seucamelo colocar a cabeça dentroda tenda, à noite, para escapar deuma tempestade de areia, encon-trará o camelo inteiro ao seu ladoao acordar. Igualmente, se BeloMonte for construída, a popula-ção, ao acordar, encontrará Ba-baquara já instalada.

A história do 'camelo na bar-raca' já aconteceu com projetos daEletronorte em pelo menos duasocasiões. O primeiro exemplo é oenchimento do reservatório deBalbina, hidrelétrica instalada norio Uatumã, no Amazonas. Emsetembro de 1987, antes do iní-cio do processo, a Eletronorteemitiu um 'esclarecimento públi-co' declarando que o reservatórioseria enchido apenas até a cotade 46 m sobre o nível médio domar (abaixo do nível do projetooriginal, de 50 m), e que seriamrealizados estudos ambientaispara avaliar a qualidade da águaantes de uma decisão sobre o au-mento da cota. O enchimento, po-rém, passou dos 46 m e, sem in-terrupção, seguiu adiante, até ul-trapassar a cota de 50 m (ver 'Bal-bina: lições trágicas na Amazô-nia', em CH n° 64). Hoje, a repre-sa é operada, sem nenhuma justi-

ficativa, com um nível máximode 51 m. O segundo exemplo é aexpansão, em 4 mil MW, da ca-pacidade instalada em Tucuruí,hidrelétrica instalada no rio To-cantins, no Pará. Um estudo deimpacto ambiental estava sendoelaborado para o projeto de Tucu-ruí II (a expansão), já que a lei oexige para qualquer hidrelétricacom 10 MW ou mais de capacida-de instalada. No entanto, a Eletro-norte começou a construção em1998 sem esse estudo ambiental,alegando que a obra não teria im-pactos ambientais porque a cotamáxima da água no reservatóriojá formado por Tucuruí I perma-neceria inalterada em 72 m so-bre o nível médio do mar. Duran-te a construção, porém, a cota má-xima foi discretamente elevadapara 74 m, como era o plano ori-ginal. A represa é operada nessenível desde 2002, também semjustificativa.

A mesma estratégia já é visí-vel no caso de Belo Monte. O es-tudo de viabilidade diz que "osserviços de infra-estrutura (aces-sos, canteiros, sistema de trans-missão, vila residencial, aloja-mentos) terão início tão logo sualicença de instalação seja aprova-da, o que deve ocorrer separada-mente da aprovação da licençapara as obras civis principais, nodecorrer do denominado ano 'ze-ro' de obra". Isso revela que o es-tudo de impacto ambiental e oprocesso de licenciamento dabarragem são vistos como merasformalidades burocráticas paralegalizar uma decisão já tomada.Se fossem considerados essen-ciais para a decisão sobre implan-tar ou não o projeto, não haveriarazão para iniciar a infra-estru-tura complementar enquanto oprojeto principal (a barragem)ainda estivesse sob análise.

Esses exemplos são indicaçõespouco favoráveis para o futuro doXingu. Eles sugerem que, embo-ra as autoridades falem apenassobre uma hidrelétrica (a de Belo

OPINIÃO

Monte), é provável que a segundabarragem (Babaquara/Altamira)seja construída mais tarde dequalquer maneira. Portanto, osimpactos dessa nova represa de-veriam ser avaliados e, se julga-dos inaceitáveis, a decisão de im-plantar Belo Monte teria de in-cluir uma garantia confiável deque não haveria outras usinas rioacima. Mesmo que Belo Monteseja de fato viável economicamen-te sem Babaquara, como a Eletro-norte afirma, o perigo da implan-tação dessa segunda barragemcontinua, já que, concluída a pri-meira, o argumento de que a re-gularização da vazão por outra re-presa ampliaria o potencial de ge-ração em Belo Monte dominariao processo de tomada de decisão.

O debate sobre Belo Montepoderia levar a um resultado di-ferente, não sobre a construção ounão dessa usina, mas sobre a mu-dança do sistema de tomada dedecisão sobre barragens de hidre-létricas. Para isso, perguntas bá-sicas precisam ser enfrentadas: oque é feito com a energia? Quan-ta energia é realmente necessá-ria? Além de não mais encorajara expansão de indústrias intensi-vas de energia, o governo brasi-leiro deveria penalizar fortemen-te essas indústrias, especialmen-te a de alumínio, cobrando delaso dano ambiental que o uso inten-sivo de energia implica. Tambémé preciso formar uma estruturainstitucional confiável, para asse-gurar que compromissos oficiaissejam cumpridos. A série de pre-cedentes na história recente deconstrução de barragens no Bra-sil, com diversos compromissosquebrados, indica que essa novaestrutura precisaria ser testadapara obter a credibilidade neces-sária para tratar de questões comoa de BeloMonte. Esperar essa evo-lução institucional não significaperder o potencial dessa hidrelé-trica: a opção de construir umabarragem naquele local perma-necerá aberta. -

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