A POLÍTICA DE CONTRA-REFORMA AGRÁRIA DO BANCO … · Alexandra Maria de Oliveira* *Doutora em...

25
GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, pp. 151 - 175, 2006 A POLÍTICA DE CONTRA-REFORMA AGRÁRIA DO BANCO MUNDIAL NO CEARÁ Alexandra Maria de Oliveira* *Doutora em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP. E-mail: [email protected] RESUMO: Este artigo analisa a política de crédito fundiário no Ceará praticada pelos governos estadual e federal, em parceria com o Banco Mundial, a partir de 1996. A forma pela qual o Estado foi levado a dar início e desenvolver a “reforma agrária de mercado” no Ceará, recoloca problemas importantes, tais como: a questão da reforma agrária e o acesso à terra pelos sem terra, e o problema da estrutura fundiária no Ceará e no Nordeste. A reflexão sobre a contra-reforma agrária do Banco Mundial passa pela discussão acerca da concepção do desenvolvimento territorial contraditório (desigual e combinado) no interior da Geografia Agrária. A pesquisa foi desenvolvida a partir de estudo realizado em oito assentamentos criados em decorrência dos projetos São José e Cédula da Terra. A implementação da “reforma agrária de mercado” no Ceará traz consigo o re-significado da apropriação da renda capitalizada da terra por proprietários de terras rentistas. Os assentamentos enquanto frações do território conquistado, constituíram, por sua vez, em uma forma de propriedade diferente da propriedade privada capitalista. PALAVRAS-CHAVE: contra-reforma agrária, “reforma agrária de mercado” , camponeses, assentamentos, Ceará. ABSTRACT: The article analyzes the agrarian credit policy in Ceará, put into practice by the State and Federal Governments in partnership with the World Bank since 1996. The reason which led the State government begin and develop the “market agrarian reform” in Ceará, puts back important problems: the agrarian reform problem and the land access to the landless peasantry, the agrarian structural problem in Ceará, in the Northeast. The reflection on the agrarian counter-reformation of Wold Bank passes by the discussion concerning the contradictory (unequal and combined) territorial development, developed inside the Agrarian Geography. The research was developed from a transversal study accomplished in eight settlements created from the São José and Cédula da Terra projects. The implementation of the “market agrarian reform” in Ceará, has meant the appropriation of the capitalized income of the land by landowners of the rentable land. The settlements as fractions of the conquered territory have been constituted based on the family property that is a property form different from the capitalist private property. KEY WORDS: agrarian counter-reformation, “market agrarian reform” , peasants, settlement, Ceará

Transcript of A POLÍTICA DE CONTRA-REFORMA AGRÁRIA DO BANCO … · Alexandra Maria de Oliveira* *Doutora em...

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, pp. 151 - 175, 2006

A POLÍTICA DE CONTRA-REFORMA AGRÁRIA DO BANCOMUNDIAL NO CEARÁ

Alexandra Maria de Oliveira*

*Doutora em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP. E-mail: [email protected]

RESUMO:Este artigo analisa a política de crédito fundiário no Ceará praticada pelos governos estaduale federal, em parceria com o Banco Mundial, a partir de 1996. A forma pela qual o Estado foilevado a dar início e desenvolver a “reforma agrária de mercado” no Ceará, recolocaproblemas importantes, tais como: a questão da reforma agrária e o acesso à terra pelossem terra, e o problema da estrutura fundiária no Ceará e no Nordeste. A reflexão sobre acontra-reforma agrária do Banco Mundial passa pela discussão acerca da concepção dodesenvolvimento territorial contraditório (desigual e combinado) no interior da GeografiaAgrária. A pesquisa foi desenvolvida a partir de estudo realizado em oito assentamentoscriados em decorrência dos projetos São José e Cédula da Terra. A implementação da“reforma agrária de mercado” no Ceará traz consigo o re-significado da apropriação darenda capitalizada da terra por proprietários de terras rentistas. Os assentamentos enquantofrações do território conquistado, constituíram, por sua vez, em uma forma de propriedadediferente da propriedade privada capitalista.PALAVRAS-CHAVE:contra-reforma agrária, “reforma agrária de mercado”, camponeses, assentamentos, Ceará.ABSTRACT:The article analyzes the agrarian credit policy in Ceará, put into practice by the State andFederal Governments in partnership with the World Bank since 1996. The reason which ledthe State government begin and develop the “market agrarian reform” in Ceará, puts backimportant problems: the agrarian reform problem and the land access to the landlesspeasantry, the agrarian structural problem in Ceará, in the Northeast. The reflection on theagrarian counter-reformation of Wold Bank passes by the discussion concerning thecontradictory (unequal and combined) territorial development, developed inside the AgrarianGeography. The research was developed from a transversal study accomplished in eightsettlements created from the São José and Cédula da Terra projects. The implementation ofthe “market agrarian reform” in Ceará, has meant the appropriation of the capitalized incomeof the land by landowners of the rentable land. The settlements as fractions of the conqueredterritory have been constituted based on the family property that is a property form differentfrom the capitalist private property.KEY WORDS:agrarian counter-reformation, “market agrarian reform”, peasants, settlement, Ceará

152 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

I - Introdução

A política de crédito fundiário (ou“reforma agrária de mercado”) do Banco Mundialteve como vetor inicial, no Brasil, a experiênciapiloto ocorrida no Estado do Ceará, através doPrograma “reforma agrária solidária” (1996-1997). Essa experiência foi ampliada para outrosestados do Nordeste e para o norte de MinasGerais através do projeto piloto Cédula da Terra(1997-2000). Em seguida, foi levada para outrasregiões do país através do Programa Banco daTerra (1999-2002) e o Crédito Fundiário deCombate à Pobreza Rural (2002-2003),elaborados no governo Fernando HenriqueCardoso (1995-2002). Essa política teve comopressuposto a criação de um Fundo de Terras parafinanciar a compra e a venda de terras entreproprietários dispostos a vendê-las e camponesessem terra (ou com pouca terra) interessados emadquiri-las.

A política sofreu duras críticas oriundas dosmovimentos sociais e das entidades derepresentação dos camponeses, em especial aCPT e o MST, unidos no Fórum Social pela ReformaAgrária e Justiça no Campo.

A eleição do Presidente Luís Inácio Lulada Silva, em 2002, trouxe esperanças para osmovimentos sociais e para toda a sociedade civilinteressada na reversão da política agráriadesenvolvida no governo Fernando HenriqueCardoso, com o apoio do Banco Mundial. Porém,o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF),apresentado, em 2003, pelo governo Lula daSilva, manteve o descontentamento dosmovimentos sociais e das entidades derepresentação dos camponeses na luta pelareforma agrária. Isso porque o programa manteveo incentivo à aquisição de terra via processo decompra e venda no mercado, deixando de lado oinstrumento da desapropriação de terras. Destemodo, o PNCF do governo Lula da Silva temnegligenciado a luta camponesa pela reformaagrária e mantido uma política agrária devalorização do mercado, e não de políticas deEstado, como instrumento legal de acesso à terra,o que tem garantido a continuidade desta política

Banco Mundial no Brasil.

A “reforma agrária de mercado”, como umapolítica de contra-reforma agrária, aparece comocondição e conseqüência da forma pela qual oEstado foi levado a recriar o mercado de terraspara favorecer o desenvolvimento capitalista noCeará. Nesse sentido, a análise da política decrédito fundiário é também um modo de seconhecer alguns aspectos importantes quecompõem a política agrária do Banco Mundialaplicada nos países em desenvolvimento e, emespecial no Brasil a partir de 1996.

O estudo desta proposta governamentalfoi desenvolvido a partir de estudo realizado emoito assentamentos oriundos do projeto São Josée do projeto piloto Cédula da Terra, partesconstitutivas da denominada “reforma agrária demercado” no Ceará. Os assentamentosencontram-se distribuídos nos municípios deAcaraú, na zona costeira, e Canindé no interiordo estado.

A expressão “reforma agrária de mercado”surgiu no contexto da crítica feita pelosmovimentos sociais ao programa Cédula da Terra(1997–1999) como questionamento às políticasagrárias do Banco Mundial aplicadas nos paísesem desenvolvimento. Esta expressão passou aser utilizada nos discursos dos intelectuaisenvolvidos com a luta camponesa pela reformaagrária. Em seguida, esta expressão foi assumidapelo Banco Mundial, que a colocou no centro desua parceria política com o governo brasileiro,procurando, deste modo, desqualificar o conteúdocrítico da expressão, presente na sua origem.

Nesta pesquisa, a expressão “reformaagrária de mercado” é assumida respeitando-seo debate crítico ocorrido no interior dosmovimentos sociais de luta pela terra e pelareforma agrária. Esta política conseguiu mexer naestrutura fundiária dos municípios cearenses.Embora não a tenha desconcentrado, provocoumudanças como a formação de assentamentos,a reorganização dos camponeses em relação àterra e a dinamização da produção camponesadaquelas regiões. Os assentados passaram aenvolver-se no jogo político local, revelando novos

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 153

caminhos para a luta pela terra. Ao mesmo tempo,é uma “reforma agrária de mercado” porque oprocesso de aquisição da terra rural deu-se soba lógica do mercado, ou seja, a terra foi negociadacomo uma mercadoria capaz de gerar rendacapitalizada para os proprietários rentistas, e,sobretudo, essa política impõe e defende a lógicada propriedade privada da terra.

A reflexão sobre a política de contra-reforma agrária do Banco Mundial, e sua relaçãocom os camponeses, passa por uma discussãoacerca das políticas de assentamentos rurais noBrasil. A matriz teórica dessa pesquisa é a teoriasocial de Marx a partir da leitura de autores comoShanin (1983), Martins (1986, 1995 e 1999) eOliveira (1981, 1986, 1990, 1991, 1998 e 2001),intelectuais que desenvolveram, com base nadialética materialista, um conjunto de trabalhosde importância fundamental para a compreensãoda questão camponesa no interior do movimentocontraditório do desenvolvimento do capitalismono campo.

II - A “reforma agrária de mercado” do BancoMundial para o campo cearense.

A “reforma agrária de mercado” do BancoMundial é, hoje, parte do processo dedesenvolvimento do capitalismo moderno nocampo brasileiro. Esse processo está marcadopela lógica do desenvolvimento contraditório edesigual, pois, ao mesmo tempo em que atua nadireção da ampliação do agronegócio, a partir desubsídios e isenções fiscais, em diferentes regiõesdo país, tem proporcionado, contraditoriamente,o processo de expansão da agriculturacamponesa.

A preocupação do Banco Mundial com odesenvolvimento econômico dos países emdesenvolvimento, tais como o Brasil, o México e aÁfrica do Sul, tem origem na própria criação dobanco em meados do século XX. O aumento dapobreza no mundo e o endividamento financeirodesses países fortaleceram a preocupação dasinstituições financeiras multilaterais com osmesmos. No final dos anos de 1990, a soluçãoalternativa do Banco Mundial para o “alívio da

pobreza” nos países em desenvolvimento veiocom a proposta de uma política de “reformaagrária com base no mercado”.

Conforme Binswanger (1996?, p.2), noBrasil:

“A reforma agrária assistida pelo mercadoobjetiva facilitar o processo em que osinteressados na compra de terras possamfazer negócios com aqueles dispostos a vender,eliminando, assim, as demoras habituais econferindo benefícios imediatos aos pequenosproprietários”.

A política de crédito fundiário (ou “reformaagrária de mercado”) teria por objetivo estimularos interessados em adquirir terras a negociar comaqueles dispostos a vendê-las, com a ajuda doGoverno através de subvenções (financiamentoa fundo perdido) e outras medidas de apoio.

O incentivo à formação do “comprador –vendedor voluntário” seria a novidade no enfoquede mercado. Dessa forma, a lógica da políticaconsistia em um estímulo à transação de comprae venda de terras, passando a ser o mercado, enão mais o Estado, o intermediário principal parao acesso à terra.

No Brasil, a “reforma agrária de mercado”do Banco Mundial procurou questionar a lentidãonos processos de desapropriações de terras,causada pela burocracia estatal, e foi apresentadacomo uma “solução alternativa” para amenizar apobreza rural, o desemprego e os conflitos nocampo. O enfoque de mercado nas transaçõesde compra e venda de terras, pagas à vista e emmoeda corrente, fez dessa proposta uma formade acesso à terra relativamente pacífica. Porém,não menos importante, essa política, no Brasilassim como na África do Sul, procurou resolver oproblema do endividamento dos proprietários deterra e capitalistas rentistas junto aos bancos.

Para justificar a implementação da“reforma agrária de mercado”, os governosestaduais e federal apontaram, formalmente, alentidão dos processos de desapropriaçãoocorridos na reforma agrária de fato, osfreqüentes casos de superestimação nas

154 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

indenizações dos imóveis desapropriados, e oscustos elevados dos assentamentos. Mas, aoagilizar o acesso à terra e baratear os custosvia mercado de terras, o governo colocou emxeque o Estatuto da Terra de 1964 e aConstituição Federal de 1988, que legitimam areforma agrária a partir da lógica dadesapropriação de terras que não cumprem asua função social. Portanto, algo bem diferenteda reforma agrária como uma política de acessoà terra sob a lógica do mercado.

A experiência-piloto brasileira da“reforma agrária de mercado” proposta peloBanco Mundial foi estabelecida, inicialmente,pela Lei n. 12.614, de 12 agosto de 1996, noCeará, a partir da criação de um Fundo Rotativode Terras, destinado a apoiar as ações destapolítica no estado. O Fundo viabilizou aimplementação do componente Ação Fundiáriano interior do Projeto São José, denominadoPrograma “Reforma Agrária Solidária” – ProjetoSão José.

Este programa 1 teve como finalidadedesenvolver um novo modelo de reestruturaçãoagrária, a partir do qual os trabalhadores semterra e minifundiários, organizados emassociações, negociariam diretamente a comprade terras para os assentamentos. Ofinanciamento foi feito a partir do Projeto SãoJosé, via Fundo Rotativo de Terrasoperacionalizado pelo Banco do Nordeste, comrecursos oriundos da contrapartida estadual aocontrato de empréstimo (n. 3918 BR)estabelecido entre o governo do Ceará e oBanco Mundial (BIRD).

O público-alvo do programa foram ostrabalhadores rurais sem terra e os quepossuíam pouca terra, moradores de áreaselegíveis do Projeto São José, organizados emassociações. Para participar do programa eranecessário: a) ser produtor rural sem-terra ouminifundiário; b) ser chefe ou arrimo de família,inclusive mulher responsável pela família; c) tertradição na atividade agropecuária; d) ser maiorde idade; e) manifestar a intenção de adquirir,via entidade associativa, terras que permitissem

desenvolver atividades produtivas; f)apresentar um ou mais proprietários dispostosa vender a terra; e g) assumir o compromissode reembolsar ao Fundo Rotativo de Terras asquantias utilizadas para a compra do imóvel.

A participação dos interessados passavapelas seguintes etapas: a) a associaçãoapresentaria uma proposta de compra e vendada terra à Unidade Técnica do Projeto São José,no Instituto de Desenvolvimento Agrário doCeará (IDACE); b) o IDACE analisaria a propostapara certificar-se de que atenderia aosrequisitos exigidos; c) aprovada a proposta, oIDACE autorizaria o Banco do Nordeste acontratar a operação e orientaria a associaçãosobre como, quando e onde assinar o contratode financiamento e a escritura de compra evenda do imóvel; d) os contratos seriamfirmados pela associação e, solidariamente, portodos os beneficiários, que seresponsabilizariam pelo pagamento de suasrespectivas quotas-partes do financiamento; e)seria de responsabilidade do vendedor opagamento dos impostos sobre o imóvel até adata da transação e transcrição do registro; f)seriam incorporados ao financiamento osrecursos necessários para a escritura e registrodo imóvel adquirido, para a remuneração doagente financeiro (2% do valor do imóvel) e parao levantamento dos dados de natureza técnicanecessários para o registro do imóvel em nomeda associação; g) o imóvel seria registrado emnome da associação e, em seguida, feita aescolha e definição dos lotes, permanecendocomo propriedade da associação até que fossesaldado o débito junto ao agente financeiro;h) antes da quitação do débito, caso algumparticipante individual, por razões justificadas,decidisse deixar o grupo, poderia sersubstituído, desde que o seu substitutosatisfizesse os critérios de elegibilidade (fosseaceito pela assembléia da associação eassumisse integralmente a responsabilidadepelo débito vencido); i) caberia aos camponesesparticipantes decidir sobre a utilização dasterras adquiridas, observando-se osrequerimentos legais quanto às áreas de

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 155

reserva e preservação e o modelo de gestãodas unidades familiares.

As condições de financiamento foramdefinidas da seguinte forma: o débito contraídopela associação teria um período deamortização de até 15 anos, com carência deaté 4 anos. Sobre os saldos devedores seriamaplicadas a Taxa de Juros a Longo Prazo (TJLP)e a taxa de remuneração do agente financeiro,definida em 1% ao ano sobre o saldo devedor.

A relevância dos resultados da “reformaagrária solidária” – Projeto São José, no Ceará,no ano de 1997, fez com que o governo federal,juntamente com o apoio do Banco Mundial,outorgasse investimentos financeiros paraampliar e expandir a proposta no próprio Cearáe nos Estados do Maranhão, Pernambuco, Bahiae região norte de Minas Gerais, a partir doprojeto piloto Cédula da Terra – combate àpobreza no meio rural.

No Brasil, portanto, o projeto Cédula daTerra foi proposto pelo governo federal, emparceria com os governos estaduais, e teve umsignificativo apoio financeiro (cerca de US$ 90milhões de dólares) e intelectual do BancoMundial. Embora o início da “reforma agrária demercado” do Banco Mundial no Brasil tenha sidoa experiência-piloto “reforma agrária solidária”– Projeto São José, no Ceará, a “reforma agráriade mercado” não foi uma idéia originária doBrasil, nem tampouco foi exclusividade do Ceará.Foi, sim, uma política do Banco Mundial que jávinha sendo implementada na África, na AméricaLatina e na Ásia. O Ceará foi, assim, apenas ovetor inicial desta política no Brasil.

No projeto Cédula da Terra2 , o ponto departida para o acesso à terra foi, também, aorganização de trabalhadores rurais sem terraou com pouca terra em associações. Asassociações negociariam a compra da terradiretamente com os proprietários ruraisinteressados em vender suas terras, obtendofinanciamento para aquisição da terra efinanciamento não reembolsável para osinvestimentos comunitários. Também, haveriaum investimento a fundo perdido no valor de

R$ 1.300,00 (hum mil e trezentos reais) para ainstalação inicial das famílias no imóvel. Aintrodução de recursos a fundo perdido foi umitem que apareceu no Cédula Terra, que nãoexistia no Projeto São José.

Os requisitos de elegibilidade paraparticipação no projeto piloto Cédula da Terrapermaneceram os mesmos da experiênciaantecessora. A participação dos interessadosse daria com a formação de uma associação,que deveria escolher o imóvel a ser adquirido,bem como discutir as bases da transação com oproprietário da terra. Em seguida, seriaencaminhada ao órgão de terra do estado emproposta de financiamento para assentamento,e uma solicitação, ao proprietário, de umadeclaração de intenção de venda do imóvel.Encaminhados todos os documentos, o órgãoestadual responsável, no caso o órgão deterras, realiza a análise, e, em seguida, avaliaa razoabilidade do preço da terra no mercadode terras da área em questão. Feito isso, seriadada uma carta de crédito à associação que,por intermédio de um agente financeiro estatal,adquire no mercado a propriedade. Os contratossão firmados entre a associação e o proprietáriodo imóvel, sendo o imóvel é registrado em nomeda associação, permanecendo como suapropriedade até que seja saldado o débito juntoao banco. No caso de desistência, pode haversubstituição, desde que o substituto satisfaçaos critérios de elegibilidade, como se dava noProjeto São José.

As condições de financiamento definidaspara o Cédula da Terra foram diferentesdaquelas do Projeto São José. O financiamentoseria reembolsável no prazo de 10 anos, comcarência de até três anos. Sobre os saldosdevedores seriam aplicados os mesmosencargos previstos no Projeto São José (TJLP,mais a taxa de remuneração do agentefinanceiro).

Além do recurso para compra da terra, oCédula da Terra previa recursos parainvestimentos comunitários definidos pelopróprio grupo de assentados nos segmentos

156 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

de infra-estrutura, produtivo e social. Assim,seriam priorizados investimentos emrecuperação ou melhoramento da infra-estrutura existente, como recuperação decercas, aumento da capacidade de produção doimóvel, elevação da produtividade, emprego erenda; e promovida a melhoria das condiçõesde vida da comunidade. Nesses investimentos,o financiamento não-reembolsável seria de 90%do valor do recurso, sendo os outros 10% pagospelos assentados com o próprio trabalho, comprodutos ou com dinheiro, conforme odesejassem. A partir desse esquema geral, emfunção de seu caráter descentralizado, oprojeto-piloto Cédula da Terra adquiriuadaptações em cada estado, porém sempremantendo as regras acordadas com o BancoMundial.

No Nordeste do Brasil, o início do Cédulada Terra foi noticiado com grande visibilidadenos estados beneficiados. Cartazes, banners,propaganda televisiva e em jornais locais eregionais foram as principais formas dedivulgação dos governos para apresentar oprograma para a sociedade. Antes mesmo doCédula da Terra completar um ano deimplantação, representantes do Banco Mundialem Brasília solicitaram relatório deacompanhamento do projeto piloto3 , quandorevelaram uma clara intenção de discutir apossibilidade de ampliá-lo para outras regiõesdo Brasil, com a denominação de ProgramaBanco da Terra.

A preocupação com o desenvolvimentodo projeto Cédula da Terra no Nordeste, e suaampliação para todo o Brasi, contribuíram paraque, na contramão, entidades que compõem oFórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça noCampo4 (ABRA, CPT, APR, CJG, FIAN-Brasil, MSTe Rede Brasil), coordenaram do ano de 2001, apesquisa Política do Banco Mundial para o setoragrário brasileiro com base no programa Cédula daTerra: um estudo a partir de áreas selecionadas.

De acordo com Sauer (2003), a pesquisateve como objetivo básico avaliar se o programaestava cumprindo o objetivo principal, ou seja, se

estava proporcionando melhores condições devida para as famílias contempladas, e se haviaocorrido melhorias, tais como, por exemplo,emancipação política, acesso à terra através depreços mais baixos e acesso à infra-estrutura porparte das famílias que compraram terra atravésdo programa.

Os resultados dessa pesquisa foramdiscutidos internamente em cada estado eserviram de base para Sauer escrever o artigo “Aterra por uma cédula”, que trouxe para o interiordo debate intelectual uma crítica enérgica enecessária à leitura técnica do Banco Mundialsobre a questão agrária brasileira. O autor fezuma análise apurada dos documentos oficiais queserviram de base para a aplicação do projetoCédula da Terra. E, ainda a partir dos resultadosda pesquisa, fez a devida análise sobre a rupturaexistente entre o discurso do Banco Mundial e dogoverno federal e a realidade vivenciada pelasfamílias envolvidas com a compra de terras doprograma.

Entre as dificuldades relatadas pelasfamílias assentadas, sobressaíram-se: a baixaqualidade das terras adquiridas; as associaçõesnão representavam os interesses dascomunidades; o alto índice de desinformaçãosobre o funcionamento do programa por parte doscamponeses; a imposição da produção coletivano interior dos assentamentos; as desistências:a pouca renda produzida no interior dosassentamentos; e a inviabilidade do pagamentodas terras na forma proposta pelo programa.

A agilidade para ampliação do projetoCédula da Terra para todo o país esteverelacionada à pressão dos movimentos sociaispara acelerar as desapropriações para fins dereforma agrária e às constantes críticas que oprograma estava sofrendo. Na leitura oficial aampliação do programa estava relacionada coma queda que estava ocorrendo no preço da terraem algumas áreas do Brasil e com o “sucesso” doprojeto-piloto no Nordeste.

Segundo Medeiros (2003), a criação doBanco da Terra, proposta de ampliação do Cédulada Terra, correspondia à demanda dos

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 157

proprietários de terra que sempre se posicionaramcontra os programas de reforma agrária com basena desapropriação de terras improdutivas epagamento de títulos da dívida agrária.

A ampla divulgação das críticas, sobretudona Internet, e o apoio da sociedade ao FórumSocial pela Reforma Agrária e Justiça Social noCampo intensificou suas ações no CongressoNacional. Em 1997, quando foi autorizada acontratação de empréstimo junto ao BancoMundial, houve uma audiência pública sobre oprojeto-piloto Cédula da Terra, com a participaçãode várias entidades envolvidas na luta pelareforma agrária, que discutiram todos osproblemas e críticas ao projeto.

Mesmo diante das críticas, o Fundo deTerras e da Reforma Agrária – Banco da Terra5 foicriado pela Lei Complementar n.93/1998 com afinalidade de financiar programas de reordenaçãofundiária e de assentamento rural. O ProgramaBanco da Terra, além de ser um programa degoverno foi instituído por lei e lançado como sendoa expansão, para todo o país, do projeto pilotoCédula da Terra, desenvolvido pelo governobrasileiro em parceria com o Banco Mundial. Esseprograma começou a operar em 1999 nos Estadosde Santa Catarina, Goiás, Paraná, Espírito Santoe Rio Grande do Sul.

O Banco da Terra6 apresentou diferençascom relação a seu antecessor. O público-alvo doCédula da Terra foram os trabalhadores rurais semterra e os minifundiários; já no Banco da Terraforam os trabalhadores rurais, pequenosagricultores e os filhos dos trabalhadores eagricultores rurais. Isso permitiria aquisição deterra na forma de organização associativa eindividual. Além disso, no Banco da Terra foigestada a entrada dos filhos dos trabalhadorese agricultores rurais na “reforma agrária demercado” do Banco Mundial.

No que diz respeito à forma de aquisiçãoda terra, no Cédula da Terra a associaçãonegociava diretamente com o proprietário da terrao imóvel que queria comprar e no Banco da Terraa associação escolhia a área que queria comprare, com a ajuda de órgãos técnicos estaduais e o

INCRA, negociava o preço da terra com oproprietário. A introdução da participação doINCRA foi uma tentativa de tentar resolver aexclusão deste órgão do processo de constituiçãoda “reforma agrária de mercado”.

Outra diferença foram as condições definanciamento. No Cédula da Terra ofinanciamento era feito em 10 anos, sendo de 3anos o prazo de carência, ancorado na TJLP (taxade juros sujeita às flutuações de mercado), maisa taxa de remuneração do agente financeiro,definida em 1% ao ano sobre o saldo devedor.No Banco da Terra, a compra da terra passou aser financiada em até 20 anos, com três anos decarência e juros subsidiados que variavam de 2%,nas áreas mais pobres, a 6%, ao ano.

O Banco da Terra funcionou de 1999 a2002, um período de transição governamental queculminou com a vitória do candidato Luís InácioLula da Silva, eleito por uma coligação políticaliderada pelo PT, com apoio dos movimentossociais e entidades de representação camponesade luta pela reforma agrária.

Porém, antes de findar o governo dopresidente Fernando Henrique Cardoso (1998 –2002), o Ministério de Desenvolvimento Agráriono comando do ex-ministro Raul Julgmann, lançouem substituição ao Banco da Terra, um novoprograma de acesso à terra com base no mercado,o projeto Crédito Fundiário e Combate à PobrezaRural (CFCP).

De acordo com Medeiros (2003), o apoioda CONTAG ao programa influenciou,decisivamente, a aprovação do empréstimo juntoao Banco Mundial, o que fez deslocar o apoio aoPrograma Banco da Terra para o Programa CréditoFundiário de Combate à Pobreza Rural. Nãomenos importante que essa influência foi aoposição aberta feita pelos movimentos sociais eentidades de representação camponesa viaFórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça noCampo.

O projeto Crédito Fundiário e Combate àPobreza rural se manteve com a proposta de seusprogramas antecessores, ou seja, aliviar a Pobreza

158 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

Rural no campo brasileiro. Financiado pelo governofederal e pelo Banco Mundial, trouxe como novidadea participação da Confederação Nacional daAgricultura (CONTAG) na sua criação eimplementação.

O CFCP atingiu todos os estados das regiõesNordeste e Sul, além de Minas Gerais e Espírito Santo,no Sudeste. Sua proposta permitiu o créditoindividualizado (sem direito a recursos produtivos)e o financiamento se manteve com o prazo de até20 anos, com três anos de carência, juros fixos de6% ao ano, com rebate de 50%, aplicáveis sobre os

encargos financeiros se pagas em dia as prestações,além da isenção da correção monetária.

Os projetos Cédula da Terra, Banco da Terrae o Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural,desenvolvidos no governo Fernando HenriqueCardoso possuem em comum a lógica de valorizaçãoda apropriação privada da terra. Embora pareçamuma mesma política de “reforma agrária demercado”, distinguem-se na estrutura e elaboração.As abrangências, continuidades, mudanças ediferenças estão resumidas no quadro 01 a seguir.

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 159

As permanências e mudanças, aagilidade no desenvolvimento e a mobilidade natroca dos programas revelam a luta pela terra,travada na sociedade brasileira, entre osmovimentos sociais e a política do governo FernandoHenrique Cardoso.

De acordo com Oliveira (2001, p. 201)

“a pressão feita pelos movimentos sociais com aampliação das ocupações pressionou o governoFHC a ampliar os assentamentos. Tal fato mostraque a reforma agrária, antes de ser uma políticapropositiva do governo, é a necessidade deresposta à pressão social”.

Para o autor, os movimentos sociais sãomovimentos de luta que representam uma classesocial, capaz, inclusive, de colocar o presidenteFernando Henrique Cardoso na defensiva. Esse fatoprovocou o contra-ataque do governo com fortesaliados, como o poder judiciário, e o apoio de algunsintelectuais que tentaram reforçar a idéia deinexistência de uma questão agrária.

Conforme Rezende e Mendonça (2004, p.9),no conjunto da sociedade civil organizada, o iníciodo governo Lula da Silva, em 2003, trouxeesperanças na reversão da política agrária dedesenvolvimento rural implementada no governoFernando Henrique Cardoso, com o apoio do BancoMundial. A expectativa era de que a reforma agráriaestivesse no centro da agenda política, como umaforma importante de geração de empregos, degarantia da soberania alimentar e como base deum novo modelo de desenvolvimento rural.

No ano de 2003, também foi lançado oPrograma Nacional de Crédito Fundiário (PNCF)7 dogoverno Lula da Silva. O programa está apoiado emduas experiências. A primeira foi o Programa Bancoda Terra, cuja execução foi criticada por não termecanismos de controle social e por não contar comuma participação efetiva da sociedade civil. Por isso,seus mecanismos de gestão e de controle foramfrágeis, permitindo o surgimento de uma série deirregularidades, que resultaram em umsobreendividamento dos camponeses. A segundaexperiência foi o projeto Crédito Fundiário e Combateà Pobreza Rural, elaborado e executado em parceriacom a CONTAG, com os estados e o Banco Mundial.

Esse projeto introduziu a participação dasorganizações sindicais em sua implementação nosníveis municipal, estadual e nacional.

O PNCF foi apresentado como umareivindicação histórica de organizações sindicais(CONTAG e FETRAF–Sul) por um programa de créditocomplementar à desapropriação de terras e comoum mecanismo efetivo de participação e controlesocial. Nele ficou definida a não aquisição de áreasimprodutivas maiores de 15 módulos fiscais, e aparticipação social através dos trabalhadores e dastrabalhadoras rurais e suas organizaçõescomunitárias, do Conselho Municipal deDesenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS), doConselho Estadual de Desenvolvimento RuralSustentável (CEDRS), da Unidade Técnica Estadual(UTE), do Conselho Nacional de DesenvolvimentoRural Sustentável (CONDRAF), das federações detrabalhadores na agricultura e na agricultura familiar,e de seus sindicatos. Dessa forma, o programa nãorepetiria os problemas ocorridos nas experiênciasanteriores e nem faria parte de qualquer “reformaagrária de mercado” fundamentalmente porque nãocompraria áreas passíveis de desapropriação e porter uma estrutura participativa desde a elaboraçãoe gestão até a execução.

O PNCF teve como público-alvo ostrabalhadores rurais sem terra, os pequenosproprietários rurais com acesso precário à terra eos proprietários minifundiários, incluindo os jovense os idosos. Teve, ainda, como princípio, a“autonomia” das comunidades, isto é, a associaçãodeveria auto-selecionar seus participantes, escolhero imóvel a ser comprado, bem como negociar o preçoda terra com o proprietário, e, ainda, a forma degastar os recursos destinados aos investimentoscomunitários, além de gerir suas próprias formas deorganização e as da produção, entre outrasatividades.

O financiamento para aquisição das terrasera feito com recursos reembolsáveis, provenientesdo Fundo de Terras, e o financiamento parainvestimentos comunitários com recursos não-reembolsáveis, provenientes, sobretudo, docontrato com o Banco Mundial. Esses investimentossão de três tipos: a) investimentos produtivos (roçasde subsistência e produção, formação de pastos,

160 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

instalações, conservação dos solos, custeio dasprimeiras safras, aquisição de animais, etc.); b)investimentos de infra-estrutura básica (moradia,abastecimento de água, eletrificação, estradasinternas à propriedade, etc.) e c) investimento paraa formação de poupança pelas famílias oucomunidades (fundos bancários de poupança ouinvestimento, formação de capital de giro, etc.).

Os camponeses participantes desseprograma dispõem, ainda, de recursos não-reembolsáveis de apoio inicial de instalação no valormáximo de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos

reais), e, no caso das propriedades localizadas nafaixa do semi-árido, um recurso adicional de R$2.000,00 (dois mil reais) por família, para custeardespesas com segurança hídrica. A contrapartidados camponeses seria de, pelo menos, 10% do totalde investimentos, através de mão-de-obra,materiais ou em dinheiro, mas era, basicamente, soba forma de trabalho. Assim, a fonte de recursos doprograma foi o Fundo de Terras (antigo Banco daTerra), criado pela Lei Complementar n. 93/98 eregulamentado pelo Decreto n. 4.892, de 25 denovembro de 20038 , e o Banco Mundial.

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 161

O PNCF tem alimentado o descontentamentodos movimentos sociais e representaçõescamponesas na luta pela reforma agrária com apolítica agrária do governo Lula da Silva. Isso porqueo programa manteve o incentivo à aquisição de terraatravés do processo de compra e venda nomercado, deixando de lado a aquisição viadesapropriação, e introduziu a estratégia de gestãodo Fundo de Terras a longo prazo (30 anos),sinalizando um tempo longo para pagamento. Porisso os novos camponeses assentados deverãogastar mais com o pagamento dos empréstimos.

O PNCF está subdividido em três linhas definanciamento: a Combate à Pobreza Rural, a linhaNossa Primeira Terra, e a Consolidação da AgriculturaFamiliar. O quadro 02 resume os pontos básicos doPNCF do governo Lula da Silva.

Desse modo, o PNCF do governo Lula daSilva tem negligenciado a luta camponesa pelareforma agrária e mantido uma política agráriade valorização do mercado, e não do Estado,como instrumento legal de acesso à terra.Assim, tem garantido a continuidade de umapolítica de contra-reforma agrária no Brasil.

A contra-parte do governo Lula da Silvana formulação do PNCF foram os volumes derecursos previstos para o Fundo de Terras, queficaram na faixa de R$ 330 milhões por ano, aserem desembolsados até o ano de 2010, e acooptação de alguns dos movimentos sociais deluta pela reforma agrária. Essas ações podemser indícios da intenção de se fazer com que a“reforma agrária de mercado” do Banco Mundialsubstitua, em parte, os instrumentos legais, hojedisponíveis, capazes de atenuar os conflitos nocampo e a pobreza rural, e proporcionar umareforma agrária com desenvolvimentoeconômico, justiça social e participação políticada classe camponesa no Brasil.

De maneira geral, a implementação da“reforma agrária de mercado” no Ceará temsignificado, por um lado, a reativação domercado de terras, contribuindo para aampliação das relações, especificamente,capitalistas no campo como a compra e vendade terras. Por outro lado, os assentamentos têm

se mostrado como espaços da não-sujeição, danão-expropriação da renda da terra pelo patrãoe da continuidade das relações de origem não-capitalistas no campo, como o trabalho familiar.Esse quadro tem-se revelado na figura docamponês assentado, muitas vezessubordinado, que, conforme Oliveira (1991),deriva da lógica do desenvolvimento docampesinato no seio da lógica capitalista. ÀGeografia cabe, portanto, o estudo dessarealidade contraditória, desigual e combinada,a partir da análise do território enquantoproduto concreto da luta de classes travada nocotidiano da sociedade capitalista e dosassentamentos rurais, como frações desseterritório conquistadas pelos camponeses noprocesso de luta pela terra e pela reformaagrária.

III- O desenvolvimento do capitalismo nocampo: particularidades para o entendimentoda questão agrária no Ceará.

De acordo com Oliveira (1998), osestudos sobre o desenvolvimento ruralbrasileiro têm sido feitos por muitos autores queexpressam diferentes vertentes marxistas. Porexemplo, há autores que defendem o ponto devista de que no Brasil houve feudalismo. Porisso, eles advogam a seguinte tese: para que ocampo se desenvolva seria preciso acabar comestas relações feudais ou semi-feudais e ampliaro trabalho assalariado no campo. Para essesautores a luta dos camponeses contra oslatifundiários exprimiria o avanço da sociedadena extinção do feudalismo. Portanto, a luta pelareforma agrária seria um instrumento que fariaavançar o capitalismo no campo. Entre osprincipais estudiosos que seguem estaconcepção, estão Sodré (1962) e Guimarães(1974).

Outra vertente entende que o campobrasileiro já está se desenvolvendo do pontode vista capitalista, e que os camponesesinevitavelmente irão desaparecer, pois elesseriam uma espécie de “resíduo” social que oprogresso capitalista extinguiria. Ou seja, oscamponeses ao tentarem produzir para o

162 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

mercado, acabariam indo à falência e perdendosuas terras para os bancos, ou mesmo teriamque vendê-las para saldar as dívidas. Com isso,os camponeses tornar-se-íam proletários. Entreos principais pensadores dessa corrente naatualidade estão: Abramovay (1992) e Grazianoda Silva (2001). A grande maioria dos trabalhosde geografia agrária apresentados e publicadosnos encontros nacionais de Geografia Agráriatem por base esta concepção de pensamento,muito embora optem por um certo ecletismo naescolha dos referenciais teóricos.

Assim, para estas duas vertentes deanálise, na sociedade capitalista moderna nãohá lugar histórico para os camponeses no futurodesta sociedade. Isso porque a sociedadecapitalista é pensada por estes autores comosendo composta por apenas duas classessociais: a burguesia (os capitalistas) e oproletariado (os trabalhadores assalariados). Épor isso que muitos autores não assumem adefesa dos camponeses, acreditando que osmesmos são “resíduos”, estão condenados aodesaparecimento. No entanto, os camponesescontinuam lutando para conquistar o acesso àsterras em muitas partes do Brasil.

E acredito, ainda, que se as teses deextinção do campesinato tivessem capacidadeexplicativa, os camponeses parceiros, rendeirose posseiros, que hoje compõem osassentamentos da “reforma agrária de mercado”do Banco Mundial, já deveriam ter se tornadoproletários. Mas não é isso que estáacontecendo. Eles, os camponeses, ao invés dese proletarizarem, estão acreditando napossibilidade de ter a posse da terra e mantero trabalho liberto com garantia de apropriaçãoda renda camponesa, passando a lutar paracontinuar sendo camponeses.

Com base em Martins (1981), Tavaresdos Santos (1984), Sader (1985) e Oliveira(1998), optei por uma outra concepção teóricade compreensão do desenvolvimento docapitalismo no campo brasileiro. Para essesautores, o estudo da agricultura brasileira deveser feito levando-se em conta que o processo

de desenvolvimento do modo capitalista deprodução no território brasileiro é contraditórioe combinado. Isto quer dizer que, ao mesmotempo em que este desenvolvimento avançareproduzindo relações especificamentecapitalistas (resguardando e fortalecendo apropriedade privada da terra através deprogramas como a “reforma agrária de mercado”do Banco Mundial), ele (o capitalismo) produz,ao mesmo tempo (e contraditoriamente) formascamponesas de apropriação da terra (como ouso comum, a prática de ajuda mútua e o usocoletivo com trabalho familiar no campo). NaGeografia Agrária os autores que trabalhamnessa vertente de pensamento estão nocaminho da construção de uma teoria sobre oterritório.

Assim, para Oliveira (1998), a análisesobre as transformações recentes na agriculturabrasileira deve ser feita, no bojo dacompreensão dos processos dedesenvolvimento do modo capitalista deprodução em nível mundial. Essa compreensãopassa necessariamente pelo entendimentodesse desenvolvimento como sendocontraditório e combinado, ou seja, ao mesmotempo em que avança reproduzindo relaçõesespecificamente capitalistas, produz também,igual e contraditoriamente, relações nãocapitalistas de produção e de trabalhonecessárias à sua lógica de desenvolvimento.

Segundo este autor, o estudo doterritório como tema central de investigação naGeografia tem sido fundamentado em autorescomo Lefebvre (1974), Raffestin (1993) eLacoste (1980), entre outros.

Nesse contexto, para Oliveira (1998:p.10),“O território deve ser entendido como síntesecontraditória, unidade dialética, daespacialidade que a sociedade tem edesenvolve. Logo, a construção do territórioé contraditoriamente o desenvolvimentodesigual, simultâneo e combinado. É, pois,desta contradição que nasce a possibilidadehistórica do entendimento das diferentes e

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 163

desiguais formações territoriais e das regiõescomo territorialidades concretas, totalidadeshistóricas, portanto da espacializaçãocontraditória do capital e suas articulaçõescom a propriedade fundiária, ou seja, a terra.O território é, assim, produto concreto da lutade classes travada pela sociedade noprocesso de produção de sua existência.Sociedade capitalista que está assentada emtrês classes sociais fundamentais:proletários, burguesia e proprietários deterra”.

Assim, a formação territorial capitalistano campo brasileiro está marcada pelaindustrialização da agricultura, ou seja, pelodesenvolvimento da agricultura capitalista queacontece no processo de territorialização docapital. Porém, esse processo estácontraditoriamente marcado, também, peloprocesso de expansão da agriculturacamponesa.

Portanto, para Fernandes (1996),Feliciano (2003), Paulino (2003), Bombardi(2004) e Oliveira (2005), entre outros, a terracamponesa corresponde a uma fração doterritório capitalista apropriada peloscamponeses. E os assentamentos rurais sãofrações do território capitalista que vão para asmãos dos camponeses e tornam-se um trunfona luta pela terra e pela reforma agrária.

Foi através dessa lógica contraditóriaque procurei entender a política deassentamentos rurais implementada com a“reforma agrária de mercado” do Banco Mundialno campo cearense. Essa compreensão revelouum conjunto de características de importânciafundamental para a análise da questão agráriano Ceará. Entre elas podem ser destacadas:

III.I- A produção não-capitalista do capital.

Para Martins (1981), o capitalismo, nasua expansão, não só redefine antigas relações,subordinando-as à reprodução do capital, mas,também, engendra relações não-capitalistasigual e contraditoriamente necessárias a essareprodução. Nesse processo, a reprodução de

formas sociais subordinadas aparece como umainerência do desenvolvimento do capitalismo nasociedade.

No Ceará, esse processo contraditóriode desenvolvimento do capitalismo no campoocorre através de formas articuladas peloscapitalistas e proprietários de terra rentistasque se utilizam de relações que têm por base alógica da dependência pautada na troca defavores para o seu enriquecimento. Então, seutilizam de relações de trabalho familiares paranão ter que investir na contratação de mão-de-obra assalariada, o que representaria umdispêndio de parte do seu capital. Assim,utilizando-se desta relação sem remunerá-la,recebem uma parte do fruto do trabalho decamponeses parceiros, pequenos rendeiros eposseiros, convertendo-a em mercadoria, e, aovendê-la, convertem-na em dinheiro. Dessaforma, realizam a metamorfose da renda daterra em capital.

Nos relatos dos camponeses sobre o quefaziam antes de participarem dosassentamentos (suas origens), são citadasdiferentes formas de sujeição do trabalhocamponês ao capital personificado na figura dopatrão. Dentre essas formas, a sujeição darenda da terra em trabalho.

“Eu mesmo trabalhava com a renda aqui nafazenda. Quando a gente começou a trabalharaqui, a gente não tinha como ganhar nada.Aí a gente falou com o proprietário. E ele disseque o terreno dele não poderia ser utilizadopara plantar porque ele criava muito e queriaforragem. Mas arrendava as matas para agente tirar a madeira. A gente dando em trocao roçado feito, queimado no tronco, para elesemear a forragem para os bichos dele. Nósdando a terra preparada para ele plantar,fazer forragem. Então, a gente pegou adesmatação de 1993 até 1997. Nesseperíodo, estivemos trabalhando aqui, para oproprietário. A gente tinha direito só à lenha;madeira-de-obra [tronco da carnaúba] ele nãodeixava tirar, e não era toda madeira que eledeixava cortar. Trabalhamos aqui por,praticamente quatro anos. Com cinco anos

164 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

foi que ele cortou o serviço dizendo que queriavender a terra. A gente não morava aqui, sótrabalhava como rendeiro. A gente estavaganhando só o sustento mesmo e dandooutra parte, que era a terra preparada” (sr.Antônio, 27a. Santa Rita, 2002).

No caso, o pagamento da renda da terraocorreu quando o rendeiro - produtor direto,com os instrumentos de trabalho que lhepertencem de fato -, durante alguns anos,cultivou as terras do proprietário, recebendo emtroca apenas o direito de retirar madeira dessasterras para si próprio. Dessa forma, o camponêsrendeiro deu gratuitamente anos de lida aopatrão, entregando-lhe o terreno preparado.Essa terra trabalhada metamorfoseou-se emrenda em trabalho.

Para Martins (1981), Tavares dos Santos(1984) e Oliveira (1986), entre outros, esteprocesso nada mais é do que o processo deprodução do capital, que se faz através derelações não-capitalistas.

Noutro depoimento, a família camponesaexplicou o cativeiro, a sujeição e a exploraçãodo trabalho camponês a partir da relaçãodesigual entre patrão e morador.

“Porque a gente era obrigado a dar três diaspor semana ao patrão e, ainda, repartia olegume. O dia que a gente não ia trabalhar,ele achava ruim. Ameaçava de botar para fora,botava os animais para comer o legume dagente. A gente não tinha direito nem àforragem, nem a nada.

Esse [patrão], ainda, era um dos patrões bomque, ainda, dava uma rés para você tirar oleite e dava a forragem para você tirar docapim dele. Certo que você estava tratandodo gado dele, mas estava se lucrando doleite. Ele não era muito ruim, não. Mas, tinhaoutros mais cativeiro, que castigava mesmo.Você tinha que dar os três dias, se você nãodesse era expulso do imóvel. Ia embora paraoutra fazenda” (sr. Antônio, 72a. Juá, 2002).

No depoimento aparece a construção da

consciência e da crítica invertida, ora o patrão ébom, ora é ruim. O cativeiro aparece como ocerceamento da liberdade do trabalhador. Acondição de ser cativo é o oposto daquela deser livre, é estar subordinado, numa situaçãode exploração. Assim, o trabalho no cativeirosempre implica numa subordinação, umaexploração que se define numa situação decativeiro.

Portanto, o capital não expande de formaabsoluta o trabalho assalariado, destruindo, deforma total e absoluta, o trabalho familiar. Aocontrário, ele (o capital) cria, recria o trabalhofamiliar camponês para que a produção docapital seja possível, e com ela a acumulaçãopossa acontecer (Oliveira, 1998).

O desenvolvimento do capitalismo nocampo cearense vai se dandocontraditoriamente via acumulação do capitalentre os capitalistas e proprietários de terrarentistas e a conquista de frações do territóriocapitalista pelos camponeses assentados.

III.II- A reprodução das relações de produçãoe de trabalho camponesas.

Segundo Oliveira (1998), uma dascaracterísticas fundamentais da estruturafundiária brasileira é a reprodução de relaçõesnão-capitalistas de produção, principalmente acamponesa. O avanço do processo dearticulação entre indústria e agricultura ocorre,segundo o pensamento de diversos autores,devido a um movimento totalmente comandadopela indústria. Não se pode negar uma fortearticulação entre a indústria e a agricultura,assim como a expansão do trabalho assalariadono campo. Mas não ocorre o domínio absolutodo modo industrial de produzir no campo. Éfundamental explicar que o capital nãotransforma, de uma só vez, todas as formas deprodução em produção ditada pelo lucrocapitalista. O desenvolvimento do capitalismose faz de forma desigual e contraditória.

Com relação ao Ceará, o que a realidaderevela é que há um maior investimento de capital

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 165

na agricultura voltada para a exportação, masnem de longe esse tipo de agricultura é odominante no campo cearense. A grande maioriados estabelecimentos rurais no Ceará écamponesa (93%). E a luta camponesa pelaterra tem garantido a conquista de novosassentamentos rurais. Isso revela, portanto,que uma grande parte do campesinatoexpropriado recusa a proletarização e procuraabrir, na posse da terra reconquistada, o espaçopara a continuidade do trabalho camponês,familiar.

Dentre as formas de relações deprodução e trabalho camponesas encontradasnos assentamentos pesquisados, destaco:

O uso comum da terra nosassentamentos é uma modalidade de uso queocorre a partir das pastagens comunais em“terras soltas” no sertão. Essa prática tem sidoregra vigente no cotidiano do sertanejo desdeo início do processo de colonização através dapecuária. Desse modo, o uso comum de “terrassoltas” é uma prática secular na reprodução docampesinato sertanejo, como pode ser visto nodepoimento da família camponesa que se segue.

Sr. Antônio: - “Essa coisa de ‘terra solta’ éuma coisa antiga, do começo do mundo”.

Da. Maria: - “No começo do mundo, quandoDeus, Nosso Senhor, criou o mundo, ele nãodeixou terra para ninguém. Ele não reservouterra para ‘seu ninguém’, ele não partiu terrapara ninguém, era tudo ‘solto’”.

Francisco: - “Antigamente, os fazendeirotinham muita ‘terra solta’. Uns não cercavatudo, porque eles não tinham capacidade decercar. Outros era porque cercavam uma partee deixava outra parte de ‘terras solta’ paratodos os animais ter direito de pastar alidentro. De andar. Quer dizer, nós éramos doisfazendeiros, os seus animais iam lá na minhapropriedade e os meus animais iam lá na suapropriedade. Quer dizer, aquela área de terraali era ‘solta’ para todos os viventessobreviver dali. Por acaso aquelas pessoasque não tinham terra, que eram moradores,

mas criavam os bichinhos deles, todos osanimais deles tinham direito de ir lá, naquela‘terra solta’ e comer. Buscar o alimento delelá. Comer o mato e tudo, porque já não iampoder entrar lá, naquela outra área que tinhacercado [a ‘manga’]. Lá era só para animaisde engorda, ou o meu gado leiteiro, que tododia eu tinha que está com ele no curral. Euentendo que era assim...Hoje tem muita ‘terrasolta’, muita. Aqui para baixo tem milhões dehectares ‘solta’, nada cercado. Todo animalentra aqui, sai adonde quer e, os de lá, vemde lá e, sai adonde quer. Isso é adonde,aqueles (os pequenos) que são moradores,que criam um rebanhozinho de ovelha, outrocriam quatro vacas, outro cria seu cavalo, criaseu burro e não tem como criar só preso, vãoter adonde criar. E aqueles animais dosmoradores vão comer em várias fazendasjunto com os dos proprietários.

Essas ‘terras soltas’, umas são depatrão, outros é de morador que tem uma‘galhinha’ de terra estreitinha. É assim... Porquese todos os ricos cercassem todas suas terrasmuitas pessoas pobres não iam sobreviver,porque não tinha onde os animais deles fossembuscar o comer. Porque todas as áreas de terraestavam cercadas e se eu quisesse criar o meu,tinha que ser preso e teria que saber conversarcom o patrão para que ele deixasse eu tirarcomida lá de dentro da ‘manga’ dele, cercada,para botar para o meu animal, ou então, eleaceitasse eu botar meu animal dentro da‘manga’ dele, cercada” (família camponesa, Juá,2003).

Os depoimentos revelaramparticularidades do cotidiano da famíliacamponesa sobre o uso da terra através daspastagens comunais em “terras soltas” nosertão. Os detalhes caminham parainterpretações que se complementam entre areligiosidade e a consciência social construídana luta pela terra. Na interpretação mística, as“terras soltas” são dádivas sagradas, docomeço do mundo; na interpretação crítica, as“terras soltas” são resultantes de acordosfeitos entre fazendeiros, entre esses e os

166 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

moradores e, ainda, entre esses e os pequenosprodutores. Tais acordos estão fundamentadosnos códigos do direito costumeiro presente nosertão que, também, são frutos das relaçõesque os grupos sociais estabelecem entre si ecom a terra. A terra é concebida como terra detrabalho, na qual pastagens e aguadas sãoindispensáveis para a subsistência familiar eanimal.

A pastagem comum nas “terras soltas”,no sertão, apresentou continuidade, mesmodiante do processo de cercamento das terras,sendo algo usufruído pelos pequenosprodutores, moradores, assentados e grandesfazendeiros.

O uso coletivo da terra é uma forma deuso da terra que ocorre com base no trabalhofamiliar realizado por um conjunto decamponeses que se unem para melhordesenvolver uma dada produção agrícola ouanimal com a esperança de uma maiorapropriação da renda camponesa. Écaracterística desta modalidade de uso da terraa divisão das riquezas produzidas de acordo coma quantidade de trabalho individual (familiar)doada ao grupo.

Na explicação dos camponeses deCanindé sobre o trabalho coletivo noassentamento, ele foi considerado umaatividade construída na luta pela terra, comose pode notar no depoimento que se segue.

“Sempre quando vai trabalhar, tem uns maisroceiros e tem os escorões. Porque é oseguinte: eu sou um analfabeto, porque eunão tenho leitura, mas eu procuro umpouquinho entender as coisa, porque todomundo tem que entender as coisa. Já tem umcabra que pega um boi lá dentro do mato. E,eu não pego. Mas, eu já faço uma coisa queaquele cabra que pega o boi lá dentro domato não faz. Tem um que se desempenhabem, se desenvolve bem, trabalha mais. E játem um que trabalha mais fraco, mas aconteceque eu na enxada, limpando mato, capinandodesenvolvo bem, aquele num desenvolve.Mas, ele já desenvolve outro trabalho que eu

não desenvolvo. A gente tem que entenderas coisas, porque Deus num deixou todomundo igual” (Sr. Francisco, 38a. Juá, 2002).

O que os camponeses estão fazendo ébuscar a união, a cooperação e o respeito àliberdade e aos limites individuais sem esquecerde valorizar as habilidades em meio aosinteresses comuns. Essa é uma base daprodução coletiva no sentido da religiosidadesertaneja. Embora haja, no momento daprodução, “o respeito pelo que cada um sabedesenvolver melhor”, a distribuição da riquezaproduzida não é apropriada de forma igualitária,e, aí, será computada a quantidade de trabalhode cada um. Essa forma de produção é umaprodução coletiva, com forte influência docatolicismo sertanejo presente nos sertões doNordeste.

Em Acaraú, os camponesesapresentaram a opção pelo trabalho coletivo apartir das atividades produtivas. A explicaçãodada reside na preocupação com a continuidadeda unidade de consumo e produção camponesa,na busca da união, da liberdade, da confiança eda responsabilidade em conjunto pelosinteresses de todos.

“O serviço aqui tem muita mão-de-obra.Quando não tem serviço coletivo, elestrabalham só para si. Cada associado tem suaplanta individual, e tem a área coletiva que éda associação. Então, durante a semana setira dois ou três dias, dependendo do serviço,para o trabalho coletivo. Eles podem botartrabalhador no lugar se quiser, contanto queele fique em dias com os serviços dele com agente. Se ele não colocar ninguém e nem viertrabalhar para associação, ele fica devendo.Depois ele pode pagar trabalhando em diasou em dinheiro (uma diária r$ 5,00). Nãoimporta se ele quer trabalhar fora. Oimportante é poder contar com o serviço dele(podendo ser ele próprio ou um trabalhadorcontratado por ele). Todo mundo junto paratirar o sustento da associação, o sustentopara ela não diminuir “(d. Helena, 32a. SãoFelipe, 2003).

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 167

No caso relatado no depoimento, aparticipação no grupo e a distribuição dasriquezas produzidas são definidas pelaquantidade de trabalho de cada um. Não há aliberdade de ficar sem dar o trabalho. Se alguémnão o puder em um dia, precisa ser substituídoou ficar devendo o trabalho. Essa é mais umaparticularidade do coletivo. Na realidade, essaé uma forma de produção complexa que ocorreem conjunto com outras formas de trabalho naterra, e seu entendimento revela pistas para acompreensão dos desafios assumidos peloscamponeses nos dias atuais.

A prática de ajuda mútua é uma formade cooperação que ocorre entre os camponesesdos assentamentos como uma prática antigadas famílias. A troca de dias de serviço entre osdonos dos roçados tem a finalidade de executar,rapidamente, uma tarefa do ciclo agrícola: umafamília solicita a ajuda dos vizinhos, que, juntos,realizam o trabalho. A fabricação de farinha demandioca é um exemplo disso. Várias pessoassão convocadas para ajudar na arranca e nopreparo da mandioca e na fabricação da farinha.

Na produção da farinha de mandioca háuma divisão de trabalho onde se reúnem vizinhose parentes. É comum a presença de adultos nodesenvolvimento das atividades, mas tambémvelhos e crianças participam da farinhada. Entreo plantio e a colheita decorre, em média, de seisa doze meses. As famílias camponesas sepreparam para a produção da farinha,negociando com o grupo os dias de trabalhoque serão trocados, pois, se iniciado o preparodo produto, não há como parar sua fabricação.Daí ser “regra” de todos o fato de “se o dia édo coletivo e o agricultor está na farinhada, elefica para dá o dia dele depois” (Sr. Genu, 57a.Cauassu, 2003).

Todo esse trabalho realizado entrevizinhos que, também, são parentes, épermeado pela descontração nas conversas. Aretribuição ocorre entre as famílias, que recebeue aquela que ajudou, seguindo o critério da trocade dias de serviço.

Tal qual acontece com os camponeses no

Sul do país, estudados por Tavares dos Santos(1984), a prática de ajuda mútua que ocorrenos assentamentos estudados no Ceará cobreuma necessidade de força de trabalho que ocamponês não pode suprir somente com otrabalho familiar, e, muito menos, com oassalariado. Dessa forma, a prática de ajudamútua tem sido fundamental para a reproduçãoda unidade familiar, ocorrendo freqüentementenos assentamentos devido à alternância no cicloda mandioca entre as famílias.

O trabalho individual (familiar) da terraocorre motivado pela produção, a apropriaçãoe a vida familiar. Nos assentamentos estudados,a unidade de consumo e produção camponesase projeta no trabalho familiar. Um trabalho que,também, é de todos e no qual os membros dafamília possuem uma importância ímpar, comorevela o depoimento que se segue.

“Trabalha só eu e os meus dois filhos. Mas,dá para gente dar de conta, porque o animalajuda a gente a cultivar e fica mais fácil. Pelomenos um animal faz o serviço de dez homensem um dia. Aí, fica só uns matinhos no campolivre e a gente dá conta” (Sr. Antônio, 72a.Juá, 2002).

Esse relato aponta para a compreensãode um uso individual na terra alimentado pelotrabalho familiar. O chefe da família, juntamentecom os filhos, aparece como a força de trabalhoque mantém a unidade de consumo e produçãocamponesa. As mulheres não aparecem comomão-de-obra familiar. Mas, de fato, o espaço deuso individual (familiar) da terra é assumido portoda a família. Daí, o individual ser familiar.

Noutro depoimento, a explicaçãocamponesa sobre a organização da produção eo uso da terra no assentamento mostrou o usoindividual (familiar) da terra, sinalizando para aimportância do trabalho individual (familiar) emconsórcio com o trabalho coletivo, ocorrendo naunidade de consumo e produção camponesa.

“A divisão básica para o uso da terra são asáreas coletivas: coqueiro irrigado, coqueiro

168 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

de sequeiro, também, tem área de cajueiro emangueira irrigados. De certo para o individualtem a vazante. A vazante se divide empequenas porções de áreas individuais. Ealém da vazante tem, para uso individual, aárea entre os coqueiros sequeiro e irrigado equando não pode mais, a gente abandona eparte para outro canto, parte para área demata. Porque no coqueiro, a gente só plantapara zelar do coqueiro, quando chega ali comdois ou três anos, ele já não dá mais paraplantar mandioca, milho e feijão. Porque elecresce e faz sombra. Na área irrigada com trêsanos eles [os coqueiros] já não dá paraplantar mais. Na área de sequeiro ele, ainda,dá alguns anos, dá para plantar até de oito adez anos, não em todos os trechos mas namaioria. Nosso coqueiro irrigado é oito e meiopor oito e meio - triangular, em média de 132plantas por hectares, aí ele fecha ligeirodemais. Quando está com dois anos, ele jáestá vingando coco. Nós temos área aí que,com dois anos, já abandonamos. Já não dámais para plantar mandioca, milho e feijão[individual (familiar)]. Fica cuidando só doscoqueiros [coletivo], é uma pena ninguémpoder plantar, porque aí de qualquer maneiraa gente tem que cuidar dos coqueirossempre. Cuida perdido, porque não podeplantar consorciado. Quando a gente plantadentro do coqueiro, a gente estáaproveitando, limpando o coqueiro eaproveitando a mandioca, o milho e o feijão -consorciado. Mas, quando o coqueiro cresce,aí a gente não pode mais consorciar plantanenhuma, só ele mesmo. Tanto eles [oscoqueiros] como as mangueiras, como oscajueiros quando cresce não dá mais paraconsorciar” (sr. Vavai, 48a. Cauassu, 2003).

O camponês chama atenção para o usoindividual (familiar) que ocorre nas áreas devazante e nas “tiras dos coqueirais”, onde asplantas de uso doméstico são cultivadas noespaço deixado entre um coqueiro e outro. Éuma parceria possível por um tempodeterminado pelo crescimento dos coqueiros.

Nesse caso, o espaço de uso coletivo doscoqueirais tem permitido, a partir da ocorrênciadas “tiras”, o uso individual (familiar). Há,portanto, a combinação de lógicas deapropriação diferenciadas. Um acordo que sefortalece sob a égide da moral camponesa.

Essas diferentes formas de produçãopresentes, simultaneamente, no sertão doCeará são estratégias de trabalho na terra quese constituem em importantes instrumentos deluta pela terra e alternativas para ocampesinato sertanejo, sobretudo para oscamponeses assentados e sem terra, que, compouco ou sem nenhum recurso, têm enfrentadosérias dificuldades para garantir as condiçõesmínimas de sua reprodução.

III.IV- O caráter rentista da terra.

Conforme Martins (1981) e Oliveira(2001), no Brasil o desenvolvimento do modocapitalista de produção se faz, principalmente,pela fusão, em uma mesma pessoa, docapitalista e do proprietário de terra. Esteprocesso, que teve sua origem na escravidão,vem sendo cada vez mais consolidado desde apassagem do trabalho escravo para o trabalholivre, particularmente com a Lei de Terras de1850.

Ao longo da história do país, a legislaçãofundiária fortaleceu a contradição representadapela propriedade privada da terra retida parafins não-produtivos. Assim, grandes extensõesde terras estão concentradas nas mãos deinúmeros grupos econômicos porque, no Brasil,estas funcionam ora como reserva de valor, oracomo reserva patrimonial. Ou seja, comoinstrumento de garantia para o acesso aosistema de financiamentos bancários, ou aosistema de políticas de incentivosgovernamentais. Assim, estamos diante de umaestrutura fundiária violentamente concentradae, também, diante de um desenvolvimentocapitalista que gera um enorme conjunto demiseráveis (Oliveira, 2001).

Para o autor, a forma como foi construída

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 169

a concepção de propriedade privada da terra,fez da mesma um elemento fundante daconcentração fundiária e da geração de pobrezano campo brasileiro. A terra mantida nas mãosda elite econômica atua como reserva de valore/ou reserva patrimonial e tem a função degerar renda capitalizada para os capitalistas eproprietários de terras rentistas.

No Ceará, o burburinho que a “reformaagrária de mercado” causou entre osproprietários das terras rentistas dinamizou omercado de terras nos municípios beneficiados,como se pode observar nos depoimentos dosex-proprietários das terras vendidas.

Ao questionar sobre o porquê da vendada fazenda Almécegas em Acaraú, o proprietáriorentista revelou o que fez com o dinheiro e,ainda, a exploração do trabalho camponês feitana terra mantida como reserva de valor, comomostra o relato que se segue.“Foi vendida, pela parte financeira, deficiênciafinanceira foi uma das causas. E, também,para ajudar os próprios moradores queestavam na terra, que já eram antigos, ointuito maior foi esse. Hoje eles são donos, éoutra história. O intuito maior foi esse. Mas,deu também para melhorar a loja. É, com avenda lá, implementou mais um pouco. Deupara pagar umas contas que já estavam ematraso e ampliar o comércio” (Sr. João, 47a.Acaraú / CE, 2002).

Nesse caso, o proprietário rentistarevelou como se dá o processo de exploraçãoda renda da terra. A terra mantida como reservade valor é instrumento de exploração dotrabalho camponês. Em seu discurso, que tevepor base a lógica do contrário, ou seja, “vendipara ajudar o pobre camponês e não pelaquestão financeira”, o proprietário mostroucomo tem se estabelecido a produção do capitalvia mercado de terras.

Em outra entrevista, o proprietário dafazenda Curral Velho esclareceu a lógica daespeculação imobiliária que tem se estabelecidono campo.

“Vendi porque eu vivo nesse ramo de vida. Écomprar e vender qualquer coisa. Que sejagado, que seja terreno, que seja carro. Então,eu já comprei vários terrenos, e continuovendendo quando dá certo vender. Essafazenda eu comprei por cinqüenta mil reais etrinta e cinco réis (cabeças de gado), compouco tempo achei oitenta e cinco mil reais.Agora mesmo eu estou com 16 fazenda (16terrenos), tudo aqui em Acaraú, É, CurralVelho, Cauassu, Carrapicho, Ilha do Rato,tudo por aqui” (Sr. Edgar da Silveira, 62a,Acaraú/CE, 2002).

Nesse caso, o proprietário de terra é,ao mesmo tempo, o rentista e o agenteimobiliário, preparado para vender e comprar amercadoria – terra especulada, mantida comoreserva de valor.

Outro proprietário rentista mostroucomo a renda capitalizada tem saído do campopara ser investida da cidade.

“A terra era herança e há cinco anos venhotentando investir na criação de gado. Fiz umempréstimo no banco, mas não conseguipagar. Por isso, vendi a terra. Com o dinheiroda venda da terra, melhorei o comércio(mercadinho) e ampliei o número de cabeçasde gado numa outra fazenda” (Sr. Glaúcio,37a, Canindé/CE, 2002).

Em todos os casos, proprietáriosrentistas falidos puderam, com a venda de suasterras, fazer novos investimentos na cidade e/ou no campo, ou seja, a produção do capital nocampo cearense continua acontecendo combase na renda capitalizada da terra. O queconfirma, portanto, o caráter rentista que tema terra no Brasil.

É este, portanto, o papel que a terraassume como equivalente de mercadoria, umpapel marcado pela lógica do lucro e pelo nãouso da terra para fins produtivos. E isso temcaracterizado a estrutura fundiária brasileira.

O desenvolvimento do capitalismo nocampo cearense tem imposto uma novareordenação no território. No contexto das

170 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

políticas públicas, a ação do Estado aponta paraum reordenamento territorial. A constituição doEstado como um pólo de atração de indústriase um importante pólo turístico permitiu aformação ou o revigoramento de áreas comprodução de culturas voltadas para o mercadoexterno, via de regra financiadas com incentivosfiscais oriundos de políticas de governo. OEstado tem atuado no sentido de estimular ossetores competitivos, procurando reparar odescaso com os pobres do campo com políticascompensatórias como a “reforma agrária demercado”.

Entre as políticas fundiárias, caberessaltar as voltadas para a articulação entre oagronegócio e a agricultura irrigada. O Programade integração das bacias hidrográficas e oPrograma Cearense de Agricultura Irrigada(Proceagri) configuram-se como programas deinstalação de seis complexos agroindustriais(Baixo e médio Jaguaribe, Cariri, Ibiapaba, BaixoAcaraú e Região Metropolitana) voltados paraa expansão da agricultura irrigada em áreasconsideradas, conforme Elias (2002), com maiorpotencial hidroagrícola e mais dotadas desistemas de objetos adequados à expansão dosetor. Dessas políticas derivam os processos dedesmatamento de matas nativas e deexpropriação de terras camponesas eindígenas.

A ação do Estado, através de incentivosfiscais para o turismo e a carcinicultura no litoral,a indústria na Região Metropolitana de Fortalezae a agricultura irrigada voltada para exportaçãonos complexos agroindustriais, contribuem paraalterar, significativamente, o uso do solo noEstado. Essas transformações estão na basedos processos de luta pela terra,desencandeados no campo. Os conflitos sociaisestão se intensificando nos últimos anos e aluta pela reforma agrária tem se ampliadochegando à Fortaleza e conquistando espaçosnos órgão públicos em especial o INCRA-CE.

Para Oliveira (1998), as transformaçõesprofundas por que tem passado o campobrasileiro nas últimas décadas têm gerado um

aumento significativo dos movimentos sociaisrurais, em luta pela terra ou melhores condiçõesde trabalho.

No Ceará, conforme Barreira (1992), aação dos movimentos sociais no campo tevetradicionalmente, um único objetivo: a luta pordireitos. O agravamento das condições de vidano campo trouxe para o interior da lutacamponesa a possibilidade da organizaçãosocial baseada na consciência política e na buscade melhores condições de vida no campo.

A luta pela terra no Ceará tem tido comoprincipais mediadores a Igreja Católica, atravésdas CEB’s e a CPT, o MST e os STR’s. Emboracom inserções diferenciadas na luta pela reformaagrária, esses movimentos sociais eorganizações de representação doscamponeses estão ampliando as condições paraque os camponeses se organizem na luta contraas injustiças sociais, pela autonomia notrabalho, por direitos pela terra e pela reformaagrária. Conforme a CPT (2004), as ações deluta realizadas para o período de 1993 a 2004vieram fortalecer a luta pela terra e ampliar aformação de novos assentamentos rurais noestado.

Para o Instituto de Planejamento doEstado do Ceará (1998), o que se realizou emtermos de reforma agrária no Ceará deveu-se,sobretudo, ao processo de luta e conquista daterra pelos camponeses, apoiados pelasentidades sindicais, pela CPT e pelo MST.

Os assentamentos estão produzindo umnovo perfil produtivo nos municípios, naorganização da produção e da família, nascondições de vida e na participação políticalocal.

Assim, não há como negar a importânciados movimentos sociais, em especial o MST9, naorganização e na luta pela terra no campo,constituindo-se em um novo momento da lutapolítica dos camponeses cearenses pela reformaagrária.

A resposta oficial à crescente mobilizaçãodos camponeses no Ceará veio com a

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 171

implementação da “reforma agrária de mercado”do Banco Mundial, visando a desarticulação daluta pela terra e pela reforma agráriaorganizada pelos camponeses e os movimentossociais. Nesse contexto, a ação política doscamponeses foi uma vez mais, parcialmente,reprimida.

Dessa forma, a participação doscamponeses na sociedade moderna passa porações de luta pela terra e pela reforma agrária,e essa característica precisa ser mantida paraque haja a reprodução dos camponeses comoclasse social.

IV- A “reforma agrária de mercado” do BancoMundial como uma política de contra-reformaagrária.

A “reforma agrária de mercado” foiapresentada como política de reforma agrária.Sendo que essa política de compra e venda deterras no mercado se desdobra em apropriação,por parte dos proprietários de terra rentistas,da renda capitalizada da terra e emexpropriação dos camponeses da rendacamponesa a partir do endividamento financeiro.

Com relação ao pagamento da terra, nosassentamentos estudados a maioria dosassentamentos estão inadimplentes ouencontram-se em processo de repactuação dofinanciamento.

Os motivos para a “insuficiência” naprodução de renda para o pagamento dasparcelas são muitos e variados. Falta de crédito,baixa qualidade das terras, variação dos preçosdos produtos agrícolas, carestia no preço pagopela água e pelos fertilizantes, falta de energia,desentendimento entre os assentados e perdada produção, entre outras.

Desse modo, ao fazer a relação entreforma de acesso à terra, reprodução na terra eremuneração da terra comprada, fica notória asituação de incapacidade dos camponeses deconseguir pagar a terra.

Ainda, sobre a questão do pagamento

da terra nos assentamentos do programa decrédito fundiário implementados no Ceará,Alencar (2005), ao entrevistar técnicos deórgãos públicos, dirigentes dos STR’s deCanindé e Quixaramobim e camponeses,revelou que, para a maioria absoluta de seusentrevistados, os camponeses não têm comopagar a terra e, tampouco, como sobreviver daterra. Com cultivos de subsistência não hácondições de viabilizar renda para o pagamentoda terra, como releva o depoimento que segue.

“A história do agricultor é essa planta umpouco de tudo. O que tem plantado ali é milho,feijão, batata-doce e capim para forragem.Mas, plantando milho e feijão não temcondições nem agora nem depois de pagaressa terra. A gente fica porque na agriculturanão se pode perder as esperanças” (sr.Francisco, 72a. Feijão, 2001).

A falta de crédito e assistência técnicatêm inviabilizado, completamente, as atividadesagrícolas voltadas para a comercialização nosassentamentos. Os cultivos que se mantém sãoos produzidos no “inverno”, voltados,praticamente, para o consumo da família, equando esses acabam o que ocorre é apermanência absoluta da pobreza entre muitosdos assentados, como revela o depoimento quese segue.

“Lá no Jordão eles estão de um jeito que atéo carnaubal estão cortando para vender. Tiraa palha, faz a lenha e vende a madeira paraconseguir dinheiro. Eu penso que do jeito queestá lá, eles não têm condições de pagar aterra de jeito nenhum. O que tem lá é só oque o governo patrocinou a fundo perdido,as casas. O problema não é o de plantar milhoe feijão no ‘inverno’. O problema é que quandochega no ‘verão” eles não plantam nada ecada dia que passa está se acabando cadavez mais as plantas que tinham” (Sr. Betim,ex-assentado do Campos do Jordão, 43a.2004).

A situação de pobreza entre oscamponeses se acentua com a falta de trabalhoe alimentos para o consumo familiar, conseqüência

172 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

da condição de limite à qual se encontramexpostos. Porém, mesmo diante das dificuldades,que são decorrentes da inexistência de umapolítica fundiária voltada para os pobres do campo,há a continuidade dos camponeses na terra.

Essa não-desistência deles tem o apoiode movimentos sociais e entidades camponesascomo os STR’s, o MST e a CPT e isso temcontribuído para revelar o fracasso da “reformaagrária de mercado” e impor mudanças noprograma de crédito fundiário junto às instituiçõesfinanceiras, como a moratória nos prazos dasparcelas e necessidade imediata de anulação dopagamento da terra.

No processo de desenvolvimento do modocapitalista de produção no campo cearense, apolítica “reforma agrária de mercado” foi uminstrumento para a expansão de relaçõesespecificamente capitalistas como a compra evenda de terras no mercado. Porém no interiordesse processo desenvolve-se sua negação,manifestada na reprodução do trabalho familiar,que se refaz em meio a um processo deexpropriação camponesa estabelecida a partir daobrigatoriedade do pagamento da terra sob alógica do mercado, diferente, portanto, da comprada terra submetida a lógica da desapropriaçãoprevista no Estatuto da Terra de 1964 e naConstituição Federal de 1988.

Simultaneamente, o Estado procurouenquadrar toda e qualquer regularização deposses, reconhecimento de terrasremanescentes de quilombos, assentamentosextrativistas, assentamentos de reformaagrária, projetos de crédito fundiário eprogramas de inscrição nos correios nosquadros da chamada política de reforma agráriagovernamental. Mas, regularização fundiária,titulação de terras, programa de inscrição noscorreios, programas de compra e venda deterras, não são reforma agrária. A expressão“reforma agrária” remete a uma estruturafundiária existente e a uma relação da sociedadecapitalista com ela. E sua realização está ligadaa um processo de desapropriação de terras porinteresse social.

Os camponeses que resistem a esseprocesso são os antigos moradores de condição,rendeiros, parceiros, posseiros e migrantestemporários, que possuem uma relação com aterra que vai para além da lógica da “eficiência”econômica camponesa; a terra, onde éinstrumento do trabalho familiar, na qual épossível a produção para o consumo familiar ea reprodução de uma moral camponesa. A faltade apoio técnico e financeiro para a continuidadedos camponeses nos assentamentos é umaforma de expulsá-los da terra rumo às cidades.Essa situação de pobreza, exclusão eexpropriação, às quais estão expostos, os igualaa uma massa de migrantes, pobres, excluídos edesterrados, que chamamos de camponeses. Esão esses sujeitos sociais que, segundo Oliveira(2001), vêm reconstruindo com lutas muitasvezes sangrentas, a história que marca a longamarcha do campesinato brasileiro. ConformeSampaio (2004), essa é a base, e é paraatender a essa demanda que deveríamos fazeruma reforma agrária.

Por fim, reafirmo que a política de“reforma agrária de mercado” que o Estadobrasileiro em parceria com o Banco Mundialadotou nos anos entre 1996 e 2004 foi umacontra-reforma agrária . Primeiro, porque,essa política distorceu e reprimiu a reformaagrária realizada pelos camponeses, com oapoio de entidades e movimentos sociaisenvolvidos na luta pela terra e pela reformaagrária. Segundo, pelo fato de que, para nãorealizar a reforma agrária no país, o governodelegou ao mercado a decisão sobre o acessoà terra. E terceiro, por manter o pacto com ael i te agrária, os proprietár ios de terrarentistas foram convidados a vender suasterras a preços de mercado.

Em síntese, no campo, a contrapartidado apoio dado pelo Banco Mundial ao processode desenvolvimento econômico do Brasil noperíodo recente, tem sido a “reforma agráriade mercado”, apresentada e executada comouma verdadeira política de contra-reformaagrária.

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 173

1 CEARÁ. GOVERNO DO ESTADO. Manua l deoperações da Reforma Agrária Solidária -Projeto São José . Fortaleza, 1996.

2 BRASIL . GOVERNO FEDERAL . Manua l deoperações do Projeto p i loto Cédula daTerra. Brasília, DF, 1997.

3 Ver NAVARRO, Zander. O projeto-pi lotoCédula da Terra . Porto Alegre: [s.n.], 1998.

4 “O Fórum Nacional pela Reforma Agrária eJustiça no Campo, criado em 1995, é umaar t i cu lação com cará te r amp lo epluripartidário, reunindo movimentos sociais,ent idades ecumênicas e organizações nãogovernamentais. Seu objetivo é articular asações desenvolvidas pelas várias entidadesque apoiam a realização da reforma agráriano Brasil”. (WOLFF e SAUER, 2001: p.196).

5 BRASIL. Le i Complementar n. 93, de 4 defevereiro de 1998. Institui o Fundo de Terrase da Reforma Agrária – Banco da Terra – edá outras providências. Brasília: DF, 1998.

6 BRASIL . GOVERNO FEDERAL . Manua l deoperações do Programa Banco da Terra.Brasília, DF, 1999.

7BRASIL . GOVERNO FEDERAL. Manua l deoperações do Programa Nacional deCrédito Fundiário. Brasília, DF, 2003.

8 BRASIL. Decreto no. 4.892, de 25 de novembrode 2003. Regulamenta a Lei Complementarn. 93, de 4 de fevereiro de 1998, que criou oFundo de Terras e da Reforma Agrária, e dáoutras providencias. Brasília: DF, 2003.

9 No Ceará , em 2004, dos acampamentosregistrados, todos haviam sido organizadospelo MST. Cadernos Confl i tos no Campo –Brasil. CPT, Goiânia, 2004.

Notas

Bibliografia

ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas docapitalismo agrário em questão. São Paulo– Rio de Janeiro – Campinas: Ed. HUCITEC/ANPOCS/UNICAMP, 1992.

ALENCAR, Francisco Amaro Gomes de. Umageografia das políticas fundiárias no estadodo Ceará. For ta leza, 2005. 297p. Tese(doutorado em Sociologia). Departamento deCiências Sociais e Filosofia, UFC.

BARREIRA, César. Trilhas e atalhos do poder:conflitos sociais no Sertão. Rio de Janeiro:Editora Rio Fundo, 1992. 193p.

BINSWANGER, Hans. A reforma agrár iaassistida pelo mercado: o novo enfoque doBanco Mundial. Trad. José Nelson Bessa

Maia. [s.n.t.] [1996?]. 5p.

BOMBARDI, Larissa Mies. O bairro ReformaAgrária e o processo de territorial izaçãocamponesa. São Paulo: Annablume, 2004.396p.

ELIAS, Denise. Integração competitiva dosemi-árido. In: ELIAS, Denise e SAMPAIO,José Lev i F. (Orgs.) Modern izaçãoexcludente. Fortaleza: Fundação DemócritoRocha, 2002.

FELICIANO, Carlos Alberto. O movimentocamponês rebelde e a geografia da reformaagrária. São Paulo, 2003. 248p. dissertação(Mestrado em Geograf ia Humana) .Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas, USP.

174 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, 2006 OLIVEIRA, A. M.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Movimentodos Trabalhadores Rura is Sem Terra –Formação e territorialização em São Paulo.São Paulo: Hucitec, 1996. 285p.

IPLANCE. D inâmica das áreas deassentamentos de re forma agrár ia noCeará. Fortaleza: Edições IPLANCE, 1998.136p.

LACOSTE, Yves. Unité & diversité du TiersMonde. Maspero, Paris, 1980.

LEFEBVRE, Henri. La production de L’espace.Anthropos, 1974.

MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra.2ª edição, São Paulo: LECH/USP, 1981. 157p.

_________________ . Não há terra paraplantar neste verão (o cerco das terrasind ígenas e das terras de t raba lho norenascimento político do campo). Petrópolis:Vozes, 1986. 172p.

_________________ .Os camponeses e apol ít ica no Brasi l . 5 ª edição, Petrópol is:Vozes, 1995. 230p.

_________________ . O poder do atraso:ensaio de sociologia da história lenta. 2 ª

edição. São Paulo: Hucitec, 1999. 174p.

MARTINS. Mônica Dias (org.). O Banco Mundiale a terra: ofensiva e resistência na AméricaLatina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo,2004. 224p.

MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Reformaagrária no Brasil: história e atualidade daluta pela terra. São Paulo: Ed. FundaçãoPerseu Abramo, 2003. 104p.

MOURA, Margarida Maria. Os herdeiros daterra parentesco e herança numa área rural.São Paulo: Hucitec, 1978. 100p.

NAVARRO, Zander. O projeto – piloto Cédulada Terra – comentário sobre as condiçõessoc ia is e po l í t i co- inst i tuc iona is de seudesenvolvimento recente. Porto Alegre: [s.n.],1998. 30p.

OLIVEIRA, Alexandra Maria de. A contra-

reforma agrár ia do Banco Mundia l e oscamponeses no Ceará. São Paulo, 2005.379p. Tese (Doutorado em Geograf iaHumana). Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas, USP.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Agriculturae indústria no Brasil. In: Boletim Paulista deGeografia. N. 58. AGB – São Paulo. SãoPaulo, 1981. Pp. 05 – 64.

_________________. Renda da Terra. In:Revista Orientação. N.05. IG - USP: SãoPaulo, 1986. p. 94 - 95.

_________________ . Modo capitalista deprodução e agricultura. 3 ª edição. São Paulo:Ática, 1990. 88p.

_________________ . A agr i cu l tu racamponesa no Brasil. São Paulo: Contexto,1991. 164p.

_________________ . As transformaçõesterritoriais recentes no campo brasileiro.São Paulo: [s.n.], 1998. Pp. 1 - 28.

_________________ . A geografia das lutasno campo. São Paulo: Contexto, 1999. 128p.

_________________ .A longa marcha docampesinato brasileiro: movimentos sociais,conflitos e reforma agrária. Revista EstudosAvançados. São Paulo: 15 (43), 2001. Pp.185 – 206.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino e MARQUES,Marta Inez Medeiros Marques (orgs.). Ocampo no século XXI: território de vida, deluta e de construção da justiça social. SãoPaulo: Editora Casa Amarela e Editora Paze Terra, 2004. 372p.

PAULINO, Eliane Tomiasi. Terra é vida: ageograf ia dos camponeses no norte doParaná. Presidente Prudente, 2003. 429p.Tese (doutorado em Geografia). Faculdadede Ciências e Tecnologia, UNESP.

PEREIRA, João Márcio Mendes. Entrevistaconcedida pelo presidente da CONTAG, sr.Manoel José dos Santos. Rio de Janeiro:CPDA – UFRRJ, 2003. 31p.

A política de contra-reforma agrária do Banco Mundial no Ceará, pp. 151 - 175 175

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia doPoder. Ed. Ática, São Paulo, 1993.

REZENDE, Marcelo e MENDONÇA, Maria Luisa.Apresentação. In: MARTINS, Mônica (org.).O Banco Mundia l e a Terra. São Paulo:Viramundo, 2004. Pp. 7-10.

SADER, Regina. Espaço e luta no Bico. SãoPaulo, 1985. Tese (Doutorado em GeografiaHumana). Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas, USP.

SAMPAIO, Plínio de Arruda. A reforma agráriaque nós esperamos do governo Lula. In:OLIVEIRA, Ar iova ldo Umbel ino de eMARQUES, Marta Inez M. (orgs.). O campono século XXI. São Paulo: Paz e Terra e CasaAmarela, 2004. Pp. 329-334.

SAUER, Sérgio. A terra por uma cédula: are forma agrár ia de mercado do BancoMundia l no Bras i l . In: SCHWARTZMAN,Stephan. SAUER, Sérgio e BARROS, Flávia.(orgs.) Os impactos negativos da política dereforma agrár ia de mercado do Banco

Mundial. Brasília: Vangraf, 2003. p. 45 – 102.

SHANIN, Teodor. La c lase incómoda.Sociología política del campesinado en unasociedad en desarrollo. (Rusia 1910 – 1925).Tradução TAPIA, Fernando Andrada. Madrid:Alianza Editorial, 1983. 328p.

SILVA. José Graziano da. Velhos e novosmitos do rural brasi leiro. In: Revista deEstudos Avançados. São Paulo: 15 (43),2001. p. 37 -50.

SCHWARTZMAN, Stephan. SAUER, Sérgio eBARROS, Flávia. (orgs.). Banco Mundial:par t i c ipação, t ransparênc ia eresponsabi l i zação: a exper iênc ia com oPainel de Inspeção. Brasília: Rede Brasil,2001. 221p.

WOLFF, Luciano e SAUER, Sérgio. O Painelde Inspeção e o caso Cédula da Terra. In:SCHWARTZMAN, Stephan. SAUER, Sérgio eBARROS, Flávia. (orgs.). Banco MundialBrasília: Rede Brasil, 2001. p. 159-197.

Trabalho enviado em fevereiro de 2006

Trabalho aceito em maio de 2006

??