A Pousada Da Jamaica

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A POUSADA DA JAMAICA Daphne du Maurier Ttulo original: JAMAICA INN

Esclarecimento A Pousada da Jamaica hoje, hospitaleira e simptica, uma casa em que se no servem bebidas alcolicas, na estrada de trinta e cinco quilmetros entre Bodmin e Launceston. Na histria de aventuras que segue, descrevo-a como pode ter sido h mais de cento e vinte anos, e embora figurem nas pginas nomes de lugares existentes, as personagens e acontecimentos referidos so inteiramente imaginrios. Daphne du Maurier - Bodinnick-by-Fowey, Outubro de 1935. Captulo I Era um dia cinzento e frio de fins de Novembro. O tempo tinha mudado durante a noite, quando o vento do mar arrastou consigo um cu de granito e chuva miudinha; e conquanto agora passassem poucos minutos das du as da tarde, a palidez do crepsculo parecia ter descido sobre as colinas, envolve ndo-as em neblina. Por aquele andar, s quatro seria escuro. O ar era humidamente frio e, apesar das janelas bem fechadas, penetrava na carruagem. O couro dos ban cos achava-se pegagoso da humidade, e devia haver uma minscula frincha no tecto, porque, de vez em quando, infiltravam-se pequenas gotas de chuva que alastravam nos estofos e produziam uma marca azul-escura, como uma mancha de tinta. O vento soprava em rajadas fortes que chegavam a sacudir a carruagem, quando percorria uma curva da estrada, e, nos locais expostos das terras elevadas, fazia-o com tanta intensidade que o veculo estremecia e oscilava, balouando nas rodas altas como um homem embriagado. O cocheiro, envolto numa capa at s orelhas, quase se dobrava no banco, numa leve t entativa para se proteger dos seus prprios ombros, enquanto os desalentados caval os avanavam resignadamente s ordens dele, demasiado abalados pelo vento chuva para se aperceberem do chicote que estalava ocasionalmente sobre as suas cabeas, bran dido pelos dedos entorpecidos do cocheiro. As rodas da carruagem rangiam e gemiam, ao mesmo tempo que se afundavam nos sulc os da estrada, e, por vezes, faziam a lama salpicar as janelas, onde se misturav a com a chuva persistente, pelo que qualquer vista da paisagem era inevitavelmen te obscurecida. Os poucos passageiros encolhiam-se prximos uns dos outros, em busca de algum calo r, e soltavam exclamaes em unssono quando a carruagem enveredava por um sulco mais profundo. Um indivduo idoso, que no parava de protestar desde que embarcara em Tur o, ergueu-se, enfurecido, para soltar o fecho da janela e baixar esta ruidosamen te, permitindo a entrada da chuva, que o alagou e aos companheiros de viagem. Em seguida, mergulhou a cabea na abertura e gritou ao cocheiro, para lhe chamar pat ife e assassino e profetizar que estariam todos mortos antes de chegarem a Bodmi n, se persistisse em manter a velocidade alucinada, pois j no lhes restava o menor alento nos corpos e nenhum poder do mundo o obrigaria a aventurar-se de novo em semelhante meio transporte. difcil de dizer se o alvo dos improp rios ouviu ou no. Na realidade, parecia mais p rov vel que a torrente de acusaes e ameaas tivesse sido levada pelo vento, porque o passageiro, depois de aguardar um momento, tornou a fazer subir janela, aps arre fecer intensamente o interior da carruagem, para voltar a instalar-se no seu can

to, aconchegar a manta e torno dos joelhos e passar a resmungar para a sua barba . A mulher de rosto rubicundo jovial e capa azul sentada a seu lado emitiu um pesa do suspiro de compreenso e, com um piscar de olho a quem estivesse a observ-la e u ma inclinao de cabea na direco do velho, referiu, pelo menos pela vig sima vez, que se tratava da noite mais tenebrosa de que se recordava em toda a sua vida, apesar d e ter conhecido muitas, e chegara de facto o mau tempo, agora impossvel de confun dir com o Vero, e, mergulhando a mo num volumoso cesto, retirou-a com uma grande f atia de bolo, que no perdeu tempo em introduzir entre os dentes brancos e aparent emente vidos de trincar alguma coisa. Mary Yellan sentava-se no canto oposto, onde deslizava a gua da chuva que penet rava pela frincha do tecto. s vezes, uma ou outra gota tombava-lhe no ombro e ela apressava-se a sacudi-la com dedos impacientes. Conservava o queixo apoiado nas mos, com os olhos fixos na janela salpicada de la ma e chuva, esperanada, com uma esp cie de interesse desesperado, em que um raio de luz perfurasse o espesso cobertor do cu e ao menos uma sugesto momentnea do perdid o firmamento azul que pairara em Helford na v spera brotasse por um instante, como um precursor de boa sorte. Embora estivesse apenas a sessenta quilmetros por estrada daquilo que constitura o seu lar durante vinte e trs anos, a esperana existente no seu corao j quase se extin guira, e coragem indmita, que habitava nela em doses apreci veis e lhe permitira manter-se com firmeza durante a longa agonia da doena e morte da me, achava-se aba lada pelas primeiras chuvadas e vento enervante. A regio era-lhe estranha, o que representava uma contrariedade de monta. Ao espreitar pela janela embaciada da carruagem, contemplava um mundo diferente do que conhecera a apenas um dia de viagem. Quo remotas e ocultas, porventura para sempre, eram agora as guas brilhantes do Helford, as colinas e vales declivosos verdejantes, o branco aglomerado das casas ribeirinhas. A chuva que caa em Helford era suave, uma chuva que gotejava das numerosas rvores e se perdia na vegetao luxuriante, acumulava em regatos que desaguavam no amplo rio e se afundavam no solo agradecido, o qual, como contrapartida, retribua com flores. Esta, porm, era uma chuva persistente, impiedosa, que fustigava as janelas da carruagem e empapava um terreno duro e est ril. Aqui, no havia rvores, salvo uma ou duas que estendiam ramos desnudos aos quatro ventos, curvados e torcidos por s culos de tempestades, e tinham sido to enegrecidos pelo tempo e fria dos elementos, que, mesmo que a Primavera visitasse o local, nenhum rebento ousaria aflorar, com receio de que a geada o matasse. Era uma terra mirrada, sem arbustos nem ramos; uma regio de pedras, urze negra e giestas atrofiadas. Nunca haveria uma estao do ano benigna em semelhantes paragens, na opinio de Mary - apenas Inverno rigoroso, como naquele dia, ou o calor seco e abrasador dos pncaros do Vero, sem a existncia de um vale para proporcionar sombra ou refgio, somente relva que adquiria um aspecto amarelo-acastanhado antes de Maio chegar ao fim. A regio tornara-se cinzenta com a intemp rie. As prprias pessoas na estrada nas povoaes mudav am de harmonia com o ambiente circundante. Em Helston, onde ela embarcara na pri meira carruagem e pisara solo familiar, pairavam incont veis recordaes da infncia: as deslocaes semanais ao mercado com o pai, nos dias extintos do passado, e, quand o ele lhes fora arrancado do convvio, a perseverana com que a me se manteve firme n a sua misso, para se entregar a uma az fama constante, Inverno e Vero, como o mari do fizera, com as suas galinhas, ovos manteiga na retaguarda da carroa, enquanto Mary se sentava a seu lado, apertando nos braos um cesto quase do seu tamanho, co m a cabea pousada na pega. Os habitantes de Helston eram cordiais; o nome dos Yel

lan desfrutava de popularidade e respeito na vila, porquanto a viva travara luta rdua contra a vida, quando perdera o marido, e no havia muitas mulheres que tive ssem permanecido ss como ela, com uma filha e a herdade para cuidar, sem jamais c onsiderar sequer a possibilidade de viver com outro homem. Havia um agricultor em Manaccan que lhe teria proposto casamento, se se atrevesse, e outro a montante do rio, em Gweek, porm ambos leram na expresso dela que nunca assentiria, pois continuava a pertencer de corpo e alma ao homem que partira deste mundo. Foi actividade esgotante da quinta que acabou por venc-la, por que no regateava esforos e, embora habituada a exigir o m ximo das suas energias ao longo dos dezassete anos de viuvez no resistiu tenso quando surgiu o ltimo teste, e o corao traiu-a finalmente. A pouco e pouco, os animais que possua foram desaparecendo, e como os tempos esta vam maus, segundo lhe repetiam em Helston, e os preos haviam sofrido um decr scimo em flecha, o dinheiro escasseava. A fome no tardaria a visitar todas as herdades. Mais tarde, a doena invadiu os campos e dizimou o gado nas povoaes em torno de Hel ford. Ningum sabia atribuir-lhe um nome, e tornava-se impossvel descobrir a cura. Era um flagelo que atacava e destrua tudo, como uma geada inesperada fora da poca, surgia com a lua-nova e depois partia, sem deixar rasto da sua passagem alm da e steira de coisas mortas. Foi um perodo de ansiedade e esgotamento para Mary Yella n e a me. Uma a uma, viram adoecer e morrer as aves de capoeira que tinham criado , enquanto o jovem bezerro tombava no prado onde pastava. O facto mais penoso co nsistiu no caso da velha gua, que prestara servio aos Yelan durante vinte anos e e m cima de cujo dorso largo e firme Mary distendera as pernas pela primeira vez, ainda criana: morreu no est bulo, certa manh, com a fiel cabea pousada no regao da d ona. Quando foi aberta a cova para ela, sob a macieira do pomar, a enterraram e compreenderam que no voltaria a lev-las ao mercado do Helston, a me de Mary murmuro u: - Um pedao de mim foi sepultado com a pobre Nell, minha filha. No sei se se trata da minha f ou o qu, mas sinto o corao cansado e no posso continuar a labutar. Entrou em casa, sentou-se na cozinha, branca como um lenol, parecendo que envelhe cera dez anos. Ap tica, encolheu os ombros, quando Mary disse que ia chamar o m di co. - demasiado tarde. Dezassete anos demasiado tarde. E comeou a chorar em silncio, apesar de at ento nunca ter derramado uma l grima. A rapariga foi buscar o m dico que vivia em Mawgan e a trouxera ao mundo, e quando a acompanhava na sua carruagem, meneou a cabea e declarou: - Vou explicar-te o que se passa, Mary. A tua me no poupou a mente nem o corpo des de que o teu pai morreu e acabou por ceder ao esforo constante. No estou a gostar disto. Apareceu em m altura. Prosseguiram ao longo do caminho sinuoso de acesso casa da quinta, no alto da po voao, at que uma vizinha se aproximou da cancela, ansiosa por transmitir m s notcias . - A tua me piorou, Mary. h pouco, apareceu porta, de olhos arregalados como se tiv esse visto um fantasma e a tremer como varas verdes, e caiu. Acudiram-lhe Mrs. H oblyn e Will Searle, que a levantaram e levaram para dentro, coitada. Dizem que no abre os olhos. O m dico desviou com firmeza o pequeno grupo de curiosos que se formara diante da porta e, ajudado por Searle, ergueu o corpo inerte do cho, a fim de o levar para o quarto no piso superior. - uma apoplexia, mas respira e o pulso bate com firmeza - anunciou, aps o exame preliminar. - Era isto que eu mais receava: que sucumbisse repentinamente. Porque aconteceu agora, depois de tantos anos, s Deus e ela o sabem. Deves provar de quem s filha, Mary, e ajud-la neste transe difcil. Apenas tu o podes faze

r.

Durante mais de seis meses, a rapariga cuidou da me na sua primeira e ltima enferm idade, mas, apesar de todas atenes que ela e o m dico lhe proporcionaram, no revelo a menor vontade de se recompor. Perdera o desejo de lutar pela vida. Dir-se-ia que ansiava pela libertao, e rezava intimamente para que surgisse sem de mora. Uma ocasio, confidenciou filha: - No quero que lutes tanto como eu. Isso s serve para desgastar o corpo e o esprito. No existe razo alguma para que continues em Helford, depois de eu partir. melhor para ti que procures a ti a Patience, em Bodmin. De nada serviria que Mary lhe dissesse que no ia morrer. A ideia achava-se enraiz ada na mente da me, pelo que qualquer tentativa de resistncia resultaria intil. - No tenciono abandonar a quinta - declarou Mary. - Nasci aqui, assim como o pai, e a me tambm de Helford. Os Yellan pertencem a esta regio. A pobreza e a derrocada da nossa propriedade no me assustam. Se a senhora trabalhou aqui sozinha durante dezassete anos, porque no hei-de fazer o mesmo? Sou forte e posso executar o trabalho de um homem, como sabe. - Isto no vida para uma jovem. Resisti todos estes anos pelo teu pai e por ti. Tr abalhar para algum mantm uma mulher calma e satisfeita, mas tudo se modifica quand o para ela prpria. O estmulo desaparece. - No me adaptaria vida dos meios mais populosos. Nunca conheci, nem me interessa, seno a desta rea junto do rio. Helston, para mim, seria uma cidade. Sinto-me melhor aqui, com as poucas galinhas que nos restam, os vegetais da horta, o velho porco e a pequena embarcao. Que faria em Bodmin, com a tia Patience? - Uma moa no pode viver s, sob pena de ficar transtornada da cabea ou acontecer-lhe algum mal. sempre uma coisa ou a outra. j no te lembras da pobre Sue, que foi enc ontrada no cemit rio, numa noite de lua cheia, a chamar pelo apaixonado que nunca teve? E, antes de tu nasceres, uma rapariga que ficou rfa aos dezasseis anos part iu para Falmouth e passou a conviver com os marinheiros. Eu no descansava na sepultura, e o teu pai to-pouco, se no te deixasse em segurana. h -de gostar da tia Patience. Sempre lhe agradou divertir-se e rir e possui um cor ao grande como a prpria vida. Recordas-te de quando nos visitou, faz agora doze ano s? Usava fitas coloridas no chap u e saiote de seda. Um rapaz que trabalhava em Tr elowarren no a largava, mas ela no o julgou digno de si. Sim, Mary recordava-se da tia Patience, com a melena anelada e olhos azuis grand es, da maneira como ria e conversava despreocupadamente, e da graciosidade com q ue levantava um pouco a saia para cruzar o p tio enlameado. Na verdade, era boni ta como uma fada. - No te posso dizer que esp cie de homem o teu tio Joshua, porque nunca lhe pus a v ista em cima, nem conheo ningum que o fizesse - prosseguiu a me. - Mas quando Patie nce casou com ele, h dez anos no dia de So Miguel, escreveu a s rie de patetices que se esperariam de uma adolescente e no de uma trintona como ela. - Vo julgar-me ordin ria - alegou Mary. - No tenho as maneiras delicadas que eles decerto esperam ver-me. Dificilmente encontraremos um interesse comum para poder mos conversar. - Ho-de gostar de ti pelo que s e no por supostos ares afectados. Quero que me prometas que, quando eu desaparecer, escreves tia Patience para lhe comunicares que o meu ltimo e mais veemente desejo foi que passasses a viver com ela. - Prometo - aquiesceu, mas sentia um peso no corao ao conceber um futuro to insegur o e diferente, privada de tudo o que conhecera e estimara, sem dispor ao menos d o conforto do terreno familiar para a ajudar a superar os dias maus quando surgissem. Entretanto, a me definhava dia aps dia - a vida esvaa-se-lhe gradual e inexoravelme

nte. Resistiu atrav s da poca das colheitas e ao longo da primeira queda das folhas . Mas apareceram as neblinas matinais, os campos principiaram a apresentar-se co bertos pela geada e o caudal avolumado do rio transbordou na sua correria desenf reada para desaguar no mar embravecido, cujas vagas rugiam e desfaziam-se nas pe quenas praias de Helford, e a viva passou a mover-se na cama com desconforto, seg urando os lenis com dedos crispados. Chamava a filha pelo nome do falecido marido e falava de coisas h muito extintas e de pessoas que Mary nunca conhecera. Durant e trs dias, viveu num pequeno mundo apenas seu, at que, no quarto, expirou. Uma a uma, Mary viu as coisas que estimava e compreendia transitarem para as mos de outros. A criao seguiu para o mercado de Helston e a moblia foi adquirida por vi zinhos, pea a pea. Um homem de Coverack gostou da casa e comprou-a. Com o cachimbo entre os dentes, postou-se no meio do p tio e anunciou as modificaes que introduz iria, entre as quais o corte das rvores frondosas que dificultavam a visibilida de, enquanto Mary, entretida a guardar as poucas coisas que possua no ba do pai, o observava da janela com uma expresso de animosidade. O desconhecido de Coverack f-la sentir-se intrusa em sua prpria casa. Ela via perf eitamente pela expresso dele que ansiava pela sua partida, o que lhe acentuava o desejo de voltar as costas para sempre a tudo aquilo com prontido. Leu mais uma v ez a carta da tia, traada numa caligrafia irregular, em papel vulgar. Dizia que f icara impressionada com o desgosto sofrido pela sobrinha, pois nem sequer sabia que a irm adoecera, visto haver muitos anos que no visitava Helford. E prosseguia: Houve alteraes por estas bandas que decerto no conheces. j no vivo em Bodmin, mas a c rca de vinte quilmetros, na estrada de Launceston. um local inspito e solit rio, e, se ficares connosco, apreciarei a tua companhia, sobretudo no Inve rno. Perguntei ao teu tio e disse que no se ope, se fores uma moa sossegada, no fala res pelos cotovelos e ajudares na lida dom stica, quando for necess rio. Ele no pod e dar-te dinheiro ou alimentar sem que retribuas de algum modo, como deves compr eender. Conta com a tua ajuda no bar, em troca de alojamento e comida. Decerto no sabias que o dono da Pousada da Jamaica. Mary dobrou a carta e guardou-a tambm no ba. Era uma estranha mensagem de boas-vin das da sorridente tia Patience de que se recordava. Uma missiva fria e vazia, sem uma palavra de conforto, nem admitir coisa alguma, excepto que a sobrinha no devia pedir dinheiro. A tia Patience, com os seus saio tes de seda e maneiras delicadas, esposa de um estalajadeiro! Por fim, Mary calculou que a me devia ignorar o facto. Com efeito, a carta era muito diferente da assinada por uma noiva feliz, dez anos antes. No entanto, fizera uma promessa e no deixaria de a cumprir. A casa que constitura o seu lar fora vendida e no tinha para onde ir. Independentemente da recepo que se lhe deparasse, a tia era a irm de sua me, pormenor que devia conservar bem presente no esprito. Ficava para tr s toda a vida de outrora - a querida quinta da famlia e as brilhantes guas do Helford. Na sua frente, apr esentava-se-lhe o futuro... e a Pousada da Jamaica. Foi assim que Mary Yellan se encontrou de viagem para o norte de Helston na carr uagem ruidosa e oscilante, atrav s da vila de Truro, no topo do Fal, com os seus numerosos terraos e torres, ruas larga s pavimentadas, cu azul ainda a lembrar sul e as pessoas nas portas a sorrir e ac enar passagem do estrepitoso veculo. Mas quando Truro ficou para tr s no vale, firmamento comeou a toldar-se e o terreno de cada lado da estrada a tornar-se irregular e despovoado. As povoaes passaram a rarear e havia poucos semblantes sorridentes s portas das casas disper sas. As rvores tambm escasseavam e as sebes brilhavam pela ausncia. De sbito, leva ntou-se vento e, com ele, surgiu a chuva. A carruagem continuou em frente ruidos amente at atingir Bodmin, cinzenta e pouco atraente como as colinas em que se erg uia, e, um a um, os passageiros reuniram a sua bagagem e prepararam-se para dese mbarcar, excepo de Mary, que permanecia sentada ao canto. O cocheiro, cujo rosto c onstitua uma m scara alagada, espreitou pela janela. - Segue para Launceston? - perguntou. - Vai ser uma viagem agitada durante a noi

te, atrav s da charneca. Se quiser pode ficar em Bodmin e tomar a carruagem da man h. Ser unica passageira nesta. - Tenho amigos espera - explicou Mary. - A viage de noite no me assusta. De resto , no vou at Launceston. Deso na Pousada da Jamaica. - Na Pousada da Jamaica? - O homem olhou-a com curiosidade. - Que vai fazer a um lugar daqueles? No aconselh vel a uma jovem. Deve estar enganada. - E fitou-a co m uma expresso de incredulidade. - Eu sei que muito solit rio, mas no venho de uma cidade ou mesmo vila. Vivia na margem do rio Helford, onde h o maior sossego, tanto no Inverno como no Vero, e nu nca me senti s. - No me referia solido. Talvez no esteja a avaliar bem a situao, por ser forasteira. No nos trinta quilmetros de charneca que estou a pensar, embora isso assustasse a maioria das mulheres. Um momento. O cocheiro voltou-se para chamar uma mulher qu e se encontrava entrada do Royal e acendia o candeeiro por cima da porta, pois c omeava a escurecer. - Importa-se de tentar fazer ouvir a voz da razo a esta menina ? Disseram-me que se dirigia a Launceston, mas agora pediu-me que a deixasse na Pousada da Jamaica. A interpelada desceu os degraus e espreitou para dentro da carruagem. - um lugar horrvel - confirmou -, e se procura trabalho, no o encontrar nas herd ades. Os habitantes da regio da charneca no gostam de ver l desconhecidos. Aconse lho-a a ficar aqui, em Bodmin. - No corro perigo - asseverou Mary, com um sorriso. - Vou viver com familiares. O meu tio o dono da Pousada da Jamaica. Seguiu-se um longo silncio. Ao p lido claro do interior da carruagem, ela viu que a mulher e o cocheiro a contemplavam de olhos arregalados. De sbito, experimentou uma sensao de frio e ansiedade e desejou que a mulher lhe dirigisse uma palavra de conforto, que, todavia, no surgiu. Por fim, esta ltima afastou a cabea da janela e proferiu pausadamente: - Lamento. No tenho nada com isso, claro. Boa noite. O cocheiro comeou a assobiar, de faces avermelhadas, como que empenhado em se des embaraar de uma situao desagrad vel. No entanto, Mary inclinou-se para a frente imp ulsivamente e pousou-lhe a mo no brao. - No me quer dizer o que se passa? Prometo no me melindrar. O meu tio no goza de si mpatias? De que se trata? O embarao dele aumentou e, evitando olh-la, articulou em voz rouca. - A Pousada da Jamaica tem m reputao. As histrias sinistras propagam-se com facili dade, como sabe. Mas no quero divulg-las, pois pode no passar tudo de rumores infundados. - Que esp cie de histrias? - insistiu ela. - Quer dizer que h l muitos casos de emb riaguez? O meu tio tem clientes indesej veis? - Prefiro no ser mais explcito - volveu o homem, preocupado em no falar demasiado. - De resto, no tenho provas de nada. Sei apenas o que se diz. As pessoas respeit veis deixaram de frequentar a pousada. Dantes, par vamos l para dar de comer e beber aos cavalos e trinc vamos tambm qualquer c oisa, mas hoje abstemo-nos de o fazer. Pelo contr rio, aumentamos a velocidade e passamos de largo at chegarmos a Cinco Caminhos. - Mas qual a razo de tudo isso? Que se passa l de extraordin rio? Hesitou, como se procurasse as palavras adequadas. - As pessoas tm medo - acabou por murmurar, e abanou a cabea, disposto a no ser mais explcito. Talvez considerasse que fora excessivamente abrupto e se compadecesse dela, porque no momento imediato decidiu acrescentar: - Por que no toma uma ch vena de ch , antes de partirmos? A viagem ainda longa e faz frio na charneca. Mary recusou com um movimento de cabea. Embora reconhecesse que o ch a reconfortaria, no queria descer da carruagem e

entrar no Royal, onde a mulher a olharia com insistncia e as outras pessoas se entregariam a murmrios. Al disso, havia uma remota faceta de cobardia no seu ntimo que lhe segredava com persistncia: Fica em Bodmin, fica em Bodmin, e talvez acabasse por escut-la se se visse no ambiente confort vel do Royal. Prometera me ir viver com tia Patience e no podia, nem devia, deixar de o f azer. - Nesse caso, melhor partirmos - disse o cocheiro. - No h outro viajante na estrad a, esta noite. Aqui tem mais uma manta para os joelhos. Farei estalar o chicote sobre os cavalos, quando tivermos trepado colina a seguir a Bodmin, porque est um tempo horrvel para viajar. Confesso que s respirarei fundo, quando me vir na mi nha cama, em Launceston. So poucos os que se aventuram a atravessar a charneca no Inverno, com um temporal destes. - E, fechando a porta ruidosamente, subiu para o seu lugar. A carruagem percorreu a rua ruidosamente, passando diante das casas seguras e tr anquilas, com as janelas iluminadas, e pessoas que se dirigiam apressadamente para os seus domiclios, onde as aguardava o jantar, os corpos inclinados para a frente, em proteco instintiva contra a chuva e vento. Entre as ripas dos estores, Mary vislumbrava o claro acolhedor de velas. As lareiras deviam estar acesas, enquanto as mulheres e filhos se sentavam mesa e os homens acabados de chegar aqueciam as mos junto do lume antes de se lhes reunirem. Lembrou-se da sorridente camponesa que fora sua companheira de viagem at Bodmin e perguntou-se se tambm se encontraria prestes a jantar com a famlia. Como parecia tranquila e feliz, com as faces rubicundas e mos calejadas pelo trabalho! Que mundo de segurana espelhava a sua voz spera! E Mary deixou-se arrastar pela fantasia por uns momentos, imaginando-se a segui-la, para lhe rogar que a deixasse acompanhar e proporcionasse um lugar no seu lar. E tinha a certeza de que no receberia resposta negativa. Conceder-lhe-ia um sorriso af vel, uma mo solcita e uma cama. Mary trabalharia para ela e habituar-se-ia a estim-la, a partilhar um pouco da sua vida, a familiarizar-se com aqueles que a rodeavam. Os cavalos comearam a escalar a encosta ngreme sada da vila e, espreitando pela jan ela da retaguarda, ela viu as luzes de Bodmin distanciarem-se rapidamente, at que o ltimo claro se atenuou e extinguiu. Encontrava-se agora s, com o vento e a chuva, alm dos vinte ridos quilmetros que a separavam do seu destino. Ponderou se seria a mesma coisa que um navio sentia, quando a segurana do porto d esaparecia ao longe. Na verdade, nenhuma embarcao se poderia considerar mais desol ada do que ela, mesmo que o vento uivasse entre a enx rcia e as vagas sacudissem o casco. Agora, era escuro dentro da carruagem, porquanto a lanterna emitia uma luz amare lada doentia e a frincha no tecto deixava penetrar uma corrente de ar que agitav a a chama e colocava o revestimento de couro em perigo, pelo que Mary julgou pru dente apag-la. Sentava-se, encolhida, ao canto, oscilando de um lado para o outro em sincronia com os solavancos provocados pelo piso irregular da estrada, e afi gurava-se-lhe que nunca se apercebera da existncia de malevolncia na solido. A prpri a carruagem, que ao longo do dia a embalara como um bero, continha agora uma nota ameaadora no seus estalidos e gemidos. O vento silvava no tejadilho e as b tegas de gua, que aumentavam de violncia por j no haver a relativa proteco das colinas, f ustigavam as janelas com impetuosidade redobrada. Em ambos os lados da estrada, o terreno rido estendia-se interminavelmente, at ser tragado pelas trevas. No se via uma nica rvore, grupo de arbustos ou casa, mas apenas quilmetros sucessivos d

e terra deserta que se prolongava em direco a um horizonte invisvel. Ele reflectiu nenhum ser humano poderia viver naquela regio desoladora e conservar-se igual s ou tras pessoas; os filhos nasceriam deformados e mirrados, como os ramos secos dispersos na horrenda paisagem, encurvados pela fora de um vento que nunca abrandava e apenas variava o rumo. As suas mentes tambm seriam alteradas, a nimadas de pensamentos malignos, por crescerem entre a aridez do granito, urze r essequida e pedras soltas. Nasceriam de progenitores estranhos que dormiam tendo solo como travesseiro, sob o cu tenebroso. Ainda possuiriam resduos do demnio nas suas entranhas. A estrada prosseguia, sinuosa, atrav s das terras escuras e silenciosas, sem jamais despontar uma luz, ainda que por breves segundos, como uma mensagem de esperana para a viajante da carruagem. Talvez no houvesse uma nica habitao ao longo dos cerca de trinta e cinco quilmetros entre Bodmin e Launceston, ou nem mesmo a cabana de um humilde pastor na desolada estrada - nada seno o marco milion rio co nstitudo pela aparentemente sinistra Pousadada Jamaica. Mary perdeu a noo do tempo e espao; poderiam dizer-lhe que era meia-noite e os quilm etros uma centena, que acreditaria. Comeou a confiar na segurana da carruagem, a q ual tinha, pelo menos, um vestgio de familiaridade. Conhecia-a desde o princpio da manh, que j se situava num passado remoto. Por pesadelo opressivo que fosse aquel a viagem eterna, existiam as quatro paredes do veculo para a proteger, o tecto go tejante e, ao alcance da sua voz, a presena reconfortante do cocheiro. Por fim, p areceu-lhe que ele fazia os cavalos desenvolverem uma velocidade ainda maior e o uvia-o gritar-lhes, pois o som dos incitamentos passava velozmente diante da janela, im pelido pelo vento. Mary decidiu baixar o caixilho e espreitar. Recebeu uma rajada de vento e chuva que a cegou por um momento e, em seguida, sacudindo o cabelo molhado e afastando -o dos olhos, viu que a carruagem alcanava o topo de uma colina em galope desenfr eado, enquanto de ambos os lados da estrada se estendia a charneca, negra como a tinta entre o nevoeiro e chuva. frente, na crista, esquerda, havia uma construo a certa distncia da estrada. Ela vi slumbrou chamin s altas, mal definidas na escurido. No se via qualquer outra casa na s imediaes. Se se tratava da Pousada da Jamaica, erguia-se s em glria, vulner vel ao vento de todos os lados. Mary apertou a capa em torno do pescoo, num gesto insti tivo de apreenso. Os cavalos imobilizaram-se e permaneceram a transpirar chuva, e nquanto o vapor se desprendia deles como uma nuvem. O cocheiro desceu do banco e transferiu o ba da passageira para o cho. Parecia imp aciente e lanava olhares insistentes casa por cima do ombro. - Pronto - anunciou, ofegante. - acol . Se bater porta, deixam-na entrar. Tenho de seguir imediatamente, de contr rio no chego a Launceston esta noite. Subiu apressadamente para o seu lugar e pegou nas r deas e no chicote, que fez est alar sobre os cavalos, dominado por visvel ansiedade. A carruagem estremeceu e principiou a afastar-se, no tardando a desaparecer nas trevas, como se nunca tivesse existido. Mary manteve-se imvel, com o ba a seu lado. Ouviu o som do ferrolho de uma porta n a casa escura atr s dela, cuja porta se abriu de rompante. Em seguida, surgiu um vulto quase gigantesco, que moveu uma lanterna de um lado para o outro sua frente. - Quem ? - rugiu. - Que quer daqui? Mary aproximou-se e observou o rosto do homem. No entanto, o claro da lanterna, incidia-lhe nos olhos, pelo que no conseguiu ver nada. Ele tornou a mov-la na sua frente e, de repente, soltou uma gargalhada e pe gou-lhe no brao, a fim de a puxar para dentro. - Ah, s tu! Afinal, sempre vieste, hem? Sou o teu tio Joss Merlyn e dou-te as boa s-vindas Pousada da Jamaica.

Tornou a rir, fechou a porta atr s deles e pousou a lanterna numa mesa do corred or. Em seguida, olharam-se em silncio por um momento. Captulo II Ele era de facto um indivduo corpulento, com quase dois metros de altura, fronte escura enrugada e pele da cor da de um cigano. Os cabelos pretos espessos caam-lhe sobre os olhos numa franja e cobriam parcialmente as orelhas. Parecia possuir o vigor de um cavalo, com ombros largos possantes, braos compridos que quase chegavam aos joelhos e punhos volumosos como presuntos. A envergadura era to imensa que a cabea se podia considerar de certo modo diminuta, afundada entre os ombros, infundindo a impresso de semiagachado de um gorila gigantesco, com as sobrancelhas pretas e cabelos abundantes e desgrenhados. Apesar dos membros longos e estrutura poderosa, as feies no tinham nada de simiesco, pois o nariz era aquilino, descrevendo um arco em direco a uma boca que decerto fora perfeita num passado remoto, mas agora apresentava-se retrada e descada, conquanto ainda existisse algo de admir vel nos grandes olhos negros, mau grado as rugas e bolsas, mescladas com os traos avermelhados de vasos sanguneos. Aquilo que lhe restava de melhor eram os dentes, todos ainda sos e muito brancos, pelo que quando sorria ficavam expostos em ntido contraste com a tonalidade bron zeada do rosto, conferindo-lhe o aspecto chupado e faminto de um lobo. E embora devesse haver um oceano de diferena entre o sorriso de um homem e as presas lupin as arreganhadas, no caso de Joss Merlyn ela no existia. - Com que ento s Mary Yellan - disse ele finalmente, inclinando a cabea para a frente para a observar melhor - e vieste de to longe para cuidar do teu tio Joss. aquilo a que chamo uma deciso simp tica. Deu nova gargalhada, zombando dela, num som vibrante e prolongado que ecoou atrav s da casa e actuou como uma chicotada nos nervos tensos de Mary. - Onde est a tia Patience? - acabou por perguntar, olhando em volta do vestbulo mal iluminado, soturno, com lajes frias e a aparentemente pouco segura escada estreita. - No me esperavam? - Onde est a tia Patience? - parodiou ele. - Onde est a minha querida tia para m e beijar e acarinhar? No podes conter-te um instante de correr ao seu encontro? No se um beijo ao tio Joss? Mary recuou um passo, pois a perspectiva de o beijar revoltava-a. Devia estar louco ou embriagado; provavelmente ambas as coisas. No entanto, no queria antagoniz -lo, pois medo que a assolava desaconselhava-lho. Ele adivinhou o pensamento que lhe cruzava o esprito voltou a rir. - Escusas de ter medo, que no tenciono tocar-te. Comigo, est s segura como numa i greja. Nunca gostei de morenas, minha querida, e tenho mais que fazer do que req uestar a minha sobrinha. - Cumprimiu os l bios numa expresso mista de esc rnio e desdm e em seguida ergueu a cabea para a escada. - Patience! - vociferou. - Onde d iabo te meteste? A moa acaba de chegar e choraminga por ti. Parece que j se cansou de me ver. Registou-se leve agitao no topo da escada e um degrau rangeu. Depois, surgiu o claro de uma vela e uma exclamao. Por fim, apareceu uma mu lher que impedia a luz lhe atingisse o rosto com uma das mos. Usava uma touca de cor indefinida sobre os cabelhos grisalhos ralos, que prendiam em madeixas nos o mbros. Era bvio que torcera as extremidades numa tentativa para fazer an is, mas no conseguira. As faces haviam perdido toda a frescura e a tez apresentava-se estic ada sobre os malares. Os olhos eram grandes e esgazeados, como se fizessem perpe

tuamente uma pergunta, e ela tinha um pequeno tique nervoso que a obrigava a man ter a boca em movimento constante, ora para franzir os l bios, ora para os desco ntrair. Envergava um vestido listrado desbotado, que outrora fora cor de cereja e agora no passava de rosado, cobria-lhe os ombros um xaile com numerosas cerzidu ras. Acabava evidentemente de atar uma fita nova touca para tentar melhorar a in dument ria, mas proporcionava uma nota dissonante ao conjunto, porque era de um vermelho vivo e constitua um contraste pungente com a palidez do rosto. Mary fito u-a de olhos arregalados, abalada pela compaixo. Seria aquela pobre criatura quas e andrajosa a encantadora tia Patience dos seus sonhos, agora trajada como uma d esmazelada e parecendo vinte anos mais velha? A mulher acabou de descer a escada, pousou a vela, pegou nas mos da sobrinha e ol hou-a com ansiedade. - Vieste realmente? - sussurrou. - s, de facto, Mary Yellan, filha da minha pobr e irm? A rapariga aquiesceu com um movimento de cabea, dando intimamente graas a Deus por a me no a poder ver naquele momento. - Estou muito contente por tornar a v-la, minha querida tia Patience - proferiu, com ternura. - Passaram muitos anos desde que nos visitou em Helford. A mulher continuava a acarici-la, at que, de sbito, abraou-a e afundou a cabea no omb ro da sobrinha, para comear a chorar, com intensidade e receosamente, e respirar entre soluos. - P ra l com isso! - grunhiu o marido. - Que maneiras so essas de receber uma pe ssoa? Porque est s para a a choramingar, estpida? No vs que a rapariga quer jantar? Acompanha-a cozinha e d -lhe presunto e algo de beber. Agachou-se e colocou o ba de Mary ao ombro, como se pesasse menos que um mao de jornais. - Vou levar isto p ara o quarto dela, e se no tiveres a comida na mesa quando eu descer, forneo-te um motivo para chorar. E a ti tambm, se quiseres - acrescentou acercando o rosto do da sobrinha e pousando-lhe o dedo grosseiro na boca. - s domesticada ou mordes? De repente, soltou mais uma gargalhada que fez vibrar as paredes e principiou a subir a escada, com o ba aos ombros. A tia Patience acabou por se dominar. Gracas a um esforo visvel, sorriu e tentou ajeitar o cabelo, num gesto de que Mary se recordava vaga mente. A seguir, pestanejando com nervosismo e sem parar de mover a boca, preced eu-a atrav s de outro corredor mal iluminado, em direco cozinha, onde havia trs velas acesas e algumas brasas na chamin . - No faas caso do tio Joss - disse num tom repentinamente diferente, quase despreo cupado, como um cachorro choro treinado para obedecer por meio de crueldade const ante e, apesar dos pontap s e ameaas recebidos, sempre pronto para lutar como um ti gre em defesa do dono. - Convm no o contrariar, sabes. Tem as suas excentricidades , e os estranhos no o compreendem com facilidade. Mas foi sempre um bom marido. Continuou a falar mecanicamente, movendo-se de um lado para o outro na cozinha f ria, enquanto punha a mesa para jantar, indo buscar po, queijo e presunto ao arm rio, e Mary se acercava do lume, numa tentativa desesperada para aquecer os dedo s enregelados. A atmosfera achava-se saturada de fumo de turfa, que elevava ao tecto, entranhav a nos cantos e pairava no ar como uma t nue nuvem azulada, provocando-lhe ardor no s olhos explorando as narinas e a lngua. - Em breve gostar s dele e compreender s o seu temperamento - continuou a tia. um homem ntegro e destemido, muito conhecido e respeitado na regio. Ningum ousari a pronunciar uma palavra contra Joss Merlyn. s vezes, junta-se aqui muita gente. A casa no sempre to sossegada como hoje. Estamos numa estrada muito concorrida, sabes. Passam carruagens todos os dias. E a clientela muito atencios a para connosco; muito atenciosa, mesmo. Ainda ontem, por exemplo, visitou-nos u m vizinho e fiz um bolo para lhe oferecer. a unica mulher da Cornualha que sabe confeccionar, Mrs. Merlyn, disse-me

ele. Foram exactamente estas as suas palavras. E o prprio fidalgo Bassat, de North Hill, dono de quase todas as terras destas paragens, cr uzou-se comigo, o outro dia, tera-feira, salvo erro, e descobriu-se para me cumpr imentar. Bom dia, minha senhora, disse, e fez-me uma v nia cima do seu cavalo. Const a que nenhuma mulher lhe resistia, na sua juventude. Nessa altura, o teu tio sai u do est bulo, onde tinha estado a reparar a roda do breque, e perguntouhe: Como lhe corre a vida, Mr. Bassat? E o fidalgo respondeu: Com a facilidade da bebida pe la sua garganta, Joss! E fartaram-se de rir. Mary murmurou qualquer resposta polida longa tirada, mas sentia-se compungida e preocupada, porque a tia lhe evitava os olhos, alm de que se exprimia com uma flun cia suspeita. Falava como uma criana que conta uma histria a si rpria e possui tale nto para inventar. Mary desgostava-se por a ver daquela maneira, e ansiava por q ue chegasse ao fim ou se calasse, porquanto a torrente de palavras era, a seu mo do, mais impressionante do que as l grimas de pouco antes. Soaram passos prximos e, com um aperto no corao, ela compreendeu que Joss Merlyn acabava de descer e pro vavelmente escutara o arrazoado da esposa. Esta tambm se deu conta, pois empalideceu e a boca recomeou a mover-se em silncio. Por fim, ele entrou na cozinha e olhou de uma para a outra. - Com que ento as galinhas j esto a cacarejar, hem? - articulou, semicerrando as p lpebras, agora sem rir nem sequer sorrir. - Se voltaste a falar pelos cotovelos, porque afugentaste as l grimas. Ouvi-te grasnar como uma pata choca, grande pat eta. Julgas que a tua preciosa sobrinha acredita no que dizes? No eras capaz de i ludir uma criana, quanto mais uma moa atilada como ela. Puxou de uma cadeira, pousou-a ruidosamente junto da mesa e sentou-se. Em seguid a, indiferente ao facto de o assento ranger sob o peso do corpo, estendeu a mo pa ra o po, cortou uma grossa fatia e untou-a com manteiga, aps o que a introduziu na boca, sem se preocupar com a que escorria para o queixo, e fez sinal a Mary par a que se instalasse. - Vejo que precisas de comer - observou. Tornou a pegar no po e cortou nova fatia, esta muito fina, que dividiu em quatro partes e barrou igualmente, tudo efectuado com extrema delicadeza, em profundo c ontraste com a forma como se servira - a tal ponto que, para Mary, havia algo d e quase horrendo na passagem de spera brutalidade para o cuidado meticuloso. Di r-se-ia que existia um poder latente nos dedos que os convertiam de meras garras em servos hbeis e eficientes. Se ele tivesse cortado uma fatia tosca e lha atira sse, ela no se impressionaria tanto, por se tratar de uma atitude de harmonia com o que lhe observara at ento. Ao inv s, a repentina graciosidade e o r pido e delica do movimento das mos, constituam uma revelao abrupta e assaz sinistra, por inesperad a e discordante do seu autor. No obstante, agradeceu-lhe a meia-voz e comeou a com er. Entretanto, a tia, que no pronunciara uma nica palavra desde que o marido entrara, fritava bacon. Estabeleceu-se um silncio quase palp vel. Mary apercebia-se de qu e Joss Marlyn a observava, do outro lado da mesa, enquanto, atr s dela, ouvia a tia mover a frigideira no lume. De sbito, escapou-se-lhe da mo e ela emitiu um gri to abafado de apreenso. Mary levantou-se para lhe acudir, porm o tio ordenou que v oltasse a sentar-se. - Uma desajeitada suficiente! - bradou. - No precisamos de duas. Deixa-te estar q uietinha e a tua tia que limpe o que sujou. No a primeira vez que acontece. - Rec linou-se na cadeira e comeou a palitar os dentes com as unhas. - Que tomas? Brand e, vinho ou cerveja? Talvez passes fome connosco, mas no morrer s de sede. Na Pou sada da Jamaica, no h gargantas secas. - Soltou uma gargalhada, piscou o olho e ex ps a lngua. - Prefiro ch , se for possvel - aventurou Mary. - No estou habituada a tomar bebid as alcolicas. - Ah, no? No sabes o que perdes. Hoje, podes, beber ch , mas garanto-te que, dentr o de um ou dois meses, chorar s por brande. - Joss estendeu o brao sobre a mesa e pegou na mo dela. - Tens patinhas muito jeitosas, para quem trabalhava numa quin ta. Receava que fossem speras e avermelhadas. Se h alguma coisa que repugne a um

homem servirem-lhe cerveja com uma mo desagrad vel. Isto no significa que os meus clientes sejam exigentes, mas nunca tivemos uma barmaid na Pousada da Jamaica, at agora. Inclinou a cabea numa v nia irnica e soltou a mo da sobrinha. - Toma a chave, Patience querida - prosseguiu. - Vai buscar uma garrafa de brand e. Estou com uma sede que nem toda a gua do rio saciava. A mulher apressou-se a abandonar a cozinha, depois de receber a chave. Ele recom eou a explorar os dentes com as unhas, assobiando de vez em quando, ao passo que Mary comia o po com manteiga e ingeria o ch que Joss lhe colocara na frente. Sen tia dor de cabea crescente e um sono e cansao quase irresistveis, alm de que os olho s lhe ardiam em virtude fumo de turfa. No estava, contudo, fatigada ao ponto de s e desinteressar dos movimentos do tio, porque j se deixara contagiar por parte do nervosismo da tia e imaginava que, de certo modo, eram ambas como ratos numa ra toeira, impossibitadas de fugir, enquanto ele se comportava como um gato monstru oso. A mulher no tardou a reaparecer com a garrafa de brande, que pousou diante do mar ido e, enquanto acabava de fritar o bacon e servia Mary e a ela prpria, ele princ ipiou a beber, com uma expresso pensativa no olhar fixo sua frente, ao mesmo temp o que dava leves pontap s na perna da mesa. De repente, desferiu um murro no tampo , fazendo oscilar os copos e pratos, um dos quais caiu no cho e partiu-se. - Vou explicar-te uma coisa, Mary Yellan! - rugiu. - Sou o dono desta casa, e bo m ser que o fiques a saber desde j. Se cumprires as minhas ordens, ajudares na f aina dom stica e servires os meus clientes, no te porei um dedo em cima. Mas se te atreveres a abr ir a boca para refilar, palavra de honra que te surro at que venhas comer minha mo , como ali a tua tia. Mary encarou-o, do outro lado da mesa, mas conservava as mos pousadas no regao, pa ra que ele no as visse tremer. - Compreendo perfeitamente. No sou curiosa por natureza e nunca gostei de me imis cuir na vida dos outros. -me indiferente o que se passa na pousada ou a esp cie de pessoas que a frequentam. Executarei o meu trabalho e no lhe darei motivos para se insurgir comigo. Mas se o vir molestar a tia Patience de algum modo, abandona rei a casa imediatamente e procurarei o magistrado, para que lhe faa sentir o pes o da Lei. Depois, tente surrar-me, se puder. Entretanto, empalidecera, e sabia que se ele voltasse a gritar-lhe, no conseguiri a conter as l grimas, o que o tornaria possuidor de ascendente para sempre. O fl uxo de palavras brotara espontaneamente e, dominada pela compaixo que o farrapo h umano que era a sua tia lhe inspirava, no pudera refre -lo. Estava, porm, impossib ilitada de adivinhar que a manifestao de coragem impressionara o interlocutor, que voltou a reclinar-se na cadeira, descontrado. - Sim senhor, muito bonito. Ficamos a saber que esp cie de pensionista temos sob o nosso tecto. Se a melindrarmos, mostra as garras. Muito bem, minha menina. Afi nal, possumos mais pontos comuns do que eu supunha. j que vamos jogar, faamo-lo jun tos. Um dia, talvez tenha um trabalho especial para ti, de um g nero que nunca efe ctuaste. Trabalho de homem, Mary Yellan, em que se esgrime com a vida e a morte. A rapariga ouviu a tia emitir uma exclamao abafada, a seu lado, antes de murmurar: - Por favor, Joss... Havia tanta ansiedade na voz, que Mary a olhou com admirao. Viu-a inclinar-se para a frente e indicar ao marido que se calasse, e a inquietao desenhada nas faces e a agonia da expresso do olhar assustou-a mais do que tudo o que acontecera, naquela noite. Sentiu-se subitamente arrepiada, gelada e um tanto nauseada. Que teria provocado semelhante pnico tia? Que se preparara Joss Merlyn para dizer? Apercebeu-se de uma curiosidade terrvel, quase febril, que tinha dificuldade em dissimular. Por fim, o tio moveu a mo com impacincia e determinou: - Vai-te deitar, Patience. Estou farto de ver a tua cara de morta minha mesa. A rapariga e eu entendemo-nos bem.

A mulher levantou-se com prontido e encaminhou-se para a porta, com um derradeiro e ineficaz olhar de desespero por cima do ombro. Pouco depois, os seus passos soavam na escada e Joss Merlyn e Mary encontraram-se ss. Ele afastou o copo de brande vazio da sua frente e cruzou os braos sobre a mesa. - Tem havido um ponto fraco na minha vida e vou dizer-te qual . A bebida. Trata-s e de uma maldio, e reconheo-o, mas no me posso conter. Mais dia menos dia, h-de ser a minha morte, e merecida, sem dvida. Passam-se semanas em que quase no lhe toco, c omo esta noite, at que, de repente, sinto uma sede abrasadora e afundo-me em lco ol. Afundo-me durante horas consecutivas. Nessas ocasies, o poder, a glria, as mul heres e o reino de Deus parecem ao meu alcance. Julgo-me um rei, Mary. D -me a impresso de que tenho os cordelinhos do mundo nos meus dedos. o cu e o inferno ao mesmo tempo. Falo ento sem parar, at que tudo o que fiz se espalha aos quatro ventos. Meto-me no quarto e grito os meus segredos ao travesseiro. A tua tia fecha-me chave e, quando volto a estar sbrio, abalo a port a com murros e ela deixa-me sair. Ningum sabe disto seno ela e eu, e agora tu, nat uralmente. Digo-te, porque estou um pouco tocado e no consigo dominar a lngua. Mas no me embriaguei ao ponto de perder a cabea e revelar-te por que vivo neste lugar remoto abandonado por Deus e sou o dono da Pousada da Jamaica. A sua voz enrouquecera e passara a exprimir-se em surdina, quase num murmrio. Ent retanto, o lume atenuara-se e sombras densas estendiam dedos alongados na parede . As velas tambm se achavam quase consumidas e projectavam uma silhueta monstruos a de Joss Merlyn no tecto. Ele sorriu sobrinha e, num gesto grotesco de brio, pou sou o indicador no nariz. - No te disse isso, Mary Yellan - prosseguiu. - Nem pensar. Ainda me restam sensa tez e astcia suficientes para no o fazer. Se queres saber mais, pergunta tua tia. Com a imaginao que tem, inventa uma histria interessante, de certeza. Ouvi os disparates que te contou, explicando-te que mantemos boas relaes com a fina-flor da sociedade e o fidalgo me tira o chap u, quan do nos cruzamos. Mas no passa de um estendal de mentiras. Posso elucidar-te desde j, porque de qualquer modo, acabarias por te inteirar. O fidalgo Bassat tem tanto medo, que nunca pe c os p s. Se me v na estrada, benze-se e esporeia o cavalo. E acontece o mesmo a todos outros da classe dele. As carruagens j no param aqui e mala-posta to-pouco. Mas no me preocupo, porque tenh o clientela numerosa. Quanto mais a nobreza me evita, mais satisfeito me sinto. Nesta casa, existe sempre bebida com abundncia. h quem venha Pousada da Jamaica no s s bados noite e quem feche a porta de casa chave e durma com as mos pousadas na s orelhas. Em certas ocasies, todas as residncias da charneca tm as luzes apagadas e o nico claro deslumbrante que se avista num raio de v rios quilmetros o das janelas desta pousada. Dizem que os gritos e canes se podem ouvir nas herda des para alm do Roughtor. Estar s no bar, nessas noites, se te apetecer, e poder s ver o g nero de clientes que aparece. Mary conservava-se imvel e silenciosa, com os dedos crispados pousados nos lados da cadeira. No se atrevia a fazer um movimento, com receio de que se registasse a brusca mudana de estado de esprito dele de que j assistira a uma demonstrao e o converteria de uma pessoa exprimindo-se em tom confidncial num ser abrutalhado. - Tm todos medo de mim - acrescentou ele. - Sem uma nica excepo. Medo de mim, que no temo ningum. Fica ciente de uma coisa. Se fosse um homem instrudo, se possusse cult ura, percorreria toda a Inglaterra ao lado do rei Jorge. Foi a bebida que me com prometeu o futuro. A bebida e o meu temperamento facilmente excit vel. a maldio q ue paira sobre todos ns, Mary. Ainda no nasceu o Merlyn que morrer serenamente na cama. O meu pai foi enforcado em Exeter, depois de matar um fulano, na sequncia de uma b riga. O meu av viu cortarem-lhe as orelhas por se dedicar ao roubo. Foi enviado p ara uma colnia penal, onde morreu louco, devido a uma mordedura de serpente. Sou

o mais velho de trs irmos, todos nascidos sombra de Kilmar, para os lados da Charn eca dos Doze Homens. Atravessa-se a p a Charneca do Leste at alcanar Rushyford, de onde se avista uma enorme massa grantica como a mo do diabo apontada ao c u. O Kilma r a. Se tivesse nascido sua sombra, havias de te dedicar bebida, como eu. O meu i rmo Matthew morreu afogado no pntano de Trewartha. Julg vamos que tinha partido co mo tripulante de um navio e no tornamos a saber dele, at que, no Vero, houve uma s eca prolongada, e o seu corpo foi encontrado entre a lama, com as mos estendidas acima da cabea e os abutres a esvoaar em volta. O meu irmo Jem, demnios o levem, foi sempre o benjamim da famlia, agarrado s saias da me, quando o Matt e eu j ramos adul tos. Confesso que nunca o suportei. demasiado esperto e tem uma lngua muito aguad a. Mas acabaro por apanh -lo e enforcar, como aconteceu ao meu pai. Calou-se por um momento, com o olhar fixo no copo vazio. Em seguida, levantou-o e voltou a po us -lo. - j falei muito. Esta noite, no digo mais nada. Vai-te deitar, antes que t e tora o pescoo. Leva uma vela. O teu quarto fica por cima da entrada. Mary pegou no castial sem uma palavra e passava diante dele, quando a segurou pel o ombro e obrigou a dar meia volta. - Haver noites em que ouvir s rodas na estrada que no seguiro em frente, mas para ro diante da Pousada da Jamaica. Depois, notar s passos no p tio e vozes por baix o da tua janela. Quando tal suceder, continuar s deitada e cobrir s a cabea com a s mantas. Entendido? - Sim, tio. - Muito bem. Agora, vai-te deitar, e se me tornas a fazer alguma pergunta, no te deixo um osso inteiro no corpo. Ela abandonou a cozinha, para atravessar o corredor, onde colidiu com um banco alongado, antes de comear a subir escada estreita. O tio dissera-lhe que o quarto se situava por cima da entrada, pelo qu e continuou em frente no corredor do primeiro andar, onde havia apenas o claro da vela que segurava, passou diante de duas portas de cada lado - aposentos de hspe des, sem dvida, espera dos viajantes que agora j no apareciam, nem procuravam refgio sob o tecto da Pousada da Jamaica -, at que se lhe deparou outra ao fundo, fez r odar o puxador e viu luz oscilante da vela, que se encontrava no seu quarto, poi s o ba achava-se pousado a um canto. As paredes eram rugosas e desprovidas de papel e o sobrado desnudo. Um caixote v oltado para baixo exercia as funes de mesa-de-cabeceira, com um espelho estalado e m cima. A ausncia de lavatrio levou-a a concluir que deveria lavar-se na cozinha. A cama rangeu, quando se sentou nela, e os dois cobertores pouco espessos pareci am hmidos. Resolveu no se despir e dormir com a roupa suja da viagem e a capa como proteco suplementar contra o frio. Tornou a levantar-se e assomou janela. O vento diminura de intensidade, mas continuava a chover - agor a sob a forma de um chuvisco persitente que escorria ao longo da parede da casa e se mesclava com a sujidade da vidraa da janela. Verificou-se um rudo no lado mais afastado do p tio, um grunhido estranho, como de um animal com dores. Embora estivesse muito escuro para ver com clareza, Mary conseguiu divisar uma forma imprecisa que oscilava suavemente. Durante um momento de pesad elo, com a imaginao activada pelas sinistras revelaes de Joss Merlyn, julgou tratarse de um cadafalso, do qual pendia um homem morto. De sbito, porm, apercebeu-se de que era a tabuleta da pousada, que se desprendera parcialmente e se movia por efeito do vento. No passava de uma modesta e deteriorada t bua, que outrora conhecera melhores dias, mas cujas letras se apresentavam agora apagada s e cinzentas, e a sua mensagem permanecia merc dos quatro ventos: Pousada da Jam aica... Pousada da Jamaica... Mary baixou o estore e subiu para a cama. No conseguia dominar o ranger dos dentes e tinha as mos e p s entorpecidos. Conservou-se encolhida por um lapso de tempo prolongado, presa do desespero, perguntando-se se seria possvel abandonar a casa e percorrer os vinte quilmetros que a separavam de Bodmin. No entanto, receava que o cansao acabasse por venc-la e obrig-la a deitar-se na berma da

estrada, onde adormeceria, para ser acordada ao romper do dia e avistar o corpo gigantesco de Joss Merlyn na sua frente. Por fim, fechou os olhos e viu imediatamente o rosto dele, que lhe sorria, para em seguida o sorriso se transformar numa carranca e esta numa expresso de clera, e nquanto a sacudia com violncia, e a abundante cabeleira preta, nariz aquilino e d edos longos e poderosos, capazes de gestos delicados, assumiam um realce tenebro so. Sentiu-se prisioneira, como uma ave numa rede, e compreendeu que, por mais que s e debatesse, no se libertaria. Se desejava conservar a liberdade, devia partir im ediatamente, sair pela janela e correr como uma alucinada pela estrada branca qu e se estendia como uma serpente atrav s da charneca. No dia seguinte, seria demasi ado tarde. Aguardou at que soaram os passos dele na escada. Ouviu resmungar entre dentes e verificar com alvio que enveredava pelo outro corredor esquerda do patamar. Por ltimo, fechou-se uma porta ao longe e o silncio restabeleceu-se. Decidiu no aguardar nem mais um minuto. Se ficasse mais uma nica noite que fosse debaixo daquele tecto, a coragem abandon-la-ia e estaria perdida. Perdida, tresloucada e convertida num farrapo, como a tia Patience. Abriu a porta e espreitou, aps o que, em bicos dos p s, se encaminhou para o patama r, onde fez nova pausa, para escutar. Acabava de pousar a mo no corrimo e o p no pr imeiro degrau, quando ouviu um som no outro corredor. Era algum a chorar. Algum cu ja respirao brotava em pequenos espasmos e tentava abafar o rudo numa almofada. A t ia Patlence! Deixou transcorrer um instante e retrocedeu para o seu quarto, onde se deixou cair na cama e fechou os olhos. Independentemente do que tivesse de e nfrentar no futuro e por muito que isso a aterrorizasse, no podia abandonar a Pou sada Jamaica. Tinha de permanecer ao lado da tia, que necessitava dela. Era possvel que a sua presena a reconfortasse e chegassem a um acordo, para, de uma maneira que de momento se achava demasiado fatigada para planear, a defe nder da tortura mental e, segundo tudo indicava, fsica de Joss Merlyn. Mary recordou-se de que a me vivera e trabalhara s, durante dezassete anos, alm de que se sujeitara a privaes e sacrifcios que ela decerto nunca conheceria. Na verdade, no fugiria por causa de um homem semilouco. No temeria uma casa em que parecia imperar o mal, por muito solit ria que estivesse numa colina fustigada pelo vento, um marco mili rio isolado que desafiava o homem e a tempestade. A me dela reuniria coragem suficiente para enfrentar os inimigos. Sim, e acabar por venc-los. No cederia um palmo de terreno, quaisquer que fossem as condies . E, assim, Mary conservou-se deitada na cama dura, com o esprito em ebulio, enquanto rezava para que lhe acudisse o sono, e o mnimo som constitua uma provao para os nervos, desde o arranhar de um rato na parede atr s dela ao ranger da tabuleta no p tio. Contou os minutos e horas da noite eterna, at que, quando ouviu o primeiro galo num campo das traseiras da casa, deixou de se preocupar com eles e, exalando um suspiro, adormeceu como um corpo sem vida. Captulo III Quando acordou, soprava vento forte de oeste e o sol p lido no prenunciava um dia desprovido de chuva. Fora a vibrao da janela que a arrancara do sono, e ela depre endeu da claridade e da cor do cu que dormira at tarde e devia passar das oito hor as. Assomou janela e viu que a porta da estrebaria estava aberta e havia marcas recentes de cascos na lama. Com uma sensao de alvio, concluiu que o tio se devia te

r ausentado, pelo que ela e a tia estariam ss, embora apenas por um breve perodo. Abriu o ba, para extrair apressadamente a saia grossa, avental colorido e sapatos pesados que usava na quinta e, em menos de dez minutos, descia cozinha, onde se lavou. Pouco depois, a tia apareceu, proveniente da capoeira, com alguns ovos acabados de pr, que lhe mostrou, ao mesmo tempo que exibia um leve sorriso misterioso. - Pensei que gostarias de comer um ao pequeno-almoo - observou. - Notei que estav as muito cansada para jantar normalmente, ontem noite. E tambm separei um pouco de manteiga para o teu po. As suas maneiras eram serenas e, apesar dos crculos viol ceos em torno dos olhos, que indicavam uma noite intranquila, fazia um esforo visvel para se mostrar jovia l. Mary decidiu que era somente na presena do marido que ela se perturbava como u ma criana enervada e, na sua ausncia, manifestava a tendncia, igualmente infantil, para esquecer a amargura, experimentando prazer com pequenas situaes quotidianas c omo a de preparar o pequeno-almoo da sobrinha e cozer um ovo. Como que por acordo t cito, abstiveram-se de aludir aos acontecimentos da v spera, e o nome de Joss no foi mencionado. O motivo da sua ausncia carecia de importncia para Mary, que na realidade se congratulava com a pausa no ambiente de hostilidade que, segundo tudo indicava, predominaria nos meses e porventura anos subsequentes da sua existncia. Viu que a tia estava ansiosa por falar de coisas sem qualquer relao com a sua vida actual e como dava a impresso de recear perguntas embaraosas, Mary tomou a precauo de no as fazer e enveredou pela descrio dos seus ltimos anos em Helford, a vida tens a dos maus tempos e a doena e morte da me. Embora no tivesse possibilidade de determinar se a tia prestava ateno, observou que inclinava a cabea de vez em quando, franzia os l bios e emitia breves exclamaes. N o entanto, afigurava-se-lhe que os anos consecutivos de medo e ansiedade a tinha m privado do poder de concentrao e um terror latente a impedia de emprestar todo o interesse a uma conversa. Durante a manh, havia as tarefas usuais para executar, pelo que Mary teve possibi lidade de explorar a pousada mais minuciosamente. Era uma casa escura, com muitos e longos corredores e divises em nmero elevado. Ha via uma entrada independente para o bar, num dos lados, e conquanto a sala estiv esse deserta naquele momento, existia algo de pesado na atmosfera reminiscente d a ltima vez que se enchera de clientes: um odor persistente a tabaco e usque e uma impresso de pessoas pouco asseadas comprimidas umas contra as outras nos bancos de cor indefinida. Apesar da sugesto desagrad vel que exalava, era o nico aposento da pousada que con tinha vitalidade sem o ar lgubre e ameaador do resto. As outras divises da casa par eciam abandonadas e o prprio salo, como lhe chamavam pomposamente, junto da entrad a principal, apresentava um aspecto solit rio, como se houvesse muitos meses que um viajante honesto no transpunha a porta para se aquecer diante da lareira acol hedora. Os quartos de hspedes no primeiro andar achavam-se ainda mais desassistid os. Um deles era utilizado para guardar mveis velhos, com caixotes amontoados jun to das paredes e mantas de cavalos trituradas por famlias de ratos. Noutro, batat as e nabos tinham sido armazenados em cima da cama em avanado estado de deteriorao. Mary ponderou que o seu quarto se encontrava em condies similares e devia tia o fa cto de agora conter algumas peas, ainda que modestas, de mobili rio. No se aventur ou a penetrar no corredor pelo qual Joss Merlyn enveredara na v spera. Em baixo, a o fundo de uma passagem que se estendia paralelamente do piso superior, longa e na direco oposta cozinha, havia outro aposento, cuja porta estava fechada chave. E la deu a volta pelo p tio, a fim de espreitar pela janela, mas deparou-se uma la rga t bua pregada na moldura que impedia por completo a visibilidade. A casa e anexos constituam trs lados do pequeno espao quadrangular que formava o p

tio, no meio do qual havia uma rea relvada e um bebedouro. A seguir, estendia-s e a estrada, uma estreita faixa branca que se prolongava em cada lado at ao horizonte, ladeada pela charneca, castanha e alagada pelas recentes chuvadas. Mary encaminhou-se para l e olhou em volta. At onde a vista alcanava, havia apenas terreno inculto as negras colinas ao longe. A pousada cor de ardsia, com as chamin s altaneiras, conquanto parecesse sinistra e abandonada, e ra o nico local de habitao que alterava o cen rio. A oeste, picos rochosos elevados pareciam vigiar as imediaes - uns cobertos de vegetao amarelada, porm outros assust adores e austeros. De vez em quando, o sol era obscurecido por nuvens, e sombras alongadas moviam-se na charneca como dedos fantasmagricos. A cor apresentava-se em manchas - em certos momentos, as colinas pareciam roxas e sarapintadas, para, de sbito, um raio solar perfurar a nebulosidade e conferir uma tonalidade a uma delas, enquanto a mais prxima continuava imersa na penumbra. O panorama nunca era o mesmo, porque se mostrava luminoso e aprazvel a leste, por exemplo, enquanto a oeste o Inverno rctico pairava sobre as elevaes, proporcionado por uma nuvem de nsa com a configurao da capa de um salteador de estradas, que vertia granizo, neve e um pouco de chuva glacial nas encostas granticas. O ar era lmpido e frio como o da montanha e transportava uma fragrncia aprazvel, constituindo uma revelao para Ma ry, habituada ao clima mais c lido de Helford, com as suas sebes e rvores altas e protectoras. O prprio vento leste no resultava incomodativo no local onde nasce ra e vivera durante tanto tempo, porquanto o promontrio servia de baluarte de def esa para os habitantes da terra e somente o rio se tornava turbulento e verde na poca invernosa. Por muito agreste e odiosa que fosse a nova regio para onde se transferira, com a Pousada da Jamaica isolada na colina, como alvo predilecto dos quatro ventos, h avia uma sensao de desafio na atmosfera que convidava Mary Yellan aventura. Estimu lava-a, fazendo-lhe acudir a cor s faces e um, claro especial aos olhos, infiltrav a-se-lhe no cabelo, sacudido em torno do rosto, e quando respirava fundo, introd uzia-se nos pulmes, produzindo um efeito mais excitante e agrad vel que um sorvo de sidra. Aproximou-se do bebedouro e mergulhou as mos na gua, que brotava da fo nte cristalina e quase gelada. Provou um pouco e verificou que no se assemelhava a qualquer da que bebera at ento - com um leve travo amargo e um remoto, porm persi stente, sabor a turfa, como o do fumo do lume da cozinha. Na realidade, era profundo e satisfatrio, pois extinguiu-lhe a sede com prontido. Sentia-se robustecida fisicamente e com o esprito menos acabrunhado. Voltou para dentro procura da tia Patience, o apetite aguado para o almoo que supunha aguard-la. Devorou praticamente o estufado de carneiro e, com a fome debelada pela primeira vez em vinte e quatro horas, sentiu a coragem reaparecer, preparada para proceder ao interrogatrio que at ento protelara e enfrentar as consequncias. - Como se explica que o tio seja o propriet rio da Pousada da Jamaica? A pergunta directa apanhou a mulher desprevenida e, por instantes, olhou a sobrinha sem responder, at que corou, moveu a boca em silncio durante uns segundos e replicou em tom hesitante: - Bem ... um lugar muito frequentado pelos viajantes, como decerto j notaste. Trata-se da estrada principal do sul. As carruagens passam por c duas vezes por semana. Vm de Truro, Bodmin, etc., com destino a Launceston. h sempre gente na estrada. Viajantes, em grupos, fidalgos isolados e, s vezes, at marinheiros de Falmouth. - De acordo, mas por que no entram na pousada? - Mas entram, minha filha. No raro tomarem uma bebida no bar. Temos uma clientela numerosa. - Por que diz isso, se o salo nunca utilizado e os quartos de hspedes servem de ar recadaes, s frequentados por ratos? Estive noutras pousadas, em diversas ocasies. Na aldeia, havia uma, cujo dono era nosso amigo. A me e eu tomamos ch no salo v ri as vezes, e, no primeiro andar, embora houvesse apenas dois quartos, achavam-se

devidamente preparados para receber viajantes. A tia Patience conservou-se silenciosa por um momento, com a boca de novo em mov imento silencioso, enquanto crispava os dedos no regao. - O teu tio no encoraja as pessoas a ficar - acabou por revelar. - Diz que nunca se sabe quem se mete em casa. Num lugar isolado como este, podamos ser assassinados durante o sono. Anda gente de toda a esp cie numa estrada assim. No, no seria aconselh vel nem seguro. - Mas isso no faz sentido, tia. Para que serve uma pousada, se no pode fornecer um a cama a um viajante honesto por uma noite? Com que objectivo foi construda? E de que vivem, se no recebem hspedes? - Claro que os temos, como j te expliquei. Vm homens das herdades e povoaes das redo ndezas. h propriedades e casas dispersas por muitos quilmetros, ao longo da charne ca. Em certas noites, o bar enche-se de gente. - O cocheiro da carruagem em que vim disse-me que as pessoas respeit veis tinham deixado de frequentar a Pousada da Jamaica. E acrescentou que no vinham por medo. A mulher mudou de cor. Empalideceu e comeou a mover os olhos, como se tentasse de terminar se havia ouvidos estranhos nas proximidades. Por ltimo, engoliu em seco, passou a ponta da lngua pelos l bios e murmurou: - O teu tio tem muito mau g nio, como j pudeste observar. Exalta-se com facilidade e no admite que interfiram sua vida. - Mas porque haveria algum de interferir na vida de uma pessoa que se dedica a uma actividade legal? Por muito irascvel que um comerciant e seja, no afugenta a clientela. Conservou-se silenciosa por mais alguns segundos. Chegara ao fim dos seus recurs os e parecia ter emudecido. Reconhecendo a inutilidade de insistir naquele tpico, Mary enveredou por outro rumo. - Porque se instalaram aqui? A minha me ignorava-o por completo. Julgava-os em Bodmin. Foi de onde nos escreveu, quando casaram. - De facto, conheci l o teu tio, mas encontrava-se de passagem - explicou a tia, pausadamente. - Vivemos algum tempo perto de Padstow e depois viemos para aqui. Ele comprou a pousada a Mr. Bassat. Estava fechada h v rios anos e pareceu-lhe que serviria para o que pretendia. Queria fixar-se num lugar, pois viajou muito. Visitou numerosos lugares, de cujos nomes j no me lembro. Creio que at visitou a Am rica. - Acho estranho que resolvesse fixar-se num local como este. De facto, no podia t er escolhido pior. - Fica perto da terra dele. O teu tio nasceu a poucos qullmetros daqui, na regio da Charneca dos Doze Homens. Jem, o irmo, ainda vive l , quando no percorre o pas. Aparece por c s vezes, mas o teu tio no simpatiza muito com ele. - Mr. Bassat cliente da pousada? - No, nunca a visita. - Porqu, se a vendeu ao tio? Mais contores da boca e movimentos nervosos dos dedos no regao, antes da resposta: - Houve um mal-entendido. O teu tio comprou-a atrav s de um amigo. Mr. Bassat s sou be a quem a vendeu quando nos instal mos, e ficou pouco satisfeito. - Porqu? - No se viam desde os tempos em que viviam em Trewartha ainda jovens. O teu tio teve uma juventude agitada e criou fama de turbulento. Ali s, todos os Merlyn eram conflituosos. O irmo, Jem, por exemplo, ainda pior. Mas Mr. Bassat deu ouvidos a uma s rie de falsidades acerca de Joss, pelo que ficou fulo quando descobriu que lhe tinha vendido a pousada.

Foi s isso. A tia Patience reclinou-se na cadeira, exausta em virtude do interrogatrio. Os ol hos imploravam que no surgissem mais perguntas e o rosto apresentava-se lvido e desalentado. Embora consciente de que ela levava uma vida angustiada, Mary, impelida pela aud cia algo cruel dos jovens, quis arriscar mais uma interrogao. - Diga-me s mais uma coisa e no torno a importun-la. Que h de comum entre o quarto t rancado ao fundo do corredor e as rodas que param l fora, durante a noite? Compreendeu imediatamente que fora demasiado longe e, semelhana das pessoas que falam sem reflectir, deplorou que as palavras no pudessem ser esquecidas com prontido. Era, todavia, tarde de mais. O mal estava feito. A mulher exibiu uma expresso estranha e os olhos grandes encovados arregalaram-se de terror. A boca tremia como nunca e uma das mos moveu-se lentamente em direco garganta. Na verdade, parecia apavorada, sob o efeito de um perigo indeterminado iminente. Mary impeliu a cadeira para tr s e ajoelhou ao lado da tia, para lhe rodear a ci ntura com os braos e beijar o cabelo. - Desculpe. No se zangue comigo. Reconheo que fui intrometida e impertinente. O as sunto no de minha conta e confesso que me envergonho de ter procedido assim. Esqu ea as minhas palavras, por favor. A mulher ocultou o rosto nas mos e permaneceu imvel, como que alheia presena da rap ariga. Mantiveram-se ambas silenciosas por alguns minutos, enquanto Mary lhe aca riciava ombro e beijava as mos. Por fim, a tia descobriu o rosto e baixou os olhos para ela. O medo desaparecera e parecia calma, quando pegou por sua vez nas mos da sobrinha e a fitou sem pest anejar. - No posso responder s tuas perguntas, pois desconheo as respostas a muitas delas articulou em voz pouco mais elevada que um murmrio. - Mas porque s minha sobrinha filha da minha irm, tenho de te prevenir. - Olhou por cima do ombro, como se rec easse que o marido se dissimulasse na sombra atr s da porta. - Acontecem coisas na Pousada da Jamaica que nunca me atrevi a revelar a ningum. Coisas m s. Hediond as. No posso descrever-tas, nem admiti-las sequer a mim prpria. No entanto, com o tempo, acabar s por tomar conhecimento de algumas. inevit vel, para quem vive aqui. O teu tio d -se com homens misterioso s que se dedicam a actividades obscuras. s vezes, vm noite e, no teu quarto por ci ma da entrada, ouvir s passos, vozes e pancadas na porta. Ele admite-os e condu-los ao quarto trancado que referiste. Tenho-me apercebido de conversas aba fadas que s vezes se prolongam durante horas. Retiram-se antes do romper do dia e no deixam o menor sinal da sua visita. Quando te inteirares disso, dever s conti nuar deitada e tapar os ouvidos. Nunca me far s perguntas e, ainda menos, ao teu tio, porque se soubesses metade do que eu sei, os teus cabelos tornavam-se gris alhos, como os meus. Passarias as noites a chorar e a tua juventude mirraria em pouco tempo, como aconteceu minha. Levantou-se da mesa, afastou a cadeira, e Mary ouviu-a subir a escada com passos hesitantes e dirigir-se para o quarto, cuja porta fechou. A rapariga continuou sentada no cho ao lado da cadeira acabada de desocupar. Atrav s da janela da cozinha, viu que o Sol j desaparecera atr s da colina mais distante e em breve a malevolncia do crepsculo de Novembro envolveria a Pousada da Jamaica, mais uma v ez. Captulo IV Joss Merlyn esteve ausente de casa cerca de uma semana, e

Mary aproveitou o facto para se familiarizar um pouco com a regio. A sua presena no se tornava necess ria no bar, pois os clientes no apareciam quando o propriet rio no se achava em casa, pelo que, depois de ajudar a tia na faina dom stica, dispunha de tempo para se deslocar aonde quisesse. Patience Merlyn no manifestava predileco pelas longas caminhadas, alm de que no desejava aventurar-se para alm da capoeira das traseiras, nem possua o menor sentido da orientao. Tinha uma ideia vaga dos nom es das elevaes, porque ouvira o marido mencion -los, mas ignorava por completo a s ua localizao ou vias de acesso. Assim, Mary costumava sair de casa por volta do me io-dia, dispondo apenas do Sol para a guiar e um certo senso comum bem enraizado que constitua a herana natural de uma mulher do campo. A charneca ainda era mais inspita do que ela supusera primeira vista. semelhana de um deserto imenso, estendia-se de leste para oeste, com marcas de rodas aqui e ali e colinas altaneiras a intervalos irregulares. Era-lhe impossvel determinar os limites para alm de que, numa ocasio, ao trepar a u ma elevao nas traseiras da pousada, avistou o claro prateado do mar. Tratava-se, contudo, de uma regio silenciosa e desoladora, vasta, virgem do efeito da mo do homem. No topo de alguns penhascos, as placas de pedra apoiavam-se umas s outras em configuraes estranhas, como sentinelas macias que se conservavam ali desde que Deus as produzira. Algumas lembravam peas de mobili rio gigantesco, como cadeiras monstruosas e mesas contorcidas, mas tambm havia as que pareciam um gigante, cuja sombra obscurecia a urze e a vegetao rasteira acastanhada. Viam-se igualmente placas longas empinadas, mantidas em equilbrio por qualquer processo miraculoso, como se pretendessem opor-se fora do vento assim como esp cies de altares aparentemente virados para o ceu, espera de um sacrifcio que nunca se consumava. Existiam os corvos e abutres, pois as colinas eram a habitao ideal para todas as criaturas solit rias. Gado negro mordia a vegetao rasteira da charneca, movendo-se com prudncia e evitand o, graas a um instinto inato, a relva viosa, que na realidade no passava do tapete dissimulador da rea pantanosa. Quando o vento soprava nas colinas, silvava de f orma lgubre nas frestas do granito e por vezes gemia como um homem flagelado por dores. Ventos estranhos sopravam de rumos indefinidos - envolviam a superfcie da vegetao, que estremecia, e agitavam os pequenos charcos de gua da chuva nas covas das pe dras, fazendo-os ondular. s vezes, pareciam gritar e chorar, e os sons ecoavam na s paredes granticas, para acabarem por se perder na imensido. O silncio que imperav a nas encostas rochosas pertncia a outras pocas, que tinham passado e desaparecido como se nunca houvessem existido - pocas em que o homem ainda no aparecera e pass os pagos percorriam as colinas. E prevalecia uma quietude na atmosfera, juntament e com uma paz ainda mais estranha e antiga que nada tinha de comum com a de Deus . Enquanto percorria a charneca, trepava aos outeiros e colinas e descansava junto dos cursos de gua cristalina, Mary pensava em Joss Merlyn e na juventude que d ecerto tivera e atravessara sob o efeito de correntes contr rias intensas, como as de um vento norte furibundo, que o haviam moldado para aquilo que agora era. Um dia, ela cruzou a Charneca do Leste, na direco que ele lhe indicara na primeira noite, e quando se encontrou no topo de uma pequena elevao, circundada pelo terre no rido, viu que a encosta se prolongava para um pntano traioeiro, atraves do qual um riacho gorgolhava e cantava. E, do outro lado do pntano, apontando os dedos alongados ao c u, havia um rochedo escarpado que parecia esculpido por mo maligna.

Devia tratar-se do penhasco Kilmar. E, algures entre a massa consolidada de pedr a, cujo topo ocultava o Sol, nascera Joss Merlyn e ainda agora vivia o irmo. Matt hew Merlyn afogara-se no pntano a seus p s. Arrastada pela imaginao, viu-o atravessar a charneca, assobiando despreocupadamente, e, surpreendido pelo anoitecer antes de empreender o regresso, hesitar quanto ao rumo a seguir. Fizera uma pausa para tentar orientar-se e, por fim, com um encolher de ombros de indiferena, mergulhara na neblina nocturna. No entanto, antes de dar meia dzia de passos, sentira o terreno ceder sob os p s e no tardara a ficar enterrado em lodo e vegetao viscosa at aos joelhos. Os movimentos - ponderados, inicialmente, mas depois desesperados - s serviram para lhe agravar a situao. Em da do momento, conseguira libertar uma das pernas, mas mergulhara-a em seguida num local ainda mais perigoso. Mary conseguia ouvir os gritos de terror e alarme de Matthew, medida que se afundava, at que, em escassos minutos, o silncio se restabe leceu e a superfcie da rea pantanosa readquiriu a aparncia inocente habitual, par a o que concorria a camada de vegetao. Por fim, voltou as costas ao Kilmar e comeou a correr na charneca, tropeando na urze e pedras soltas, no se detendo at o pntano desaparecer pela interposio da elevao que acabava de escalar e o penhasco deixar igualmente de estar visvel. Afastara-se da pousada mais do que tencionava, pelo que o caminho de regresso foi mais longo. Pareceu-lhe decorrer uma eternidade, antes de transpor a ltima colina, deix-la par a tr s e avistar as chamin s da casa beira da estrada sinuosa. Quando atravessava o p tio, viu com desalento que a porta da estrebaria estava aberta e o cavalo no est bulo. Joss Merlyn voltara da misteriosa digresso. Mary abriu a porta o mais silenciosamente possvel, todavia no pde impedir que se ar rastasse nas lajes e rangesse em protesto. O som ecoou no escuro corredor e, no instante imediato, o propriet rio da pousada surgia das traseiras, inclinando a cabea para no colidir com as vigas. Tinha as mangas da camisa arregaadas acima dos cotovelos e um copo e um pano nas mos. Parecia bem-humorado, pois ergueu a que se gurava o copo e rugiu sem irritao: - No franzas o nariz ao ver-me! Devias estar contente pelo meu regresso. Tiveste saudades minhas? Mary fez um esforo para sorrir e perguntar se a viagem decorrera sem problemas. - Os problemas no interessam - foi a pronta resposta. O essencial que me proporcionou dinheiro. Em todo o caso, no estive hospedado no pal cio do rei, se isso que te preocupa. Soltou uma gargalhada estrondosa, divertido com as suas prprias palavras, e a mulher apareceu, como que em obedincia a uma deixa, para fazer coro com ele. Assim que a hilaridade de Joss se extinguiu, a expresso alegre desapareceu do rosto dela, cujo ar apreensivo latente regressou superfcie, a par da atitude de pateta que em regra exibia diante do marido. Mary pressentiu imediatamente que a relativa despreocupao de que a tia desfrutara durante os ltimos dias pertencia ao passado e voltava a ser a criatura nervosa e apreensiva de sempre. Por ltimo, preparou-se para subir a escada em direco ao quarto, todavia o tio chamo u-a. - Espera a. Esta noite, no h boa vida. Tens trabalho no bar, a meu lado. No sabes qu e dia hoje? Ela deteve-se para reflectir e reconheceu que comeava a perder a noo do tempo. Fora na carruagem de segunda-teira que viera? Nesse caso, agora era s bado. Acto contnuo, compreendeu ao que ele se referia. Naquela noite, a Pousada da Jamaica teria clientes.

Os habitantes da charneca chegaram individualmente, para cruzarem o p tio com rapidez e discrio, como se no quisessem que os vissem. Carecia m de substncia, luz imprecisa, e pareciam meras sombras, enquanto deslizavam ao l ongo da parede e alcanavam o refgio da entrada, para baterem porta do bar e serem admitidos. Alguns faziam-se acompanhar de lanternas, cujo claro dir-se-ia incomod -los, pois tentavam neutraliz -lo cobrindo-as com os casacos. Dois ou trsentrara m no p tio montados em pneis, cujos cascos produziam sons secos no empedrado, os quais ecoavam sinistramente na noite silenciosa, seguindo-se o ranger da porta d a estrebaria e o murmrio abafado dos homens que conduziam as montadas para dentro . Outros revelavam-se ainda mais furtivos, desprovidos de lanternas, pois atrave ssavam o p tio com as abas do chap u puxadas para os olhos e gola do casaco levant ada, denunciando, com a discrio dos seus movimentos, que no desejavam ser vistos. O motivo dos seus ares furtivos no era aparente, porquanto qualquer viajante que p assasse na estrada poderia observar que a Pousada da Jamaica proporcionava hospi talidade, naquela noite. A luz brotava das janelas, em geral fechadas e s escuras , e, medida que as horas se sucediam, o som de vozes comeou a pairar na atmosfera . s vezes, ouviam-se cnticos e exclamaes ruidosas, acompanhadas de gargalhadas no men os sonoras, o que indicava que os visitantes, chegados furtivamente, como que en vergonhados da atitude anterior, tinham perdido o acanhamento, quando a coberto do tecto da casa e reunidos com os outros companheiros de libao, com os cachimbos acesos e copos cheios, e abandonado as precaues. Era na verdade, um grupo singular que se juntara em torno de Joss Merlyn, no balco. Confortavelmente separada deles por este ltimo e semioculta por uma barreira de garrafas e copos, Mary podia observar os clientes sem lhes despertar a ateno Uns encavalitavam-se nos bancos altos, enquanto outros se reclinavam nos bancos, encostavam parede ou pousavam os cotovelos nas mesas, e, trs ou quatro, cujas cabeas ou estmagos eram visivelmente m enos resistentes que os dos restantes, j se haviam deitado no cho. O asseio no cons titua caracterstica de primeira necessidade para a maioria, alm de que se apresenta vam quase andrajosos e desgrenhados, em imitaes muito perfeitas de vadios, gatunos , ladres de gado e ciganos. Havia um agricultor que perdera a herdade por m admi nistrao e desonestidade, um pastor que incendiara v rias medas de feno do patro, um negociante de cavalos expulso de Devon por actividades suspeitas. Um indivduo er a sapateiro em Launceston e, a coberto do ofcio, transaccionava objectos roubados , ao passo que outro, estendido no cho por j no se aguentar de p , antigo imediato de uma escuna, deixara-a embater nos rochedos, num dia de mar calmo. O homem de pe quena estatura sentado ao canto, entretido a roer as unhas, era um pescador de P ort Isaac, e circulavam rumores de que possua uma quantidade apreci vel de ouro o culto na chamin da sua casa, mas a provenincia da pequena fortuna permanecia imers a em profundo mist rio. Havia os que viviam nas proximidades da pousada, sombra do s penhascos, e nunca tinham conhecido qualquer lugar alm da charneca, a regio pant anosa e as massas granticas. Um viera a p , sem lanterna, de Crowdy Marsh, para alm do Roughtor, trazendo Brown Willy na sua esteira, enquanto outro provinha de Che esewring e sentava-se agora diante de uma caneca de cerveja, com os p s pousados n a mesa, ao lado do infortunado imbecil que percorrera o longo caminho desde Dozm ary. Este ltimo ostentava um sinal de nascena que se prolongava por toda a face, n uma esp cie de trao arroxeado, que se mostrava empenhado em esgaravatar com as unha s, proporcionando-lhe um aspecto quase repugnante, ao ponto de Mary, que o obser vava por entre a barreira de garrafas, experimentar n useas e, devido combinao do odor da bebida e do tabaco com o de corpos desconhecedores das regras de higiene corporal mais elementares, sentir uma repulsa quase irresistvel, e compreendeu q ue no se manteria de p por muito tempo. Por sorte, no necessitava de circular entre to extica clientela, pois as suas funes consistiam em conservar-se atr s do balco, d issimulada tanto quanto possvel, para lavar e secar os copos que lhe fossem parar s mos e voltar a ench-los, enquanto Joss Merlyn os servia aos clientes ou circulav a pela sala e trocava uma ou outra palavra, de um modo geral ordin ria, com os h omens que, na sua totalidade, parecia conhecer perfeitamente. Aps um coment rio j ocoso inicial ou um olhar de curiosidade ou ainda um sorriso

malicioso significativo, todos se mostraram desinteressados da presena de Mary. Aceitavam-na como sobrinha do propriet rio da Pousada da Jamaica, uma esp cie de servial de Mrs. Merlyn, como lhes foi apresentada, e, conquanto um ou dois dos mais jovens no tivessem manifestado relutncia em entabular conversa com a rapariga, estavam plenamente conscientes dos olhos bem abertos de Joss e temiam que qualquer tentativa de familiaridade o irritasse, pois decerto a fora buscar para seu divertimento pessoal. Por conseguinte, ningum a importunava, ante o seu profundo alvio, embora, se conhecesse o motivo das reticncias daqueles clientes, decerto a abandonasse o bar, envergonhada e indignada. A tia no se mostrou aos intrusos, se bem que Mary se apercebesse ocasionalmente d a sua sombra atr s da porta, alm de passos no corredor e, numa ocasio, surpreendeu -lhe os olhos apreensivos entre uma nesga, como se esquadrinhasse a sala. O sero parecia intermin vel, e a rapariga ansiava pelo seu termo. Entretanto, a atmosfe ra tornara-se to densa de fumo e bafos saturados de lcool que resultava difcil en xergar de um extremo ao outro da sala, e, ante o seu olhar fatigado, os rostos dos homens pareciam distorcidos, reduzidos a cabelo e dentes, com bocas demasiado grandes para os seus corpos, enquanto aqueles que haviam atingido, e ultrapassado, a sua capacidade de absoro de bebida estendiam-se nos bancos ou no cho como cad veres, com os rostos ocultos nas mos. Os que se mantinham suficientemente sbrios para continuar de p tinham-se reunido e m torno de um indivduo de aspecto imundo de Redruth, que se distinguia pelas tira das divertidas. A mina onde trabalhara achava-se em runas, pelo que resolvera gan har a vida ao ar livre, mais concretamente, percorrendo as povoaes como bufarinhei ro, o que lhe permitira enriquecer o repertrio de historietas obscenas e canes dete st veis, agora desbobinadas para g udio da clientela a Pousada da Jamaica. As gargalhadas que coroavam as suas intervenes quase abalavam o tecto, dominadas, evidentemente, pelas do propriet rio; e, para Mary, havia algo de pavoroso em semelhantes manifestaes de riso, que, de um modo estranho inexplic vel, no continham uma nota de alegria, mas ecoavam nos corredores obscuros e nos quartos desertos do primeiro piso como lamentos de uma criatura torturada. Naquele momento, o bufarinheiro divertia-se custa do imbecil de Dozmary, o qual enlouquecido pela bebida, perdera todo o autodomnio e no conseguia erguer-se do cho, onde se agachava como um animal. Por fim, colocaram-no em cima de uma mesa e obrigaram-no a repetir os versos das canes, acompanhados dos gestos apropriados, por entre as risadas estrondosas dos outros. O infeliz, excitado pelos aplausos irnicos, contorcia-se como que possudo de acessos de nervosismo indom veis, sem parar de esgaravatar o sinal de nascena arroxeado. Mary decidiu que no aguentava mais e tocou no ombro do tio com os dedos. Este virou-se, o rosto avermelhado e, aparentemente, dilatado pelo calor que imperava na sala, alagado em transpirao. - No suporto isto - anunciou ela. - Vai ter de cuidar dos seus amigos sozinho. Re tiro-me para o meu quarto. Ele limpou o suor da fronte com a manga da camisa e olhou a sobrinha com intensi dade. Ela notou com admiraco que, embora o tivesse visto beber v rias vezes, esta va sbrio e, apesar de chefe-de-fila da ruidosa assistncia, sabia perfeitamente o q ue fazia. - Com que ento, no suportas isto, hem? Achas-nos indignos da tua companhia, aposto . Vou dizer-te uma coisa, minha menina. Tens passado umas horas regalada atr s d o balco, sem que ningum te incomode, e devias estar-me grata por isso. No te import unam por seres minha sobrinha, de contr rio no tinhas mos, por assim dizer, a medi

r para satisfazer as solicitaes. - Soltou mais uma gargalhada hom rica e beliscou-lh e a face com violncia. - Bem, pe-te l a mexer. De resto, quase meia-noite e j no pr eciso de ti. No te esquecas de trancar a porta do quarto e baixar o estore. A tua tia deitou-se h mais de uma hora e cobriu a cabea com a manta. Acercou os l bios do ouvido dela e, segurando-lhe o pulso, torceu-o at a obrigar a emitir um grito de dor, antes de prosseguir em voz baixa: - uma leve amostra do que te espera, se pisares o risco. Se conservares a boca fechada, prometo tratar-te como uma ovelha. Convm no esqueceres que a curiosidade sai muito cara, na Pousada da Jamaica. - Assumiu uma expresso grave e olhou-a fix amente, como se pretendesse ler-lhe o pensamento. - No s pateta como a tua tia, in felizmente. Tens cara de esperta e miolos a condizer, e no te amedrontas com facilidade - acrescentou em tom pausado. - No entanto, fica ciente do seguinte, Mary Yellan. Se meteres o nariz onde no deves, no te deixo um nico osso inteiro. E agora vai encafuar-te no quarto e no voltes a manifestar a tua presena esta noite. Voltou-lhe as costas e, de cenho franzido, como se algo o preocupasse, pegou num copo de cima do balco e ps-se a sec -lo pensativamente com um pano. A expresso de desdm no olhar da sobrinha decerto o irritara, porquanto o bom humor desaparecera por completo e, de sbito, atirou o copo ao cho fazendo-o em numerosos pedaos. - Arranquem a roupa a esse imbecil e mandem-no despido para a companhia da mam! vociferou. - possvel que o ar de Novembro lhe arrefea a cara rubra e o cure. Est amos fartos dele. O bufarinheiro e o seu grupo uivaram de prazer e, deitando o pobre pateta de cos tas, comearam a retirar-lhe o casaco e as calas, enquanto ele se debatia infrutife ramente e balia como um cordeiro. Mary abandonou apressadamente