A Preparação Do Ator - Stanislavski

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  • I 111c: O comeo do caminho certo. Voces o acharam111111 I' ru lida prpria. Por enquanto no deve haver outra1111111\11' entrar em contato com um papel ou uma pea. Para111111111mll'l a importncia desta partida certa, comparem o111" flll'l,11I1 ainda agora com o que fizeram na prova de atua-111 I. TiO cm alguns momentos, esparsos e acidentais, na

    1111111.,11li' Maria e de Kstia, vocs todos comearam o tra-I! ""li pcl fim e no' pelo comeo. Tinham resolvido despertar11111I cmoo tremenda em vocs mesmos e nos espectadores,1111'11de sarda. Proporcionar-Ihes algumas vvidas imagens e,111IIll'SIllO tempo, exibir todos os dotes interiores que vocsIHI~'lIall1. Essa atitude inicial errada levou-os, naturalmente, 'vloll ncia . Para evitar tais erros lembrem-se, de uma vez portodas, que ao iniciarem o estudo de cada papel, vocs devem,IIII! 'S, reunir todo o material que tiver qualquer relao com'1' c cornplet-lo, com imaginao cada vez maior, at conse-ruir m uma semelhana to grande com a vida real que lhess ja fcil acreditar no que fazem. No incio esqueam o~ss ntirnentos ~Q....as condi...esinteriores estiverem --p-re.{2a-radas - e cersas - os sentimentos viro tona espontanea-mente.

    P'INLAlDkYjC ~~Qp.u do do(

    S Ci \J\\i~ bfQS')Ie.~'(O; A9.6'8

    80

    CAPTULO IV

    Imaginao

    o DIRETOR pediu-nos que fssemos ao seu apartamentopara a aula de hoje.

    Acomodou-nos confortavelmente no escritrio e comeou:. :-:- Vocs agora sabem que o nosso trabalho numa pea

    p~Inclpla ~o~ o uso do se, com.o alavanca para nos erguer daVIda quotidiana ao plano da imaginao A pea, os seuspapis, so invenes da imaginao do autor, uma srie inteirade ses e de circunstncias dadas, cogitadas por ele. A realidadefatual coisa que no existe em cena. A arte produto da ima-ginao assim como o deve ser a obra do dramaturgo. at rdeve ter. por objetivo aplicar sua tcnica para faz r da P cnuma realidade teatral. Neste processo o maior pap 1 cab 11fidvida, imaginao. '

    Apontou para as paredes do escritrio, recobcrtn: le t( 1 \sorte de desenhos concebveis para cenrios. .

    HI

    ----------,

  • I 111c: O comeo do caminho certo. Voces o acharam111111 I' ru lida prpria. Por enquanto no deve haver outra1111111\11' entrar em contato com um papel ou uma pea. Para111111111mll'l a importncia desta partida certa, comparem o111" flll'l,11I1 ainda agora com o que fizeram na prova de atua-111 I. TiO cm alguns momentos, esparsos e acidentais, na

    1111111.,11li' Maria e de Kstia, vocs todos comearam o tra-I! ""li pcl fim e no' pelo comeo. Tinham resolvido despertar11111I cmoo tremenda em vocs mesmos e nos espectadores,1111'11de sarda. Proporcionar-Ihes algumas vvidas imagens e,111IIll'SIllO tempo, exibir todos os dotes interiores que vocsIHI~'lIall1. Essa atitude inicial errada levou-os, naturalmente, 'vloll ncia . Para evitar tais erros lembrem-se, de uma vez portodas, que ao iniciarem o estudo de cada papel, vocs devem,IIII! 'S, reunir todo o material que tiver qualquer relao com'1' c cornplet-lo, com imaginao cada vez maior, at conse-ruir m uma semelhana to grande com a vida real que lhess ja fcil acreditar no que fazem. No incio esqueam o~ss ntirnentos ~Q....as condi...esinteriores estiverem --p-re.{2a-radas - e cersas - os sentimentos viro tona espontanea-mente.

    P'INLAlDkYjC ~~Qp.u do do(

    S Ci \J\\i~ bfQS')Ie.~'(O; A9.6'8

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    CAPTULO IV

    Imaginao

    o DIRETOR pediu-nos que fssemos ao seu apartamentopara a aula de hoje.

    Acomodou-nos confortavelmente no escritrio e comeou:. :-:- Vocs agora sabem que o nosso trabalho numa pea

    p~Inclpla ~o~ o uso do se, com.o alavanca para nos erguer daVIda quotidiana ao plano da imaginao A pea, os seuspapis, so invenes da imaginao do autor, uma srie inteirade ses e de circunstncias dadas, cogitadas por ele. A realidadefatual coisa que no existe em cena. A arte produto da ima-ginao assim como o deve ser a obra do dramaturgo. at rdeve ter. por objetivo aplicar sua tcnica para faz r da P cnuma realidade teatral. Neste processo o maior pap 1 cab 11fidvida, imaginao. '

    Apontou para as paredes do escritrio, recobcrtn: le t( 1 \sorte de desenhos concebveis para cenrios. .

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  • ".

    - Vejam, disse-nos - so todos obra de um dos meuSartistas prediletos, j, f~lecido. Era um homem esquisito, quegostava de fazer cenanos para peas que ainda no estavamescritas. Vejam, por exemplo, este desenho para o ltimo atode uma pea que Tchkhov planejava escrever pouco antes desua morte: sobre uma expedio perdida no glido Norte.

    Quem acreditaria - acrescentou - que isso foi pintadopor um homem que em toda a sua vida jamais ultrapassara ossubrbios de Moscou? Tirou uma cena rtica daquilo que viaem casa, no inverno, de histrias e publicaes cientficas defotografias. Com todo esse material, sua imaginao pintou' umquadro.

    . Chamou, ?epois nossa ateno para outra parede na qualh~vla .urna ,s:ne de paisagens vistas atravs de vrias disposi-oes de esprito. Em cada uma delas a mesma fila de atraentescasinhas, perto de um bosque de pinheiros - s que a pocado ano, a hora do dia e as condies climticas eram diferen-tes. Mais adiante na parede, o mesmo lugar, sem casas, tendoapenas. uma clareira, um lago e vrios tipos de rvore. O pin-tor, e~ldentemente, gostava de modificar o arranjo da naturezae a VIda dos seres humanos a ela subordinados. Em todos osseus quadros construa e derrubava casas e aldeias mudava oaspecto local e movia montanhas. '. . - E aqui esto .alg~ns esboos de cenrio para uma peamexistente, sobre a VIda interplanetria - isto designando ou-tros desenhos e aquarelas. Para pintar desses quadros o artistaprecisa no s de imaginao, mas de fantasia tambm.

    - E qual a diferena entre as duas? - perguntou umdos alunos.

    - A imaginao cria coisas que podem existir ou acon-tecer, ao 'p~sso que a fantasia inventa coisas que no existem,nunca eXlstl:am e nem existiro. E, no entanto, quem sabe,talvez um dia elas passem a existir. Quando a fantasia criouo Tapete Mgico, quem iria pensar que ns um dia estaramosv.?an~o ~tra.vs d~ e~pao? Tanto a fantasia quanto a imagina-ao sao indispensveis para o pintor.

    - E para o ator? - perguntou Paulo.- O que que voc acha? O dramaturgo acaso fornece

    tudo que ~s .atores tm d.e s~ber sobre a pea? Pode-se, acaso,em cem pagrnas, relatar mteramente a vida da lista de perso-

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    nagens? O autor, por exemplo, fornece pormenores suficientesdaquilo que aconteceu antes do incio da pea? E faz-nos, acaso,saber o que acontecer depois de terminada ou o que se passapor trs das cenas? O dramaturgo, freqentemente, avaro noscomentrios. possvel que, no texto, achemos apenas: "osmesmos e Pedro" ou "sai Pedra". Mas a gente no pode surgirdo ar de repente ou nele desaparecer. Ns nunca acreditamosem nenhuma ao praticada "em geral": "ele se levanta", "andade um lado para outro, agitado", "ri", "morre". At as ca-ractersticas pessoais so fornecidas laconicamente, como: " umjovem de aspecto agradvel, fuma muito". No precisamenteuma base bastante ampla para a criao de todo o seu aspectoexterior, seus modos, seu andar .

    E as falas? Ser bastante decor-Ias?Ser que os dados fornecidos descrevem o carter dos per-

    sonagens e nos indicam todos OS matizes dos seus pensamen-tos, sentimentos, impulsos e atos?

    A tudo isso o ator deve dar maior amplitude e profundi-dade. Nesse processo criador a imaginao o conduz.

    A esta altura nossa aula foi interrompida pela visita ines-perada de um clebre ator trgico estrangeiro. Disse-nos tudosobre os seus triunfos e depois que se foi o Diretor declaroucom um sorriso:

    - Est claro que romanceav. Mas uma pessoa assimimpressionvel acredita, deveras, nas suas prprias invenes.Ns, atores, habituamo-nos de tal modo a enfeitar os fatos compormenores tirados da nossa imaginao; que acabamos portrazer esse hbito para a vida comum. Nela, naturalmente, osdetalhes imaginrios so to suprfluos quanto so necessriosno teatro.

    Referindo-nos a um gnio, no diramos que prega menti-ras. V a realidade com olhos diferentes dos nossos. Seriajusto censur-Ia quando a sua imaginao o obriga a usarculos de lentes rseas, azuis, cinzentas ou negras?

    Devo confessar que eu mesmo sou, muitas vezes, foradoa mentir quando, como artista ou como Diretor, vejo-me svoltas com um papel ou uma pea que no me atrai. Nessecaso as minhas faculdades criadoras paralisam-se. Preciso deum estimulante qualquer e, assim, comeo a dizer a todo mundocomo estou entusiasmado com o meu trabalho. Sou forado a

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  • caar o que quer que ele tenha de interessante e vangloriar-medisso. Assim, a minha imaginao espicaada. Se eu estivessesozinho no faria esse esforo, mas quando trabalhamos comoutras pessoas temos de documentar solidamente as nossasmentiras. E acontece, freqenternente, que essas mentiras po-dem ser utilizadas como material para um papel ou uma direo.

    - J que a imaginao tem papel to importante no tra-balho do ator - perguntou Paulo, um tanto encabulado - oque que ele pode fazer quando carece dela?

    - 'rer de desenvolv-Ia - respondeu o Diretor - ouento desistir do teatro. De outro modo, cair nas mos dediretores que compensaro a sua deficincia com as suas pr-prias imaginaes, fazendo dele um joguete. No seria melhordesenvolver uma imaginao sua mesmo?

    - Receio, disse eu - que isso seja muito difcil.- Depende do tipo da imaginao que tiver - disse o

    Diretor. A imaginao dotada de iniciativa prpria pode desen-volver-se sem nenhum esforo especial e trabalha, constante eincansvel, quer voc esteja dormindo, quer acordado. Depoish aquela que no tem iniciativa, mas fcil de despertar e con-tinua agindo logo que lhe sugerem alguma coisa. A imaginaoque no reage s sugestes cria um problema mais difcil. Comela o ator recebe as sugestes de um modo apenas exterior cformal. Assim equipado, o seu desenvolvimento est crivadode dificuldades e h pouqussima esperana de xito, a no serque ele faa um esforo enorme.

    A minha imaginao tem iniciativa?Ser sugestionvel?Desenvolver-se- espontaneamente?Estas perguntas no me deram trgua, Tarde da noite tran-

    quei-me no quarto, instalei-me confortavelmente no sof, ro-deado de travesseiros, fechei os olhos e comecei a improvisar,Mas a minha ateno distraiu-se com umas manchas coloridas,redondas, que ficavam passando diante das minhas plpebrasfechadas.

    Apaguei a luz, julgando ser ela a causa dessas sensaes.Em que deveria pensar? Minha imaginao revelou-me

    rvores numa grande floresta de pinheiros, movendo-se com

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    brandura e ritmo, sob uma brisa suave. Podia sentir o cheirodo ar fresco.

    Por que... nesta serenidade toda... estou escutando otique-taque de um relgio?

    Eu tinha ferrado no sono! ....Ora, est claro, compreendi, eu no devia imaginar coisas

    sem propsito. ,Portanto, subi num avio, por sobr.e a c?pa das arv.ores,

    voando sbre elas, sobre os campos, nos, Cldad:s... tique-taque, faz o relgio. Quem esse, ronean~o? ~ao pode sereu. .. ser que cochilei? .. ser que dormi mUlto?.. o re-lgio bate as oito ...

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    Fiquei to desencorajado c?m ? fr~casso das ~inhas ten-tativas de exercitar em casa a imagmaao que, hoje, na aula,falei com o Diretor sobre isso.

    - Voc no o conseguiu porque fez uma srie de erros- explicou ele. Em primeiro lugar, forou a imaginao, aoinvs de a estimular. Depois, tentou pensar sem ter um assuntointeressante. O seu terceiro erro foi que seus P7nsaI?entos Aer~mpassivos. Na imagina.o, ~ ativida~e tem m~xlma importncia,Primeiro vem a ao interior, depois a extepor. . .

    Assinalei que, de um certo modo, est~vera em atividade,pois voava sohre as florestas a grande velocidade

    - Quando voc est confortavelmente recostado, ~entrode um trem expresso, est em atividade? pergun~ou o DIretor.- O maquinista est trabalhando, mas o passageiro ma?tm-sepassivo. Claro que se estiver ocupado com algum negcio, uI?aconversa ou discusso importante, ou escrevendo um rt:l~t6no,no trem, voc teria, ento, alguma base para falar em atividade.Tambm no seu vo de aeroplano o piloto trabalhava, mas vocno fazia nada. Se estivesse nos controles, ou tirando fotogra-fias topogrficas, poderia dizer que estava a~ivo. .'

    Talvez possa explicar descrevendo o Jogo predileto daminha sobrinhazinha. . .

    - O qu que c t fazendo? - pergunta a rneninazinha ,- Estou fazendo ch - respondo.

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  • .. '.

    Mas, pergunta ela - se fosse leo de rcino, entocomo que c ia beb?

    - Sou forado a lembrar-me do gosto do leo de rcinopara mostrar-lhe a repugnncia que sinto e quando o consigoa sala ressoa com O riso da garota.

    - Onde que c t sentado?- Numa cadeira, respondo.

    . - Mas se fosse num fogo pelando, ento o qu que cfazia?

    . ~ Sou obrig.ado ~ ver-me num fogo quente e procurodecidir como me livrarei de morrer queimado. Quando acertoa menina fica com pena e grita: "eu no quero mais brinc".'Se continuo, acaba por cair em pranto.

    - Por que voc no inventa um jogo desses como exer-ccio para despertar a atividade?

    A eu o interrompi para dizer que aquilo era elementare pergu.ntei ~omo poderia desenvolver a imaginao por mto-dos mais suts ,

    - No tenha pressa - disse o Diretor. Ter tempo desobra. Por enquanto, precisamos de exerccios relacionadoscom as coisas simples que de fato nos cercam.

    Tome, por ~xemplo, a nossa classe. um fato real. Supo-nha que o ambiente, o professor, os alunos permaneam taiscomo esto. Agora, com o meu se mgico vou colocar-me noplano do faz-de-conta, mudando apenas uma circunstncia: ahora do dia. Direi que no so trs da tarde e sim as trsda madrugada.

    . Use a imaginao para justificar uma aula que termineassim to tarde. Desta simples circunstncia decorre toda umasrie de conseqncias. Sua famlia, em casa, estar aflita porsua causa. Como aqui no h telefone, voc no pode avis-Ia.Um outro aluno deixar de comparecer a um festa, onde oesperam. Um terceiro mora no subrbio e no sabe como irpara casa, pois os trens j pararam. Tudo isso acarreta modifi-caes exteriores e tambm interiores, colorindo as suas aes.

    Ou experimentem outro ponto de vista:A hora continua sendo as trs da tarde, mas suponhamos

    que a poca do ano mudou. Em vez de inverno primavera,o ar est maravilhoso c at mesmo na sombra faz calor, l fora.

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    Vejo que j esto sorrindo. Depois da aula tero tempopara dar uma volta. Resolvam o que vo fazer; justifiquem adeciso com as suposies necessrias - tero novamente bases.para um exerccio.

    Este foi apenas um dos inmeros exemplos de como vocspodem usar seus poderes interiores para modificaras coisasmateriais que os cercam. No procurem livrar-se dessas coisas.Pelo contrrio, incluam-nas em sua vida imaginria.

    Essa espcie de transformao ocupa um lugar legtimo emnosso tipo mais ntimo de exerccios, Podemos usar cadeirascomuns para delinear qualquer coisa que a imaginao de umescritor ou de um diretor nos pea para criar: casas, praas,navios, florestas. No faz mal se no conseguimos crer que essacadeira um determinado objeto, porque, mesmo sem cr-lo,podemos experimentar o sentimento que ele desperta.

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    Iniciando a aula de hoje, o Diretor disse:- At agora os nossos exerccios para desenvolver a ima-

    ginao tm-se relacionado, em maior ou menor grau, comfatos materiais, como a moblia, ou com realidades da vida, comoas estaes. Agora, vou transferir nosso trabalho para um planodiferente. Desistiremos do tempo, lugar e ao no que se refereaos seus acompanhamentos externos e vocs faro a coisa todadiretamente com o esprito.

    - Bom - perguntou, voltando-se para mim - onde que voc gostaria de estar e a que horas'?'

    - No meu quarto, respondi - noite.- Bom - disse ele. Se eu tivesse de ser transportado

    para esse ambiente ser-me-ia absolutamente necessrio apro-ximar-me, primeiro, da casa; subir os degraus da frente; tocara campainha; praticar, em suma, toda uma srie de aes queme levariam a estar no meu quarto.

    Est vendo uma maaneta para pegar? Sente-a girar? Abre-se a porta? E agora, o que tem pela frente?

    - Bem, na minha frente, um armrio, um bureau.O que v esquerda?

    - Meu sof e uma mesa.

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  • .,

    Tente andar para baixo e para cima. Tente viver noquarto. Em que que est pensando?

    Achei uma carta, lembrei-me de que est sem resposta.Sinto-me envergonhado.

    - Voc, evidentemente, est mesmo no seu quarto -declarou o Diretor. E agora, o que vai fazer?

    - Depende da hora- respondi.- Esta observao - aprovou - sensata. Convenha-

    mos que sejam as onze da noite.- A melhor das horas - disse eu - quando todos em

    casa esto, provavelmente, dormindo.E por que voc deseja, especialmente, essa quietude?

    - Para me convencer de que sou um ator trgico.- uma pena querer gastar o seu tempo com uma fina-

    lidade to triste. Como pretende convencer-se?Representarei, s para mim, algum papel trgico.

    - Que papel? Otelo?- Oh, no! respondi. No posso representar Otelo no

    meu quarto. Cada canto est repleto de evocaes e isso ape-nas me levaria a copiar o que j fiz.

    - Ento, o que vai representar? - exigiu o Diretor.No respondi, porque no tinha resolvido. Por isso ele

    perguntou:- O que que est fazendo agora?- Estou olhando em volta do quarto. Pode ser que algum

    objeto, alguma coisa, ao acaso, sugira um tema criador.- Bem - me apressou, j pensou em alguma coisa?Comecei a pensar em voz alta. Atrs do meu armrio -

    disse, h um canto escuro, com um gancho perfeito para algumse enforcar. Se quisesse me enforcar, como que eu faria?

    - Sim? - atiou-me o Diretor.aturalmente, antes de mais nada, teria de arranjar

    uma corda, ou um cinto, uma correia ...- E agora, o que est fazendo?-- Dando busca nas minhas gavetas, prateleiras, armrios,

    para ver se acho uma correia.- Est vendo alguma coisa?- Sim, achei a correia. Mas, infelizmente, o gancho est

    muito perto do cho. Eu o tocaria com os ps ...

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    No conveniente - concordou o Diret r. Veja seacha outro gancho.

    - No h outro capaz de me agentar.

    - Ento, talvez seja melhor voc continuar vivo e ocupar-se com alguma coisa mais interessante e menos emocionante.

    - Minha imaginao' secou - respondi.

    - Isso no de espantar - disse 'ele. O seu tema noera lgico. Seria dificlimo chegar, logicamente, concluso deSUicidar-se porque queria uma mudana no seu estilo de repre-sentao. f: razovel que a sua imaginao tenha recuado quan-do voc lhe pediu que fosse de uma premissa duvidosa a umaconcluso idiota.

    Apesar disso, este exerccio serviu para demonstrar umnvo modo de usar sua imaginao num local onde tudo lheera familiar. Mas o que far quando tiver de. imaginar umavida que no lhe familiar?

    Suponhamos que faa uma viagem ao redor do mundo. Nopoder imagin-Ia "de um certo modo" ou "em geral" ou "apro-ximadamente", porque em arte todos esses termos esto deslo-cados. Ter de faz-lo com todos os pormenores adequados ato vasta empreitada. Apegue-se firme lgica e coerncia,pois isto o ajudar a conservar os sonhos escorregadios e in-substanciais perto dos fatos slidos e firmes.

    Quero explicar-lhe, agora, como poder utilizar, em vriascombinaes, os exerccios que temos feito. Pode dizer a simesmo: "serei um simples espectador, observando, o que aminha imaginao pinta para mim, enquanto no tomo a menorparte nessa vida imaginria?

    Ou, se resolver participar das atividades dessa vida imagi-nria, visualizar mentalmente os seus associados, e com elesvoc, e, mais uma vez, ser um espectador passivo.

    Finalmente, ficar cansado de bancar o observador e que-rer agir. Ento, como participante dessa vida imaginria, nomais se enxergar a si prprio, mas apenas ver aquilo que ocerca e reagir interiormente a isso, .pois voc uma parte realdsse todo.

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  • ."

    ..

    ,4

    Hoje o Diretor comeou as suas observaes dizendo-noso que temos de fazer sempre que o autor, o diretor e outroscolaboradores do espetculo omitirem coisas que precisamossaber.

    Necessitamos, antes de mais nada, de uma srie ininter-rupta de supostas circunstncias, no meio das quais se desen-volve o nosso exerccio. Segundo, temos de contar COm umalinha slida de vises interiores, ligadas a essas circunstncias,de modo que elas sejam ilustradas para ns. Durante cada se-gundo que estivermos no palco, a cada momento do desenrolarda ao da pea, temos de estar cnscios, ou das circunstnciase~te!'nas que nos cercam (toda disposio material do espe-tculo y ou de uma cadeia interior de circunstncias que foramimaginadas por ns mesmos, a fim de ilustrarmos 110SS0S papis.

    . Com esses n:omentos formar-se-a uma srie ininterruptade imagens, parecida com um filme cinematogrfico. Enquantoa nossa atuao for criadora, essa fita desenrolar-se- e proje-tar-se- na tela da nossa viso interior, tornando vvidas ascircunstncias por entre as quais nos movemos. Alm disso.essas imagens interiores criam um estado de esprito correspon-dente a elas e despertam emoes, ao mesmo tempo que nosmantm dentro dos limites da pea.

    -- Quanto a essas imagens interiores - perguntou o Di-retor - ser certo dizer que sentimos que elas esto dentrode ns? Temos a faculdade de ver coisas que no esto pre-sentes, fazendo delas uma imagem mental. Tomemos esse can-delabro. Existe f~ra de mim. Olho para ele, tenho a impressode que estou projetando na sua direo o que se poderia cha-mar de antenas visuai . Fecho os olhos agora e vejo outra vezo candelabro, na tela da minha viso interior.

    D-se o mesmo processo ao lidarmos com os sons. Ouvi-mos rudos imaginrios com um ouvido interior e no entantosentimos que a origem desses rudos, na maioria dos casos, estfora de ns.

    Podem por isto prova de diversas maneiras, como porexemplo, fazendo um relatrio coerente de toda a sua vida emfuno de imagens das quais vocs se recordam. Isso pode

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    parecer difcil, mas creio que descobriro que, na realidade, otrabalho no assim to complicado.

    -- E por qu? perguntaram vrios alunos a uma voz.- Porque, embora os nossos, sentimentos e as nossas ex-

    perincias emocionais sejam mutveis e impossveis de captar,aquilo que vimos muito mais substancial. As imagens se fixamcom muito mais facilidade e firmeza em nossa memria visuale podem ser evocadas vontade.

    - O problema ento se resume - disse eu - em comocriar um quadro inteiro?

    - Essa pergunta - respondeu o Diretor, erguendo-separa sair - discutiremos na prxima vez.

    5

    - Vamos fazer um filme imaginrio, props o Diretor,ao entrar hoje na sala. Escolherei um tema passivo porque dmais trabalho. A esta altura estou menos interessado na aopropriamente dita do que na maneira de encar-Ia. Sugiro porisso, Paulo, que voc est vivendo a vida de uma rvore.

    - Bom, disse Paulo, decidido - sou um vetusto carva-lho! Entretanto, embora eu o tenha dito, no o creio deveras.

    - Nesse caso - sugeriu o Diretor - por que no diz asi mesmo "eu sou eu. Mas, se eu fosse um velho carvalho, plan-tado em meio a determinadas condies ambientes, o que que eu faria?" E decida onde est; numa floresta, numa cam-pina, no alto de uma montanha, em qualquer lugar que maislhe agrade.

    Paulo franziu as sobrancelhas e decidiu, finalmente, queestava plantado numa elevada campina, nos Alpes. Para a es-querda, h um castelo, sobre uma colina.

    - O que est vendo perto de voc? perguntou o Diretor.- Em mim mesmo vejo uma espessa coberta de folhas,

    farfalhando.- Farfalham mesmo, concordou o Diretor. O vento l

    em cima deve soprar forte, freqentemente.- Nos meus galhos, prosseguiu Paulo - vejo alguns

    ninhos de pssaros.

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  • .. ..

    ,O Diretor, ento, impeliu-o a descrever cada detalhe desua vida imaginria de carvalho.

    Quando chegou a vez de Leo, ele fez a escolha maiscomum e sem imaginao possvel: disse que era um bangal,num jardim, no Parque ..

    O que que est vendo? - perguntou o Diretor.- O Parque - foi a resposta.- Mas voc no pode ver todo o Parque de uma vez!

    Tem de se decidir por um ponto determinado. O que h, bemdiante dos seus olhos?

    - Uma crca.- De que material? Ferro fundido.Leo calou-se e, assim, o Diretor prosseguiu:

    Do que feita a crca?- Que tipo de cerca?- Descreva. Qual o desenho?Leo ficou um tempo enorme traando crculos na mesa,

    com o dedo. Estava claro que falara sem pensar.- No estou entendendo. Tem de descrev-Ia com maior

    clareza.Evidentemente, Leo no se esforava por despertar a

    imaginao. Ignorando a possvel utilidade que teria um ra-ciocnio to passivo, fui pergunt-lo ao Diretor.

    - No meu processo para por em atividade a imaginaodo aluno - explicou - h certos pontos que convm notar.Quando a sua imaginao est inerte, fao-lhe uma perguntasimples. Como foi interrogado, tem -de responder. Se respondesem pensar, rejeito a resposta. Ento, para encontrar uma res-posta mais satisfatria, o aluno ter de despertar a imaginao,bu, caso no o faa, ter de atacar o assunto com o crebro, pormeio do raciocnio lgico. Muitas vezes o trabalho da imagina-o preparado e dirigido dessa forma consciente, intelectual.O aluno, ento, v alguma coisa, quer na memria, quer naimaginao: h, diante dele, certas imagens visuais definidas.Por um breve' instante, ele vive num sonho. Depois disso, novapergunta e o processo repete-se. E mesmo com a terceira e aquarta, at que sustentei e alonguei aquele breve instante, fa-zendo dele algo de parecido com um quadro completo. Podeser que, a princpio, isto no seja interessante. Mas seu valor que a iluso foi tecida com imagens interiores do prprio es-

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    tudante. Obtido isto, ele a poder repetir uma, duas, ou muitasvezes. Quanto mais a recordar, mais fundamente a ter im-pressa na sua memria e cada vez passar a viver mais pro-fundamente nela.

    Mas s vezes temos que lidar com imaginaes lerdas,incapazes de reagir at mesmo s perguntas mais simples. Nessecaso s me resta uma sada: no s6 proponho a pergunta, mastambm sugiro a resposta. Se o aluno puder utilizar essa res-posta, prosseguir por conta prpria. Se no puder, rnud-la-,substituindo-a por alguma outra coisa. Seja como for, teve deusar a sua prpria viso interior. Afinal, obtm-se, em parte,uma existncia ilusria, embora o estudante s tenha contribudocom uma parte do material. O resultado pode no ser plena-mente satisfatrio, mas assim mesmo j alguma coisa.

    Antes de fazer esse esforo, ou o estudante no tinha ima-gem alguma nos olhos do esprito, ou a que tinha era confusae vaga. Depois da tentativa, consegue ver algo de definido eat mesmo vvido. O terreno est preparado para que o profes-sor ou o diretor plante novas sementes.

    Essa a tela onde o quadro ser pintado. Mais ainda, oaluno aprendeu o mtodo que lhe permitir tomar conta dasua imaginao e exercit-Ia com problemas sugeridos por suaprpria mente. Adquirir o hbito de lutar deliberadamentecontra a passividade e a inrcia de sua imaginao e isto umlargo passo frente.

    6

    Hoje continuamos com os mesmos exerccios para desen-volvermos as nossas imaginaes.

    - Na ltima aula - disse o Diretor a Paulo - voc medisse quem era, onde estava e o que via com os olhos do esp-rito. Descreva-me, agora, o que o seu ouvido interior ouvecomo um velho carvalho imaginrio.

    A princpio Paulo no ouvia nada.- No ouve coisa alguma na campina em volta?A ele disse que podia ouvir os carneiros e as vacas, o

    rumor do capim mascado, o tinir I dos cincerros das vacas, o

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  • .. I"-

    tagarelar das mulheres, descansando aps o trabalho noscampos.

    - Diga-me, agora, quando que isto se est passando emsua imaginao - disse o Diretor interessado.

    Paulo escolheu a poca feudal.- Ento voc, como velho carvalho, ouve rumores que

    so especialmente caractersticos daquele tempo?Paulo refletiu um instante e disse que podia ouvir um

    menestrel errante, a caminho de um festival num casteloprximo.

    - Por que que voc est sozinho no meio de um campo?indagou o Diretor.

    Em resposta, Paulo deu a seguinte explicao: o outeirotodo onde fica o velho carvalho solitrio estava, outrora, enco-berto por densa floresta. Mas o baro do castelo prximo corriaconstante risco de ataques e, temendo que essa floresta pudesseocultar os movimentos das foras de seus inimigos, f-Ia abater.S este velho carvalho poderoso foi poupado. Deveria protegeruma fonte que, jorrando sua sombra, dava a gua necessriaaos rebanhos do baro.

    O Diretor, ento, observou: - De um modo geral, essapergunta: por que motivo? importantssima. Obriga-os a es-clarecer o objeto das suas meditaes, indica o futuro e I-losagir. Uma rvore, est claro, no pode ter um objetivo ativo,mas, apesar disso, pode ter alguma significao ativa e servira algum fim.

    A Paulo interveio, sugerindo: "o carvalho o ponto maiselevado daquela redondeza. Serve, portanto, de sentinela, deproteo, contra ataques".

    - Agora, disse ento o Diretor - que, pouco a pouco,a sua imaginao acumulou um nmero suficiente de circuns-tncias dadas, comparemos nossas notas com as do comeodesta tarefa. A princpio, voc conseguia pensar que eraum carvalho, plantado numa campina. Os olhos do seu espritoestavam cheios de generalidades, nublados como um negativomal revelado. Agora j pode sentir a terra sob suas raizes. Masest privado da ao, que ' necessria no palco. Resta, por-tanto, ainda um passo a dar. Voc ter de descobrir uma sim-ples circun tncia nova, capaz de toc-lo emocionalmente e Ie-v-Io ao.

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    Paulo tentou com todo esforo, mas no conseguiu pensarem nada.

    - Neste caso, disse o Diretor, procuremos resolver o pro-blema indiretamente. Antes de mais nada diga-me, na vida real,o que que lhe fala mais sensibilidade? O que desperta, commais freqncia do que qualquer outra coisa, os seus sentimen-tos - seu medo, sua alegria? Pergunto isso completamente parte do tema de sua vida imaginria. Quando conhecemos asinclinaes da nossa prpria natureza, fcil adapt-Ias s cir-cunstncias imaginrias. Mencione, portanto, algum trao, qua-lidade, interesse, que seja tipicamente seu.

    -' Fico muito emocionado com qualquer tipo de luta -disse Paulo, depois de refletir um momento.

    - Neste caso, o que ns queremos uma incurso doinimigo. As foras do duque vizinho j vm galgando, feito umenxame, a campina onde voc est. A qualquer momento come-ar, aqui, o combate. Sobre voc chovero flechas dos arcosinimigos, algumas com a ponta embebida em flamejante alcatro.Fique firme, agora, e decida, antes que seja tarde demais, oque que voc faria se isso de fato lhe acontecesse.

    Mas Paulo apenas podia atormentar-se por dentro, semconseguir nada. Afinal, exclamou:

    O que que uma rvore pode fazer para se salvar,quando est segura no cho pelas razes e incapaz de semexer?

    - Para mim basta a sua excitao - disse o Diretor,visivelmente satisfeito. Este particular problema insolvel e,se o tema carece de ao, a culpa no sua.

    - Ento, por que o props? perguntaram.- S6 para provar-lhes que at mesmo um tema passivo

    pode produzir um estmulo interior e incitar-nos ao. umexemplo de como todos os nossos exerccios de desenvolvirnen-to da imaginao devem Ihes ensinar a preparar o material, asimagens interiores, para os seus papis.

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    No incio da aula de hoje o Diretor fez algumas observa-es sobre o valor da imaginao para refrescar e emprestar

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  • ,. -..novo brilho a alguma coisa j preparada e utilizada, antes, peloator.

    Mostrou-nos como introduzir uma nova suposio em nos-so exerccio do louco atrs da porta, o que lhe deu uma orien-tao completamente nova.

    - Adaptem-se s novas condies, ouam o que elas Ihessugerem e. " atuem! .

    Representamos com ardor e com real excitao, pelo quenos cumprimentou.

    O final da aula consagrou-se a um sumrio do que con-seguramos.

    Todo invento da imaginao do ator deve ser minuciosa-mente elaborado e solidamente erguido sobre uma base de fatos.Deve estar apto a responder a todas as perguntas (quando,onde, por qu, como) que ele se fizer a si mesmo enquantoincita suas faculdades inventivas a produzir uma viso, cada vezmais definida, de uma existncia de "faz-de-conta". Algumasvezes no ter de desenvolver todo esse esforo consciente, in-telectual. Sua imaginao pode trabalhar intuitivamente. Masvocs mesmos j viram, por experincia prpria, que no sepode contar com isso. Imaginar em geral, sem um tema bemdefinido e cabalmente fundamentado, trabalho infrutfero.

    Por outro lado, uma atitude consciente, arrazoada, paracom a imaginao, produz, muitas vezes, uma apresentao davida falsificada e anmica.

    Para o teatro isso no serve.

    Nossa arte requer que a natureza inteira do ator estejaenvolvida, que ele se entregue ao papel, tanto de corpo comode esprito. Deve sentir o desafio ao, tanto fsica quantointelectualmente, porque a imaginao, carecendo de substnciaou corpo, capaz de afetar, por reflexo, a nossa natureza fsica,fazendo-a agir. Esta faculdade da maior importncia emnossa tcnica de emoo.

    Portanto: cada movimento que vocs fazem em cena, cadapalavra que dizem, resultado da vida certa das suas ima-ginaes.

    Se pronunciarem alguma fala ou fizerem alguma coisa,mecanicamente, sem compreender plenamente quem so, deonde vieram, por qu, o que querem, para onde vo e que

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    faro quando chegarem l, estaro representando sem ,a. ima-ginao. Esse perodo, quer seja curto, quer l?ngo" sera I.rreale vocs no passaro de autmatos, de mquinas as quais sedeu corda. . .

    Se eu, agora, lhes perguntar uma coisa perfeitamente SIm-pIes: - hoje faz frio? - antes de responde~, m~sm~ com u!ll"sim" ou "no faz frio", vocs, nas suas imaginaoes, teraode voltar rua e lembrar como vieram, a p, ou por algumtransporte. Devem por prova as suas sensaes, recordandocomo estavam agasalhadas as pessoas que encontraram, comolevantavam a gola, como a neve rangia sob os seus ps. E s6ento podero responder minha pergunta.

    Se obedecerem, rigorosamente, a esta regra em todos C~seus exerccios, pertenam eles parte do nosso programa aque pertencerem, vero como se desenvolvem e como ganhamfora as suas imaginaes.

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