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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES - CEART DOUTORADO EM TEATRO CLÁUDIA MULLER SACHS A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO: A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR FLORIANÓPOLIS-SC 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

CENTRO DE ARTES - CEART

DOUTORADO EM TEATRO

CLÁUDIA MULLER SACHS

A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO:

A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR

FLORIANÓPOLIS-SC

2013

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CLÁUDIA MULLER SACHS

A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO: A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR

Tese apresentada ao Curso de Pós graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro.

Orientador: Prof.Dr.Edélcio Mostaço

FLORIANÓPOLIS, 2013

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 S121r

SACHS, Cláudia Muller A imaginação é um músculo: a contribuição de Lecoq para o trabalho do ator./ Cláudia Muller Sachs. – Florianópolis, 2013. 225 f.: il.

Tese (Doutorado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.

Orientador: Dr.Edélcio Mostaço

Inclui bibliografia.

1. Lecoq. 2. Imaginação. 3. Ator. I. Mostaço, Edélcio. II. Universidade do Estado de Santa Catarina – Pós Graduação em Teatro. III. Título.

792

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CLÁUDIA MULLER SACHS

A IMAGINAÇÃO É UM MÚSCULO: A CONTRIBUIÇÃO DE LECOQ PARA O TRABALHO DO ATOR

Tese apresentada ao Curso de Pós graduação em Teatro, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Teatro. Banca Examinadora Orientador: __________________________________________________________ Prof. Dr.Edélcio Mostaço

Universidade do Estado de Santa Catarina Membro:_____________________________________________________________

Profa. Dra. Marta Isaacsson da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Membro:_____________________________________________________________

Prof. Dr. Narciso Telles Universidade Federal de Uberlândia

Membro:_____________________________________________________________

Profa. Dra. Sandra Meier Nunes Universidade do Estado de Santa Catarina

Membro:_____________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda Universidade do Estado de Santa Catarina

Florianópolis, 4 de março de 2013.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES, sem cujo apoio financeiro não seria possível esta

pesquisa.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Edélcio Mostaço, pela confiança, pelo apoio e

pela disposição para me apontar caminhos.

Aos professores e secretárias do PPGT, Programa de Pós-Graduação em

Teatro da UDESC, pela incansável presteza e boa vontade.

A todas as pessoas que se dispuseram a ser entrevistadas, filmadas,

fotografadas, compartilhando suas experiências de modo a propiciar este estudo.

Aos professores que me acolheram em Paris por ocasião da Bolsa

“Sanduíche”, especialmente a Prof. Dra. Josette Féral e o Prof. Dr. Jean-François

Dusigne.

Aos pilares firmes da família, especialmente Karin Sachs, Suzi Weber, Beth

Gubert, Vivian de Campos, Mauricio Gubert, que estiveram sempre de braços abertos

para acolher a mim e ao Santiago.

À grande rede de apoio ao longo desses quatro anos, no Brasil e no exterior,

membros da família: Vânia Sachs, Evelise Oliveira, Leonardo e Marjorie Gubert,

Céline Lefebvre. E aos amigos Quica (Marisa) Rozman, Janaína Martins, Dominique

Moaty, Heloise Vidor, Rosane Pinto, Nazaré Cavalcanti, Sérgio Meyer, Ismael

Scheffler, Fábio Salvatti, Cecília Daut, Christine Roquet, Zilá Muniz, Sílvia Lemos,

Ana Cláudia Oliveira, Fani, Vera Collares, Milton do Prado, Maria Paula, Sandra

Siggelkow, Ana e Tato, Escola Anabá, Monsieur Blanzat, Sarah Moaty.

Aos professores que me auxiliaram na caminhada, Marta Isaacsson, Gilberto

Icle, Vera Colasso, Stephan Baumgärtel, Matteo Bonfitto.

Aos meus pais, Raul e Lya, que certamente estariam muito felizes e presentes

nesse momento, por me ensinarem a trabalhar com paixão, a seguir buscando, a viver

com alegria, pelo amor à vida, herança que trago comigo e procuro compartilhar.

E por último, por ser o mais especial, agradeço ao Santiago, sentido maior da

minha vida, pela paciência, pela compreensão, pela parceria, pelo amor e pela alegria.

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RESUMO

Sachs, Cláudia Muller. A imaginação é um músculo: a contribuição de Lecoq para o trabalho de ator. 2013. 225f. Tese (Doutorado em Teatro) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, 2013. Este estudo trata da questão da imaginação no trabalho do ator, incitado por aspectos

da pedagogia de Jacques Lecoq. A pesquisa teve por objetivo uma melhor

compreensão de minha experiência como atriz, diretora, preparadora corporal e

professora por meio da análise conceitual de aspectos dessa pedagogia. São trabalhos

práticos baseados em exercícios codificados, inspirados pela mímica e pelo mimismo

e improvisações que tomam a natureza e sua dinâmica intrínseca como tema principal.

A noção de Fundo Poético Comum é apontada como a visão fundamental dessa

pedagogia, servindo como inspiração para a imaginação do ator, na medida em que

associa sua dinâmica a seus movimentos. Tal noção é abordada com base em

pressupostos oriundos das ciências naturais, da filosofia e do pensamento oriental,

pautando-se principalmente em autores como Gaston Bachelard, Marcel Jousse, Henri

Bergson e Fritjov Capra. Notadamente designada para o tipo de teatro no qual a

importância da prática corporal sobrepõe-se à do texto falado, do qual pode até

prescindir, essa pedagogia visa instrumentar o artista das artes cênicas em suas

diferentes funções, e o ator é incentivado a desenvolver uma atitude de autor do seu

trabalho. São estabelecidas relações com aspectos históricos do teatro francês do

século XX e com as abordagens sobre a imaginação no trabalho do ator em

Stanislavski e Chekhov, assim como o questionamento sobre a atuação enquanto

performer ou ator presentes nos estudos teatrais contemporâneos. O estudo foi

estruturado pela organização da prática em si, mantendo as etapas de apresentação,

alongamento, aquecimento, improvisação e criação, tomando como corpus de análise

experiências como aluna na École International de Théâtre Jacques Lecoq, como

diretora dos espetáculos “O Baile dos Anastácio” e “O Defunto”, como atriz de

“Gueto Bufo”, como professora em várias oficinas de teatro, assim como depoimentos

de colegas, alunos e atores envolvidos nesses processos.

Palavras chave: Ator. Imaginação. Lecoq. Treinamento. Processo criativo.

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ABSTRACT

Sachs, Cláudia Muller. The imagination is a muscle: the contribution of Lecoq to the actor’s work. 2013. 225f. Thesis (Doutorate in Theater) – University of the State of Santa Catarina, Theater Post-Graduation Program, 2013.

This study addresses the issue of the imagination in the actor’s work encouraged by

aspects of the pedagogy of Jacques Lecoq. The research aimed at a better

understanding of my experience as an actress, director, body coach and teacher,

through a conceptual analysis of some aspects of this pedagogy. It’s a practice based

on codified exercises inspired on mime and mimism as well as on improvisations that

take the nature and its intrinsic dynamics as the main theme. The notion of Fond

Poétique Comum is identified as the fundamental view of this pedagogy that serves as

inspiration for the imagination of the actors whilst associating its dynamics to their

movement. This notion is discussed based on assumptions derived from the natural

sciences, philosophy and Eastern thought, mainly from authors like Gaston Bachelard,

Marcel Jousse, Henri Bergson and Fritjov Capra. Notably designed for the kind of

theater in which the importance of the body practice overlaps the one of the spoken

text, which it may even be dispensed, this pedagogy aims to instrument the

performing arts artist in their different functions, and the actors are encouraged to

develop an attitude of being the author of their work. Relationships are established

with some historical aspects of the French theater of the twentieth century and the

approaches to the imagination in the actor’s work in Stanislavski and Chekhov, as

well as questions about acting whether as performer or as an actor, present in the

contemporary theater studies. The study was structured based on the organization of

the practice itself, keeping the steps of presentation, stretching, warming up,

improvisation and creation, taking as as corpus of analyses experiences as a student of

the École International de Théâtre Jacques Lecoq, as the director of the shows “O

Baile dos Anastácio” and “O Defunto”, as the actress of “Gueto Bufo”, as a teacher in

several workshops, as well as testimonials of classmates, students and actors involved

in these processes.

Key words: Actor. Imagination. Lecoq. Training. Creative process

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LISTA DE FIGURAS

Fig.01 Lutte à La barre par traction et répulsion combinées - Método de Georges

Hébert........................................................................................................................31

Fig.02 Quadro: Estrutura da Proposta Pedagógica.......................................................37

Fig.03 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio” da Cia.Oigalê.....................52

Fig.04 Cubos de Pirita; Cristal de Ametista; Estibnita com Barita; Hematita............80

Fig.05 Lâmina delgada de rocha vulcânica..................................................................81

Fig.06 Imagem de satélite-“Brasil Visto do Espaço”...................................................81

Fig.07 Desenhos de Lecoq dos Vinte Movimentos......................................................99

Fig.08 As Nove Atitudes............................................................................................103

Fig.09 Oskar Schlemmer – “Danse des Bâtons”, 1928 – Catálogo Danser sa Vie ..105

Fig.10 Espetáculo “Miséria servidor de dois estancieiros” da Cia.Oigalê, 2008......107

Fig.11 Desenhos de Lecoq dos Vinte Movimentos –Éclosion...................................108

Fig.12 Atriz Heloise Vidor – preparação corporal de “Uma Lady MacBeth”...........108

Fig.13 Monges meditando em cachoeiras..................................................................147

Fig.14 Alunos na oficina “Imaginação e criação pelo movimento” durante FITUB –

Festival Internacional de Teatro Universitário -Blumenau-SC, 2012.....................151

Fig.15 Wassily Kandinski - Composition VIII, 1923.......…………………………..152

Fig.16 Ondas do mar; Preparação corporal Cia Oigalê Sequência de 3 fotos...........154

Fig.17 O Baile dos Anastácio - Porto Alegre, 2012……………..............................155

Fig.18 Gare du Nord, Paris…………………………………………………………170

Fig.19 Shopping Centre, Paris…………………………………………………...…170

Fig.20 “Guernica”, 1937. Pablo Picasso....................................................................172

Fig.21 “O Concerto” , 1957. Marc Chagall…………………………………………175

Fig.22 “Naufrágio”, 1805. William Turner………………………………………....177

Fig.23 “Um trigal com Ciprestes”, 1889. Van Gogh..................................................179

Fig.24 Alunos da oficina “Imaginação pelo Movimento” – Blumenau, 2012...........179

Fig.25 “Paisagem com Arco íris”, 1639. Peter Paul Rubens……………………….180

Fig.26 “May–June”, 1973. Francis Bacon.................................................................184

Fig.27 O Baile dos Anastácio – Parque Marinha do Brasil, POA, 2012...................193

Fig.28 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio”, 2012................................196

Fig.29 Atriz Cláudia Sachs como ‘Filó’ em Gueto Bufo – POA, 1998 e 2001.........200

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................9 2 APRESENTAÇÃO..................................................................................................14 2.1 TRAJETÓRIA PESSOAL E PERCURSO DA PESQUISA.................................14 2.2 METODOLOGIA E CORPUS DE ANÁLISE.....................................................18 2.3 BREVE HISTÓRICO JACQUES LECOQ...........................................................23 2.3.1 Rede de Influências...........................................................................................26 2.3.2 Aspectos da École International de Lecoq.......................................................36 3 ALONGAMENTO..................................................................................................42 3.1 PÁGINA EM BRANCO .......................................................................................42 3.2 SOBRE A IMAGINAÇÃO....................................................................................48 3.2.1 Alguns conceitos de Bachelard.......................................................................53 3.2.2 Alguns conceitos de Jousse.............................................................................61 3.2.3 Relações entre Bachelard e Jousse.................................................................64 3.2.4 Imaginação do Ator em Stanislavski e Chekov............................................65 3.3 FUNDO POÉTICO COMUM................................................................................73 3.3.1 Ciências Naturais.............................................................................................77 3.3.2 Filosofia e Vedanta..........................................................................................82 3.3.3 Diálogo entre Ciência e Oriente.....................................................................85 3.3.4 Mimesis.............................................................................................................87 4 AQUECIMENTO ...................................................................................................97 4.1 VINTE MOVIMENTOS........................................................................................97 4.2 TREINAMENTO.................................................................................................112 4.3 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS.....................................................................125 4.3.1 Teatro Total.....................................................................................................125 4.3.2 Atuação e Formação: ator ou performer?.....................................................129 5 IMPROVISAÇÃO ................................................................................................143 5.1 ELEMENTOS......................................................................................................145 5.2 MATÉRIAS ........................................................................................................158 5.3 PINTURA............................................................................................................162 6 CRIAÇÃO .............................................................................................................182 6.1 AUTO-COURS.....................................................................................................182 6.2 DIREÇÃO............................................................................................................188 6.3 ATUAÇÃO..........................................................................................................198 6.4 PESQUISA...........................................................................................................202 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................207 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................211

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1 INTRODUÇÃO

Este estudo dedica-se a investigar a maneira como determinadas práticas que

venho utilizando, a partir da pedagogia de Jacques Lecoq, contribuem para o

desenvolvimento da imaginação do ator, a qual torna-se o tema central, à luz do qual

analiso tal prática. A pesquisa tem por objetivo uma melhor compreensão de minha

experiência como atriz, diretora, preparadora corporal e professora por meio da

análise conceitual de alguns aspectos dessa pedagogia por mim utilizados.

Aprofundando a pesquisa apresentada na minha pesquisa de mestrado, quando

realizei um estudo conceitual sobre a metodologia de Lecoq, pretendo identificar sua

utilização em meu trabalho no que diz respeito à relação entre a prática e sua

dimensão poética como potencializadores da imaginação do ator. São modos de

trabalho para desenvolver o corpo poético de que fala Lecoq, que vão materializar

conceitos abstratos a partir de modelos da natureza e da vida cotidiana.

O quê exatamente estou querendo descobrir? Iniciei questionando-me sobre a

relevância da metodologia de Lecoq na formação de atores contemporâneos,

preocupados com questões da performance, da não-atuação, do não-personagem.

Identifiquei a imaginação como competência fundamental para o trabalho do ator

desde sempre, permanente, para além do tempo e da escolha estética e que é bastante

enfatizada em Lecoq e consequentemente em minha própria prática. Assim, passei a

pesquisar a maneira como sua pedagogia induz a imaginação do ator.

Esta pesquisa parte, portanto, de exemplos práticos de minha trajetória

artística e pedagógica para estabelecer relações entre algumas das noções que mais

utilizo, advindas diretamente da pedagogia de Lecoq e das possíveis contribuições

para o desenvolvimento da imaginação no trabalho do ator a partir dessa abordagem.

Para evitar generalizações, destaco noções como, por exemplo, a de “jogo e rejogo”, a

diferença entre mimismo e mimetismo, a de improvisação com os elementos e

matérias, os princípios do movimento por ele propostos, a utilização de modelos para

a criação através da prática de sequências codificadas denominadas Vinte

Movimentos, todas assentadas sobre o fundamento de Fundo Poético Comum.

Parto do problema de que, se a prática de Lecoq trabalha a partir de modelos,

enfocando a forma em movimento, seja em relação à criação de cenas como de

personagens, de que maneira ela contribui para desenvolver a imaginação do ator?

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Como fomenta a imaginação? Enquanto formação e criação, como se dá esse

processo? Até que ponto ele é induzido e define um estilo característico? Qual a

margem de liberdade de criação imaginativa que essa prática proporciona? Como essa

pedagogia pode ainda ser válida nos moldes do teatro contemporâneo contaminado

pelos estudos da performance?

Ariane Mnouchkine (FÉRAL, 2010) usa a expressão “a imaginação é um

músculo” para falar do trabalho do ator, dizendo que é preciso dar músculos à sua

imaginação como uma forma de ajudar a alimentar seus imaginários. Para ela, esse

seria o músculo mais importante do ator e o qual deve ser exercitado, fortalecido,

trabalhado, pois, do contrário, a imaginação definha, fica fora de forma, atrofia como

qualquer outro músculo. Esse exercício é feito pelo corpo em movimento, livre das

imagens que são clichês e muletas, que são o contrário da imaginação. Essa

musculatura se fortalece quando o corpo está envolvido na criação, em ação, partindo

do real, do corpo que parte de movimentos codificados que tomam as manifestações

da natureza e da vida cotidiana como modelos. Ex-aluna de Lecoq, Mnouchkine

herdou dele essa crença de que é pela prática corporal que a imaginação é exercitada,

fomentada por um mecanismo de associação de ideias que perpassa corpo e mente.

Como continuadora dessa tradição, disponho-me a detectar e a analisar essas

relações a partir dos exercícios que utilizo com alunos e atores, além de minha

experiência pessoal. Definido o campo de estudo como sendo a minha própria prática

enquanto atriz, diretora, professora e preparadora corporal, juntamente com os

depoimentos colhidos a partir das experiências de alunos, de colegas e de artistas

envolvidos, permito-me o mergulho sobre o tema da imaginação do ator e de seus

modos de desenvolvimento ali propiciados. Essa prática, portanto, me é familiar, mas

as teorias que a ela se aliam são variadas, complexas, oriundas da escolha de um

conjunto de autores junto aos quais organizei uma possível leitura das relações com o

tema tratado.

Inspirada na maneira como geralmente procedemos nas práticas teatrais, seja

num curso de longa duração, numa oficina, numa aula, num ensaio, a escrita dessa

tese seguirá o mesmo tipo de encadeamento de exercícios propostos para desenvolver

um tema, que nesse caso, é aquele associado à imaginação. Ao descrever seus

aspectos técnicos, aproveito para apresentar e analisar as ideias e os conceitos

subjacentes em tais práticas. Tomo uma estrutura bastante utilizada para a

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organização de um curso de teatro que inicia, por exemplo, com todos sentados em

roda, ocasião em que cada participante faz uma rápida apresentação de si: seu nome,

de onde vem, o que faz, o porquê de estar interessado nesse conhecimento. Muitas

vezes o ministrante também apresenta-se rapidamente, embora seja bastante provável

que os que ali estão já tenham informações colhidas previamente sobre ele. No meu

trabalho, também costumo agir dessa maneira, parto de uma breve apresentação sobre

o trabalho a ser realizado ali. Em seguida, inicia-se a prática em si, passando por um

momento de alongamento do corpo, depois um aquecimento com movimentos mais

vigorosos, um trabalho com improvisações e, por fim, a criação mais livre e autoral.

Encerra-se a sessão com os participantes sentados mais uma vez em roda para uma

conversa sobre o que foi realizado, esclarecimentos e compartilhamentos sobre a

experiência vivida.

Sendo assim, organizei o presente estudo dentro desses mesmos parâmetros,

quais sejam: apresentação, alongamento, aquecimento, criação e encerramento, logo,

a maneira como encadeio minha própria prática servirá como fio condutor para

estruturar a reflexão que proponho. Além de usar essas divisões para descrever e

analisar as práticas em si que permeiam toda a tese, permito-me o uso metafórico

desses termos para estendê-las como possibilidades de exposição e de questionamento

de conceitos que as embasam.

Seguindo essa lógica, após uma breve introdução, o segundo capítulo trata da

apresentação da pesquisa, iniciando com meu percurso pessoal até chegar ao tema em

questão. Apresento a metodologia utilizada e o corpus de análise considerado, tal seja,

os trabalhos práticos que serão tomados para tal. Dada a variedade de fontes, a

metodologia é de caráter híbrido, já que, além da observação proveniente da

etnocenologia, há também autoetnocenologia e análise epistemológica. Em seguida,

apresento um breve histórico de Jacques Lecoq, aspectos de sua trajetória de vida, de

pessoas e eventos que constituíram uma rede de influências em sua obra, assim como

aspectos de sua pedagogia que julguei relevantes para a presente abordagem.

Após as devidas apresentações, no terceiro capítulo, proponho um exame

sobre o alongamento corporal para tornar o corpo disponível para o tipo de exercício

que se sucederá, a necessidade de estabelecer um espaço interno, como uma página

em branco, para iniciar o trabalho. Estendo-o metaforicamente para certos

pressupostos que delimitam o universo conceitual dessa pesquisa, ou seja, os limites

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até onde alcança minha rede de conceitos para acercar o tema da imaginação,

enfocando, principalmente, certos aspectos da filosofia de Gaston Bachelard e da

antropologia de Marcel Jousse, no intuito de estabelecer bases para as análises sobre

esse assunto. No que tange aos estudos teatrais, apresento resumidamente as

abordagens de Stanislavski e Michel Chekhov sobre a imaginação no trabalho do ator,

a fim de contrastá-las com a maneira proposta por Lecoq. Em seguida, analiso a visão

de “Fundo Poético Comum” de Lecoq, estabelecendo relações com aspectos das

ciências naturais, da filosofia, da espiritualidade e das artes, a partir da tomada de

consciência da dinâmica subjacente a todos os eventos.

Sendo uma das premissas básicas a importância do trabalho corporal, no

quarto capítulo proponho um vigoroso aquecimento. Além do aquecimento físico,

envolvendo principalmente os Vinte Movimentos, abordo a questão sobre treinamento

como uma oportunidade para alimentar essa discussão, a fim de tratar de aspectos

contraditórios e questionáveis tais como o valor da repetição de movimentos

codificados, a necessidade de livrar-se de vícios corporais que pode acarretar em

adquirir outros, de estabelecer um estilo e encerrar-se nele, não conseguindo usar

outras linguagens após tal estilo estabelecer-se. Em seguida, proponho aquecer as

articulações propostas pelos estudos teatrais contemporâneos, no sentido de colocar

em perspectiva o presente estudo no que concerne o trabalho do ator hoje. Para tanto,

analiso a visão sobre a imaginação na perspectiva de Constantin Stanislavski (1863-

1938) e de Michael Chekhov(1891-1955), assim como o questionamento sobre o

termo “teatro físico” criado nos anos 80, e as relações entre ator e performer, face aos

estudos que consideram o teatro contemporâneo contaminado pela performance.

No quinto capítulo abordo o universo da experimentação mais livre, com

exercícios de improvisação. Ainda que a improvisação seja uma prática orientada,

com delimitações e restrições como regras do jogo, são introduzidos os temas mais

lúdicos e poéticos, visando proporcionar ao corpo treinado anteriormente

oportunidades de jogos individuais e coletivos. A improvisação é abordada nesse

estudo apenas através dos temas dos elementos, das matérias e da pintura na

qualidade de estímulos imaginativos, como recorte da pedagogia. Tratam-se de

práticas que orientam os alunos e os atores no sentido de observar a natureza e o que

sucede ao redor de si como fonte principal de inspiração a ser transposta para o corpo,

ainda que dentro dos limites propostos pelos exercícios. Procuro, sempre que

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possível, entrecruzar o discurso com as questões sobre a imaginação, na tentativa de

descrever a prática e assim analisá-la ao longo de toda a tese.

Como prosseguimento do trabalho desenvolvido até então, o sexto capítulo

enfoca a parte de criação propriamente dita, a partir da abordagem de auto-cours, ou

seja, o teatro criado pelos artistas, visando à montagem de um espetáculo ou

experimento a ser mostrado a um público. É o momento em que cada um deve

desenvolver o seu teatro, aplicando esse conjunto de técnicas e de experimentos para

aquilo que é a sua arte, sua construção com o seu corpo, seu teatro, na busca de um

trabalho autoral. A criação vai finalmente entrar em um processo mais pessoal e, por

meio da descrição de processos criativos que culminaram em espetáculos, procuro

avaliar a contribuição que essas práticas podem aportar ao trabalho tanto do ponto de

vista da direção como da atuação. Para finalizar esse capítulo, teço alguns

comentários sobre a realização da pesquisa em si, ou seja, a ótica da pesquisadora.

As considerações finais são como a roda de encerramento do trabalho prático,

na qual se faz uma revisão e uma crítica do que foi feito, experimentado e pensado.

Aproveito para apontar os limites dessa prática e dessa pesquisa, assim como outras

possíveis relações que não foram aprofundadas e alternativas para a continuidade

desse trabalho.

O desafio está posto: aliar as práticas desenvolvidas em sala de aula, em sala

de ensaio, em processos de criação, a aspectos teóricos da ordem da filosofia, das

ciências, das artes. Com a preocupação de entrecruzar esses universos, procuro

descrevê-las o tão detalhadamente quanto possível, para que realmente seja possível

imaginá-las e acercar a experiência vivida, na tentativa de aproximar o leitor daquilo

que normalmente acontece a portas fechadas. Ciente da dificuldade de distanciamento

crítico dado o envolvimento pessoal com o objeto de estudo, procuro apontar alguns

limites dessa prática identificadas ao longo da pesquisa.

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2 APRESENTAÇÃO

O lugar do imaginário é cada vez mais importante no mundo atual, onde nada torna-se imaginável e tudo pode ser imaginado. (...) a aspiração à liberdade de crenças – àquela de imaginar – anda junto com a liberdade de expressão, intrínseca ao pensamento criador. (PIWNICA, 2010, p.8).

Em uma oficina, aula ou ensaio, inicio normalmente falando um pouco com

os alunos ou os atores, situando-os sobre o que vamos tratar e como as aulas serão

encaminhadas. Prefiro não começar com muita conversa, preferindo ir logo para a

prática, e apresentar os conceitos à medida que vai surgindo a necessidade. No

contexto desse estudo, entretanto, me estendo um pouco mais nas apresentações,

aproveitando o sentido metafórico do termo.

2.1 TRAJETÓRIA PESSOAL E PERCURSO DA PESQUISA

Ao longo dos anos, trabalhei integradamente o jogo dramático, a improvisação

e a criação e fui percebendo que no encaminhamento das aulas era forte o

componente corporal envolvido. Meu interesse estava sempre voltado ao movimento,

aos gestos, aos deslocamentos, à composição plástica, aos desenhos que surgiam a

partir dos corpos dos participantes e entre eles. Atribuo essa minha relação com

movimento ao fato de ter crescido em uma família de tenistas, o que me levou a me

tornar esportista desde a infância, tendo participado de competições de tênis e de

natação, além de praticar basquete, handebol e vôlei na escola, assim como ter aulas

de balé.

Além do interesse por teatro, entretanto, desenvolvi um trabalho profissional

em duas outras áreas, o ensino de línguas e a pintura. Aos 17 anos, quando comecei a

fazer teatro em Porto Alegre, iniciei também minha trajetória na pintura no Atelier da

Prefeitura. Além disso, ingressei na universidade, no curso de Licenciatura em

Ciências – na época me interessava a Física –, e participava do Coral Escola da

UFRGS.

Por contingências familiares, fui para Nova York estudar inglês,

interrompendo estas atividades. Depois dos seis meses previstos, fui para a Europa

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com uma mochila nas costas e passei um ano e meio viajando e trabalhando em

diferentes países da região. De volta ao Brasil, retomei a faculdade, mas, sentindo a

necessidade de me tornar independente financeiramente, aprofundei meus

conhecimentos de inglês e me tornei professora desse idioma – atividade que exerci

durante 18 anos –, retomando as artes como atividades paralelas.

Uma vez graduada, entrei no curso de Arte Dramática na UFRGS

(Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e, logo em seguida, fui convidada para

atuar numa peça infantil1, onde fazia o papel principal. Era o final dos anos oitenta,

quando estava em voga o chamado teatro físico, impulsionado pela Antropologia

Teatral de Eugênio Barba, que passava pela América Latina, e pelo teatro de imagens

de Gerald Thomas, que foram duas das principais experiências que me influenciaram

na época. Identifiquei-me completamente com aquela linguagem de teatro

praticamente sem texto, no qual era o corpo do ator que falava, com colagem de

imagens, altamente visual e imagético. Passei a perseguir esse tipo de prática, fazendo

cursos com Carlos Simione, do grupo LUME, entre outros imbuídos daquela crença,

com longos treinamentos diários, intensamente corporais, incluindo as técnicas de

exaustão, de acrobacia, de construção de partituras, entre outras. Paralelamente, fazia

sistematicamente aulas de dança contemporânea.

Cursei a universidade durante dois anos, ocasião em que entrei em contato

pela primeira vez com os ensinamentos de Lecoq na disciplina de Expressão Corporal

com Maria Helena Lopes. Naquela época, eu participava de um espetáculo infantil2

no qual eu havia construído cinco personagens diferentes num processo de criação

coletiva, e então surgiu a oportunidade de passar dois meses trabalhando em uma

escola de inglês em Nova York. Dentre os cursos que fiz em Nova York, as aulas de

dança-teatro foram as que mais se aproximaram do estilo de teatro que me interessava

naquela época. Ao invés de retornar ao Brasil, segui para Londres, onde participei de

alguns cursos de jogos teatrais com máscaras, e dali fui para Paris, para a École

Internationale de Théâtre Jacques Lecoq. Cursei o primeiro ano em 1992/93 e, para

grande frustração minha, não consegui retornar para o segundo ano, embora tivesse

1 O Auto das Várias Gentes no Dia de Natal, de Ivo Bender. Porto Alegre, 1988.

2 O Andróide e o Anão, direção de Ben Berardi. Porto Alegre, 1990.

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sido convidada pelo mestre. A passagem pela Escola3 foi decisiva na minha carreira.

Encontrei ali uma verdade profunda e a ligação com o teatro que até hoje me guia.

Identifiquei-me totalmente com a idéia de Monsieur Lecoq de que seu trabalho

possuía um objetivo duplo, sendo uma parte relativa ao teatro e a outra, à vida. Foi lá

que encontrei a ludicidade corporal que buscava, aliada à questão estética e visual. A

pedagogia de Lecoq representa, para mim, o elo entre meus interesses diversos, uma

vez que o professor também iniciou pelos esportes, referia-se à natureza como fonte

de inspiração e aliava outras artes ao fazer teatral.

Voltei ainda a trabalhar nos Estados Unidos como professora de inglês por

algum tempo. Porém, quando realmente não consegui meios de retornar à Paris,

resolvi voltar para o Brasil. Passei um ano em São Paulo, trabalhando como atriz em

alguns comerciais para a televisão, como assistente em um atelier de pinturas de

decoração e como produtora na Bienal de Artes de 1994. Ainda lá, fui convidada a

participar de um espetáculo4 em Porto Alegre, o que me fez retornar à minha cidade

natal e experimentar maior amplitude de criação, tal como aprendera na Escola.

Assim, o trabalho seguinte, Gueto Bufo – espetáculo com linguagem de bufões que

ficou 11 anos em cartaz –, possibilitou-me consolidar minha experiência como atriz

de teatro. Dentre as experiências mais significativas como atriz, portanto, apenas um

espetáculo partiu de um texto previamente escrito, os outros foram criações coletivas

a partir de ideias, de temas, de objetos, do corpo. Como diretora, realizei trabalhos a

partir de textos, mas sempre partindo de improvisações e do trabalho corporal

aprendido com Lecoq.

Ministrei cursos de interpretação na universidade – UFRGS – e livres, em

forma de oficinas, sendo que algumas delas eram em inglês. A principal linha didática

que utilizo, seja como professora ou como diretora e preparadora corporal, provém do

aprendizado na Escola. Ainda assim, a experiência de 18 anos como professora de

inglês me levou não só a aprimorar a proficiência nessa língua, mas também a

aprofundar os estudos sobre didática e aquisição de linguagem, conhecimento que

aplico também ao ensino de teatro. Embora sendo graduada como professora de

ciências, nunca exerci essa profissão, apenas mantive o interesse nesses assuntos. 3 Para fins de clareza da escrita, utilizarei “Escola” com letra maiúscula sempre que for designar a École Internationale de Théatre Jacques Lecoq.

4 “Parque Extremo de Diversões” – direção Élcio Rocini. Porto Alegre, 1996.

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Quando resolvi voltar aos estudos, havia sido recém criado o curso de especialização

em Teoria do Teatro Contemporâneo na UFRGS, o qual me despertou tamanho

interesse e satisfação, que dei continuidade com os estudos de mestrado e do presente

doutorado.

O percurso da pesquisa que resulta nessa tese iniciou cinco anos após o

término do mestrado, quando me deparei com os estudos sobre a performance de

Richard Schechner, sobre o pós-dramático de Hans-Thies Lehmann e sobre a

performatividade de Josette Féral, entre outros autores interessados na influência da

performance no teatro contemporâneo. Interessei-me pelo status do ator no contexto

destes estudos, particularmente nas questões sobre o que diferenciava o performer do

ator, e como entender minha experiência de teatro à luz de tais estudos. Tendo como

ponto de partida minha formação baseada em Lecoq, surgiram questões como: onde a

mimesis se encaixa nesse teatro? Não se encaixa? Como fica o trabalho do ator em si?

Como professora e preparadora de elencos, o que vou usar então? O que é ainda

válido, o que é permanente no trabalho do ator? Encontrei em Féral (2008) algumas

respostas, especialmente quando se referia a técnicas de base, à importância do ator

ter presença, ter consciência de seu corpo e do espaço, saber jogar, arriscar-se e

propor. Ainda que a autora não mencionasse diretamente, identifiquei a imaginação

como o principal substrato sobre o qual todas essas competências deveriam se

desenvolver.

Partindo, então, do pressuposto de que a imaginação é uma competência

essencial ao trabalho do ator e que ainda é válida frente aos estudos contemporâneos,

voltei-me para minha experiência, enfocando a prática ancorada principalmente na

pedagogia de Lecoq, em busca de melhor compreender o que é adotado ali como

formação do ator quanto ao desenvolvimento de sua imaginação. Precisava ir além

daquilo que já podia perceber sobre a utilidade dessas práticas, pois antes não havia

atentado para a questão da imaginação em si. Que competências do ator elas

desenvolvem além do treinamento do corpo? O que é fundamental no trabalho do

ator, além de um corpo disponível e consciente? Para que serve essa prática de Lecoq

que envolve a pintura, a poesia, a música, temas que me apaixonam desde que fiz a

escola? Serve para incitar a imaginação! Mas como isso acontece? Quais exatamente

os exercícios que têm esse objetivo e como são incorporados pelos atores? O que

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buscam esses artistas e o que encontram? Sendo assim, resolvi me debruçar sobre essa

prática com o foco da imaginação em mente.

Tema vasto, de difícil recorte, como estudar isso? Qual metodologia? Sabia

que deveria partir da prática corporal em si, afinal é assim que se desenvolve essa

aprendizagem. Comecei voltando à escola de Lecoq para atualizar minha própria

experiência lá. Através do curso intensivo de verão chamado “a música, a poesia, a

pintura e o jogo do ator” pude entrar novamente em contato com aquilo que identifico

como a essência da pedagogia de Lecoq, que é a compreensão do Fundo Poético

Comum com o próprio corpo. Tornar visível a dimensão invisível das manifestações

da natureza como meio para desenvolver a percepção e a imaginação de forma

concreta e aplicada ao teatro. Ainda nesse curso em Paris, aproveitei para coletar

depoimentos dos colegas – atores, diretores, músicos – com quem trabalhei, assim

como para buscar teorias sobre a imaginação, principalmente, que pudessem apoiar

meus questionamentos.

2.2 METODOLOGIA E CORPUS DE ANÁLISE

A fim de trabalhar com a lógica própria do trabalho do ator e do fazer teatral,

encontrei dificuldades em definir uma metodologia rigorosa. Como aponta Pádua

(2004), no plano da pesquisa, da epistemologia, o método e os procedimentos técnicos

são elementos indissociáveis ao longo do processo de investigação, que está longe de

ser homogêneo, linear, uniforme, não histórico. É necessário levar em conta a

perspectiva de que cada um tem sua visão de mundo, sua concepção de ser humano e

de arte, seus pressupostos ético-filosóficos, que determinam suas diretrizes e

procedimentos para a atividade de pesquisa, seus entendimentos sobre o processo de

produção de conhecimento, bem como sua forma de articulação dos conceitos e das

categorias para a análise da realidade. Nesse sentido, é determinante a relação sujeito-

objeto no processo de conhecimento, levando em conta a objetividade e a neutralidade

da análise das observações e depoimentos, uma vez que a pesquisa também inclui

minha própria experiência como ex-aluna da escola e apreciadora da metodologia de

Lecoq. Também para Japiassu (1994), a metodologia da pesquisa é um domínio da

interrogação epistemológica, onde método e objeto são indissociáveis. A escolha do

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método se faz a partir do objeto a ser estudado. Partindo do pressuposto de que a

ciência contemporânea é como um conhecimento em processo de construção, um

contínuo re-fazer, fica a exigência de um contínuo re-pensar sobre seu corpo teórico-

prático. É o que estou me dispondo a fazer com esta pesquisa: re-pensar a prática que

utilizo, uma análise reflexiva da experiência de campo.

Com o desenvolvimento das investigações nas ciências humanas, as pesquisas

qualitativas procuraram consolidar procedimentos que pudessem superar os limites

das análises meramente quantitativas, preocupando-se com o significado dos

fenômenos, levando em consideração as motivações, as crenças, os valores e as

percepções individuais de cada participante. Como não estou levando em conta

nenhum tipo de tratamento estatístico, a opção adotada foi a entrevista qualitativa e

centrada, não estruturada, na qual o entrevistador permite que o entrevistado descreva

sua experiência pessoal a respeito do assunto investigado. Além das entrevistas, é

utilizada uma metodologia de inspiração etnográfica, na qual o pesquisador observa e

descreve a prática, deixando-se impregnar pelos temas apresentados.

A metodologia usada é, portanto, híbrida, uma vez que há uma parte de

observação proveniente da etnocenologia, há autoetnocenologia e há análise

epistemológica. Tal como propõe Fortin (GOSSELIN, 2006, p.98), emprego nessa

tese uma espécie de “bricolagem metodológica”5, na qual a integração dos elementos

vem de horizontes múltiplos, que vai do meu próprio olhar como aluna de Lecoq ao

de professora, de artista, de diretora, de preparadora de elencos, ao olhar das pessoas

envolvidas nesses processos, seja diretamente através do contato comigo, seja com o

mestre.

A análise dos dados não é documental, antes, tem a função de “administração

de provas”, como propõe Bardin (2004, p.99) quando se refere a análise de conteúdo

como instrumento metodológico. No nosso caso, trata-se de “provas” da prática

executada e da decorrente percepção de outros artistas que entraram em contato com

ela e compartilharam suas percepções a respeito. Para fins de análise dos dados

coletados, a autora acima sustenta que as respostas a questões abertas, assim como as

entrevistas individuais ou de grupo, são analisadas tendo um tema por base, que aqui

5 Fortin sugere esse termo baseada na proposta de sua colega Monik Bruneau apresentada nessa mesma publicação, Gosselin (2006: 45-56).

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é a imaginação, que será utilizada como unidade de registro para estudar motivações

de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências.

Como minha pesquisa trata de um tema tão vasto como a imaginação do ator,

ainda que relacionada à pedagogia de Lecoq, foi necessário encontrar pontos de apoio

para sua verificação, uma vez que tanto a imaginação como a pedagogia são

demasiadamente abertos, podendo acarretar em meras generalizações. Assim, para

tornar a coleta de dados mais objetiva, defini como recorte alguns temas a serem

analisados a partir da questão axial da possível contribuição da pedagogia de Lecoq

ao desenvolvimento da imaginação do ator. São eles: os Vinte Movimentos, a

observação da natureza, o trabalho com os elementos, com as matérias e com a

pintura. A escolha desses temas deu-se por acreditar que através deles seja possível

tocar pontos cruciais de sua pedagogia, tais como as leis do movimento, o Fundo

Poético Comum, sua concepção de mímica, a relação do trabalho do ator com o

espaço e com a natureza, o ator como autor de seu próprio teatro. Foi a partir dessa

escolha que preparei as entrevistas e os encontros realizados nas oficinas que

ministrei nesse período, que me parecem refletir a linha de trabalho que venho

desenvolvendo ao longo de aproximadamente 20 anos.

Importante ressaltar que alguns outros temas relevantes da pedagogia de

Lecoq não são contemplados nesta pesquisa, tais como o uso das máscaras, a

acrobacia, o trabalho com os animais e com outras artes (música e poesia), assim

como os estilos teatrais abordados no segundo ano da Escola. O motivo da ausência

desses aspectos é justamente a tentativa de reduzir o espectro de análise, além da

escolha pessoal que envolve a maior identificação com certos aspectos do que com

outros, escolha essa que me levou a desenvolver e a focar os temas que estou

propondo. Como atriz, acredito que eu utilize todos os aspectos da pedagogia de

Lecoq, ou a maioria deles, uma vez que estão internalizados em minha prática. No

entanto, enquanto professora e diretora priorizo aqueles que me parecem mais

eficazes, principalmente para os fins dessa pesquisa, já que não tenho a oportunidade

de oferecer toda a pedagogia de Lecoq em cursos de curta duração ou mesmo na

universidade, quando há uma ementa a ser cumprida.

De qualquer forma, não podemos esquecer que, como enfatiza Fortin

(GOSSELIN, 2006, p.107), quando o pesquisador procede a uma coleta de dados

sobre a prática de outros artistas, é a partir de seu ponto de vista como artista que ele o

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faz, e isso vai certamente matizar seu processo de coleta e de análise. A autora

ressalta, baseada nas pesquisas de Jean Lancri e Pierre Gosselin, que o trabalho de

criação artística e o da pesquisa teórica que o acompanha apelam para processos

cognitivos diferentes: “o trabalho de criação artística faz intervir de maneira vantajosa

os processos subjetivos experimentais, enquanto que o trabalho de pesquisa solicita,

de maneira vantajosa, os processos objetivos conceituais”. Fortin sustenta, portanto,

que é necessário admitir que a racionalidade como o imaginário, o conceitual como o

sensível, a razão como o sonho, podem e devem ser objeto de uma apreensão concreta

de informações. Os dados sobre esses diferentes processos podem ser recolhidos por

meios sensíveis e rigorosos ao mesmo tempo.

Foram feitas entrevistas diretas com colegas, alunos e atores, nas quais eram

induzidos alguns dos temas principais, embora eu sempre tenha procurado deixar

espaço para a manifestação livre de comentários e de percepções outras que não só

aquelas por mim preferidas. Essa maneira de proceder gerou bastante material para a

pesquisa e também despertou interesse nas pessoas em conhecer mais sobre o trabalho

de Lecoq.

O corpus de análise dessa pesquisa envolve, portanto, o estágio de verão

realizado na École International de Théâtre Jacques Lecoq intitulado “La poésie, la

musique, la peinture et le jeu du comédien”6; a oficina ministrada durante o Festival

Universitário de Blumenau chamada “Imaginação e criação pelo movimento”; a

direção dos espetáculos “O Baile dos Anastácio” com a companhia de teatro Oigalê

de Porto Alegre e “O Defunto”; a preparação corporal do espetáculo “Miséria,

servidor de dois estancieiros” e “Uma Lady MacBeth”; as entrevistas com os colegas

do estágio, com os alunos da oficina, com ex-alunos da Escola7; a disciplina teórico-

prática do curso de doutorado da UDESC com o professor Matteo Bonfitto intitulada

“Investigação Cênica II: Seres Ficcionais: treinamento, composição e

dramaturgia(s)”; minha própria experiência como ex-aluna de Lecoq, atriz,

professora, diretora e preparadora corporal de elencos, ocasiões em que utilizo os

pressupostos dessa pedagogia como linhas-mestras de trabalho.

6 A poesia, a música, a pintura e o jogo do ator

7 Ex-alunos entrevistados por ocasião da pesquisa de mestrado. Sachs, 2004: anexo 1.

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O estágio de verão “A poesia, a música, a pintura e o jogo do ator” foi

realizado em Paris de 14 a 23 de setembro de 2011, com encontros diários das 10 às

13h e das 14h30 às 18h30h, totalizando 56 horas. A oficina ministrada durante o

Festival Universitário de Blumenau chamada “Imaginação e criação pelo movimento”

ocorreu de 7 a 9 de julho de 2012, das 8 às 12h, em um total de 12 horas de trabalho

com pessoas com experiência prévia. A direção do espetáculo “O Baile dos

Anastácio” com a Oigalê foi realizada de maio a outubro de 2012, com algumas

semanas intermitentes de trabalho, sempre com encontros diários das 9 às 17h. “O

Defunto” foi o resultado de um processo de quatro meses de ensaio em 2006, à partir

do texto homônimo de René de Obaldia, criado para fins de trabalho de conclusão de

curso de interpretação na UFRGS de uma atriz que fora minha aluna nessa instituição.

As aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ocorreram durante

18 meses em 2005/06, nas disciplinas intituladas Atelier I e Atelier II, nas quais há

um professor de técnicas corporais, um de atuação e um de direção, que trabalham

diariamente em conjunto com um grupo de alunos-atores e alunos-diretores. A

disciplina do professor Bonfitto teve a duração de uma semana em 2010, com

encontros diários que totalizaram 32 horas de trabalho, com uma apresentação aberta

ao público no final.

Lecoq queria uma escola voltada para o artista de teatro, fosse o ator, o diretor,

o dramaturgo, o cenógrafo, o coreógrafo, enfim, que houvesse uma compreensão da

cena, do jogo, do que é levado em conta em uma produção cênica. Quando fiz a

escola, no início dos anos 90, enfocava, então, apenas o trabalho de atriz, mas

desenvolvi lá um olhar e um aparato técnico para as outras funções também. Parece

pertinente, portanto, considerar a prática enquanto cada uma dessas funções que

desenvolvo. Nesse sentido, procuro utilizar como exemplos as práticas de acordo com

o foco de cada capítulo, que implicará diferentes pontos de vista, ainda que todos

meus. Por exemplo, quando descrevo a prática dos Vinte Movimentos e das

improvisações, o ponto de vista é principalmente o da professora, da preparadora de

elencos e da atriz. Já na parte da criação, priorizo o ponto de vista da diretora. São

abordagens que procurei estabelecer para fins de análise, com diferentes exemplos

para os diferentes pontos de vista, ainda que, na prática, estejam todos interconectados

o tempo todo.

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Existe algo que permeia todas essas experiências: a sequência de aplicação de

técnicas no trabalho, o método que utilizo. Método no sentido de organização de

práticas que me parecem adequadas para o objetivo a que se propõe. O conjunto de

todas essas práticas constitui meu método de trabalho. Como esclarece Mostaço

(2012, p.3), método é aquilo que “resulta de parcelas disto e daquilo, a adaptação de

técnicas heteróclitas ajuntadas a partir de práticas diversas que cada artista invoca e

mobiliza em função de suas necessidades.” Assim como utilizo exercícios

provenientes da pedagogia de Lecoq, lanço mão de outras técnicas na medida em que

sinto necessidade de fazê-lo, alternando ou mesmo substituindo procedimentos

conforme as contingências do momento. Não se trata, portanto, de acreditar em uma

cartilha para o trabalho do ator, mas uma possibilidade que, entre tantas, é a que mais

uso, e que aqui servirá como fio condutor para escrever esta tese.

2.3 JACQUES LECOQ – BREVE HISTÓRICO

Jacques Lecoq nasceu em Paris em 15 de dezembro de 1921. Desde cedo

interessou-se por movimento, tornou-se atleta e envolveu-se com vários tipos de

esportes, especialmente natação, corrida e saltos. Estudou Educação Física e, segundo

ele (LECOQ, 1987, p.108), as sensações físicas guardadas na memória de seu próprio

corpo marcaram profundamente sua pedagogia do movimento. Mesmo durante a

ocupação alemã na França, durante a II Guerra Mundial, continuou trabalhando como

professor de Educação Física e como cinesioterapeuta, atividades que lhe

possibilitaram especializar-se em reabilitação de paralíticos e aprofundar seus

conhecimentos sobre anatomia humana. Nessa época, conhece Jean-Marie Conty

(1904 -1999) , um major da escola politécnica e aviador, jogador de basquete e amigo

de Antonin Artaud (1896-1948) e Jean-Louis Barrault (1910-1994), o que vai suscitar

seu interesse pelo teatro. Junta-se a um grupo de jovens que se refugiava e se escondia

nos chamados chantiers de jeunesse (canteiros da juventude), que procuravam usar a

ginástica, a mímica, o movimento e a dança em oposição à ideologia nazista.

Após a Liberação da França, ingressou na ATEC – Association Travail e

Culture (Associação Trabalho e Cultura), onde realizou seu primeiro treinamento

teatral através de cursos de “improvisações mimadas” com Claude Martin, aluno e

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membro da companhia de Charles Dullin (1885-1949) – que havia sido colaborador

de Copeau –, e de dança expressiva com Jean Serry, antigo primeiro bailarino da

Ópera de Paris. Participou do grupo Les Aurochs, que criava espetáculos baseados em

improvisação, jogos corporais e movimento espontâneo, com atuação em

manifestações públicas ligadas a causas político-sociais, conforme o próprio mestre

(LECOQ, 1987, p.108).

Em 1945, foi convidado a trabalhar com Jean Dasté (1904-1994), genro de

Jacques Copeau (1879-1949), um de seus seguidores que era totalmente imbuído do

espírito dos Copiaus – grupo que trabalhava com Copeau –, constituindo a companhia

Les Comediens de Grenoble. Responsável pelo treinamento corporal do grupo, iniciou

ali seu trabalho com a mímica e experimentou, pela primeira vez, o jogo com a

máscara nobre, herança direta de Copeau, que mais tarde redimensionou a máscara

neutra, uma das principais bases de sua pedagogia. Dos espetáculos realizados nessa

época, dois foram particularmente importantes: L´Exode (O Êxodo), que utilizava

coro, mímica e máscara, que se tornaram um tema recorrente em sua pedagogia, e Ce

que murmure la rivière Sumida (Aquilo que murmura o rio Sumida), baseado em um

Nô japonês dirigido por Marie-Hélène e Jean Dasté, adaptado por Suzanne Bing,

também com influência direta dos ensinamentos de Copeau, segundo Lecoq (1997,

p.18 e 1987, p.108-109).

De volta a Paris, Lecoq trabalha como professor de expressão corporal na

escola E.P.J.D. (Éducation par le jeu dramatique), baseado nos preceitos adquiridos

em sua experiência em Grenoble. Nesta ocasião é convidado para trabalhar no Teatro

Universitário em Pádua, Itália, onde viveu entre 1948 e 1956 onde, além de professor,

trabalhará também como ator, mímico, coreógrafo e diretor de teatro, cinema e

televisão (LECOQ, 1987, p.108).

Vários aspectos de sua metodologia surgem nesse período, como a opção em

usar a mímica a serviço do teatro e não como arte independente, a utilização das

máscaras e a relevância do universo e da tradição oriundos da commedia dell´arte.

Compreendendo-a como teatro humano, com seus aspectos trágicos e cômicos,

aprendeu as atitudes e movimentos do Arlequim com o ator italiano Carlo Ludovici

(1894-1998), a partir dos quais estabeleceu aquilo que denominou “ginástica de

Arlequim” (LECOQ, 1997, p.19). Despertou também para a importância do coro

trágico, compreendido como um corpo com dinâmica própria, seu equilíbrio em cena

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como um platô, o que propicia diferentes tensões dramáticas a partir de cada posição

que toma no espaço (LECOQ, 1997, p.20 e 1987, p.112).

Nessa época conheceu o escultor Amleto Sartori (1915-1962), que o

introduziu no universo das máscaras e alertou-o sobre a importância do cuidado em

sua fabricação, para que sirvam para o jogo cênico e não apenas como adereço ou

enfeite. Produto de discussões detalhadas sobre seu conceito, a máscara neutra

fabricada por Sartori em couro é a mesma utilizada até hoje na escola de Lecoq, assim

como o conjunto de máscaras da commedia dell´arte com o qual o escultor lhe

presenteou quando partiu da Itália.

Aliado a Paolo Grassi (1919-1981) e Giorgio Strehler (1921-1997), Lecoq

participou da criação da escola do Piccolo Teatro de Milão em 1951, com uma

ideologia explicitamente antifascista, com o compromisso de atingir públicos das

classes trabalhadoras e de desenvolver uma pedagogia do movimento, como informa

Murray (2003, p.12). Fundamentada sobre a expressão corporal, o jogo com máscaras

e a improvisação, além de aulas de dicção, história do teatro, estudo e interpretação de

textos, dança, esgrima e canto, a escola do Piccolo Teatro acabou definindo as bases

de sua futura escola aberta em Paris. Ali pôde exercitar sua experiência com

espetáculos e aprimorar sua técnica relativa à ação mimada, à análise do movimento,

à acrobacia dramática, aos jogos burlescos, às manipulações, ao ponto fixo, à

identificação com a natureza e ao sentido do coro (SACHS, 2004, p.50).

Lecoq volta a Paris e funda a sua própria escola em 1956, onde passa a

trabalhar exclusivamente como professor, diretor e mentor até 1999, ano de sua morte

naquela cidade. A École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq segue funcionando

no mesmo local, embora com outros professores e seus filhos, mesmo após seu

falecimento. A Escola nunca foi um simples veículo para treinar atores com as

habilidades que Lecoq adquirira com Dasté e mais tarde durante o período que passou

na Itália, mas certamente esses anos foram cruciais na construção de uma plataforma

sobre a qual lançou sua pesquisa e desenvolveu sua pedagogia para o trabalho teatral.

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2.3.1 Rede de Influências

Muitos foram os encenadores e pedagogos8 influenciados direta ou

indiretamente por Jacques Copeau e sua École du Vieux Colombier, que criou um

novo conceito de ator e de sua formação. Jacques Lecoq foi um deles. Embora

proveniente do universo esportivo, e não do literário como Copeau, Lecoq foi

altamente influenciado por suas ideias e crenças sobre teatro, como se pode constatar

ao analisar as bases filosóficas e metodológicas com que embasou sua escola. O

contato com aquela visão de Copeau deu-se através de Charles Dullin e,

principalmente, de Jean Dasté, genro de Copeau e seu ex-aluno, com o qual iniciou

sua atividade teatral profissional e onde descobriu a vontade de ir ao encontro de um

público popular, com um teatro simples e direto. “Nossa juventude se reconhecia no

espírito da escola do Vieux Colombier”, afirmava Lecoq (1997, p.18), acreditando

retomar a caminhada de Copeau9.

Expoente da reteatralização do teatro no século XX, Copeau pode ser

considerado um dos protagonistas do fenômeno do corpo no teatro, por intermédio da

pedagogia que desenvolveu em sua escola, indo da educação física ao mimo em busca

de um ator renovado. Queria salvar o teatro da industrialização, do mercantilismo, do

espírito de cabotinagem, do blefe e do exibicionismo, problemas que detectava no

teatro no início do século XX em Paris. Almejava exercitar sua arte sem comprometê-

la em função de tempo, de falta de imaginação, de sinceridade e de integridade,

segundo Sicard (1995). O corpo dos atores era algo ao qual não se prestava atenção à

época, valorizando-se apenas a voz e a expressão facial como recursos expressivos,

pautando-se na tradição dos chamados “monstros sagrados”10, que não trabalhavam

em um espírito de grupo tampouco com alguma técnica além de seu carisma.

Copeau volta-se para a tradição viva do teatro, buscando resgatar qualidades

essenciais tanto na encenação quanto na formação do ator, aspectos que encontrou no

antigo teatro grego, na commedia dell´arte, no teatro Elisabetano, no de Molière, no

8 Em minha dissertação de mestrado apresento detalhadamente as relações e influências entre Jacques Copeau e Étienne Decroux, Gaston Baty, Louis Jouvet, Charles Dullin, Antonin Artaud, Jean Dasté, Jean-Louis Barrault e Marcel Marceau. Fonte: Sachs(2004, p.36) baseada em Felner(1984), Copeau(1974), Leabhart(1989). 9 Mais detalhes sobre essas relações em Murray(2003), Lecoq(1997 e 1987, p.108-111).

10 Atores renomados como Sarah Bernhardt, Julia Bartet, entre outros. (SACHS, 2004, p.15 e 16)  

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de Shakespeare e no Nô japonês. Queria criar um novo teatro, antinaturalista, com

autenticidade e poder poético. Embora procurando desenvolver um tipo de teatro não

naturalista, além de Jacques Dalcroze(1865-1950), Adolph Appia(1862-1928) e de

Gordon Craig(1872-1966), também Stanislavski ajudou-o a dar corpo à sua

abordagem, de quem apreendeu a importância da sinceridade, da verdade, da ação

ligada a um estado psicológico não gratuito. Segundo Felner (1985, p.39), Copeau

modelou sua escola do Vieux Colombier a partir do Estúdio de Stanislavski que, em

1922, visitou-a em Paris, levando o mestre francês a dizer que “sua presença lá

consagrou seu lugar de trabalho”. É importante observar como as influências foram

se produzindo e, embora Lecoq tenha sempre enfatizado a importância do jogo não

psicológico em sua pedagogia, nela identifico reflexos de Stanislavski relacionados à

verdade, à sinceridade e à naturalidade do ator, aspectos constantemente apontados

nas críticas aos exercícios propostos pelo professor em sua Escola.

A paixão pela simplicidade, um dos principais pilares do movimento

modernista da época de Copeau, presente também na música, na literatura, na poesia,

na pintura e na escultura, é também uma característica significativa da pedagogia de

Lecoq. Assim como a crença de que “menos é mais”, ambos procuraram reduzir o

teatro a seus elementos mais simples, básicos e profundos. Em sua escola, Copeau

usava máscaras com o intuito de exteriorizar os conflitos internos, pois acreditava que

diminuindo o potencial da face para comunicar, obrigaria o corpo a buscar

alternativas para fazê-lo. Este simples “truque” gerou a mímica moderna: a máscara

serviu como um instrumento de renascimento do teatro, como sustenta Leabhart

(1989, p.26). Através da máscara nobre, visava a proporcionar ao ator certa

neutralidade física e mental como um ponto de partida, chave mestra da pedagogia de

Lecoq, ancorada na prática a que denominou máscara neutra, como mencionada

anteriormente.

Para Copeau, a ginástica, a mímica e a dança aumentavam a flexibilidade

corporal do ator, capacitando-o para uma melhor atuação. O objetivo maior das

técnicas físicas era o de que o ator se tornasse criador, que pudesse atuar de forma

colaborativa e igualitária com dramaturgos e diretores. Mesmo havendo uma certa

hierarquia, com Copeau como “le patron”, acreditava nessa maneira de trabalhar. Da

mesma forma, Lecoq, em sua Escola, mantinha uma posição de mestre, de ter a

palavra final, mas ainda assim, incentivava os trabalhos de forma igualitária entre os

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alunos. Em oposição ao cenário naturalista, propunha um espaço vazio onde o ator

estaria no centro do fenômeno teatral, a serviço da criação: o ator deveria ser tudo,

inclusive seu próprio dramaturgo. Além disso, usava a improvisação no intuito de

livrar o ator da rigidez e desenvolver o trabalho coletivo, libertar os impulsos

criativos, a flexibilidade da mente e do corpo tal qual faziam os antigos atores da

commedia dell”arte. Lecoq continuou essa exploração da commedia dell”arte que

havia se iniciado com Dasté, examinando em sua escola as antigas tradições do coro

grego e do mimo romano acrobático, buscando resgatar essas raízes do movimento no

teatro, segundo Felner (1985, p.147).

Entretanto, como aponta Lorelle (2007, p.223) costuma-se privilegiar a

experiência de Copeau em sua escola como única, correndo o risco de a mistificar,

atribuindo-lhe todo o caráter fundador desse tipo de teatro da metade do século XX na

França com o consequente espraiamento que o sucedeu. Não podemos deixar de

considerar a escola de Dullin, L’Atelier, que surgiu quase que concomitantemente, em

1921, e superou de longe os dois anos de existência da escola do Vieux Colombier,

visto que até hoje ainda mantém-se aberta em Paris, pelo menos com o mesmo nome.

Dullin havia participado de algumas tentativas anteriores de organização da escola do

Vieux Colombier, reunido com um grupo ao redor de Copeau, mas decidiu seguir seu

caminho de pesquisa fundando sua própria escola que, diferente da de Copeau,

associava as funções de formação ao espetáculo, onde os próprios atores de seu grupo

constituiam o núcleo central da escola, conforme Lorelle (2007, p.28). Segundo esse

autor, sem buscar desafiar ou concorrer com Copeau, Dullin baseia sua escola de

atores em métodos que não são novos, mas, ao contrário, datam da própria origem do

teatro, menos “lógicos”, como afirmou em carta à Camille Mallarmé.

O Atelier de Dullin foi um lugar de destaque que formou, entre outros artistas

de renome como Étienne Decroux e Jean-Louis Barrault(1910-1994), Antonin

Artaud(1896-1948). Aliado ao espírito de laboratório de Dullin, Artaud experimenta

ali improvisações nas quais fica impressionado com a habilidade dos atores de

“representarem com apenas algumas palavras, algumas atitudes, alguns jogos,

personagens de nossa humanidade ou mesmo sentimentos abstratos, como os

elementos, o vento, o fogo, os vegetais, ou puras criações do espírito, dos sonhos, e

isto ao vivo, no local, sem texto, sem indicação, sem preparação” (ARTAUD, 1961,

p.171 apud LORELLE, 2007, p.35). Segundo Lorelle (2007, p.35), essa indicação de

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Artaud demonstra que é a partir dessas técnicas de espontaneidade que surge um

campo de experiências até então desconhecido, no qual se passa a criar personagens

não mais a partir de textos, mas inventando, através das imagens do corpo em

movimento, seres não psicológicos, espécies vivas, forças naturais ou abstratas.

Normalmente reservadas ao poeta, a Ciência – onde a física, as forças naturais, os

elementos são tomados como o objeto –, passa a ser incluída nas práticas

improvisacionais, considerando não só seus aspectos exteriores, mas também a

subjetividade que se possa associar a ela.

Longe do olhar do público, Dullin sustentava a necessidade de um treinamento

corporal para o aluno, como um meio e não um fim, no qual propunha uma

confrontação com a vida sob as mais diferentes formas, em uma relação totalmente

nova com a natureza, como sustenta Lorelle (2007, p.36). Uma primeira parte desse

treinamento consistia na “descoberta do mundo” pelas improvisações com máscaras,

ao curso das quais explorava “uma plasticidade de natureza teatral”, que levaria a uma

“despersonalização forçada”, segundo Dullin, uma vez que ele deveria compor a

partir do exterior, comandado pelas exigências da máscara que substituiria a sua

personalidade. O ator, então, não seria mais somente um intérprete de personagens do

espectro humano, heróis e anti-heróis, mas poderia viver “não personagens”, ou ainda,

o brilho do ser. Dessa forma, Dullin dá as costas à psicologia, transcende as espécies,

os monstros e os gênios não são mais composições impossíveis para os atores, que

irão interpretar o mundo com seus próprios meios. Os meios são o seu próprio corpo

trabalhado de maneira a tal a tornar-se maleável à identificação com os animais, o

vento, o fogo, etc., com temas de pesquisa criativa do ator com seu corpo-ser inteiro,

ainda segundo Lorelle (2007, p.37).

Além da evidente relação da abordagem de Dullin com a de Lecoq, uma outra

influência foi definitiva na formação da Escola de Lecoq: sua experiência na escola

E.P.J.D. (Éducation par le Jeu Dramatique), mencionada acima. A E.P.J.D. surgiu em

1946, como uma associação cooperativa de artistas criada por Jean-Marie Conty,

juntamente com um grupo de atores e diretores como Jean-Louis Barrault, Alan Cuny,

Claude Martin, André Clavé, Marie-Hélène Dasté e Roger Blin. Embora essa escola

tenha existido durante seis profícuos anos, duas vezes mais do que a École du Vieux

Colombier, de Copeau, pouco material se encontra sobre ela. Lorelle (2003; 2007)

resgatou boa parte do material referente a essa escola, que considera uma utopia posta

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em prática. O autor considera Jean-Marie Conty como “fundador de uma

antipedagogia em matéria de educação artística e de educação em si que foi ignorada

tanto pelo mundo da educação quanto pelo mundo artístico, (...) não havendo traços

de reconhecimento dessa magnífica experiência pelos cientistas porque seu autor não

era somente um cientista e nem pelos artistas porque ele era muito científico”

(LORELLE, 2007, p.165). Segundo esse mesmo autor (LORELLE, 2007, p.196),

no manifesto de 1947 da E.P.J.D. constavam termos significativos para a mudança de

paradigmas do teatro, como aquele denominado de “leis orgânicas”, que mais tarde

seria popularizado pelo conceito de organicidade de Grotowski, que também

conhecera o trabalho de François Delsarte (1811-1871) sobre o assunto, estabelecendo

relações também com sua abordagem. Conty, que fora aviador – amigo e parceiro de

Saint-Exupéry, criou a ligação aérea entre França e Madagascar –, engenheiro e

esportista, antes da escola e do grupo teatral “Les Vivants”, afirmava que tudo o que

fizera pelo teatro devia à Barrault. Faleceu em 1999 no anonimato, e seu livro “Faire

des vivants” é praticamente impossível de ser encontrado.

Como se pode observar, trata-se de um grupo de artistas que estavam todos em

contato entre si, juntamente com Copeau e Dullin, denotando vários aspectos comuns

entre suas abordagens, como parte de um pensamento maior daquela época –

primeiras duas décadas do século XX. A educação dramática reivindicada por Conty

foi parte de um movimento artístico, cujas técnicas circulavam na França,

principalmente, através do contato direto com os Copiaus, pelas descrições de

Chancerel nos Cahiers d”Art Dramatique, pelos membros do grupo Comédiens de

Grenoble associados à Dasté, por uma obra de Charles Antonetti intitulada Drame et

Culture e por algumas anotações de Barrault e de Dullin, como aponta Lorelle (2007,

p.186). Importante ressaltar, entretanto, que esses ensinamentos foram sempre

baseados no aspecto prático, na transmissão oral e gestual pelos cursos que uns e

outros ministravam e praticavam, aspecto que identifico como relacionado

diretamente à própria tradição da arte do mimo e da commedia dell”arte, em que o

conhecimento dessa arte era passado de geração em geração, de mestre para pupilo. O

autor enfatiza a questão da supressão da noção de aquisição de saberes fora da

experiência prática ser uma regra, na qual o valor está na progressão de uma maestria

corporal adquirida e não numa pirâmide de conhecimentos.

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Até hoje esse aspecto se mantém na Escola de Lecoq, até mesmo após o seu

falecimento, pois trata-se de parte da pedagogia, é um princípio norteador dessa

prática, que enfatiza o desenvolvimento da criação pela via corporal acima de tudo.

Ele salientava que os alunos deveriam preocupar-se com a prática ali desenvolvida,

deixando qualquer interesse mais teórico para mais tarde, após deixarem a Escola. Na

minha experiência como aluna, no início dos anos 90, recordo que o trabalho diário

exigia muito fisicamente e, fora da Escola, tínhamos sempre observações a fazer que

seriam necessárias para o que estávamos desenvolvendo. Essas observações iam

desde a luz do dia, das cores, das pessoas, das linhas do espaço, dos quadros de um

museu, dos materiais de que são feitas as coisas e de como elas se movem – sim, era

bastante material a ser pesquisado, e não era em livros que deveríamos procurar, mas

no cotidiano ao nosso redor.

Como o mestre reconhece (LECOQ, 1985, p.108-109), foi graças a Conty que

ele interessou-se pelo teatro. Como aluno de sua escola, descobriu o valor da

improvisação e do jogo dramático, assistindo a demonstrações de Barrault, e mais

tarde tornando-se professor de ginástica acrobática nesse local. Há muita semelhança

entre a estrutura preconizada por Lecoq e a dessa escola, como, por exemplo, a

duração de dois anos, a importância da prática diária, somando 24 horas por semana,

envolvendo educação corporal, improvisação, mímica, jogo dramático e os temas de

improvisações ligados à natureza, conforme pode-se verificar no curículo exposto por

LORELLE (2007, p.XIV). Entretanto, há uma diferença crucial, tanto da E.P.J.D.

quanto da Vieux Colombier: essas escolas estudavam também textos e história do

teatro, aspectos que na Escola de Lecoq não são enfatizados, fato que acarreta sérias

críticas à sua pedagogia e do qual voltarei a tratar mais adiante neste estudo. Fig.1 – Ginástica de Georges Hebert

Fonte: Lecoq, 1986, p.61

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A ginástica natural, de Georges Hébert (1875-1957), também influiu de

maneira marcante a pedagogia de Lecoq. Essa “ginástica”, introduzida na escola de

Copeau e depois seguida por Dasté. Hébert, teve importante papel no

desenvolvimento da educação física na França (figura acima). Inspirado em práticas

de povos indígenas quando viajou como oficial da marinha, assim como na força e

flexibilidade dos “button boys”11 e nos ideais físicos da antiga Grécia, Hébert formou

um sistema que rejeitava a mecânica repetitiva do método sueco dominante na época.

Propunha que a educação física fosse ligada à observação e à interação com o meio

ambiente, que o desenvolvimento físico ocorresse através de resistência, de

musculação e de velocidades orgânicas, com exercícios baseados em caminhadas,

corridas, saltos, escaladas, arremessos, levantamento de pesos, natação e defesa

pessoal, segundo Evans (2006, p.27). Enfatizava o uso do corpo de maneira

econômica, eficiente e com propósito definido, contrabalançando os efeitos nocivos

da vida urbana que teria reduzido sua interação com o mundo natural, atrofiando suas

aptidões físicas. Como aponta Felner (1985, p.41), o uso do sistema de Hébert

implicava aceitação de uma nova estética baseada em uma visão não estilizada da

beleza física, independente de qualquer modismo, o que atraiu Copeau, por ali ver

uma oportunidade de desenvolver um corpo natural12 e instintivo, disposto para o jogo

e atento ao mundo ao seu redor. Segundo Evans (2006, p.64), o que Hébert ajudou a

desenvolver foi um senso atlético, flexível e confiante que se tornou uma marca no

trabalho de Copeau e de muitos daqueles que seguiram seus preceitos – entre os quais,

Lecoq.

Embora a improvisação seja considerada atualmente um método

extremamente comum no treinamento do ator, assim como o uso de máscaras com

essa finalidade, na época de Copeau tais recursos consistiam em inovações sem

precedentes na tradição do teatro francês do início do século XX. Essas técnicas eram

realçadas pela utilização do chamado “palco nu” para aumentar a presença do ator, de

maneira tal que, sozinho em cena, ele fosse capaz de ocupar todo o espaço e manter o

foco sobre si. A combinação de um estado interno vivo com outro externo, frio e 11 Os “button boys” são os jovens tripulantes dos navios do exército que subiam nas cordas, trepavam nos mastros e equilibravam-se em minúsculas plataformas em forma de botões lá no alto para saudar os colegas de baixo. 12 Tanto o termo “corpo natural” como “neutralidade” são amplos e controversos. Largamente usados nos escritos de Copeau e de Lecoq respectivamente, referem-se, sobretudo, ao corpo livre de maneirismos, consciente de sua atuação como movimento, sem determinar algo ou alguém em especial.

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equilibrado, com gestos sustentados e conscientes, foi um dos importantes marcos no

ensinamento de Copeau. Como reforça Gordon (2009, p.139), a prática de iniciar

ensaios com um aquecimento, tanto através de exercícios puramente físicos quanto

com jogos, provém da percepção de Copeau da conexão entre a atividade física e

mental com aspectos da imaginação, o que acabou estabelecendo uma convenção

normativa de ensaios para o teatro ocidental contemporâneo. Da mesma maneira

Lecoq, ao levar adiante a tradição de Copeau, vem utilizando essas práticas para

desenvolver a criatividade de gerações de teatristas desde o final dos anos 50.

Todos esses aspectos mencionados acima sobre Copeau, a não ser o uso da

dança e sua visão sobre o texto ser o centro do evento teatral, são os mesmos que

embasam a Escola de Lecoq, servindo aqui como descrição de suas características.

Tais semelhanças podem ser verificadas na própria estrutura diária das aulas, que

envolvem um período inicial de aquecimento físico através de ginástica e de

acrobacia, seguido de improvisação, com ou sem máscaras, e após, a criação de cenas

no auto-cours. Como aponta Gordon (2009, p.214), assim como Copeau, Lecoq não

fazia distinções entre escrita, atuação, cenografia e direção, uma vez que ambos

consideravam o espetáculo como indistinguível de todas as outras facetas do fazer

teatral. Em sua Escola, Lecoq passa aos alunos os valores estéticos da simplicidade,

da autenticidade e da criatividade, adquiridas ao longo de seu próprio treinamento

com os discípulos de Copeau.

Embora as abordagens de Lecoq e Grotowski referentes ao treinamento de

atores sejam bastante diversas em vários aspectos – e, ao que parece, nenhum deles

invocou o outro em seus escritos ou ensino –, eles estão conectados através da

herança de Copeau, cujo contato se deu para Grotowski por meio de Michel Saint-

Denis (1897-1971), a quem chamava de “meu pai espiritual”, como informa Murray

(2003, p.5). Além dessa herança em comum, ambos acreditavam que o “pulso”

criativo no coração do teatro é o corpo do ator, seus movimentos e suas imobilidades.

Como Hodge (2010, p.xxi) observa na introdução de seu livro sobre o treinamento do

ator, foi Artaud que “chamou um teatro que celebrava os elementos não verbais da

consciência...”13.

13 No original, “[...]He called for a theatre which celebrated the non-verbal elements of consciousness that could ultimately arouse therapeutic emotions within spectators.”

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O estilo de trabalho da companhia de Copeau, os Copiaus, também vai ajudar

a formar as bases de praticantes experimentais como Grotowski e Barba, pelos longos

dias de trabalho com grande exigência física e comprometimento do grupo. O dia de

trabalho dos Copiaus e dos alunos girava em torno de um programa de exercícios de

ginástica, de mímica, de voz e aulas de teatro pelas manhãs, seguidos de

improvisação, jogos, ensaios, trabalhos de grupo e de criação coletiva às tardes. As

sessões eram também organizadas para trabalhos de confecção de máscaras, canto,

música e design, como relata Evans (2006, p.35), e cada membro era também

incumbido de tarefas e responsabilidades de grupo.

Outro aspecto importante é o jogo. Como aponta Gordon (2009, p.214), no

centro da pedagogia de Lecoq estava a mesma noção de jogo empregada por Copeau,

como um princípio primeiro da imaginação dramática: “atuação era espetáculo14, e

espetáculo incorporava uma vasta gama de habilidades de improvisação, criação

coletiva, escritura e cenografia”. A concepção de jogo de Lecoq baseia-se nas

brincadeiras de crianças, no drama, nos jogos esportivos e nos espetáculos. São ecos

de Copeau, que acreditava que os jogos criavam um espaço para o treinamento do

ator, onde a fantasia, a poesia e a realidade poderiam misturar-se e interagir, em um

espaço de entrega sem inibições, como nas brincadeiras infantis. Uma experiência

inconsciente que, ao mesmo tempo, desenvolve habilidades técnicas, encorajando a

ludicidade, a imaginação, a espontaneidade e a flexibilidade. Inovador no uso de

jogos para atores, seu trabalho antecede o de professores como Clive Barker (1931-

2005) e Keith Johnstone (1933-).

Leabhart (1989, p.93) identifica também relações com as ideias que estavam

em voga na época após a Segunda Guerra Mundial, como as de Delsarte sobre a

trindade “cabeça, coração, pélvis”, e sobre a identificação dos centros “intelectual,

espiritual/emocional e físico”, aspectos básicos de sua pedagogia que apareciam na

palestra-demonstração Tout Bouge. As práticas corporais dessa época influenciaram

tanto a evolução da dança como a do chamado teatro físico, como é possível verificar

ao observar um panorama da dança do início do Século XX aos nossos dias,

apresentado na exposição Danser sa Vie em Paris, 2012, e seu catálogo impresso.

Pode-se identificar muitos pontos comuns com o teatro focado no movimento

14 O autor usa o termo performance no original, referindo-se a espetáculo, atuação, show, e não na acepção de linguagem da performance.

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provindos de diferentes áreas artísticas como, por exemplo, as propostas

desenvolvidas por Émile Dalcroze (1865-1950), por Rudolf Laban (1879-1978),

Oskar Schlemmer (1888-1943), Vassily Kandinsky (1866-1944), Eadweard

Muybridge (1830-1904), Mary Wigman (1886-1973), Yvone Rainer (1934-), entre

tantos ali mostrados.

Músico suíço nascido em Viena, criador da Dança Rítmica e da Euritmia,

Dalcroze influenciou, além de diversos bailarinos de renome, o influente filósofo

alemão Rudolf Steiner – que até hoje perpetua essa prática nas escolas de educação

fundamental com a pedagogia Waldorf por ele criada e difundida em quase todos os

países ocidentais (inclusive no Brasil). A Euritmia trabalha com deslocamentos no

espaço, com a conjunção de gesto e sons, aliando o peso do corpo à sua cadência

natural, à expressão das mãos e dos braços, seja em relação à música como aos sons

das palavras. Sem se tratar de uma dança, sua Ginástica Rítmica baseou-se

diretamente em Delsarte, agregando uma dimensão plástica e musical ao movimento.

Segundo ele, cada uma das emoções do ser humano são exprimidas por gestos e

atitudes, traduzidas diretamente pelos movimentos do corpo, noção que se funde à

noção da trindade de Delsarte antes mencionada, como foi apontado no Catálogo

dessa exposição (2012:50). No estágio de verão do qual participei em 2011 havia uma

colega alemã que estudou em uma escola Waldorf, que imediatamente associou os

exercícios que fazíamos, relacionados à percepção da música e da poesia, com a

Euritmia.

Curioso observar que, nessa exposição enfocada na arte da dança desde os

anos 1900 aos nossos dias, a performance é apresentada como sua continuidade, com

artistas como Allan Kaprow, Yves Klein, até mesmo Helio Oiticica. Se havia essas

bases comuns entre a dança e o teatro físico, em algum momento houve uma tomada

de rumos diversos, pois, entre os artistas que ali foram apresentados como os

sucessores dessas práticas, não há nenhum ligado ao teatro, à exceção da dança-teatro

de Pina Bausch, mas antes os das artes visuais. A linha que conduz as práticas de

teatro voltadas para o corpo, que um dia foram designadas de teatro físico, até o

presente, na segunda década do século XXI, parece ter-se perdido – possível objeto

para uma próxima pesquisa. De qualquer forma, aqui interessa-nos entender o

universo de ideias que estavam em voga, sabidamente o da relevância do corpo em

movimento como meio de expressão dos estados da alma, de dimensões abstratas,

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corpos inspirados pela natureza, com uma preocupação técnica e plástica, onde a

geometria das formas direcionava as linhas das diferentes manifestações artísticas.

Independentemente de suas experiências como ator e diretor, Lecoq não é

normalmente identificado como performer. Ainda assim, cabe a lembrança dessa

palestra-demonstração Tout Bouge que ele costumava apresentar entre o final dos

anos 70 e início dos 80, no qual explicava e executava aspectos de sua pedagogia em

seu próprio corpo. Por ocasião de uma exibição em vídeo, que tive a oportunidade de

assistir na Escola, em 2011, verifiquei que ele traçava um panorama que iniciava com

o mimo romano, passava pela pantomima e propunha que a arte do mimo evoluíra

para uma “arte do silêncio”. Ele ali esclarecia que não se tratava de uma imitação da

natureza, mas de encontrar o “gesto de fundo”. Mostrava alguns gestos em diferentes

culturas, ligadas `as diferentes línguas, aspecto que lhe interessava desde essa época e

que segue sendo trabalhado na Escola até hoje, principalmente relacionado ao tema da

poesia. Exemplificando com os tipos da commedia dell’arte, o mestre ressaltava como

uma pequena alteração em pontos como o quadril, o plexus solar e a cabeça,

modificavam a atitude e o caráter da personagem conforme diferentes combinações.

Falava ainda em temas como o coro e o ponto fixo por meio de um ato cômico, que

pode ser entendido como uma performance, na qual o público divertia-se e aprendia

ao mesmo tempo, era o próprio performer, sem representação, mas que sustentava o

caráter de espetáculo.

2.3.2 Aspectos da École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq

A grande força da escola está em seus alunos. (…) devemos lutar com eles se queremos conduzi-los a um lugar de verdadeira poesia. Isso pode ser difícil de conseguir. Quando lhes falta a imaginação nós precisamos incitá-los com visões fantásticas de beleza, com a loucura da beleza. (LECOQ,1997, p.34)

Lecoq(1997, p.26) considerava sua escola como uma “viagem”. Sua

pedagogia desenvolve-se ao longo de dois anos, onde o primeiro é dedicado aos

princípios básicos do jogo e da criação dramática, e o segundo à utilização desses

princípios aplicados às diferentes tradições de jogo dramático, do melodrama, da

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commedia dell´arte, do bufão, da tragédia e do clown. Ao longo de todo o curso, no

entanto, a Escola é organizada em três eixos principais, a saber: a análise do

movimento, a improvisação e o auto-cours ou criação pessoal. Esses eixos encontram-

se apoiados em princípios fundamentais que estabelecem a estrutura de todo jogo

cênico proposto aos alunos e que permeiam todo o ensinamento de Lecoq. Em minha

dissertação de mestrado estruturei sua metodologia de acordo com seus princípios

básicos – quando a conheci no início dos anos 90 –, dividindo-os em três itens

principais: mímica, observação da natureza e leis do movimento, conforme o esquema

abaixo apresentado em Sachs (2004, p.54):

Fig.2 Estrutura da Escola

Estrutura da Proposta Pedagógica

PRINCÍPIOS BÁSICOS EIXOS DA ESCOLA IMPROVISAÇÃO

- Silêncio - Temas - Jogo - Máscaras - Personagens

ANÁLISE DO MOVIMENTO

- Acrobacia - Consciência corporal - Sequências de movimentos

- Mímica segundo Lecoq - Observação da natureza - Leis do Movimento

AUTO-COURS - Criação pessoal

Fonte: Sachs (2004, p.54)

Para os objetivos da presente pesquisa, escolhi estudar apenas alguns desses

temas, como o dos elementos, das matérias e aquele denominado “abordagem às

artes”, principalmente a pintura, onde encontro o aspecto mais abstrato dessa

dimensão que parte da observação da natureza e faz convergir grande parte dos

princípios de sua pedagogia. Em cada tema, tal dimensão é ampla, estudada durante

pelo menos três meses de aulas práticas diárias, quando se experimenta as relações

entre eles e o jogo do ator. É assim que se evidencia a passagem do abstrato ao

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concreto, do invisível ao visível, da percepção ao corpo e à construção cênica, da

ampliação da imaginação através de práticas corporais.

Sem pretender aprofundar todos os aspectos de sua pedagogia, estudo que já

foi desenvolvido em minha dissertação de mestrado, apresento resumidamente aqui

alguns pressupostos fundamentais, no intuito de situar alguns termos relevantes para a

presente pesquisa. Seguindo o esquema acima, inicio pelos princípios básicos que

consistem da mímica segundo Lecoq, da observação da natureza e das leis do

movimento para, em seguida, abordar o que proponho como os eixos da Escola.

A mímica, para Lecoq, é abordada como uma ferramenta de trabalho, uma

prática a serviço do teatro, sem um fim em si mesma, ou seja, sua utilização

pedagógica não deve ser confundida com o cultivo da arte da mímica. O mestre

defendia a idéia de “mímica aberta”, referente ao ato criativo fundamental, à mímica

escondida em todas as artes, a primeira camada no fundo de todas as artes, o que vai

ao encontro do conceito de mimesis de Aristóteles. Preferia usar o termo “mimismo”

proveniente da antropologia de Marcel Jousse, enfatizando a diferença para com o

“mimetismo”, pois “mimetismo é uma representação da forma e mimismo é a busca

da dinâmica interna do sentido” (LECOQ, 1997, p.33). Aliada a outros princípios e

recursos como as máscaras, por exemplo, a mímica é um dos instrumentos principais

utilizados em sua metodologia, trabalhada principalmente através da análise do

movimento, onde são desenvolvidos os aspectos técnicos. Através de restrições

propostas nos exercícios, tais como a falta do objeto, o estar só em cena, o silêncio, a

rapidez dos movimentos, a expansão e redução do espaço, são trabalhadas

transposições do real que visam propiciar a invenção de outra linguagem.

A observação da natureza, do entorno, do cotidiano, é a fonte primeira de

inspiração para as improvisações realizadas na escola. Observar como os seres e as

coisas movem-se, reconhecer essas manifestações em seu próprio corpo e representá-

las, privilegiando sempre o mundo externo ao interno, em uma clara indução ao jogo

não psicológico. Herança direta da visão de Copeau e das pedagogias que a

perpetuaram, anteriormente mencionadas, a observação e identificação com a

natureza estão no coração da metodologia de Lecoq. Em um mecanismo de “rejogo e

jogo”, provenientes da abordagem de Jousse, que abordamos mais detalhadamente no

item 3.2.2 dessa tese, o aluno deve observar, experimentar em seu corpo e depois

transferir para o jogo teatral, usando para tanto o “método das transferências”. Esse

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método consiste em transferir o movimento de uma matéria ou um animal, por

exemplo, para um ser humano ou, ao contrário, partir de um ser e inserir tais

características a seus gestos e maneiras. Trata-se de apoiar-se nas manifestações da

natureza para investir em seres, personagens, tipos, ou o que quer que se queira criar.

Conhecer aquilo que chamava de “leis do movimento” é, para Lecoq,

indispensável para a criação artística, principalmente para o teatro. As leis do

movimento organizam todas as situações teatrais, constituindo, para o mestre, a

estrutura mesma do jogo cênico, constituindo o que ele considerava o fundo dinâmico

de sua pedagogia. Tais leis são resumidas por Lecoq (1997, p.100) da seguinte

maneira: “não existe ação sem reação; o movimento é contínuo, nunca para; o

movimento sempre se origina de um estado de desequilíbrio que tende para o

equilíbrio; o equilíbrio está ele mesmo em movimento; não há movimento sem um

ponto fixo15; o movimento sublinha o ponto fixo; o ponto fixo também está em

movimento”. Nelas estão também implícitas os seguintes princípios relacionados ao

movimento do corpo: neutralidade, economia, ponto fixo, equilíbrio, desequilíbrio,

compensação, alternância, apelo ou tomada de impulso16, ritmo, relação com o

espaço, expansão e redução.

Nas aulas de análise do movimento, quando são ensinados os chamados Vinte

Movimentos, estuda-se o ponto fixo de cada movimento no sentido de limpar o gesto,

de referenciar o movimento, assim como no sentido de entender e aplicar seu

significado na cena, em relação aos colegas, aos objetos, ao espaço. A mesma ideia

será transposta para trabalhar o coro, por exemplo, quando o corifeu se destaca do

grupo, o fato dele movimentar-se, ou não, suscita diferentes leituras possíveis sobre

poder, dominação, confiança.

Quanto aos eixos da escola, a improvisação constitui o núcleo central do

processo educacional, age como eixo condutor para a construção da cena e das

personagens, partindo de situações e de temas. Inicia com a investigação do jogo

silencioso em que, a partir da busca de um estado neutro, acontecerá o jogo cênico

15 Ponto fixo é o ponto de referência que evidencia o deslocamento de algo, que fará o contraponto para que o movimento apareça. Pode ser uma parte do corpo ou da cena, como, por exemplo, se todos se movem simultaneamente no palco o sentido do movimento desaparece, necessitando, portanto, de um ponto de referencia a partir do qual os outros se movimentam.

16 No original, em francês, Appel. Em relação ao movimento, em Lecoq, é semelhante à noção de satz utilizada por Eugênio Barba no treinamento segundo a Antropologia Teatral.

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dos diferentes temas, com ou sem máscara, dali surgindo os tipos e as personagens.

Trata-se de estabelecer o silêncio tanto do ator consigo mesmo, quanto em relação ao

espaço que vai sustentar a cena.

Os três eixos da escola – improvisação, análise de movimentos e auto-cours –

são sempre abordados com base em temas comuns, que estão presentes em todas as

aulas. Diretamente ligados à natureza, à vida, ao cotidiano e à interação entre todas as

coisas, os temas abordados ao longo do primeiro ano da escola são basicamente os

seguintes: os elementos da natureza; os cataclismos; as matérias; as cores; as luzes; as

artes da pintura, da poesia e da música; as palavras; os animais; as paixões.

A concepção dramática de Lecoq está fundamentada na abordagem do teatro

como jogo, que inicia pelo “rejogo”, como foi anteriormente mencionado, como

primeiro estágio no trabalho de improvisação. Nele, os alunos revivem situações

como, por exemplo, o ritmo cotidiano de uma cidade, de um hospital, de uma estação,

etc. O mestre (1997, p.60) utiliza também a expressão “mimodinâmica”17 para referir-

se a esse processo de traduzir as sensações externas em movimentos corporais,

afirmando, por exemplo, que “a verdadeira colocação de um poema em movimento,

algo que a tradução por meio de palavras não consegue praticamente jamais

alcançar”.

O jogo propriamente dito vem depois, no momento em que o ator imprime

outro ritmo, outra medida, outra duração, outro espaço, dando forma à sua

improvisação. São trabalhadas diferentes dinâmicas pelos sete níveis de jogo em uma

escala de tensões assim denominadas: a subdescontração, a descontração, a economia,

a firmeza, o alerta, a irritação, a asfixia, como aponta Sachs (2004, p.80).

As máscaras são utilizadas como instrumentos para auxiliar o ator a soltar

tensões, a aprimorar a expressão de seus movimentos, a ampliá-lo e engajá-lo como

um todo. Utilizando a máscara neutra, Lecoq buscava despertar um estado de

neutralidade, de silêncio, de imobilidade, que viria a ser uma das bases do seu

treinamento. Além dela, trabalha as máscaras larvárias, as expressivas, as utilitárias,

17 Possivelmente inspirado também em Jousse que, embora não utilize esse termo especificamente, forja vários outros a partir da raiz mimo, como, por exemplo, mimodrama, mimograma, mimografismo, mimodramática, mimagem, entre outros, sempre referindo-se à tendência humana de partir da imitação do sentido ou da forma.

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as feitas pelos alunos e as contramáscaras, sempre no intuito de despertar a percepção

do corpo e de forçar a comunicação através dele.

O trabalho com as personagens parte da construção de seu corpo com base em

algumas características definidas, em um primeiro momento, pelo próprio ator. Ele

vai experimentar figurinos que colaborem em sua construção e deve definir pelo

menos três aspectos de sua personalidade, como, por exemplo, “arrogante, generoso e

nervoso”, que consistem em linhas de força que definirão a personagem,

estabelecendo a estrutura básica para o jogo. São então propostas situações em que

essas personagens irão encontrar-se e colocadas em evidência.

Como esclarecido anteriormente, não me detenho em todos os aspectos da

pedagogia de Lecoq, visto que não são o foco dessa pesquisa. Entretanto, há ainda

dois itens, a análise do movimento e o auto-cours, que estarão presentes mais adiante

nesse trabalho, quando da utilização dos mesmos, recebendo a atenção necessária no

momento devido. Sem a necessidade de estender as apresentações, passemos, então,

para o alongamento propriamente dito.

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3 ALONGAMENTO

Neste capítulo abordo inicialmente o alongamento corporal necessário para a

saúde do corpo e para abrir espaço para o trabalho criativo, assim como a “página em

branco” de que falava Lecoq. Em sua Escola, o objetivo do primeiro ano é o de

“tornar o aluno disponível para receber os acontecimentos externos, eliminar as

formas parasitárias que não lhe pertencem, retirar tudo o que possa lhe dificultar a

reencontrar a vida em suas formas mais essenciais”(LECOQ, 1997, p.39). O

alongamento, no contexto dessa pesquisa, refere-se também metaforicamente aos

limites conceituais dentro dos quais estou trabalhando, como aqueles referentes à

imaginação, principalmente à luz de Gaston Bachelard e Marcel Jousse, citados por

Lecoq, mas também algumas noções provindas de Bergson e de autores mais

contemporâneos como o filósofo Jean Piwnica. Na terceira parte estendo para a visão

de “Fundo Poético Comum” de Lecoq, a partir de relações com aspectos das ciências

naturais, da filosofia, da espiritualidade e das artes, que vai permear todo o

ensinamento do mestre.

3.1 PÁGINA EM BRANCO

Costumo iniciar o trabalho com uma sequência de exercícios que organizei

baseados principalmente em práticas do ioga. Solicito que o aluno escolha um local

para deitar-se na sala, com o ventre para cima e olhos fechados. Primeiramente, deve

somente procurar escutar os ruídos externos, e atentar para sua respiração naquele

momento, naquele dia, no intuito de estabelecer contato com o aqui e agora. Conduzo

um relaxamento inicial que chamo de scanner, que visa despertar um olhar interno

que passa ao longo do corpo no sentido de relaxar e tomar consciência de possíveis

pontos de tensão. Ao me escutar mencionar determinado ponto, a pessoa deve focar

ali sua atenção, senti-lo pesar e atentar para a superfície de contato de seu corpo com

o chão. Inicia-se com o contato dos calcanhares no solo e, em direção à parte superior

do corpo, atentar para o espaço vazio que se segue até tocá-lo de novo com a barriga

da perna, procurando mapear toda a extensão desse toque para os lados e para o alto,

até o limite com o espaço posterior dos joelhos. Em seguida, a grande superfície de

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contato das coxas com o solo, até que esse é suspenso na altura da coluna lombar.

Depois as costas, os braços, chegando à “ponte” que se sente entre essa parte e a

cabeça, ou seja, a nuca. Solicito que aproveitem para relaxá-la como se também ela

quisesse tocar o chão. Ao chegar no topo da cabeça, cada pessoa deve voltar

mentalmente seu scanner desde seus pés, refazendo o trajeto e relaxando as partes que

ainda julgar necessário. Em seguida, cada um deve fazer duas ou três respirações

profundas desde os pés até o topo da cabeça e exalar aos poucos, como que

esvaziando-se daquilo que trazia de fora da sala de trabalho. Entrar em contato com a

respiração é fundamental. Essa prática visa, sobretudo, possibilitar um afastamento

das questões do cotidiano para poder entrar num outro espaço propício para a criação.

Após esse relaxamento inicial, segue-se uma sequência de exercícios no solo

que visam principalmente alongar a região da coluna lombar, a nuca, os músculos das

pernas, dos braços e das costas. Costumo sugerir que mantenham os olhos fechados

nessa parte do trabalho para que possam trazer a atenção para si, para sua respiração,

para silenciar, para mudar de atmosfera, para distanciarem-se da vida cotidiana e

abrirem-se para o teatro. No ioga, esses exercícios visam apaziguar a mente, controlá-

la, na medida do possível, propiciar um bem-estar físico através do relaxamento. Para

o ator, além dessa contribuição, sua utilização visa ampliar a noção de aqui e agora,

abrir espaços para a imaginação, ampliar o campo perceptivo com o apaziguamento

da mente, aspectos normalmente passíveis de serem trabalhadas a partir da

intervenção nos padrões respiratórios.

A etapa do alongamento serve como um divisor de águas, pois a maneira

como chegamos da rua pode contaminar todo o trabalho. Com a experiência, cada

pessoa deverá ser capaz de detectar aquilo que melhor lhe convém para se colocar em

um estado propício para o trabalho criativo. Como professora e preparadora de

elencos, no entanto, proponho esta sequência de exercícios que acabo de descrever,

muitas vezes mantida como rotina pelos alunos e atores mesmo depois de

terminarmos o trabalho. Evidentemente, há dias em que pode ser mais conveniente

iniciar com algo oposto, algo bem dinâmico como, por exemplo um jogo tipo pega-

pega, caminhadas pelo espaço, jogos com bolas. Tudo dependerá do dia, da hora, da

temperatura, das condições da sala, da condição dos corpos dos atores, e até mesmo

do humor do grupo.

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Mesmo não tendo a intenção de comparar sistemas de crenças e práticas

teatrais, julgo pertinente mencionar a influência do ioga na prática de Stanislavski,

como nos informa Carnickle (2009, p.167). O renomado teatrista afirmava que a

tensão física é o maior inimigo da criatividade, pois além de paralisar e distorcer o

corpo, interfere na capacidade mental para se concentrar, fantasiar e usar a

imaginação. Segundo a autora, Stanislavski utilizava muitos exercícios derivados do

ioga com a finalidade de promover relaxamento e controle da capacidade de

concentração, imaginação e comunicação, o que acreditava que levaria o ator a

desenvolver um senso teatral de si. O mestre concebia a comunicação como a

transmissão e o recebimento de raios de energia, como ondas de rádio psíquicas com

as quais se pode entrar em contato através da nossa respiração. A cada expiração,

emitimos raios para o meio ambiente, e com cada inspiração recebemos essa energia

de volta a nossos corpos. Concordo totalmente com ele que, assim como Dullin,

acreditava que atuar exige um estado de relaxamento físico no qual o ator usa apenas

a tensão muscular suficiente para realizar o que quiser.

A fase de alongamento serve igualmente como preparação para o aquecimento

que se seguirá, normalmente com alguns dos Vinte Movimentos, como veremos no

próximo capítulo. Na Escola de Lecoq, o alongamento é normalmente feito com o

professor de acrobacia que, mais do que relaxamento e abertura perceptiva, visa o

alongamento muscular necessário para os movimentos acrobáticos. A acrobacia na

Escola tem um papel destacado, voltado para o desenvolvimento da confiança do

aluno, que vai progressivamente encorajando-se a arriscar-se no espaço e na cena,

experimentando posições do corpo que normalmente não faria. Deve, entretanto, ser

tratada com extremo cuidado para não causar lesões, razão pela qual não costumo

usar nas minhas práticas, a menos que seja com pessoas que já possuam experiência

prévia.

Voltar à Escola vinte anos após tê-la cursado era, para mim, algo que

despertava grande expectativa e curiosidade. Antes de partir para Paris para o estágio

de verão haviam muitas perguntas que eu queria responder lá, tais como: como

conseguirão abordar este tema que é tão complexo, que no curso de formação leva

pelo menos três meses, em 10 dias, apenas 56 horas de trabalho? Há alguma maneira

de abordar esse tema sem passar pela máscara neutra? Passaremos pelas cores, pelas

luzes, pelas matérias, pelos elementos? Usarão os Vinte Movimentos e a acrobacia?

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Será mantida a organização do curso de formação com as aulas de análise do

movimento, improvisação e auto-cours? Como realmente influencia a imaginação?

Ou serão outras competências do ator, como prontidão, percepção, presença, as mais

enfatizadas? O que é do imaginário do próprio ator e o que lhe é imposto? Qual o real

espaço de criação deixado ao aluno? Como será abordado sem monsieur Lecoq? Será

que usarão os termos Fundo Poético Comum, e outros específicos, já que o próprio

Lecoq raramente usava esses termos em aula? Como estará a escola sem o mestre?

Enfim, eram muitas as questões a serem respondidas.

No primeiro dia do estágio iniciamos com alongamento e acrobacia com o

professor Christophe Marchand18, o mesmo professor com quem eu estudara quando

fiz a Escola em 1992/93. Com larga experiência didática, ele vai ressaltando a

importância do alongamento criterioso da coluna, dos ombros, dos braços e das

pernas, construindo pouco a pouco a confiança nos movimentos. Sua abordagem é a

mesma desde então, iniciando com exercícios de alongamento, em pé, e depois no

solo, do tronco e das pernas, característicos de aulas de ginástica. Com atenção

especial para a coluna lombar, o encaixe do quadril e os ombros, prepara o corpo para

o trabalho de acrobacia com a posição da vela e o impulso para ficar em pé sem o

auxílio das mãos.

Em seguida, no estágio de verão, iniciamos o trabalho com improvisações

silenciosas e com a máscara neutra que, embora fazendo uns poucos exercícios dessa

natureza, serviram para estabelecer algumas normas em relação ao movimento, à

noção de neutralidade e de economia. A neutralidade, para Lecoq, é um estado ideal

de alerta e de repouso ao mesmo tempo, equivalente ao silêncio ou à uma folha de

papel em branco. É um estado ideal que antecede a qualquer ação, um perfeito

equilíbrio, de um ser genérico, sem conflitos, sem marcas, ninguém em especial,

inaugurando a ideia de ser comum, noção que se alia à de Fundo Poético Comum

18 Christophe Marchand foi Professor de Educação Física e do Desporto Educação por 6 anos. Fez o curso profissional na escola de Jacques Lecoq em 1979-1981, após o que se tornou professor de acrobacia dramática lá. Desde 1999, além de acrobacia, também ministra aulas de improvisação. Suas habilidades como professor e suas habilidades específicas em movimento, análise do movimento e acrobacia são apreciadas pelos estudantes há 30 anos. Paralelamente, Christophe Marchand trabalhou como ator e criou uma companhia de teatro – Théâtre de Marguerite – junto à qual ministrou cursos de teatro e dirigiu alguns espetáculos. É regularmente solicitado em estágios na França e no exterior (Barcelona, Israel, Holanda, Chile, Coréia do Sul). Christophe Marchand é também pintor, qualidade que enriquece seus cursos de improvisação com sua experiência pessoal. (Fonte: http://www.ecole-jacqueslecoq.com) Tradução nossa.

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abordada a seguir. A neutralidade é o ponto zero do corpo e do movimento, o ponto

de partida, que também pode ser tomado como um ponto fixo, como apontado em

Sachs (2004, p.65-66) e Bradby (2001, p.166). Na verdade, trata-se de uma busca

desse ideal, uma convenção que envolve uma postura ereta, com os braços e as mãos

alongados, que por si gera um estar presente e consciente de todo o corpo em relação

a si mesmo, aos colegas e ao espaço ao redor.

A máscara neutra é utilizada para induzir esse estado, eliminar excessos e

maneirismos, para que o ator assimile uma dimensão de “não personagem”, que

deverá guardar como referência básica que antecede a criação. Sua utilização, desde

que foi proposta por Copeau como máscara nobre, visa libertar o ator da “tirania do

rosto”, que naquela época era o principal meio de expressão do ator, e até hoje

mantêm-se essa tendência. Para se compreender a neutralidade, é importante levar em

conta o conceito de economia e de limpeza do gesto, imbricados um no outro, em que

“menos é mais”.

No curso de formação passa-se aproximadamente dois meses exercitando a

máscara neutra, mas, no estágio de verão, foram apenas uns poucos exercícios que,

ainda assim, foram importantes para estabelecer um ponto de partida comum atodos

os alunos, a “página em branco” em que poderemos inscrever o que quisermos, um

vazio antes de querer preencher com qualquer outro, seja personagem, ser fictício,

jogo com objetos, máscara, exatamente da mesma maneira como Monsieur Lecoq

(1997, p.39) costumava falar.

Ao final do primeiro dia do estágio, portanto, algumas das minhas perguntas

iniciais já haviam sido respondidas: a estrutura seguiria a mesma da pedagogia do

curso de formação, com a primeira aula sendo de alongamento e aquecimento

corporal, a segunda aula seria de improvisação e teria um terceiro momento de auto-

cours no fim do dia.

O curso seguiu com essa rotina inicial de preparação voltada para a acrobacia,

com alongamento da coluna lombar e das escápulas: sentados, pernas afastadas,

longas fitas em cada pé, costas eretas, procurávamos empurrar a coluna lombar à

frente, respirando para, aos poucos, tentar aproximar o púbis do chão. Em seguida,

retomamos os exercícios acrobáticos passo a passo. Para a parada de mão, por

exemplo, inicia-se com exercício em duplas, um deitado e outro em pé. Aquele que

está no chão segura nos calcanhares do que está em pé, colocados logo acima de seus

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ombros; com os braços flexionados, ele se empurra para longe, no chão, enquanto o

que está de pé resiste, firmando-se para o colega empurrar. É um aquecimento das

escápulas, dos ombros, dos braços e pulsos, que consistem nos mesmos movimentos

que serão feitos na posição vertical da inversão (parada de mão), quando também

deve-se empurrar o chão para estabilizar-se em equilíbrio. Para a roda (ou estrelinha),

inicia-se com um pequeno círculo imaginário à frente de cada um, e a pessoa deve

colocar neste espaço uma mão, outra mão, um pé, outro pé. Em seguida aumenta-se o

círculo, mas o movimento deve manter-se o mesmo. Quanto maior vai tornando-se o

círculo, ele passa a ser um reta, e, sem nos darmos conta, estamos fazendo a estrelinha

em linha reta. Pode até parecer banal, mas reconheço ali o valor da pedagogia do

movimento, de construir passo a passo algo que muitas pessoas desistem de antemão

por parecer arriscado. Tanto é assim que, em seguida, experimentamos fazer a roda

descendo de um banco longo, onde iniciávamos a primeira parte do movimento

colocando uma mão e depois a outra ainda sobre o banco, e a segunda parte era feita

no chão. Exercício realizado inicialmente em pares, com um colega sempre dando

suporte, segurando o outro pelo quadril, retirando o rosto da frente para não se

baterem. Esses exercícios de acrobacia são importantes para trabalhar com o medo, o

risco, o impulso, o lançar-se, a confiança, a ampliação de movimento para além do

que acreditamos ser possível de fazer com nosso corpo.

Com os exercícios de alongamento e de acrobacia cada vez mais fluidos, no

quarto dia notava-se claramente uma maior disponibilidade das pessoas para

arriscarem-se, por exemplo, a correr sobre o tatame, fazer duas rodas seguidas em

linha reta e sair dali com controle do corpo. Seguimos com a rotina diária desses

exercícios, que envolviam paradas de mão, apoios com os cotovelos no chão para

fortalecer os músculos abdominais, trabalhando o encaixe do quadril como se

usássemos um corpete ao estilo das mulheres antigas, com o músculo abdominal bem

teso e controlado. Foi notável o quanto as pessoas foram organizando seus corpos,

adquirindo segurança e passando a agir com maior domínio e capacidade de correr

risco, mesmo aquelas que não tinham antecedentes nesse tipo de atividade. Eu

mesma, que há muitos anos não fazia acrobacia, percebi como fui recobrando

confiança e força através do movimento estruturado, permitindo mover-me com maior

liberdade no espaço, com impulso para entrar em cena, para me arriscar. Com a

experiência renovada por este curso voltei a constatar a relevância desses exercícios

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de acrobacia como bases preparatórias para o jogo do ator, ainda que não tenha o

costume de utilizá-los como tal.

Assim como o exercício no qual ficamos em pé e alongamos os braços e o

corpo em todas as direções procurando tocar uma espécie de bolha invisível que nos

circunda, proponho a seguir algumas questões através das quais se possa examinar

alguns limites até onde alcança o presente estudo no que tange a imaginação.

3.2 SOBRE A IMAGINAÇÃO

Muitos foram os autores que se debruçaram sobre a questão da imaginação e

do imaginário, tais como Henri Bergson (1859-1941), Jean-Paul Sartre (1905-1980),

Gilbert Durand (1921-2012), Jacques Le Goff (1924-), Gilles Deleuze (1925-1995),

para citar apenas alguns dos mais conhecidos, em seus vários campos de atuação. Para

o presente estudo enfoco principalmente alguns conceitos de Gaston Bachelard e de

Marcel Jousse, uma vez que eles figuram entre as declaradas influências recebidas por

Lecoq. Entretanto, além desses dois nomes, recorro também a Bergson, cuja

influência detectei por ocasião dos meus estudos de mestrado, assim como Piwnica,

filósofo que apresenta uma compreensão ampla sobre a imaginação e vai colaborar na

definição de alguns parâmetros para situar o tema. Para situar o tema em relação aos

estudos teatrais apresento alguns dos pressupostos dessa competência do ator

desenvolvidos com base nas abordagens de formação no trabalho de Stanislavski e

Michel Chekhov a fim de contrastá-las com a maneira proposta por Lecoq.

Segundo o dicionário Houaiss (2001, p.1573), imaginar é a faculdade que

possui o espírito de representar imagens, de evocar imagens e objetos anteriormente

percebidos; a capacidade de formar imagens originais; a faculdade de criar a partir da

combinação de ideias. Vale notar que as palavras imagem, imaginação e imaginário

provêm da raiz etimológica do latim imago–ginis, que significa semelhança,

parecença, representação, retrato (pictórico, escultórico, plástico, verbal); também

relacionado à imagem pelo grego eikon. Nesse sentido etimológico, portanto,

imaginação é a representação de um objeto ou reprodução mental de uma sensação na

ausência da causa que a produziu, ou ainda, a capacidade de imitar modelos

exemplares, as imagens, reproduzindo-as, segundo Queiroz (2010). Essa

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representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças

e percepções passadas, passíveis de serem modificadas por novas experiências.

Ainda segundo Houaiss, em latim o verbo imaginar, imaginor, relaciona-se a

representar na imaginação, sonhar, devanear; o radical imago frequentemente está

presente nos vocábulos imitor, imitaris, que significa procurar reproduzir a imagem,

imitar, arremedar, modelar-se por, copiar, assemelhar-se a, simular, fingir, falsificar.

Como aponta Simões (1999, p.37), há no pensamento ocidental uma

predominância de metáforas visuais aplicadas ao conhecimento, verificável em

palavras como evidência, ponto-de-vista, teoria, ideia (em grego eidos, “forma

visível”), intuição (do latim intuere, “olhar atentamente”), inteligência (do latim intus

legere, “ler dentro”), visão-de-mundo, e tantas outras. Desde os gregos antigos, que

entendiam o ato de pensar como extensão do ato de ver, a visão prevalece na tradição

filosófica posterior como o sentido do próprio pensar19.

A imaginação é definida a partir de diferentes enfoques, por vezes conflitantes.

A tradição filosófica configura dois tipos de imaginação: a faculdade mental de

evocar objetos conhecidos sob a forma de imagens através das sensações ou da

experiência anteriores; e outra, a faculdade da mente em criar e recriar imagens novas,

ainda que a partir de formas sensíveis e concretas. A primeira é chamada imaginação

reprodutora, meramente evocativa, que depende substancialmente das sensações, da

percepção e da memória, simples registro passivo de experiências. A segunda é a

imaginação produtora, emancipada da percepção sensível, essencialmente criadora,

original, simbolizante, poetificante, inventora de novas imagens ou sínteses originais

de imagens.

Para autores como Gilbert Durand (1997, p.18), o imaginário é o conjunto das

imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens, o

grande denominador fundamental para onde convergem todas as criações do

pensamento humano. O antropólogo francês acredita que, para falarmos em

competência do imaginário, necessitamos possuir um vasto repertório daquilo que

seria o imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais que a história,

as mitologias, a etnologia, a linguística e as literaturas nos propõem. Necessitamos de

19 Exemplos em português, mas que se pode estender para outras línguas também, como em inglês e em francês diz-se “I see” ou “je voi”, respectivamente, para significar “eu compreendo”.

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uma soma cultural que ultrapasse o conhecimento das línguas, dos povos, das

histórias, das civilizações. Só então se pode falar sobre o imaginário com o

conhecimento de causa e compreender suas leis. O autor alia-se a Bachelard na

constatação de que a imagem só pode ser estudada pela imagem, e a primeira

constatação revolucionária que sugere é que “este imaginário, longe de ser a “louca da

casa” a que a psicologia clássica o reduz, é, pelo contrário, a norma fundamental

diante da qual a contínua flutuação do progresso científico aparece como um

fenômeno menor e sem significação”.

Criar formas e imagens é a função da imaginação. Ela dá ao indivíduo a consciência de si mesmo, de seu entorno e a liberdade de pensamento: essa, em particular, de imaginar outras formas de existência social ou individual. Pela imaginação, o homem consegue distanciar-se do que é, libertar-se do mundo objetivo.(PIWNICA, 2010, contra-capa)

A imaginação é guiada pela intenção, afirma Piwnica (2010, p.10). É

necessário querer outra coisa em relação àquilo que é para poder liberar a

imaginação. Querer um corpo diferente, no caso do teatro, querer criar um ser

diferente de si. Mesmo se for uma personagem que jogue num estilo realista, com

gestos cotidianos, o ator há de ser capaz de dar espaço para que o corpo seja dessa

personagem, com outro caminhar, outros gestos, outras maneiras de falar, de olhar, de

mover e, sobretudo, outro caráter. Criar espaço para o “outro”, permitir a alteridade

que se instala com a personagem. Segundo esse autor, fora daquilo que se imagina,

não se poderia ver mais do que um cego. Ele sustenta que costuma-se tomar

consciência e interpretar as sensações que vêm do exterior de acordo com a própria

imaginação, e a razão, vinda com a experiência, é um recurso que nos protege dos

extremos aos quais nossa imaginação possa nos conduzir.

Na visão psicanalítica20, o corpo é considerado como essencialmente

imaginário. Se o corpo fosse apenas “natural”, nós seríamos nossas tripas, nosso

sangue, nossos ossos, uma coisa insuportável, que é o “real” – ou um corpo morto,

que pode ser visto como apenas um objeto. O corpo é uma imagem; uma imagem

imaginária. Desde Ovídio, com o mito de Narciso, já há uma predominância dessa

ideia. Narciso se apaixona por ele mesmo, pensando tratar-se de outro, ou seja,

20 Em conversas com a psicanalista e escritora Maria Rosane Pereira Pinto. Porto Alegre, outubro de 2012.

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apaixona-se por sua própria imagem. Quando se dá conta que é ele mesmo, entra em

crise. A constituição do imaginário é antinatural por excelência – é aquilo que tira o

homem do estado de natureza e o coloca em estado de cultura, fundamental para a

construção do Eu. É a matriz simbólica que tira o ser humano do real, que separa o

bebê de sua mãe, através da imagem de si que vai construindo.

O imaginário é considerado como algo extremamente significativo, que

define a possibilidade da alteridade e o ato social no momento em que a pessoa

identifica-se com os outros, vê-se através dos outros, torna-se um outro para os

outros. O outro é afirmado através da linguagem, como, por exemplo, quando a

criança observa sua imagem num espelho e experimenta a validação de sua mãe que

lhe diz: “olha o João!”. Dessa forma ele se identifica com aquela imagem, que passa a

ser a representação de si. Tal como ocorre com a função primeira do teatro, o modo

como os gregos o usavam para infundir uma dimensão ética, para que as pessoas

olhassem e se identificassem com aquelas ações, com certos padrões de

comportamento e atitudes. Toda a possibilidade de identificação é muito primária,

depende de como a vida acontece desde sua infância, daquilo que lhe serve enquanto

espelho, do que ele reconhece, o que toma por verossimilhante, que é assimilado de

forma inconsciente. Por ser um ser de linguagem, o homem está mergulhado num

sistema de representações de amplo espectro, consistindo-se de uma infinidade de

registros: real, simbólico, imaginário. A linguagem, portanto, não trata-se somente do

modo de dizer as coisas, mas de todos registros que constituem o psiquismo humano,

um sistema de representação que o define como tal, pois só o ser humano tem essa

constituição, e essa é a experiência humana. A arte passa pela questão do imaginário,

que é o que vai nos dar acesso a outros mundos.

A imaginação é a faculdade mais rica que o homem possui. Ela possui a sua disposição todos os recursos do corpo e do espírito humano – sensoriais e intelectuais, é por isso que ela está na origem de toda a criação. À imagem do homem, ela é incerta, instável, capaz do melhor como do pior, mas a cada vez única como a água que corre, sempre a mesma sendo outra, já que ligada ao conjunto de nossos estados de espírito. (PIWNICA, 2010, p.10).

A palavra e a imagem são os dois meios que tem um ser humano para tratar

um não-presente como um presente e de colocar diante dele um objeto desejado.

Como aponta Piwnica (2010, p.14), a imagem pode ser concebida como aquilo que

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permite reter uma coisa em lugar de várias outras dada sua capacidade de

condensação, como sustentava Freud. Uma presença na ausência, imagens podem ser

tomadas como metáforas, como, por exemplo, no espetáculo “ O Baile...”, há uma

cena em que as personagens dançam com cabides com vestidos pendurados, através

dos quais se pode imaginar uma variedade infinita de possíveis parceiros de baile,

cabendo à imaginação do espectador o seu preenchimento. Outro exemplo de

presença na ausência pode-se observar no espetáculo Café Muller, de Pina Bausch,

com aquelas cadeiras vazias em cena que deixam em aberto toda uma multidão de

possibilidades, pessoas, situações, ideias que poderiam estar ali presentes. O autor

acima sustenta que a imagem permite reter mais facilmente os pensamentos e trazê-

los ao espírito, apreendidas não como pensamentos, obrigatoriamente, mas como

intuição. A imaginação, então, seria constituída principalmente da reprodução dessas

intuições que não são somente fantasia, mas igualmente capacidade de produzir

representações na ausência do objeto.

Fig.3 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio”.

Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)

a representação é auto-criação do próprio sujeito, nesse sentido ela é um fazer. (...) Todo o sujeito cria e se cria de maneira contínua fantasmando, sonhando, percebendo. Existe um fluxo representativo-afetivo-intencional que só cessa com a morte. Se a representação é um fazer, reciprocamente ‘fazer é sempre representar’. Todo fazer é um tornar-presente, uma

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atualização não do que existe em potência, mas antes daquilo que não existe, e toda ação é criação. Ela não é uma simples aplicação de uma representação preliminar, mas a emergência de alguma coisa que não estava ali antes. A representação se manifesta fazendo aparecer, de maneira concreta ou simbólica, a imagem de uma coisa abstrata e, em geral, torna uma coisa presente ou sensível ao espírito, à memória, por meio de uma imagem. Piwnica (2010, p.16)

O ser humano precisa de estímulos do exterior, precisa da relação com os

outros para definir uma representação de si e até mesmo para se desenvolver

fisicamente. Com a evolução biológica, que toca por vezes o meio físico e o meio

social e cultural as capacidades de representação se alargam. Baseado em estudos

filosóficos e psicanalíticos, o autor (Piwnica, 2010, p.17) concebe a representação

como uma atividade originária permanente do homem, um fluxo constante e contínuo,

que deve ao imaginário sua capacidade de dar forma, de criar realidades dotadas de

sentido.

Como antes mencionado, Bachelard e Jousse são pensadores que

influenciaram o pensamento de Lecoq. Embora o mestre nunca tenha se atido a

maiores explicações sobre um ou outro, sempre fiel à sua ideia de que os alunos

deveriam conhecer intelectualmente os fundamentos dos estudos somente após

concluir a Escola, ele deixou registros que mencionam tais relações. Tanto o filósofo

quanto o antropólogo são pensadores com obras vastas e complexas, que aqui serão

abordadas da maneira mais objetiva possível visando o aprofundamento apenas dos

pontos que possam iluminar o entendimento sobre a visão de Lecoq de arte e que

estejam relacionados ao tema da imaginação.

3.2.1 Alguns conceitos de Bachelard

Gaston Bachelard considera o papel da imaginação e da criatividade como

elementos imprescindíveis para a prática científica. Defendia a existência de uma

objetividade material e dinâmica de nosso conhecimento poético do mundo e,

portanto, a imaginação como essencialmente aberta, evasiva, e que, aliada à vontade,

torna-se poder de criação. Para ele, a imaginação não é a capacidade de formar

imagens, mas a de deformar as imagens fornecidas pela percepção. Trata-se de

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libertar-se das imagens primeiras e transformá-las, de mudá-las, de modificar a

matéria. “Se não há mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há

imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa

imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma explosão de imagens,

não há imaginação”, Bachelard (2001, p.1).

Na introdução da obra A Água e os Sonhos, o filósofo distingue dois tipos de

imaginação: uma formal, provinda de imagens da forma e uma material, relativa a

imagens provindas diretamente da matéria. A formal é reprodutora, aquela que evoca

imagens na mente de objetos reconhecidos pelas experiências anteriores, e a material

é a produtora, é a criativa, que inventa novas imagens sem mesmo tê-las conhecido,

como a formulação de hipóteses jamais pensadas. Para Bachelard, uma é descritiva e

a outra é criadora, porém não são excludentes, ambas se encontram no momento da

reflexão científica.

A imaginação formal que é centrada no sentido da visão e resulta no

exercício constante da abstração, ficando o homem como mero espectador do mundo

que o rodeia numa espécie de contemplação ociosa e passiva. Bachelard critica a

hegemonia da visão sobre os demais sentidos, uma característica da filosofia

ocidental, lutando contra a “ocularidade” e a “forma”, pois acredita que uma filosofia

que vê com os olhos ainda está presa à contemplação do espetáculo. Para ele, essa

concepção decorre da maneira tradicional de se compreender a imaginação como uma

faculdade de copiar subalterna, que depende do objeto do qual produziria as cópias e

do conceito no qual essas cópias deveriam necessariamente se converter sempre

como alegorias.

Já a imaginação material e dinâmica se opõe à formal pressupondo uma

ação, com o homem intervindo ativamente na matéria como um demiurgo, um

artesão, um manipulador, que age de maneira concreta e concretizante. Bachelard

contrapõe à consagrada filosofia passiva ocular uma filosofia ativa tributária

principalmente da mão, seja dos artistas, dos alquimistas, dos obreiros, de todos os

que agem sobre a matéria para transformá-la. É o trabalho operante e criativo do

homem frente às resistências da matéria, o embate entre as forças humanas e as forças

naturais.

A questão que concerne a capacidade da mão de tocar e transformar a matéria

que torna o Homem um criador, um demiúrgo, é profundamente aristotélica. Essa

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questão da mão, tal como foi colocada por Aristóteles, inspirou praticamente toda a

Idade Media, quando havia uma enorme valorização do trabalho manual. Toda a

teologia religiosa dessa época vai se referir muito aos trabalhos de Aristóteles, nesse

sentido da valorização dos trabalhos manuais, de que o Homem é um ser produtor por

excelência, que produz objetos diversos com uma gama ampla de funções, tanto

funcionais, como na cerâmica, por exemplo, como estéticos. Isso vai ter ressonâncias

no ponto de vista filosófico enormes.

Alonguemo-nos um pouco nessa direção do pensamento aristotélico, aqui

determinante, que elucida questões fundamentais de todo o pensamento sobre o qual o

Fundo Poético Comum vai se basear. Mostaço (2011)21 esclarece que tudo parte do

princípio de imaterial. Para Aristóteles, tudo o que vive, tanto os seres humanos como

as plantas, animais, enfim, é animado pela dynamis, que pode-se traduzir como

dinâmica ou também como força ou dínamo. A palavra dínamo origina-se na

dinâmica, aquilo que faz o motor funcionar, que imprime um movimento. Uma das

ideias centrais em seu pensamento, o princípio da dynamis, para ele, é universal,

responsável por tudo que é vivente. Aristóteles não fala em pessoa ou ser humano, ele

fala em ‘vivente’. Quando afirma que nós somos zoon politikós, que é normalmente

traduzido como ‘seres políticos’, na verdade termo zoon refere-se não apenas ao

Homem, mas ao Vivente. Politikós porque ele necessita viver em grupo, visto que não

é um ser solitário nem autônomo, como existem alguns seres que o são. Portanto, ele

refere-se ao homem como um zoon politikós porque vive em sociedade, é frágil,

precisa viver em bando, assim como formigas e abelhas, por exemplo, todos precisam

viver de forma gregária. Essa seria a visão mais simples, mas também a mais radical

dessa interpretação de Aristóteles, segundo aponta o professor.

O que diferencia o ser humano dos outros Viventes, é o fato de possuir a

Psyché, a alma, e “a alma age como mão”. Essa é uma frase literal de Aristóteles em

seu livro De Anima, no qual sustenta que a psyché age como mão, no sentido de que

ela possui a capacidade de moldar, de pegar, enfim, de tudo aquilo que a mão é capaz

de fazer. Ainda em outra obra, o filósofo aponta que somos os seres que possuem o

mais perfeito instrumento de todo o universo, a mão, que nos confere a capacidade de

apreensão por conta do dedo opositor, forjando a nossa capacidade de agarrar que

21 Mostaço, Edélcio, em reunião de orientação. Florianópolis, agosto de 2011.

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outros seres não têm. Ferramenta universal porque contém em si inúmeras outras,

como um martelo (bater), uma faca (raspar), uma plaina (aplainar), um alicate

(apertar), enfim, a mão é uma síntese de inúmeras outras ferramentas que foram

criadas com o decorrer do tempo. Quando afirma, então, que a psyché age como mão,

Aristóteles refere-se ao sentido de que ela é capaz de todas essas possibilidades que a

mão tem, portanto a psyché pode moldar, esculpir, alisar, tirar, juntar, fazer formas

das mais variadas, pode medir (é uma medida de tamanho – o palmo, as polegadas). A

mão passa a ser uma espécie de síntese do Homem inteiro, porque ela é a psyché do

Homem. Além disso, na mão encontram-se nossas digitais, que funcionam como

nossa identidade, pois mesmo havendo milhares de seres humanos, cada digital é

única, cada pessoa é única, e essa diferença está na mão.

Há, portanto uma correlação direta entre a questão da mão e o que nós somos,

no sentido daquilo que nos dá a vida e, ao mesmo tempo, nos individualiza. Cada

pessoa possui uma vida diferente da outra, possui mãos diferentes, capacidades

diferentes, independente de seu nível cultural. A habilidade manual tem direta relação

com a imaginação, já que viabiliza a capacidade de inventar, de criar, de manipular,

de formar. Desde a massinha de modelar com que a criança brinca, assim como todos

os materiais plásticos, são meios pelos quais ela desenvolve a motricidade e a

imaginação, na base da experiência direta da mão em contato com a matéria.

Em consonância com esse pensamento, Bachelard defende a autonomia da

imaginação criadora frente à percepção visual. Para ele, a imaginação material cria

novas conexões, novas combinações de signos independentes do mundo

habitualmente percebido apenas pelos sentidos humanos, de tal modo que a imagem

não fique limitada à imaginação formal, somente à visão. A imaginação material é a

capacidade de formar imagens que vão além da realidade, que permitem ao homem

ultrapassar sua própria condição humana. A materialidade das imagens decorre de

uma inspiração orgânica e elementar e, por isso, a imaginação é, no fundo, material e

dinâmica, demonstrando a objetividade material de nossa habitação poética no

mundo, sem jamais esquecer a dinâmica implícita nos elementos.

Para além das seduções da imaginação das formas, a imaginação material

pensa, sonha e vive a matéria, ou ainda – o que dá no mesmo – materializa o

imaginário. Ciência e poesia, portanto, ambas essencialmente ontogenéticas, superam

e renovam o mundo, emanam de uma forte filosofia da energia. Sua filosofia da

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imaginação material postula a atividade, a aplicação, a matéria, a existência da

verdadeira poesia somente quando houver criação de novas imagens que, sendo essa

a sua essência, é um fenômeno da liberdade.

No mesmo sentido, Piwnica (2010, p.14) pondera que “a imaginação

reprodutiva reconecta as representações na ausência do objeto, enquanto que a

imaginação produtiva o faz segundo regras do entendimento; a síntese da imaginação

estando na ocorrência um efeito do entendimento sobre a sensibilidade à qual

pertence a imaginação enquanto tal”.

Bachelard propõe que abandonemos muitas das tradições filosóficas sobre

a realidade do mundo sensível e sobre a clareza do espírito em prol do onirismo ativo

e do devaneio como um caminho para a descoberta das forças vivas da natureza e da

profundidade dos dramas humanos. Segundo ele, (BACHELARD,1989, p.2) onde a

visão nomeia as matérias, a mão as conhece, as maneja, as modela, as torna mais

leves. “Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente,

afastando as formas, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são

um coração.” Ele propõe que se perceba a imagem como uma planta que necessita de

terra e de céu, de substância e de forma, aprofundamento e impulso da matéria, para

assim desenvolvermos uma “imaginação aberta”. A imaginação material opera a

partir do distanciamento da visão, portanto não é contemplativa. Ao contrário, desafia

a resistência e as forças concretas, num corpo-a-corpo com a materialidade do

mundo, numa atitude dinâmica e transformadora, resultante do trabalho direto da mão

humana sobre a matéria das coisas.

No embate entre o homem e o mundo, na dinamologia da mão e da

matéria, o filósofo estabelece a ligação da imaginação material aos quatro grandes

reinos cósmicos – o fogo, o ar, a terra e a água – que, por sua vez, estariam ligados a

um sentimento humano arcaico, a uma realidade orgânica primordial, a um

temperamento onírico fundamental. A doutrina dos quatro elementos é uma das

ideias mais persistentes da cultura ocidental. Desde a antiga medicina hipocrática,

cujos fluidos corporais são humores associados aos elementos. Os quatro elementos

da física são, segundo o filósofo, fontes inesgotáveis para os criadores, são essências

materiais recorrentes, como substâncias elementares que alimentam a criatividade

interminável da arte. Essa associação com elementos ainda está presente em muitas

práticas do nosso mundo contemporâneo, tal como a relação proposta pela pedagogia

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de Lecoq que exponho aqui, cuja visão está diretamente ligada a esse pensamento,

presente inclusive em seu discurso nas aulas.

Ainda na introdução de A Água e os Sonhos encontramos a proposta

bachelardiana de uma lei dos quatro elementos. Ele estabelece uma classificação das

diversas imaginações materiais conforme elas se associam aos quatro elementos. Para

ele, se toda poética deve receber componentes de essência material, é ainda essa

classificação pelos elementos materiais fundamentais que se deve aliar mais

fortemente às almas poéticas. É preciso que um devaneio encontre sua matéria, que

um elemento material lhe dê sua própria substância, sua própria regra, sua poética

específica, o que está diretamente relacionado à abordagem lecoquiana da busca do

movimento corporal inspirado pela dinâmica das diferentes matérias.

O filósofo propõe associações entre os elementos e tipos de devaneios que

comandam as crenças e as paixões: o fogo e suas imaginações materiais produzem o

temperamento poético do psiquismo ígneo, como a cólera e a ira; o elemento ar, o

psiquismo aéreo, o sonho de voo; o elemento terra, o psiquismo terrestre, o fixo, o

firme; o elemento água, o psiquismo hidrante ou hídrico, o maleável, o penetrante.

Ele considera que um devaneio saudável e feliz é aquele que prolonga a luta entre a

água e a terra, entre a água e o fogo, comparando ao trabalho de um padeiro que

busca a proporção adequada entre a água e a farinha e ao do poeta trabalhando com

misturas imaginárias em direção à beleza das formas. Ao mesmo tempo, Bachelard

sustenta a importância de voltar aos próprios fenômenos, em direta relação com a

fenomenologia, priorizando o estudo das imagens não como coisas, mas como algo a

ser vivido, experimentado, re-imaginado, num ato de consciência que pode restituir

de uma só vez sua intempestividade e sua novidade. A imaginação material implica,

portanto, no comprometimento do corpo com a concretude das coisas. Ele defende

constantemente o trabalho, caracterizado especialmente pelo uso das mãos, que

trabalha com a dinâmica e a resistência da matéria. A materialidade das imagens

decorre de uma inspiração orgânica e elementar. Da mesma forma que se diz que a

vida é, no fundo, química, assim a imaginação é, no fundo, material.

Bachelard prefere o devaneio ao sonho noturno, uma vez que esse último

mostra-se em belas visões ou fantasmagorias que não são de fato experimentadas,

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como se fosse o pensamento de outra pessoa em nós22. Só depois de relatado é que a

identificação do Eu no sonho pode ser encontrada, com auxílio de um psicólogo ou

psicanalista que detecta e interpreta seus símbolos e mistérios. Bachelard rejeita o

conhecimento do sonho como relevante no estudo da imaginação enquanto imagem

estética, preferindo o devaneio, que une de modo paradoxal a evasão e o cogito de

maneira natural e criativa. Acredita, inclusive, que a sensibilidade poética pode ser

educada através do devaneio que nos coloca em simpatia com as palavras e as

substâncias, quando a imaginação torna-se capaz de infundir uma segunda existência

às imagens familiares, criando “metáforas de metáforas”.

Quando aplicado às artes, Bachelard (2001, p.275) referia-se geralmente à

literatura. Acreditava que se deveria estudar o homem literário, que é uma soma da

meditação e da expressão, uma soma do pensamento e do sonho. A predileção pela

literatura indica sua total confiança na emergência do homem através da linguagem.

Para ele, portanto, uma doutrina filosófica sobre a imaginação deve se ater às relações

de caráter material das imagens, mesmo sendo imagens poéticas, pois elas possuem

uma matéria, assim como uma escultura, por exemplo. Assim como seu pensamento

pode ser estendido às outras expressões artísticas como as artes visuais, aqui nos

interessa pensar nas artes cênicas. Quando o filósofo menciona a utilização das mãos

e a necessidade do contato direto com a matéria, associo tal raciocínio ao corpo do

ator. A matéria que se transforma, nesse caso, é seu próprio corpo, a partir da

observação visual de uma matéria (imaginação formal) e da vivência física através de

exercícios específicos (imaginação material). Esses exercícios induzem o ator a

desenvolver a percepção de uma dada matéria em termos de sua textura, densidade,

plasticidade, mobilidade, na medida em que vai experimentando esses movimentos

em seu próprio corpo num processo de imprimir nele essas dinâmicas.

Bachelard (2001, p. 2-3) afirmava que “a imaginação é, antes de tudo, um tipo

de mobilidade espiritual, maior, mais viva, mais vivaz”. Essa ideia de imaginação

aliada ao movimento é uma das molas propulsoras dos exercícios de improvisação

propostos por Lecoq, tendo em mente que “imaginar é ausentar-se, lançar-se a uma

nova vida”, experimentar, arriscar, criar. É forte a presença dos elementos em sua

pedagogia, fundamentais para o trabalho que se segue com as matérias. 22 No Vedanta, por exemplo, o sonho noturno é considerado como experiência tanto quanto o devaneio acordado, tratando-se apenas instancias diferentes da experiência.

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A relação que encontro entre essas questões apontadas por Bachelard e a

prática de formação do ator que utilizo baseada na pedagogia de Lecoq vai além da

aplicação de exercícios com os quatro elementos, mas aponta, sobretudo, à maneira

‘como’ é trabalhada a percepção dos mesmos, que visa chamar atenção para as

matérias em si e suas dinâmicas. Trata-se de trabalhar com as especificidades de cada

matéria de acordo com sua dinâmica, como, por exemplo, a água do mar difere da

água do rio e ambas são diferentes da lagoa e da cachoeira. Todas constituem o

mesmo elemento, mas devido às suas distintas dinâmicas, ao utilizá-las como

inspiração para o trabalho do corpo, elas são capazes de expandir as possibilidades de

movimento em si e, consequentemente, a capacidade imaginativa do ator. Da mesma

maneira se dão os exercícios com as especificidades do fogo (de uma fogueira, de um

fogão, de um palito de fósforo), da terra (do lodo, da terra preta para um vaso, da

terra seca do sertão), do ar (da brisa, da ventania, do ciclone), e assim por diante, os

exemplos vão estar relacionados ao que as pessoas conhecem. Essa é a compreensão

implícita no conceito de Fundo Poético Comum tratado no item 3.3.

Percebo na prática de Lecoq, portanto, a utilização tanto da imaginação

formal quanto da material. A formal podendo estar relacionada à prática que visa à

forma, encontrada nos Vinte Movimentos, por exemplo, e a material em exercícios

como o mencionado acima e como veremos mais adiante quando descrevo as

improvisações com o tema dos elementos e das matérias. Além desse aspecto, há a

constante referencia ao motor interno, ao encontrar no movimento aquilo que lhe

impulsiona, o que também deve ser levado para a cena, procurando encontrar aquilo

que está no centro de seu movimento, o que lhe impulsiona, o motor, o dínamo, a

força.

Quando trabalho com a água, por exemplo, normalmente inicio com a água

do mar, passo para o rio, a cachoeira, para a lagoa, para o lago. Busca-se evocar a

memória de cada uma dessas águas com o corpo. Trata-se de transpor essa memória

visual em cinética, sendo que o foco não está na forma dessas águas, mas sim sua

dinâmica, ou seja, como posso transpor o movimento do elemento para o meu corpo.

Ambos são movimentos. Essa acepção é a que trata da dinâmica interna, da mímica

interna, da mimesis interna, do mimismo, tal seja, a imitação do sentido interno, de

que trata Jousse como disponho a seguir.

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3.2.2 Alguns conceitos de Jousse

O antropólogo francês Marcel Jousse denominou de Antropologia do Gesto a

ciência que estuda o papel do gesto e do ritmo no processo de cognição, memória e

expressão humanas. Essa ciência visa fazer uma síntese de várias disciplinas, tais

como a psicologia, a linguística, a antropologia, a psiquiatria, a educação secular e

sagrada, os estudos religiosos e a exegética, através da descoberta de leis

fundamentais que comandam os mecanismos lógicos específicos do homem, a quem

ele se referia como o “Anthropos”. A principal dessas leis e mecanismos, é o

"mimismo", que está na origem de todos os processos desde a formação da palavra,

do pensamento ou da ação lógica nas diferentes origens étnicas.

O mimismo é a força específica do Anthropos, o fundamento da expressão

humana, inata e espontânea que existe em todos nós. É uma tendência, uma conduta

pela qual o indivíduo reage às ações que as coisas que o cercam exercem sobre ele

refazendo-as à sua maneira, num mecanismo que ele chamava de “rejogo” 23.

Para Jousse, portanto, o homem é feito de maneira tal que registra tudo o que

o circunda, imprime o universo que o rodeia, para depois expressá-lo, rejogá-lo. Essa

tendência faz com que a criança “rejogue” (refaça) espontaneamente os sons, os

movimentos, os gestos de seu universo.

Gesto, para Jousse (1974, p.58), abrange tudo o que pode ser registrado pelos

sentidos. O pensamento não é nada mais do que a tomada de consciência desses

gestos registrados, de suas aplicações, suas imbricações, suas transposições, suas

inibições. O pensamento e a ação são gestuais, um microscópico e outro

macroscópico. O homem só conhece aquilo que ele recebe em si mesmo e o que ele rejoga. É o mecanismo do Conhecimento por nossos gestos de rejogo. Nós não poderemos jamais conhecer aquilo que está totalmente fora de nós. Não podemos conhecer senão aquilo que absorvemos mais ou menos perfeitamente. Cada indivíduo difere enquanto absorção. Depois que a absorção é rejogada e jogada em nós há a conservação pessoal dos “rejogos”. Essa conservação, vitalmente pessoal, depende da riqueza das absorções e a força da personalidade, pois não somos todos iguais. (JOUSSE, 1974, p.55)

23 No original, em francês, “rejeux”. Trata-se de um dos termos-chave utilizado por Jousse e também por Lecoq. Optei em fazer uma aproximação na tradução para mantê-lo o mais fiel possível a seu significado original. Sendo assim, utilizo e conjugo o verbo “jogar”e “rejogar” como sinônimos de “jouer” e “rejouer” em francês.

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Importante ressaltar que ao referir-se à absorção, Jousse emprega o termo-

chave de seu pensamento que é a ‘intussepção’24. Segundo Houaiss (2001, p.164),

refere-se ao modo de crescimento dos organismos vivos que se faz por transformação

e incorporação dos elementos formadores; na medicina é a entrada de uma porção do

intestino em outra, uma invaginação, ou ainda, algo que alcança uma absorção tão

profunda que chega à parte interna do corpo, às vísceras.

Dizer antropologia do gesto é o mesmo que dizer antropologia do mimismo,

para Jousse. Mimismo refere-se à busca da dinâmica interna do sentido, através de um

mecanismo no qual há um primeiro momento de absorção daquilo que está fora, e um

segundo, onde o indivíduo refaz aquilo que percebeu, expressando-o à sua maneira. A

reprodução ou a repetição podem ser inibidas, mas o certo é que aquilo que havia sido

visto e gravado permanece disposto a ser reproduzido. É um conhecimento que

permanece impresso no corpo todo, que é de alguma maneira inteligente e expressa

pensamento, visto que o homem memoriza com todo ele. Conforme o antropólogo, a

expressão humana acontece primeiramente com o corpo em sua totalidade, como um

mimetismo global. Por conseguinte, a verdadeira expressão corporal não consiste em

fazer exercícios de braços e pernas para exercitá-los, senão em exercitar todo o corpo

para expressar a realidade que o indivíduo carrega em si.

Aluno de Bergson, Jousse dele herdou vários pressupostos, como o que

sustenta que a inteligência não começa pelos livros, mas pela faculdade de manipular

a matéria e que, portanto, deve-se desenvolver primeiramente a inteligência da criança

nesse sentido, já que ela imita o que lhe rodeia de uma maneira espontânea, descrita

em “O Pensamento e o Movente”. Educar uma criança, nessa acepção, é deixá-la

explorar o mundo, entrar em contato com a realidade ao seu redor, interagir com ela

para que, em seguida, passe a expressar o que recebeu: é permitir-lhe desenvolver o

mimismo de seu espírito por um lado, por outro seu corpo e, por outro ainda, sua

memória, sua linguagem, sua imaginação.

Através de seus estudos antropológicos, Jousse (1974, p.8) chegou ao

entendimento de que há três grandes leis permanentes e universais que, através dos

milênios e de realidades étnicas particulares, regem os desenvolvimentos das línguas,

das mentalidades, das civilizações, das culturas: o Ritmo-mimismo, o Bilateralismo e

24 No original, em francês, intusseption.

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o Formulismo.

O Ritmo-mimismo é o ponto de partida de sua pesquisa, ao aprofundar a ideia

inicial de Aristóteles de que o homem é o mais imitador de todos os animais. O que se

observa no ser humano espontâneo é sua tendência de imitar, ou ainda mais

exatamente, de mimar25 todas as ações dos seres vivos, todas as atitudes dos seres

inanimados que o circundam. O Anthropos é o microcosmo que reflete como um

espelho e eco do macrocosmo, segundo Jousse (1974, p.16).

Segundo o antropólogo (1974, p.54), é “pelo ‘mimema’ que o homem constrói

sua primeira expressão que é, portanto, não aquilo que chamamos de linguagem, mas

‘mimagem’. É graças à mimagem que funciona o Pensamento. O pensamento sendo

simplesmente uma intelecção de mimemas.” O Bilateralismo se refere à influência da

distribuição dos mimemas em função de sua bilateralidade, não somente no plano dos

gestos expressivos e equilíbrios corporais, no plano do paralelismo nas composições

orais ou literárias, mas também nos domínios mais profundos e delicados da reflexão

humana, já que o homem pensa com todo seu corpo. Isso se dá em função de sua

estrutura bilateral tripla, na qual o homem separa o espaço em frente e trás, direita e

esquerda, alto e baixo, com ele ao centro fazendo a divisão e mantendo-se em

equilíbrio, ocupando um espaço.

O Formulismo, segundo o autor (JOUSSE, 1974, p.18), é a tendência

biológica misteriosa, mas irresistível, à estereotipação dos gestos do homem, sendo

também através dela que se cria a armadura da trama que faz a ligação entre as

gerações e que constitui as mentalidades das culturas, são “formulações” musculares

e sonoras, necessárias para que a interação aconteça. Neste contexto, o elemento

essencial do cosmos é, de acordo com o antropólogo, ainda uma vez baseado em

Bergson, uma ação que age sobre outra ação, e tudo que nos rodeia é, conforme os

físicos, essencialmente energia. Essa energia não é difusa e estática, mas

primordialmente dinâmica, cristalizada em interações universais. Nesse sentido,

relaciono tal entendimento de base científica com a cristalografia, a física e as artes,

como algo de fundo, que na pedagogia de Lecoq torna-se o Fundo Poético Comum.

Os estudos de Jousse são amplos e complexos, extensivos também à 25 Embora não tenhamos essa palavra em português com esse sentido, decidi mantê-la por achar que traduzir por “fazer mímica” ou por “imitação”, por exemplo, muda bastante o sentido original, que se refere à capacidade de produção de gestos e de linguagem com o corpo todo. Portanto, ao longo de todo o trabalho mantenho e conjugo o verbo “mimar”.

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questão da linguagem falada e escrita, relacionando-as com diferentes etnias e

culturas, com as tradições de estilo orais, aspectos que, embora extremamente

interessantes, vão muito além daquilo que toca minha questão de pesquisa. De

qualquer maneira, o cerne de seu pensamento é o mimismo, portanto, ative-me a esse

aspecto, àquilo que poderia relacionar diretamente com Lecoq e com as artes.

3.2.3 Relações entre Bachelard e Jousse: mimetismo e mimismo

Curiosamente, em sua obra Jousse pouco menciona a questão da

imaginação especificamente. Ainda assim, encontro relações entre sua ideia de

mimismo, através do mecanismo de rejogo e jogo, e a de imaginação tanto formal

quanto material de Bachelard.

A imaginação formal de Bachelard refere-se à capacidade reprodutiva a

partir da observação do entorno, que pode-se entender como equivalente ao

mecanismo de rejogo, quando o Anthropos absorve o que está ao redor, acumula os

mimemas, e reproduz essa linguagem por gestos. Já a imaginação material,

capacidade de “deformar” as imagens fornecidas pela percepção, transformando-as,

modificando a matéria, seria comparável à noção de jogo de Jousse, ao momento em

que ele expressa à sua própria maneira, age sobre a matéria, cria.

A imaginação material de Bachelard trata do mecanismo de perceber a

matéria de que são feitas as coisas levando em conta sua dinâmica e substância para,

a partir disso, criar, deformar, transformar, imprimindo sua vontade própria, agir

sobre ela de maneira concreta e concretizante. Para Jousse, o Anthropos absorve tudo

o que está ao seu redor, não só a matéria, mas tudo o que “joga”, que se move, ou

seja, que implica numa dinâmica. Em Bachelard, o homem entra em contato com a

matéria de que são feitas as coisas, as toca. Em Jousse, o Anthropos possui um

mecanismo de vai-e-vem entre o que absorve e o que expressa, sendo ambos jogo,

movimento, o gesto e o ritmo que constituem um ação cognitiva. Quando o

Anthropos se exprime com seu “jogar”, ele está fazendo associações com outros

“mimemas” anteriormente absorvidos de forma única e pessoal, caracterizando,

então, um ato de criação, ou ainda, uma ação imaginante, como diria Bachelard.

Ao que parece, então, tratam-se de procedimentos que se encaixam um no

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outro, que se equivalem, se complementam, e que, associados, abarcam a

profundidade da visão que sustenta a pedagogia de Lecoq no que se refere ao Fundo

Poético Comum. Essa associação está em consonância com um dos princípios básicos

que embasam a prática de Lecoq, referente à observação da natureza, apontado no

item 2.3.2. No que toca ao exercício teatral, ao desenvolver a atenção, a percepção e a

absorção do entorno, o ator desenvolve sua capacidade natural de rejogo e jogo,

alargando as fronteiras da imaginação – tanto material como formal – em prol de uma

construção estética. Tal mecanismo pode então ser tomado como uma técnica, algo

que se de aprende, que se desenvolve com a experiência, ou ainda, uma maneira de

desenvolver a imaginação do ator através do corpo.

A abordagem de Lecoq usa exemplos baseados na natureza, na observação de

suas manifestações, nas coisas simples e cotidianas, metáforas concretas, como, por

exemplo, as ondas do mar estourando na beira da praia, o vento que balança as

árvores, as anêmonas no fundo do mar. Da mesma maneira, utilizava metáforas

poéticas, numa clara alusão ao universo de Bachelard (2001, p.231), como, por

exemplo, o vento furioso como “símbolo da cólera pura, da cólera sem objeto, da

fúria elementar, aquela que é só movimento, a imagem da cólera cósmica”. Há

também o trabalho com outros temas, como os animais e as cores, que também

seguem a mesma lógica de captar a dinâmica interna de seus movimentos.

3.2.4 Imaginação do ator em Stanislavski e Chekhov

A imaginação cria coisas que podem ser ou acontecer…Cada movimento que você faz sobre o palco, cada palavra que diz, é o resultado da vida adequada de sua imaginação. (STANISLAVSKI, 1963, p.83)

Longe de pretender abarcar as diversas teorias teatrais do século XX, não se

pode deixar, entretanto, de considerar os estudos de Constantin Stanislavski, já que

parte de seu sistema dedicava-se justamente ao tema da imaginação. Para ele, o

processo criativo inicia-se com a imaginação inventiva de um poeta, de um escritor,

do diretor da obra, do ator, do cenógrafo e dos outros participantes na produção: deve-

se desenvolvê-la ou abandonar a atuação. Michael Chekhov, pupilo de Stanislavski,

entrou em conflito com algumas das abordagens de seu professor, optando pela

imaginação e pelo trabalho sobre o personagem sem o uso da memória emotiva como

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principais fundamentos, entre outros aspectos que veremos a seguir. Dessa maneira,

pretendo estabelecer parâmetros para analisarmos a abordagem de Lecoq para esse

tema a partir daqueles que já se debruçaram especificamente sobre essa relações entre

a imaginação e o trabalho do ator.

Assim como aconteceu com muitos dos teóricos sobre o trabalho atoral, os

estudos de Stanislavski e de seu desenvolvimento foram frutos de sua própria prática

como ator, diretor e pedagogo. Um dos objetivos que sempre permeou seu sistema foi

o de respaldar o ator “de modo que este possa criar a imagem correspondente a seu

papel, revelando nela a vida do espírito humano, e personificá-la naturalmente na

cena segundo as normas da beleza e da arte” (STANISLAVSKI, 1980, p.12). Para

isso, o mestre russo dividia o trabalho em duas partes: o ator sobre si mesmo e o ator

sobre seu papel. Sua obra, no entanto, não foi finalizada e, ao longo dos anos de

pesquisa, sofreu alterações até mesmo de posicionamento quanto a algumas propostas

anteriores. Sua contribuição para o trabalho do ator pode ser dividida em duas fases: a

psicotécnica, que permeiam toda a sua pesquisa, e o método das ações físicas. A

diferença é que na primeira fase o processo imaginário é de caráter fundamentalmente

mental (criação dos onde, do o quê, do porque) e no segundo momento ele é

improvisacional, ou seja, passa à ação.

A psicotécnica foi o método predominante no livro “A Preparação do Ator”,

que enfatiza os processos interiores: o ‘se mágico’, as circunstâncias dadas, a

imaginação, a concentração da atenção, os objetivos, a adaptação, a comunhão, a fé, o

sentimento da verdade e o elemento mais importante daquele momento, a memória

emotiva. Já no método das ações físicas, a ênfase recai sobre os processos exteriores,

o ritmo e o impulso, a ação passa a estar à frente no processo criativo.

No período inicial de suas pesquisas, ele estava mais preocupado com a

questão psicológica e, portanto, acreditava que, como não se pode atuar diretamente

sobre as próprias emoções, pode-se estimular a fantasia criadora e esta despertará a

memória afetiva ou das emoções. Enfocava, portanto, o trabalho na chamada

“memória emotiva” e “psicotécnica”, primeiramente, e, em um segundo momento,

surgiram as “ações físicas”, a “linha da vida”, a “psicofísica”, dentre outros aspectos

importantes de seu Sistema. Ainda assim, o autor manteve a utilização das referências

mais antigas, reelaborando e incorporando-as à sua teoria, como foi o caso do tema da

imaginação.

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Stanislavski considerava que havia o tipo de imaginação com iniciativa e

aquela que carece de tal qualidade, mas que pode ser provocada, ideias que dialogam

com as concepções de Bachelard apresentadas anteriormente. Para ele, a fantasia

criativa seria um dom fundamentalmente necessário para que o ator possa suscitar os

elementos de emoções experimentadas e reagrupá-las de modo que correspondam às

imagens que surgem de cada um, de suas profundidades secretas, fora do alcance da

consciência.

O treino da imaginação que propunha começava por reforçar a visão interior

com visualizações. O mestre acreditava que podia-se usar a visão interna para ver

todo o tipo de imagens visuais, criaturas vivas, rostos humanos, seus panoramas, o

mundo material dos objetos, lugares, etc., até mesmo sentir coisas na imaginação, ao

impulso da própria memória das sensações e das emoções. O ator deveria ser capaz de

responder todas as perguntas – quando, onde, porquê, como – quando estivesse

impulsionando suas faculdades inventivas, para conseguir uma imagem cada vez mais

definida de uma existência imaginária.

O exercício imaginativo representa para Stanislavski o início do trabalho do

ator, que, dispondo das circunstâncias para a improvisação, pode então prosseguir,

testando suas conjecturas em exercícios direcionados para a composição de seu papel.

O Sistema valoriza a capacidade do ator para tratar com circunstâncias ficcionais

como se fossem reais, para visualizar especificamente detalhes do mundo da

personagem, e devanear ou fantasiar sobre os eventos da peça. Stanislavski (1989,

p.130) ensina que o ator não deve falar sem uma imagem no olho da mente e sugere o

desenvolvimento ou a criação de uma ‘sequência fílmica’ de imagens para

acompanhar o desempenho de cada papel. Essas visualizações abastecem, alimentam

e energizam a imaginação.

A continuidade do trabalho para estimular a imaginação dá-se com a

invocação do “mágico se”, técnica que partiu de um jogo que tomou emprestado de

sua sobrinha e aplicou para o trabalho do ator. Trata-se da suposição de uma situação

real que o ator deve imaginar como se a experimentasse, com diferentes

características, como, por exemplo, ao ver um copo com água ele conjetura: e se isso

fosse um veneno transparente? E se fosse o copo mais antigo da coleção de minha

avó? E se ele estivesse a ponto de se quebrar? E assim por diante.

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Segundo aponta Vitez (1994, p.25), Stanislavski procurava encontrar meios

para “liberar o ator do “despotismo”” do diretor e de dar-lhe a chance de jogar uma

personagem segundo sua natureza criativa e sua experiência pessoal”. Baseado nos

escritos de P. Erchov, colaborador de Stanislavski, Vitez explica que o método das

ações físicas exige que ao abordar o papel, o ator esteja livre de toda ideia anterior,

que era chamado de “zero” ou de “folha branca” – que parece assemelhar-se com a

noção de página em branco utilizada por Lecoq. Esse procedimento suprimia um dos

modos de trabalho do Teatro de Arte de Moscou, o trabalho dito ‘de mesa’, os longos

períodos de preparação coletiva do grupo em relação à peça e aos papéis. Nesse

método, o diretor divide primeiramente os papéis entre os membros do elenco,

definindo ações elementares em uma espécie de encadeamento da linha de

comportamento da personagem. O primeiro trabalho do ator será o de partir do “zero”

e “executar cada um dos elos dessa corrente com todo seu corpo, toda sua alma, ao

seu modo, sem pensar as ações que se seguirão nem o conjunto da peça, ignorando

mesmo e sobretudo a natureza da personagem que ele vai jogar”, cabendo ao diretor

apenas dizer-lhe se ele executou as ações ou não.

Para Stanislavski, as ações são psico-físicas, ou seja, os processos interiores

são desencadeados a partir das ações físicas, que agem como “iscas”, como uma

espécie de catalisadores de outros elementos do Sistema, que pode inclusive alterar o

funcionamento dos mesmos. Estas são as duas principais características da ação.

Stanislavski constata, então, que a ação é um elemento reproduzível, controlável e

passível de fixação. No fim de sua vida, o mestre russo chegara a pedir que não lhe

falassem de sentimentos, pois percebera que não se podia fixar os sentimentos,

somente as ações físicas. Talvez o elemento mais evidente que pode ser tomado como

exemplo é a memória, expandindo ainda para a utilização de “outras memórias” no

trabalho do ator, como aponta Bonfitto (2002, p.27). Segundo o autor, no processo de

execução das ações físicas, diferentes memórias podem ser evocadas, tanto a de

emoções, quanto a memória das sensações e dos sentidos, ou seja, uma memória

física. A vida física vai refletir na vida espiritual da personagem, não havendo mais

distinção entre a ação interna e externa, o que deverá proporcionar uma interpretação

autêntica, racional e efetiva. O mestre passa a propor a criação por meio do corpo do

personagem como uma espécie de gerador de energia para a criação em geral e, desse

modo, a vida física e a vida espiritual se fundem.

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Como vimos, essa compreensão e inclusão das ações físicas na prática

desenvolvida por Stanislavski aconteceu mais tarde em sua vida. Embora o mestre

propusesse que se lançasse mão da memória afetiva quando as circunstâncias dadas

pelo texto não fossem suficientes para motivar o ator, a memória emotiva tornou-se a

característica mais conhecida de seu trabalho, e alvo de críticas por todo um vasto

grupo de encenadores que vieram a se opor à abordagem vista como

fundamentalmente psicológica, ou ainda, como sinônimo de teatro psicológico até os

dias de hoje. No presente estudo interessa-nos a visão crítica de Michael Chekhov

(1891-1955), já que dirigia-se justamente para a questão da imaginação. Sobrinho de

Anton Chekhov, Michael era considerado por Stanislavski o mais brilhante ator do

Teatro de Arte de Moscou (TAM) em sua época. Trabalhou com Stanislavski no

primeiro TAM, onde atuou, dirigiu e estudou sob influência direta do seu Sistema.

Mais tarde liderou o segundo TAM, mas devido às contínuas críticas ao trabalho de

seu mestre, acabou por tomar seu caminho e estabelecer seu próprio método de

trabalho de atores. O principal aspecto que criticava era justamente em relação à

imaginação ser motivada por memórias pessoais, o que, para ele, era algo que poderia

levar o ator a um colapso nervoso ou à histeria incontrolada ao lidar com sua vida

dessa maneira. Chekhov chega a recomendar que Stanislavski substituísse a memória

afetiva pela imaginação pura. Para ele, das três funções ativas do espírito – sonhar,

pensar/lembrar-se, imaginar –, somente a imaginação se revelava realmente eficaz na

criação artística, conforme Gordon (apud CHEKHOV, 2006, p.24).

Ambos Chekhov e Stanislavski acreditavam na necessidade de propiciar aos

atores meios de ultrapassar os clichês e as banalidades teatrais herdadas das gerações

precedentes. Entretanto, se para Stanislavski isso implicava em uma pesquisa da

verdade baseada no comportamento humano sob uma lógica principalmente

psicológica, para Chekhov (2006, p.17) o segredo estava no imaginário do ator, para

além do teatro e da vida. Sua técnica repousava sobretudo na utilização de imagens,

essencialmente de ordem instintiva e orgânicas. Propunha o trabalho da imaginação

não com as próprias lembranças do ator, treinava seus alunos a encontrarem fora de

suas experiências pessoais os estímulos exteriores fictícios capazes de agitar sua

imaginação e suas emoções.

Dentre os pilares de sua técnica estão o gesto psicológico, as qualidades, os

centros imaginários, os objetivos e atmosferas. Inspirado largamente na antroposofia

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de Rudolf Steiner (1861-1925) e em suas lições de Euritmia, Chekhov sugere o

trabalho com as particularidades motoras e gestuais da personagem modelando sua

postura e aparência física. Para ele, visando criar personagens com características

diferentes das suas, o ator deve primeiro visualizar o gestual da personagem com um

corpo imaginário, para então investi-lo. O estímulo deve ser sempre de fora do mundo

privado e interiorizado do ator. Ao imaginar com seu corpo, o ator reagirá pelo

movimento e pelo gesto para restituir ao personagem sua corporização. É uma

abordagem parecida com a de Lecoq, sendo a principal diferença o visualizar, o

imaginar ao invés de observar, entrando em contato com o material.

Uma de suas técnicas mais conhecidas propunha o gesto psicológico a partir

da noção de que existe em todas as línguas expressões que carregam ações e gestos

que atingem o centro da imaginação e são sublimados por ela. O gesto psicológico,

conforme descrito por Chekhov, consiste em expressar um gesto amplo, repleto de

energia e uma clara manifestação da personagem a ser interpretada, de forma que este

gesto rememore absolutamente tudo o que seja necessário para a sua vivência.

Conferir à personagem uma dinâmica interna, usando um gesto físico que, num

segundo momento é suprimido e internalizado, deixando apenas que a memória física

dê uma nova dinâmica à performance do ator. Para ele, todo estado psicológico

individual é inevitavelmente um entrelaçamento de pensamentos (ou imagens

mentais), de estados sensíveis e de impulsões voluntárias. Chekhov exemplifica com

expressões idiomáticas como “tirar uma conclusão”, “matar uma ideia”, “tocar um

problema”, “romper relações”, “saltar de alegria”, entre outras, para esclarecer a

relação entre as palavras e as ações. Segundo ele (CHEKHOV, 2006, p.111), esses

movimentos virtuais atingem o centro de nossa imaginação e são sublimados por ela,

correspondendo aos gestos da vida comum que, ao serem transpostos em termos

psicológicos, são criados no espírito e efetuados materialmente no corpo26.

Sobre os centros imaginários, Chekhov (2006, p.39) cita o exemplo de um

personagem orgulhoso, que terá um centro situado no queixo ou no pescoço, enquanto

que um personagem curioso, o terá na ponta do nariz, sendo que um personagem pode

26 Identifico relações com os ‘atos de fala’ de John Austin (1911-1960) e que foi levada adiante por John Searle (1932-) que embasaram as pesquisas dos performance studies de Schechner. Podemos também estabelecer relações entre o gesto psicológico e os études de Meyerhold, mas não pretendo aprofundar essas associações de ideias por desviarem do foco desse estudo.

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também dispor de diversos centros, de qualquer forma, tamanho, cor ou consistência.

O professor preocupava-se com o sentido da forma, acreditando que o ator deve ser

sensível à presença plástica de seu corpo assim como ao traçado de seu movimento no

espaço, como um coreógrafo ou um escultor, modelando as formas de seu corpo e do

posicionamento arquitetural aos seus movimentos no espaço, ele aumenta suas

possibilidades expressivas (CHEKHOV, 2006, p.41).

Consideremos alguns exercícios práticos de Stanislavski e de Chekhov para

contrastarmos com os de Lecoq.

Em seu livro “O trabalho do ator sobre si”, Stanislavski (1980) propõe o

seguinte exercício: O ator deve fechar os olhos e imaginar que é uma árvore. Deve

definir sua espécie, o formato e a cor das folhas, a sua idade, a espessura de seu

tronco, a altura de seus galhos e visualizar o lugar onde ela cresceu. Então, deve

escolher um momento em particular de sua vida (de árvore) e criar em sua

imaginação. Qual era o clima? A que horas do dia? O que você podia sentir? Ver?

Ouvir? Quais eventos históricos, como uma batalha, ou românticos, como juras de

amor/promessas de amantes ocorreram debaixo de seus galhos naquele dia? O ator

deve especificar mentalmente todos os detalhes com a maior precisão possível.

Tomemos agora exercícios de Chekhov relacionados às emoções. Por

exemplo: em uma personagem, o aluno tinha como única instrução a de introduzir

uma “intenção de cólera” em seu gesto ou movimento, em vez de partir em busca de

uma motivação interior ou de forçar o passado a ressurgir. Para despertar uma

sensação de tristeza, o aluno deveria imaginar as queixas de uma família rural

lamentando-se sobre a morte acidental e horrível de um filho ou uma filha; outra

sugestão é a de caminhar na atmosfera de uma cidade devastada por uma inundação.

Essa associação de imaginação, de atmosferas e de intenções suplantavam, para seus

alunos, a memória afetiva de Stanislavski. Dessa maneira, Chekhov acreditava poder

levar os intérpretes a seguirem caminhos emocionais mais fortes e mais

individualizados, sem ter que invocar deliberadamente as lembranças pessoais

dificilmente controláveis.

Esse é o mecanismo normal do psiquismo humano, imaginar-se e dar corpo

àquilo que foi imaginado, pois, como mencionado anteriormente, o corpo é imagem.

Nesse sentido o método de Chekhov está em consonância com o pensamento

psicanalítico.

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Encontro semelhanças com as propostas de Lecoq em relação aos elementos,

porém identifico pelo menos duas diferenças fundamentais. A primeira refere-se à

maneira como os exercícios em Chekhov são empreendidos enquanto visualização e

não enquanto movimento. As relações que ele quer estabelecer remetem a uma

memória dessa árvore, ligada a eventos psicológicos, portanto. Na abordagem de

Lecoq, entretanto, é o movimento da árvore que interessa, e é isso que o ator vai

explorar e trazer para seu corpo e criação, como abordo ao longo desse estudo. Ele

poderá explorar aqueles mesmos aspectos sobre o clima, a idade, o estar presente na

guerra ou no namoro, mas sempre enquanto movimento e não lembrança, ou seja, não

envolve o caráter afetivo, mas sim dinâmico. Antes ligado à natureza em si do que à

emoção relacionada a ela, o motor que a impulsiona que, no caso de Lecoq, serão

reações ao vento, ao clima, à luz, ou seja, sempre fatores externos. Mesmo se os

meios utilizados possam ter pontos em comum com os que propõe Lecoq, tais como o

de observar, Chekhov enfatizará a observação das pessoas, enquanto Lecoq parte da

observação da natureza com seus diversos reinos, que inclui as pedras, as montanhas,

as matérias de que são feitas as cosias, sempre enquanto modos de se moverem ou de

ocuparem um espaço.

A segunda diferença que me parece ainda mais fundamental, refere-se à

condição de dependência da criação a um texto previamente escrito e a uma

personagem previamente descrita. Em ambas as abordagens de Stanislavski e de

Chekhov, o trabalho da imaginação está atrelado ao da construção de uma

personagem a partir de um texto, sobretudo, e mesmo partindo do gesto, ainda são

privilegiados seus aspectos psicológicos. Corporizar, “investir”, visualizar esse ser

humano proposto no papel, dar-lhe verdade, criar-lhe um mundo, dar-lhe carne. Em

seu livro sobre a imaginação criativa, Chekhov refere-se constantemente ao ator como

“intérprete”. O trabalho do ator concebido assim difere radicalmente daquele

desenvolvido por Lecoq, no qual uma das premissas básicas subjacentes é a que o ator

é o autor. Ainda que Stanislavski também buscasse o ator como criador, e mesmo

através do Método de Ações Físicas, há sempre uma personagem como base, como

guia.

Nesse tipo de teatro que não parte de uma personagem ou de um texto, vai

haver a criação de personagens também, mas o ponto de partida é que difere. Nada

impede, porém que se queira montar um texto e construir personagens pré-

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determinadas, nesse caso, o trabalho da imaginação relacionado ao Fundo Poético

Comum será tomado como base corporal, como modo de disponibilização e de

abertura para a criação, como no nível pré-expressivo de que falava Barba, por

exemplo. Afinal, em um processo de criação, é necessário estar aberto para as

necessidades que tal projeto suscite, não pretendendo fechar as portas para qualquer

outro método que não seja aquele de sua preferência, mas, pelo contrário, é preciso

conhecer diferentes procedimentos possíveis para atingir a meta maior que é a de

fazer arte, de tocar algo mais profundo passível de alcançar aquele que o assiste.

O teatro priorizado nessa pesquisa é aquele que considera a preparação do

corpo fundamental, constituindo-se como o início do processo criativo em si. Nele,

portanto, é praticamente impossível pensar em trabalho do ator sem aquecimento e

sem improvisação com o corpo – são bases dadas. A maneira como o denominamos já

gerou muita controvérsia, parte da qual apresento a seguir.

3.3 FUNDO POÉTICO COMUM

A espinha dorsal da escola é a análise do movimento. Análise do movimento não é necessariamente a análise do corpo, é a análise de todos os movimentos, mesmo de animais, de plantas, das dinâmicas da paixão, das cores, de tudo o que move. Estamos tentando chegar ao fundo do movimento. (LECOQ apud LEABHART, 1989, p.93)

Normalmente, nos escritos de referência sobre Lecoq, são ressaltadas as

questões relativas à mímica, às máscaras, à commedia dell’arte, ao clown, como

apontam Felner (1985), Leabhart (1989), Murray (2007), Hodge (2010), Evans (2006)

e Gordon (2009). Entretanto, há autores como Murray (2003), por exemplo, que

procurou aprofundar os estudos, enfatizando aspectos como a neutralidade, a

disponibilidade, a cumplicidade e o jogo, embora sem deixar de lado outros pontos

significativos. Com outro foco, mas com o mesmo objetivo de aprofundar os estudos

sobre Lecoq, Carasso (apud FÉRAL, 2003) aponta para o fato de que a realidade e a

complexidade do trabalho pedagógico de Lecoq, suas orientações profundas, seu

ensino no dia a dia, são ainda assaz desconhecidos. Em minha pesquisa, o foco está

mais voltado para a dimensão abstrata subjacente ao trabalho prático a partir do

corpo, abordada através da noção de Fundo Comum. É a partir dessa compreensão

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que procuro estabelecer relações com o teatro contemporâneo e encontrar os aspectos

dessa pedagogia que induzem ao desenvolvimento da imaginação do ator.

A abordagem prática de questões profundas como a do Fundo Poético Comum

foi um dos aspectos da pedagogia de Lecoq que mais me chamou atenção desde que

cursei a Escola, resgatados nos estudos de mestrado, que identifico como diferencial

em seu trabalho e que lhe confere uma dimensão atemporal, ou ainda, uma ligação

com a arte desde sempre, para além de tendências passageiras. Identifico nesse

aspecto relações com a imaginação e com o teatro contemporâneo passíveis de serem

analisadas e assim avançar um pouco na direção das bases subjacentes da pedagogia

que me parecem menos estudadas até o presente.

Para mim, o Fundo Poético Comum está ligado ao ritmo. Quando você pensa nas batidas de seu coração, quando você respira – inspira, expira – tem um ritmo em tudo o que é vivo, na maneira como se vive, há um ritmo para a vida... E quando fizemos o exercício em que estamos procurando o “amarelo de todos os amarelos”, ou o “vermelho de todos os vermelhos”, você diz sim, eu vejo o vermelho, eu sinto o vermelho. Para mim isso conecta com a poesia. (MACPHERSON, 2011)27

Inicia-se, portanto, com os músculos do corpo buscando uma sintonia com a

percepção de que todas as coisas, desde as matérias e os elementos das quais são

constituídas, estão unidas entre si: o fundo das espécies, dos seres, das manifestações

de vida. No fundo que é comum a todos os viventes, no estar vivo, o ser e o estar, a

molécula primeira que funda toda e qualquer coisa existente, no nível biológico,

concreto, material: átomos, partículas, energia. Entrar em contato também com

aspectos mentais que temos em comum, que remetem à noção de arquétipos, mas que

não era abordada dessa maneira por Lecoq. Embora fosse usada por Chekhov e

pudéssemos procurar estabelecer relações entre os dois sob o ponto de vista dos

arquétipos, não sigo nessa direção de pensamento nesse estudo.

À primeira vista, falar em Fundo Poético Comum pode parecer demasiado

abstrato, utópico, demasiadamente geral, ou mesmo ingênuo. Através de sua

pedagogia, Lecoq incita os alunos a encontrar aquilo que é comum a todos, que está

no fundo do nosso ser, para que, a partir daí, se possa encontrar o que é particular, o

que faz a diferença de uns em relação aos outros, cujo diferencial criará seu próprio

27 Atriz canadense Coleen Macpherson, colega no estágio de verão. Entrevista concedida em 23/09/2011, em Paris.

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teatro, seu próprio texto, compor as próprias personagens e dramaturgias. Se por um

lado parece beirar a total abstração, por outro, os exercícios de Lecoq apresentam-se

como uma maneira concreta de acessar esse conhecimento intrínseco, uma

identificação com a natureza que todas as pessoas reconhecem.

O contato com as camadas mais profundas da natureza onde há uma inter-

relação das diferentes manifestações é aqui trabalhado através de exercícios físicos

que induzem a identificação de suas dinâmicas, de ‘como’ se elas movem e sua

transposição para o corpo e para o jogo cênico. Como anteriormente mencionado,

essa prática visa enriquecer a capacidade expressiva do ator com outras possibilidades

de movimento e de fonte de inspiração, além de contribuir para a eliminação de

formas parasitárias e de vícios de atuação, automatismos impregnados, acessando a

realidade que o indivíduo carrega em si. Ela ativa a capacidade imaginativa à medida

que amplia a palheta de cores, o universo de imagens, de sensações, de possibilidades

de movimentos com seu corpo, de fontes de onde buscar elementos para sua

expressão, para além de si e das memórias pessoais. Essa experiência gera também

uma qualidade na presença do ator, assim como na maneira como ele se movimenta,

constituindo uma bagagem de memória corporal que poderá dispor quando e como

quiser, independentemente do tipo de teatro que queira fazer, mais ou menos

estruturado, mais ou menos realista. O universo de ideias que passa a existir nos e

pelos movimentos corporais e se manifesta no corpo em cena. É a fisicalização dessas

percepções sutis que visam tornar visível o invisível. Essa relação com a imaginação é

o recorte da minha pesquisa, interessa-me verificar de que maneira ela ocorre.

A literatura, a música, as paixões, mas também a experiência do mundo visível são, tanto quanto a ciência de Lavoisier e de Ampére, a exploração de um invisível, consistindo ambas no desvendamento de um universo de ideias.[…]A ideia musical, a ideia literária, a dialética do amor e as articulações da luz, os modos de exibição do som e do tato falam-nos, possuem sua lógica própria, sua coerência, suas imbricações, suas concordâncias, e aqui também as aparências são o disfarce de “forças” e de “leis” desconhecidas. (MERLEAU-PONTY, 1992, p.144)

Lecoq costumava falar, em sua busca de uma “poética da permanência”,

referindo-se ao caráter universal presente em todo e em qualquer fenômeno da vida,

uma linguagem que está presente tanto nas diferentes manifestações da natureza como

em nossos corpos. Mencionava a essência imutável de qualquer coisa que é

permanente, que a diferencia de qualquer outra. Costumava usar como exemplo as

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árvores. Embora elas existam em inúmeras espécies, tipos, tamanhos, cores, há algo

que lhes é essencial, que vai diferenciá-las de qualquer outra coisa, que faz com que

as reconheçamos como árvores, vivas ou mortas, sua identidade permanente,

independentemente da cultura ou de crenças a ela relacionadas. Essa questão sobre

cultura é questionável e volta a aparecer quando trata-se do tema das cores, que será

abordado no item sobre a pintura.

Em certos exercícios, o professor conduz os alunos a identificarem a “árvore

de todas as árvores”, a “mulher de todas as mulheres”, a “caminhada de todas as

caminhadas”, ou seja, identificar aquilo que lhe é permanente, suas qualidades

essenciais. Experimentar trazer para seu corpo essas qualidades, tornadas visíveis

através de seus movimentos e depois transpostas para as improvisações, sendo então

absorvidas pelo ator nesse processo. O objetivo subjacente em todos esses exercícios

é a constante busca de uma essencialização dos fenômenos da vida, justamente aquilo

que Lecoq chamava de Fundo Poético Comum, presente em todas as suas

manifestações. Fundo Poético Comum é o que nos conecta. Quando você realmente encontra a poesia em todas as outras formas. Não sei como explicar isso com palavras, mas entendo isso. Quando Lecoq nos pede para encontrar ‘o azul de todos os azuis’, ‘a emoção de todas as emoções’, é um grande tema. Acho que ajuda para guiar nosso trabalho, que não é completamente livre, nós tentamos encontrar o que é comum entre todos. Como ele dizia que o amarelo de Van Gogh se movia como um vermelho. Ainda assim, amarelo é amarelo, e a gente pode identificar. E todos passam a identificar. (SCAGLIA, 2011)28

No sentido de desenvolver uma linguagem comum aos alunos, Lecoq explica

que, como trabalhou sempre com pessoas de diferentes culturas e idades, precisava de

algo com o que todas pudessem se identificar e reagir juntas a uma noção do que é

justo no movimento, encontrar referências comuns a todos. No fundo de cada um

temos nossas semelhanças enquanto seres humanos e naturais, parecidos uns com os

outros. Segundo o mestre realata no vídeo de Roy e Carasso (1999), encontrar essa

noção de depósito comum é muito importante porque, “em geral, procuramos, na

educação, reconhecer nos indivíduos suas próprias raízes, saber de onde ele é, você é

você e não um outro. Muito bem, é importante saber que não sou como o outro, mas

em um dado momento, é necessário passar por um denominador comum onde somos 28 Gineva Scaglia, atriz e professora italiana em uma escola semelhante à de Lecoq em Turim, Itália. Colega no estágio de verão. Entrevista concedida em 22/09/2011 em Paris.

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todos iguais, e se for diferente nós veremos!” Ele acrescenta que utiliza a palavra

“poético” para alertar para coisas que somente a poesia pode definir, ou seja, o que há

entre as palavras, o que é invisível, que não podemos definir, mas existe.

Trata-se de achar uma linguagem para traduzir essas dinâmicas internas da

natureza em dinâmicas do corpo e da cena. Essa linguagem é o que a pedagogia de

Lecoq vai proporcionar. Ele mesmo sempre fez referência a essa terminologia comum

para nos expressarmos. Por um lado, temos o aspecto técnico obtido por meio da

análise do movimento, da mímica – ou melhor, do mimismo–, o trabalho com

máscaras, as leis do movimento. Por outro lado, mesmo que possa parecer

contrastante ou separado da prática, está o Fundo Poético Comum, que é a sua

percepção da natureza das coisas, do teatro e da arte, que ele transmite para seus

alunos. O talento e arte de um artista consiste em encontrar em três linhas a essência do que quer que esteja pintando. Na nossa escola tentamos reconhecer elementos na vida que ocorrem antes que a gente as coloque em cena, um reconhecimento de coisas vivas através do corpo, através do mimismo. Desta maneira nós podemos conhecer as árvores, o ritmo do mar, as cores, o espaço das pessoas, tudo o que é vivo e se move que é infinito. (LECOQ apud LEABHART, 1989, p.96)

Para apresentar essa visão de teatro de Lecoq, veremos, primeiramente, o que

entendo por ‘fundo comum’, para então estendermos essa noção para seus aspectos

poéticos. A noção de ‘fundo’, em meu entender, está relacionada com a natureza, que

justifica a insistência em despertar para sua observação. Baseada nessa premissa,

parto na direção das ciências naturais e da filosofia, buscando apoio em autores que

possam embasar alguns pontos da visão de Lecoq, tal como ela me parece. Identifico

aspectos ligados à filosofia ocidental, presentes em Bergson, e à filosofia oriental,

com base em estudos de Vedanta. No universo das ciências naturais abordo algumas

características oriundas da cristalografia, e procuro estabelecer relações entre as

ciências e a filosofia oriental, pautando-me em Capra.

3.3.1 Ciências Naturais

Iniciemos com as ciências naturais, o universo dinâmico de Lecoq. No vídeo

de Roy e Carasso (1999), Lecoq fala de sua paixão pela cristalografia, sobre “a

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maneira como as rochas começam a passar por uma mutação no momento de sua

saturação, em uma geometria cujos ângulos são iguais para cada matéria”. Por um

lado, o mestre faz um paralelo entre a cristalografia da natureza e os estilos de teatro:

“no momento quando jogamos num jogo primeiro, em uma espécie de

‘subimpressionismo’, basta um pouco para que isso se desenvolva em um estilo, de

forma que há também uma espécie de mutação no organismo teatral que decidirá a

direção e estrutura, e isso faz o efeito de uma cristalografia”. Por outro, e é o que me

parece fundamental para compreender essa noção de ‘fundo’, ele refere-se às

estruturas dos cristais, suas linhas e geometria, suas relações com o espaço, a

dimensão de seus ângulos com associações e medidas rítmicas que ele define como

“decisões da natureza”. O mestre afirma que gosta de fazer viver um espaço, com

uma dimensão com seus ângulos, com relações e medidas rítmicas.

Sem a pretensão de um estudo geológico aprofundado, vejamos algumas

características desse ramo da ciência que possam iluminar tais relações. A

cristalografia é a ciência que estuda os cristais, a maneira como os minerais se

organizam e tomam forma. Os cristais são sólidos nos quais os minerais estão

arranjados regularmente em relação uns aos outros e podem ser estudados de acordo

com essa organização, segundo Groves (1979, p.3). O termo cristal também pode

referir-se a qualquer sólido com estrutura interna ordenada, possua ele faces externas

ou não. Pode-se assim idealizar um conceito mais amplo de cristal como um sólido

homogêneo, possuindo ordem interna tridimensional que, sob condições favoráveis,

pode manifestar-se externamente por superfícies limitantes planas e lisas.

Mineral é um corpo natural sólido e cristalino formado em resultado da interação de processos físico-químicos em ambientes geológicos. Cada mineral é classificado e denominado não apenas com base na sua composição química, mas também na estrutura cristalina dos materiais que o compõem. Em resultado dessa distinção, materiais com a mesma composição química podem constituir minerais totalmente distintos em resultado de meras diferenças estruturais na forma como os seus átomos ou moléculas se arranjam espacialmente (como, por exemplo, o grafite e o diamante). Os minerais variam na sua composição desde os elementos químicos, em estado puro ou quase puro, até silicatos complexos com milhares de formas conhecidas. (WIKIPÉDIA, 2012).

Um átomo é a menor unidade de um elemento que possui as propriedades

desse elemento. A matéria existe em três estados: sólido, liquido e gasoso. As

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diferenças entre os três estão relacionadas com o grau de ordenação dos átomos. Um

mineral é um sólido natural e inorgânico que possui uma estrutura atômica interna

específica e uma composição química que varia dentro de alguns limites. Os minerais

crescem quando átomos são adicionados à estrutura cristal enquanto a matéria se

modifica do estado gasoso ou líquido para o sólido. Os minerais se dissolvem ou

derretem quando os átomos são removidos da estrutura cristalina. Todas as espécies

de minerais possuem propriedades físicas e químicas bem definidas, como a estrutura

cristalina, clivagem ou fratura, dureza e gravidade específicas, conforme Hamblin

(1995, p.66).

Partindo dessas características da cristalografia, compreendemos que tudo o

que existe é feito de alguma matéria29, a qual, por sua vez, é constituída de um

conjunto de elementos organizados de uma forma específica. Portanto, os quatro

elementos que citamos anteriormente são feitos de elementos químicos, assim como

os seres humanos o são e tudo o que existe, somos todos feitos dos mesmos

elementos, porém com diferentes combinações. Seja qual for o reino – mineral,

animal ou vegetal –, somos constituídos dos mesmos elementos, ou seja, temos todos

um mesmo fundo comum.

Voltando às estruturas que Lecoq mencionou, podemos entender tal relação

com a formação das rochas, quando certos minerais vão disputando o espaço,

expandindo-se, enquanto outros se retraem, empurrando e forjando sua forma

enquanto resfria o magma, por exemplo. Quando pensamos nisso em termos de

movimento, percebemos ações de empurrar, ser empurrado, puxar e ser puxado, as

mesmas que Lecoq menciona como fundamentais para todos os movimentos. Na

verdade, estas são coisas que não podemos ver a olho nu, somente por microscópios,

mas ao sabermos disso já podemos imaginar como acontecem. Estamos, portanto, no

campo da imaginação, impulsionada por exemplos da natureza concreta, ainda que a

nível molecular. Há aquelas que podemos verificar a olho nu, a aparência externa, e

com o auxílio do microscópio podemos observar os arranjos internos. As fotos de

diferentes rochas abaixo nos ajudam a visualizar as linhas, os ângulos, as faces, as

29 Sem deixar de considerar que, segundo a nova ciência, essa matéria é antecipada pela energia, de acordo com estudoas da física quântica e da descoberta do bóson, apontada como a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bóson_de_Higgs – acesso em 13/03/13), aspectos revistos recentemente, mas que não anulam o valor da abordagem apresentada aqui. 

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formas, as composições, enfim, as inúmeras maneiras como a matéria pode se

organizar no reino mineral. Fig.4: No sentido horário: Cubos de Pirita; Cristal de Ametista; Estibnita com Barita; Hematita

Fonte: http://geogallery.si.edu/index.php/en/minerals/all/mineral/

Ainda dentro dessa lógica de organização dos elementos químicos, podemos

observar numa lâmina fina retirada de uma rocha a forma como os minerais estão

colocados e que podem também ser associadas a uma foto de satélite, como mostram

as ilustrações abaixo.

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Fig.5 Lâmina delgada de rocha vulcânica.

Fonte: Arquivo pessoal

Fig.6 Foto de satélite “Brasil Visto do Espaço”.

Fonte: http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br. Acesso em 25/01/2013

Anthropos é o microcosmo que reflete como um espelho o eco do macrocosmo. (Jousse, 1974, p.16)

Relações entre micro e macrocosmos, associações entre as diferentes

manifestações da natureza é a contribuição que acredito que a abordagem científica

traz para o entendimento do fundo comum. Importante salientar que são associações

que estabeleço a partir da minha percepção, pois não eram mencionadas em tal

profundidade por Lecoq. Entretanto, constatando por diversos depoimentos de ex-

alunos sobre a importância da observação da natureza em sua pedagogia, tudo me

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leva a crer que, para além dos estudos da ciência, há um senso comum capaz de pelo

menos supor essas relações.

Isso que eu acho interessante, o conhecimento que ele passou para nós é muito baseado nas leis da natureza – é a grande riqueza, é a chave, talvez, do método. (...) Estamos falando de árvore, ele vem sempre num crescente, numa transformação. Não é uma coisa que você aprende, um conceito, você leva aquele conceito na sua cabeça e ele está ali, estático. Não. É um conhecimento em movimento! Ele tem a profundidade do conhecimento dele, a partir da natureza. E a natureza implica, no ser humano, na natureza das coisas que o homem criou no mundo, também, não só a natureza bela, os passarinhos, não, também o vulcão, a bomba, a bomba atômica. Toda a natureza no sentido amplo da palavra. Experimentei essa disponibilidade na escola, e ainda hoje essa experiência é muito importante. Acho que esse estado de disponibilidade para o ator, é fundamental.(NAPOLEÃ0 apud SACHS, 2004, p.156)

Muitos ex-alunos demonstram essa percepção de todo, de comunhão com a

natureza e com os seres a nível científico, ou ainda, com as ciências naturais. Mas

vejamos essa questão do ponto de vista filosófico, aqui abordada a partir de alguns

pressupostos de Bergson (1979, p. 153-206).

3.3.2 Filosofia e Vedanta

Com uma extensa obra, que abarca diversos temas, Henri Bergson foi um dos

filósofos fundamentais do século XX. Em seu ensaio intitulado A Evolução Criadora

(1979, p.160,) o autor sustenta que “não há manifestação essencial da vida que não

nos apresente, em estado rudimentar ou virtual, as características das outras

manifestações”. Segundo ele, a totalidade possui a mesma natureza do indivíduo, de

um movimento, um impulso de liberdade criadora que se insere e transforma a

matéria incessantemente, de sorte que a distinção entre espaço e duração possui um

alcance ainda maior e certamente mais valioso que diz respeito à nossa própria

existência. Ele alega que o movimento evolutivo seria algo simples se a vida

descrevesse uma trajetória única, comparável à parábola descrita por uma bola de

canhão, mas que estamos tratando de algo como uma granada que explodiu em

fragmentos destinados a explodir de novo e assim por diante durante muito tempo.

“Só percebemos o que está perto de nós, os movimentos espalhados dos estilhaços

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pulverizados. É a partir deles que devemos voltar, paulatinamente, até o movimento

original”.

Bergson (1979, p.205) menciona a tendência que cada ser carrega em si

enquanto potencial, como uma planta, por exemplo, que mesmo distinta de um animal

por sua fixidez e insensibilidade, possui ainda movimento e consciência adormecidas

nela como lembranças que podem despertar, assim como um animal pode ser

desviado para uma vida vegetativa. As duas tendências penetravam-se no início,

assim como acontece com a inteligência e o instinto. Sendo assim, ele conclui que

existe uma corrente de existência e uma corrente antagônica, de onde se origina toda a

evolução da vida. Para encontrar uma fonte comum dessa oposição, no entanto,

entraremos ‘nas mais obscuras regiões da metafísica’, afirma o filósofo. Mas,

considerando que “as duas direções encontram-se marcadas na inteligência, por um

lado e, por outro, no instinto e na intuição, “o espetáculo da evolução da vida sugere-

nos certa concepção do conhecimento e também certa metafísica que se implicam

reciprocamente. Uma vez destacadas, essa metafísica e essa crítica poderão derramar

alguma luz, sobre o conjunto da evolução”.

Para a discussão sobre ‘fundo comum’, interessa a noção de evolução, de

origem, da colaboração dessa combinação de filosofia, de crítica e de metafísica que

Bergson propõe aqui. Ele ainda afirma que o corpo extrai do meio material ou moral o

que pode influenciá-lo, o que lhe interessa, ideia que também se alinha à concepção

de Lecoq, baseada no mimismo de Jousse, mencionado anteriormente. E Bergson

salienta, naquilo que concerne à experiência real do tempo, do espaço e do corpo, a

importância do corpo como elo presente entre passado e futuro, e da consciência

como o local onde se evidencia que a realidade é duração, onde se unem a experiência

e a intuição.

Assim como Bergson estabelece tais relações com a natureza, ainda que de

outro ponto de vista, existem diversos aspectos que se entrecruzam e que ecoam

alguns dos fundamentos da visão de Lecoq, entre os quais proponho associações com

a filosofia oriental através de alguns pressupostos dos estudos de Vedanta.

Vedanta é o conhecimento contido no final dos Vedas, os textos chamados de

Upanishads. Outros textos de Vedanta são a Bhagavadgita, o Brahmasutra e os

Prakaranagranthas, textos que também exploram temas de estudo de Vedanta

escritos por diferentes mestres ao longo do tempo. Vedanta analisa a natureza do Ser

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essencial através de seu método de escutar as palavras de ensinamento diretamente de

um mestre, depois refletir sobre o que foi escutado e contemplar o que foi escutado e

refletido, sendo, portanto, a meditação concomitante ao estudo. Segundo Glória

Arieira30, Vedanta não é um sistema filosófico, nem tampouco uma religião, mas uma

tradição de ensinamento transmitido de mestre a discípulo num fluxo perene desde

tempos imemoriais. Assim como não podemos dizer o que veio primeiro, se a árvore

ou a semente, é impossível delinear um começo para esse ensinamento.

O ensinamento do Vedanta – que significa "a meta de todo o conhecimento" –

é um desdobramento claro e profundo dessa verdade essencial e única, sobre a

identidade do indivíduo, aquele que busca o Ser Ilimitado. Baseia-se nas leis

espirituais imutáveis que são comuns às tradições religiosas e espirituais ao redor do

mundo, em que essa meta se referiria a um estado de autorrealização ou de

consciência cósmica. Vedanta menciona a ideia de fundo comum que é Iswara – que

pode ser traduzido por deus –, que é o todo manifestado. Para o Vedanta, não há

separação entre o Eu e o Todo, não há um círculo fechado ao redor de um Eu: o

indivíduo está dissolvido no todo, somos constituídos de uma mesma matéria, os

elementos estão todos em comunicação, “nosso corpo é poeira de estrelas”. Ao invés

de deus, pode-se considerar consciência ou vida.

O ensinamento central dos Upanishads, coletânea de escritos fundantes da

filosofia hindu que encontram-se nos livros dos Vedas, como aponta Frawley (1982),

é justamente sobre a unidade de todas as coisas. As várias forças ou princípios ali

colocados são maneiras de demonstrar tal unidade. São considerados cinco os

elementos básicos – espaço, ar, água, fogo, terra –, que são tomados como uma

sofisticada ferramenta para compreender por analogia a unidade de todas as coisas no

self, que é a vastidão da verdadeira visão dos fenômenos da vida. A unidade de todas

as coisas pode ser reduzida a esses elementos, uma vez que compreendemos que tudo

o que existe são meras combinações desses elementos, então podemos vislumbrar a

unidade em toda manifestação, contanto que tomemos essa analogia num sentido

simbólico, como os antigos faziam, e não apenas no sentido científico. Os cinco 30 Gloria Arieira é Diretora Presidente da escola Vidya Mandir Centro de Estudos de Vedanta e Sânscrito. Estuda desde 1974 com Swami Dayananda, que tornou-se seu mestre de quem escuta os ensinamentos. Responsável pela tradução de vários livros,ministra aulas de Vedanta e de sânscrito em sua escola no Rio de Janeiro. É professora de Maria Nazaré Cavalcanti, ex-integrante do grupo Tear de teatro (PoA), minha professora de ioga e de Vedanta. (http://www.vidyamandir.org.br, acesso em 19/12/12)

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elementos são utilizados para ajudar a direcionar a mente gradualmente, abordando

por vários ângulos e por nomes diferentes a experiência do Todo. Se essa unidade

última será chamada de espaço, de água, de Atma, de Brahma, de olho do sol, de

comida ou de graça, pouco importa, somente importa a questão de que tudo é

compreendido como uma unidade no seu sentido interno.

Trata-se, em última análise, da universalização desses princípios. Por

exemplo, quando você entra em uma sala vazia, ela não está vazia, está cheia de ar. O

ar está em contato com o seu corpo e está em contato com as paredes, que estão em

contato também com o ar externo àquele espaço, todos constituídos de matéria

diversas, com elementos organizados de maneiras diferentes, átomos empacotados

com tensões próprias que vão diferi-los enquanto conjuntos, mas que no fundo são

todos uma coisa só. A água, seja no mar, no gelo das geleiras ou nas ondas, é sempre

a mesma “sopa” de elementos químicos sob influência física, com variações aqui e ali

que vão diferenciá-los, mas que possuem o ‘fundo comum’ de serem água, e que

somos capazes de identificá-la como tal, e de buscar apreender a noção de ‘água de

todas as águas’.

3.3.3 Diálogo entre Ciência e Oriente

A perspectiva de Capra (1983), que entrecruza conceitos, entendimentos e

modos de ver da física quântica com os de algumas filosofias orientais é tomada aqui

como diretamente relacionada à cristalografia, ao empacotamento dos átomos, assim

como a filosofia de Bergson, quando se refere ao entendimento de que todas as

manifestações da natureza estão interconectadas. Nesse livro, Capra estabelece essas

relações para chegar ao denominador comum, à compreensão sobre o aspecto

dinâmico do universo, que entende a natureza como uma rede inseparável de

interações. Encontro, portanto, relações entre a visão de Lecoq sobre o Fundo Poético

Comum e aquela de Capra sobre a unidade de todas as coisas, exposta em sua obra “O

Tao da Física”.

Segundo Capra (1983), as raízes da física, como de toda ciência ocidental,

podem ser encontradas no período inicial da filosofia grega do século VI a.C., em

uma cultura onde a ciência, a filosofia, a religião e as artes não se encontravam

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separadas. O pensamento girava em torno da descoberta da natureza essencial ou da

constituição real das coisas, a que denominavam physis. O termo Física deriva dessa

palavra grega e significava, originalmente, a tentativa de ver a natureza essencial de

todas as coisas.

A exploração do mundo subatômico no século XX revelou a natureza intrinsecamente dinâmica da matéria, mostrando que os componentes dos átomos – as partículas subatômicas – são padrões dinâmicos que não existem como identidades isoladas, mas como partes integrantes de uma rede de interações, que envolvem um fluxo incessante de energia que se manifesta como troca de partículas, ou seja, uma interação dinâmica na qual as partículas são criadas e destruídas interminavelmente numa variação contínua de padrões de energia. As interações de partículas dão origem às estruturas estáveis que edificam o mundo material, as quais não permanecem estáticas, mas oscilam em movimentos rítmicos. Todo o universo está, pois, empenhado em movimento e atividade incessantes, numa permanente dança cósmica de energia. (CAPRA, 1983, p.170)

Essa concepção da física quântica confirma a visão de Lecoq, subjacente a

toda sua pesquisa e consequentemente à sua pedagogia, pois não se trata de uma visão

mística, abstrata ou ilusória, mas de algo concreto, ainda que do reino do invisível, o

que implica uma abertura da percepção da pessoa, mas sobre a qual todos temos uma

compreensão com maior ou menor clareza. A observação da natureza, enquanto

exercício pedagógico para Lecoq, portanto, trata de que o aluno perceba essas

dinâmicas internas, como ele não se cansava de falar, e nelas se “apóie”, procurando

trazer para seu corpo e para a cena a dinâmica desses movimentos. Ele incitava os

alunos a encontrarem os “motores” do movimento e trazê-los para seu corpo e cena,

noção que encontra-se em total sintonia com Capra (1983, p.27), ao sustentar que o

movimento e a mudança são propriedades essenciais das coisas e, portanto, “as forças

geradoras do movimento não são exteriores aos objetos como na visão grega clássica,

mas, ao contrário, são uma propriedade intrínseca da matéria”.

Em outro livro mais recente, “A teia da vida” (1997), Capra faz uma síntese de

descobertas científicas mais recentes tais como a teoria da complexidade, a teoria

Gaia, a teoria do caos e outras explicações das propriedades de organismos, sistemas

sociais e ecossistemas. Confrontando com os paradigmas mecanicistas e darwinistas

aceitos, o autor proporciona novas bases para a discussão política e ecológica que

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estão diretamente ligadas às ideias de interdisciplinaridade e de interligação entre

todos os seres e coisas.

Após analisar as relações estabelecidas para embasarem a noção de ‘fundo

comum’, vejamos como se insere a definição de poético nesse contexto, a fim de

compreender o Fundo Poético Comum. Quando Lecoq afirma que utiliza a expressão

“poético”, ele o faz para alertar para coisas que somente a poesia pode definir, ou

seja, o que está entre as palavras, o que é invisível, que não podemos definir, mas

existe. Voltamos aqui à supremacia da visão que Bachelard criticava, que parece

instaurar a ideia de que se não se pode ver, não existe. Nesse sentido, deve-se atentar

para a noção de Lecoq sobre a observação da natureza que não deve, justamente, ser

compreendida como limitada à visão, mas deve ser vivida com o corpo como um

todo, voltando ao ponto discutido ao longo de todo esse estudo sobre a importância da

prática corporal.

3.3.4 Mimesis

Lecoq refere-se à mímica subjacente a todas as artes, de caráter substancial, a

primeira camada no fundo de todas as artes, o que vai ao encontro do conceito de

mimesis de Aristóteles, consistindo o cerne de sua investigação sobre a arte. A

mimesis, como pensada pelo filósofo, não é uma imitação no sentido de reprodução,

mas sim uma produção, uma criação que transcreve sob uma forma visível e que

move as forças que animam os seres humanos e pode invocar, pela mecânica do

corpo, a imagem do nosso universo, como aponta Alain Rey (LECOQ, 1987, p.11).

Esse modelo oriundo do pensamento grego observa em relação à produção poética,

musical, teatral e artística em geral, diversos aspectos fundamentais dos feitos

humanos, através dos quais podemos reconhecer sua essência e universalidade.

Ao que parece, foi a tradução da palavra “mimar” por “imitar” que ancorou o

início de todo um sistema das artes desde então. “Se Aristóteles quisesse ter dito que

as Artes devem mimar a Natureza e não imitá-la, isso teria certamente mudado muitas

coisas”, afirma Lorelle (1974, p.139-141). O autor procura demonstrar que o mundo

do gesto estende-se para além da imitação, uma arte do espaço e do tempo,

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alcançando desde as bases da expressão humana com rituais que visavam religar os

homens ao deuses até os dias de hoje, perpassando toda a história das artes cênicas.

Como esclarece Mostaço31, Aristóteles empregou em seu texto “Poética” o termo

grego mímesis e foi Horácio, alguns séculos após, quem introduziu o termo imitatio

(imitação) como um correspondente ao grego mímesis. Essa noção horaciana foi a que

prevaleceu na cultura ocidental, ao longo de toda a Idade Média e começo da

Renascença, marcando com uma deformação de origem o estatuto da mímesis grega.

A grande diferença no modo de encarar as funções da cultura, no mundo ocidental,

decorreu em função de uma série de fatores associados à modernidade, tais como a

separação entre alma e corpo, a independência do pensamento abstrato, a

racionalização excessiva e o isolamento da consciência em si, como verificáveis nos

escritos de René Descartes, no século XVII.

Lorelle (1974, p.139) procura estabelecer linhas de uma rede invisível que

conecta a noção de mimar a diferentes campos de estudo, tais como a biologia, a

sociologia, a filosofia, a arqueologia, a etnologia, a psicologia social, a metafísica, o

teatro, a linguística, a comunicação, o Homem. Na biologia, a importância de imitar, a

capacidade mimética, é comum a vários animais, normalmente em função de alguma

necessidade vital; na sociologia, o papel do modelo, como o do Herói, por exemplo;

na psicologia, a pesquisa sobre a ‘identificação’ como base da formação da

individuação; na arqueologia, a relação entre as máscaras e o gesto, considerando que

se o homem necessita de uma máscara para se transformar, a máscara precisa de um

homem para ser animada; na etnologia, a extensão e o valor das técnicas do corpo, a

tentativa de fixação de uma cultura do movimento, desde aquele ritualístico ao

artístico; na psicologia social, o poder da imaginação da sociedade, capaz de captar as

forças obscuras e derivantes do imaginário; na metafísica, a relação entre real e

surreal, a capacidade do homem de colocar ambas instâncias em um só plano

perceptivo; no teatro, a complexidade e a riqueza dos signos gestuais; na linguística, a

existência de uma linguagem do corpo aliada a das palavras; na comunicação, aquilo

que acontece através de signos físicos, ainda que congestionados com maquiagens de

ordem comercial e mercadológica; no Homem, em sua busca de Unidade, de

amenizar o dualismo instituído por nossa cultura ocidental.

31 Edélcio Mostaço em reunião de orientação, Florianópolis,15/01/13.

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O autor acredita que o motivo principal que levou à reaparição da mímica não

foi tanto sua oposição à palavra, ao seu lado silencioso, mas “sua participação ao

longo dos tempos em uma forma muito antiga de cultura, mais imagética, mais

engajada corporalmente, cujo desaparecimento causou um desequilíbrio no homem”.

Trata-se de uma contestação mais profunda à Cultura, descrita com C maiúsculo por

Decroux em 1962, referindo-se a uma forma de cultura onde a palavra tomara o lugar

principal instaurando uma hierarquia que diminuía o papel de outras formas de

comunicação do homem, conforme aponta Lorelle (1974, p.138). Nessa Cultura, “as

formas encontram-se congeladas por não haver mais diálogo entre a ideia e a

corporalidade, entre o pensamento e a forma vivida, entre o espírito e o corpo das

coisas. Onde a noção de “matéria” foi empobrecida, levada a ser tomada sempre e

unilateralmente como servente, a ‘Cinderela da alma’”.

Embora circunscrito às circunstâncias dos anos 70, o posicionamento de

Decroux ainda pode ser considerado atual em relação à mimesis subjacente a todas

essas manifestações. Assim, alio-me a Lorelle quando ele aponta que, desde a mímica

sagrada dos rituais, que almejavam se comunicar diretamente com as forças

fundamentais do ser, os espíritos, até o trabalho do mimo corporal, presente nos

sucessores de Copeau, estes são impulsos assemelhados que surgiram carregados

desse desejo de comunicar algo em profunda conexão com a vida.

Lorelle (1974, p.123) sustenta que Barrault procurava estabelecer a diferença

entre o que denominava “mímica objetiva” e “mímica subjetiva”, sustentando que a

primeira referia-se a movimentos mecânicos puros que visavam gerar objetos e a

segunda estava relacionada aos caráteres e paixões do ser humano. Visão

compartilhada por Marcel Marceu, que desenvolvia em sua escola técnicas aprendidas

com Decroux. Observa-se, mais uma vez, a confluência das visões de arte e de suas

práticas nesses teatristas franceses em meados do século XX, referenciados

anteriormente como influências no trabalho de Lecoq, no item 1.3.1. Evidencia-se a

relação das noções de mimetismo e mimismo, que, ao que parece, estava presente na

época. Lecoq, que inicialmente empregava a expressão ‘mímica de fundo’, chegou ao

termo Fundo Poético Comum para transmitir essa mesma visão.

Toda a qualidade da representação estará na habilidade do ator de colocar em

jogo esta vida secreta, escondida por trás da primeira imagem reconhecida. Para

mimar o mar, por exemplo, não se trata de imitar as ondas no espaço com as mãos

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para fazer compreender que é o mar, mas de captar os diferentes movimentos e

reverberar seus ritmos mais secretos em todo seu corpo, fazer o mar viver nele e,

pouco a pouco, tornar-se o próprio mar, como propunha Lecoq (1987, p.96). Esses

ritmos, sensações, sentimentos, passam a fazer parte dele e a partir daí surgem as

percepções e estímulos para exprimir tais forças através de uma maior precisão em

seus movimentos, com traços mais certeiros, escolhidos, indo além das meras

impressões físicas. Cria-se, então, outro mar, não o mar verdadeiro e concreto nem

sua referência tão somente semiótica, mas um mar poético, jogado com este “algo

mais” que pertence somente àquele ator e que define seu estilo.

A mimesis é verificável no trabalho de arte “como reverberação daquela que se opera na natureza, uma vez que o procedimento encontra-se ligado a um Motor Primeiro, fonte última de todos esses processos, naturais ou não, o impulso primevo da causalidade, coordenando e subordinando às sucessivas mutações, alterações, gerações e corrupções. Aristóteles forneceu este acabamento teórico explicativo a um arcaico conceito de natureza, vigente desde tempos imemoriais na cultura helênica”. (MOSTAÇO, 2002, p.254)

Não esqueçamos, porém, que estamos tratando do aspecto técnico, de um

saber prático que o ator traz e desenvolve. Em grego, techné designa ofício,

habilidade, arte, uma competência profissional oposta à capacidade instintiva ou ao

mero acaso, como aponta Dantas (1999, p.30). É um saber prático obtido

empiricamente e realizado por habilidade, que refere-se a toda atividade humana

realizada de acordo com regras que ordenam a experiência e exigem grande

capacidade de observação, memória e senso de oportunidade, como aponta Chauí

(1994). A técnica transforma a matéria, está ligada à ideia de poiesis, do verbo grego

poien, que significa criar, fabricar, executar, compor, construir, produzir, fazer, obrar;

agir com eficácia, produzindo um resultado. É necessário que o ator, o artista,

desenvolva certas habilidades para que possa criar. Como afirma Aritóteles, segundo

Mostaço (2012), “não há poien sem techné”, portanto, poiesis relaciona-se à ideia de

trabalho como fabricação, construção, composição.

O saber poético é, portanto, um saber criativo. Na poiesis a noção de forma

como modelo ou paradigma é essencial, pois é essa noção de forma que guia e que

orienta o trabalho do técnico, do artesão, do artista, a partir de um ponto de referência

que ofereça certa universalidade para a ação criadora, o modelo do que se vai fabricar,

produzir, ou criar. Como esclarece Dantas (1999, p.42), em arte, poéticas são as

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referências a partir das quais o artista vai se servir, consciente ou inconscientemente,

para realizar suas obras. São as ideias, as compreensões, os entendimentos que se têm

acerca da arte, da vida, do seu ambiente, que estarão presentes na concepção e na

realização das obras. Ela acrescenta que devemos levar em conta tanto o caráter

histórico como o operativo das poéticas. Histórico, no sentido de postularem além de

uma visão de arte, uma visão de mundo, inscritas num contexto maior dos

acontecimentos de uma época. Operativo pelas indicações e princípios que trazem

quanto aos modos de formar, de técnicas a utilizar, de modelos em que se inspirar e

de atitudes a se observar. Sendo assim, há diversas poéticas, mas o essencial é ter uma

que anime e apóie a produção da obra, sem juízo de valor de qual a melhor poética.

Do mesmo modo, Pareyson (1993) afirma que não há uma poética melhor ou

mais importante que outra e elas existem e se legitimam em função do que permitem

realizar. A poética será a marca do artista, seu traço, seu diferencial, a partir de seu

modo de usar as técnicas. Nesse sentido podemos compreender a noção de “poético”

a que Lecoq se refere e que procura induzir o aluno-ator a empregar em sua criação

pessoal, a sua poética, que também está relacionada ao estilo. Estilo, entendido à

maneira de Pareyson (1993, p.38), como modo de formar, no qual está presente a

personalidade do artista, ou ainda, “quando sua personalidade se coloca sob o signo

da formatividade, exigindo o seu modo de formar onde a espiritualidade concreta

torna-se energia formante”.

O Fundo Poético Comum, portanto, envolve toda essa compreensão de ciência

e de arte, do fazer, do construir, do dar forma, da sua expressão própria em conjunção

com sua percepção da natureza em seu sentido mais profundo. São as leis

fundamentais do teatro a que me referi anteriormente e que, como bem colocou

Ariane Mnouchkine no vídeo de Roy e Carasso (1999), não se trata de algo novo, mas

de algo que está presente desde sempre no trabalho artístico, a dimensão abstrata

subjacente a que nos entregamos quando decidimos ser artistas. Na pedagogia de

Lecoq, portanto, encontra-se essa preocupação que vai além da preparação corporal

do ator para atingir a base mesma do teatro, a conexão com as diversas manifestações

da natureza e o ser humano, através da busca da poética das permanências, do “Fundo

Poético Comum”. É algo que ele foi pesquisando ao longo dos anos em sua escola.

Pode-se perceber que essa busca já estava presente desde o início da escola através de

depoimentos de alunos que passaram por ela naquele momento, como aponta Philipe

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Avron no vídeo de Roy e Carasso (1999), ao destacar o que percebia como dimensão

filosófica nesse aprendizado: “a escola fala a linguagem da vida, pois é uma

linguagem de nossas raízes, nossa voz, nosso corpo, de novo em harmonia.”

Partindo da observação das manifestações da natureza e do cotidiano humano,

o aluno-ator deve ser capaz de transpor essas imagens e impressões para a cena e

articulá-las, abarcando as duas funções igualmente necessárias à configuração do

universo cênico, como esclarece o professor de estética Jacó Guinsburg (2001, p.22):

a concreção mimética e a articulação significativa. Assim como Lecoq, esse professor

compreende que o caminho de uma linguagem cênica inovadora está diretamente

vinculado à capacidade de inventar, de agrupar, de fazer interagir signos provenientes

de vários meios. Somente a partir deste material “poderá corporificar-se no palco

outra corporeidade que não é puramente a do ator, mas sim a de uma ideia, cuja

realidade objetiva é abstrata e que, no entanto, deverá de algum modo ser recebida

como se fosse concretamente corporal, ou seja, fisicalizada no corpo de seus

executantes”. Afirma ele:

A concreção mimética é indispensável para que o tipo de ilusão peculiar à cena possa ser criado e apreendido em sua especificidade artística. E a ficção teatral tem que ser percebida imediatamente sob a forma de representação, ou seja, re-presentação. O que é essa re-presentação senão re-presentificar, tornar presentes por atos intencionais e formais de criação, quer dizer, por delegação estética, figuras, imagens, sentimentos, relações e elementos que constituem os seus objetos, reatualizá-los artificialmente por uma assunção corporal, uma concreção mimética, na corporeidade viva do intérprete? (GUINSBURG, 2001, p.24)

No estágio de verão na Escola o termo Fundo Poético Comum foi mencionado

apenas no primeiro dia, na apresentação para os alunos de como seria encaminhado o

trabalho. Durante a conversa de encerramento do curso, perguntei à professora como

ela definiria o Fundo Poético Comum e ela retornou a pergunta para todos nós, para

que respondêssemos baseados no que fizemos. A maioria dos colegas tinha bem clara

essa ideia de transposição das dinâmicas invisíveis para o movimento e a cena, sem

que ela tenha jamais tomado tempo em explicar verbalmente do que se tratava. Para

mim, isto significa uma confirmação daquilo que admiro nessa pedagogia, de ensinar

pela prática e tornar claros conceitos e ideias abstratos. Por outro lado, torna-se

evidente o desapreço pelo uso desses termos, pois eles realmente acreditam que não é

isso que importa, e que não devemos perder tempo querendo explicá-los.

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Ainda assim, acredito na importância de compreender e deixar registros sobre

a profundidade da abordagem do Fundo Poético Comum. Entender a pedagogia de

Lecoq como algo que vai além de ‘fazer elefantinho durante uma tarde inteira’, como

já ouvi falar, por exemplo, pois trata-se de entender a conexão que existe entre seu

movimento, seu peso, seu desenho no espaço, a peculiaridade de suas articulações,

como faz para sentar e levantar. Enfim, existe um infinito de características possíveis

de serem observados em cada animal, em cada elemento, em cada matéria, em cada

expressão artística, em tudo o que nos cerca, e é nesse sentido que vai a ‘observação

da natureza’ de que o mestre tanto falava, sendo sua transposição para o teatro um

grande exercício imaginativo. Então, se há um lado bem rígido em termos de

treinamento, há essa intenção poética subjacente que alimenta a criação artística, que

necessita de um tempo para ser compreendida e absorvida, para quem tiver abertura

para tal. Abertura para o conhecimento científico e espiritual, ainda que Lecoq não

falasse desses aspectos abertamente, pois falava apenas das dinâmicas da natureza,

mas, para quem tem essa conexão com o mundo, logo faz sentido, e o fazer artístico

se alia a tal dimensão.

Nesse sentido, esse teatro está muito distante da performance, principalmente

daquelas manifestações nas quais o performer se machuca, por exemplo, quando ele

faz questão de mostrar aquilo que poderia se considerar o ‘real’ em oposição à ficção.

Acontece que quando estamos em contato com essa compreensão profunda da

natureza e da correlação entre todas suas manifestações, estamos em contato com o

‘real’, com as matérias de que são feitas as coisas, havendo, portanto, aí uma conexão

que alia o poético, o caráter da criação enquanto algo quase espiritual. A compreensão

do que significa o Fundo Poético Comum abre possibilidades concretas no corpo do

ator enquanto imaginação, enquanto caminho possível a seguir, com uma técnica

associada a ele, à mimesis, ao mimismo, à expressão fundamental do Anthropos. É

uma técnica com limites bem definidos, com exercícios estruturados e repetidos ao

longo dos 66 anos de pesquisa de Lecoq em sua Escola, com as devidas variações,

ajustes e buscas, como pressupõe o trabalho de experimentação e de criação.

Ricardo Napoleão, ex-aluno que teve a oportunidade de conhecer um pouco da

vida privada de Lecoq, conta que ele costumava caminhar muito nos fins de semana

nos arredores de Paris, observando e analisando a natureza. Para Napoleão, a própria

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pedagogia podia ser entendida como as árvores, que o mestre usava tanto como

exemplo, quanto ao tempo que leva para crescer, amadurecer, dar frutos.

Para mim a pedagogia de Lecoq pode ser vista como desenhos baseados em movimentos, aí eu os enxergo como um reflexo da natureza, da observação da natureza, do homem mesmo. A observação do movimento, a observação do andar, do nascimento, do desenvolvimento, do animal. Uma capacidade de observar. Por isso quando você chega ao nível acadêmico, é mais simples do que se imagina. A pedagogia não tem complicações. Ela não foi feita para complicar, ela foi feita para existir simplesmente na prática. E talvez isso incomode. Porque uma pessoa, principalmente que talvez tenha passado muito tempo estudando alguma coisa e ali ela tenha percebido que a coisa era mais simples do que ela imaginava. E é isso. ( NAPOLEÃO apud SACHS, 2004, p.157)32

Concordo completamente com Bradby (2006, p.xv), quando ele sustenta que

mais do que ensinar rotinas de trabalhos físicos aos atores, Lecoq visava ajudá-los a

encontrar seu próprio idioma de expressividade física, ao proporcionar uma abertura

para suas “imaginações físicas”. Ajudava-os a observar e a experienciar toda a riqueza

da vida fora da sala de ensaio e a desenvolver uma abordagem criativa e inventiva

para tudo o que fizessem. Lecoq considerava o estudo do movimento fundamental

para uma compreensão mais aprofundada dos diversos aspectos da vida, e, por

extensão, às artes. Seu treinamento era apropriado para escritores, pintores e

arquitetos assim como para atores, tanto que por 20 anos ele ministrou cursos de

exploração física do espaço para estudantes de arquitetura na Escola de Belas Artes de

Paris. Ainda assim, sua abordagem não era de filósofo nem antropólogo, ele não

determinava um conjunto de teorias a serem exploradas de forma discursiva, como

pude comprovar quando fui sua aluna. Sua forma direta e objetiva, mas ao mesmo

tempo, apaixonada de ensinar, despertava também nos alunos tal paixão, que me

levou a pesquisar esse tema, e como podemos também constatar com o seguinte

depoimento:

(...) na vida você vai recolhendo tudo que você acha que serve e que tem a ver com o seu caráter também. Finalmente você é professor, é uma questão de ter uma linha pedagógica e ao mesmo tempo ser capaz de despertar paixão. E no final, a paixão que você vai despertar é a sua paixão! Então, tudo o que para mim vibra, de uma certa forma eu incorporo no meu trabalho. Seja no caminho absolutamente técnico teatral, ou, por exemplo, quando Lecoq fala de Fundo Poético Comum, isso já me abre a poesia da

32 Ator Ricardo Napoleão. Entrevista concedida em Sachs (2004, p.157).

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própria vida. Então, dentro da minha busca, seja pessoal ou espiritual, ou física,, eu tento passar para eles em que momento eu estou.” (MALHEIROS apud SACHS, 2004, p. 128)

Malheiros é natural de Porto Alegre, mas residente no exterior desde os anos

80. A atriz e diretora conta que trabalha como professora na escola Argos, na Cidade

do México, para onde se dirigem aqueles atores que querem trabalhar em televisão.

Ministra aulas de ‘integração’, que, segundo ela, éa algo intermediário entre a parte

física e a atuação e interpretação, pois a parte de expressão corporal consiste de aulas

de dança e ioga. Ela conta que, nessa escola, leciona de maneira bastante pessoal,

privilegiando a parte de integração de grupo e do ator no espaço, além de trazer textos

para discussões com o grupo, sobre Stanislawski, sobre a ética do ator, por exemplo.

Malheiros considera importante criar uma ética, especialmente considerando o tipo de

ambiente de trabalho no qual vão conviver. Nessa mesma escola, leciona para um

grupo de jovens de 18 a 20 anos, que são mais difíceis, uma vez que consideram os

exercícios infantis e preferem aqueles de reviver situações mais melodramáticas e

realistas como a mulher que traiu seu marido, o pai que abandonou o filho, o noivo

que apaixonou-se por outra, mas vai casar mesmo assim, para citar alguns exemplos.

Mesmo com grupos de alunos-atores com objetivos bem definidos, para um tipo de

linguagem que não é aquela favorecida pela pedagogia de Lecoq, Clarissa afirma que

a utiliza mesmo assim, porém de maneira mais eclética:

Eu sempre uso, não tem como não usar! E o discurso é esse: eu digo para eles (os alunos): “Mover-se é uma questão de sentido comum. Você se move como qualquer ser humano se move e se você não tem capacidade de ler e controlar o seu movimento, alguma coisa não vai funcionar no seu trabalho de ator.” É o Fundo Poético Comum! (MALHEIROS apud SACHS, 2004, p. 129)

Há muitas questões sobre a relação entre a arte e a ciência, e se o jogo é uma

arte ou uma ciência. Carasso, um dos responsáveis pelas entrevistas tanto do livro

quanto do vídeo de Lecoq, comenta algumas reflexões que lhe surgiram a partir do

tempo que passaram juntos para a realização desses projetos.

Não existe, por um lado, uma ciência absoluta feita de saberes confirmados, de conhecimentos, de certezas, e de outro, uma arte incerta, misteriosa, sempre em pesquisa de si mesma e de sua identidade. Arte e ciência têm em comum serem ao mesmo tempo espaços de conhecimentos, de leis, de técnicas e de ares de pesquisa, de mistério e de criação. Artistas e cientistas são ao mesmo tempo técnicos e exploradores. Portanto, a

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questão da formação, seja ela artística ou científica, traz uma relação que cada um, em seu domínio, saberá entremear entre conhecimento e mistério, entre patrimônio e criação. (CARASSO apud FÉRAL, 2003, p.186)

O autor aponta a especificidade da Escola de Lecoq, afirmando que, enquanto

muitas escolas de teatro oferecem a seus alunos uma grande amplitude de teorias, de

técnicas e de métodos teatrais, – de Stanislavski ao Nô japonês, de Brecht à Artaud –,

Lecoq sugere um caminho exatamente inverso, no qual a natureza precede a cultura.

Segundo Carasso (apud FÉRAL, 2003, p.185), em consonância com Lecoq, as leis do

teatro são leis naturais, mais do que culturais, e as ideias teóricas sobre teatro, mais do

que auxiliarem o jovem ator em formação, podem tornar-se um obstáculo a seu jogo,

pois “o corpo sabe de coisas que a cabeça não sabe”, nos diz Lecoq, mais uma vez

ecoando o mimismo de Jousse. Portanto, esse conhecimento é anterior.

Tais afirmações vêm ao encontro da minha impressão sobre essa pedagogia

que, ao identificar a noção de Fundo Poético Comum como chave para a ignição da

imaginação, impunha um dialogo com a ciência. Sendo assim, me senti compelida a

mergulhar no universo da física e das associações que a ela designo com base nas

afirmações do próprio mestre, como aquelas sobre seu interesse pela cristalografia,

pela filosofia de Bachelard e pela antropologia de Jousse. Todos assuntos complexos

e extensos, e que aqui procurei apresentar de forma pontual, apenas levando em conta

os pontos de contato entre todos eles e em relação à imaginação no trabalho do ator.

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4 AQUECIMENTO

Realizado o alongamento, passemos para o aquecimento do corpo e das ideias.

Examinarei, inicialmente, a prática de alguns dos Vinte Movimentos que costumo

utilizar com o intuito de estabelecer parâmetros comuns de entendimento sobre o

movimento com os alunos ou atores. Com esses exercícios, introduzo aquilo que

considero importante ser compreendido através do corpo e que deverá delinear a cena

mais adiante. Nesses movimentos estão presentes os princípios propostos por Lecoq

mencionados anteriormente que, para mim, também regem a construção cênica,

constituindo-se, portanto, no principal alicerce do trabalho.

Quanto ao aquecimento das ideias, passaremos pela questão do valor do

treinamento codificado e, em seguida, apresento algumas questões sobre a

denominação de teatro físico ou teatro total, discussão iniciada nos anos 80 e que

ainda não são consensuais. Por fim, pondero aspectos que concernem a atuação no

teatro contemporâneo no que tange à influência da performance no trabalho atoral,

que será considerado como performer ou como ator, questionando o estatuto de

representação. Discussões que aportam temas mais polêmicos, que suscitam

diferentes pontos de vista e por vezes visões que parecem até contraditórias, mas que

abordo aqui no sentido de situar a pesquisa em meio a alguns dos aspectos da teoria

do teatro contemporâneo.

4.1 OS VINTE MOVIMENTOS

Os Vinte Movimentos propostos na pedagogia de Lecoq consistem de

determinadas sequências de movimentos, como o nome já indica, baseadas

principalmente em alguns esportes, na acrobacia e outras atividades. Muito da

experiência de Lecoq como atleta foi trazida para estas sequências, como podemos

observar. A maioria delas está relacionada aos esportes, enquanto outras foram

baseadas em trabalhos, entre as quais a mais conhecida é a do barqueiro (passeur).

Algumas sequências chegam a ter mais de cinquenta movimentos, como o

muro, por exemplo, que implica uma série codificada de alguém que se depara com

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um muro, salta, prende-se com as mãos, apóia-se para subir, chega no topo, prepara-

se e salta para o chão, tudo feito detalhadamente de maneira a ser repetida tal e qual.

Em outra, como o travelling, são apenas três movimentos: a cabeça que gira e olha

para o lado, o tronco desloca-se naquela direção, o tronco gira e emparelha com a

cabeça, para então recomeçar a sequência.

Para uma compreensão mais acurada, listo aqui os Vinte Movimentos em

questão. Conforme a compilação apresentada em Sachs (2004, p. 96), são eles:

Ondulacion (ondulação); Ondulacioninverse (ondulação inversa); Éclosion (eclosão):

movimentos de abrir e fechar o corpo como um todo; La Brasse(a braçada):sincronia

dos braços em movimentos pendulares até que giram cada um em uma direção;

Equilibre (parada de mão): ficar em equilíbrio sobre as mãos com as pernas

estendidas na vertical; Cabriole (rolinho): no chão, rolagem sobre a cabeça para frente

e para trás; Le Roue (a roda): chamada também de “estrelinha” no Brasil; Travelling

(como o movimento da câmera de cinema): em posição de samurai, cabeça, tronco,

deslocamento, sem oscilações no sentido vertical; Lesneufattitudes (as nove atitudes):

nove movimentos que passam pela postura do arlequim, do samurai, da mesa; Le

Point fixe (ponto fixo): o corpo desloca-se em função de um ponto fixo das mãos;

Bâton (bastão): manipulação de um bastão que gira; Le massue (clava): movimento de

deslocar e golpear com um bastão (clava); Passeur (barqueiro): sequência de 32

movimentos do barqueiro avançando seu barco com uma longa vara que empurra o

chão; Le mure (o muro): sequência de 57 movimentos para transpor um muro,

mencionada acima; Natation (natação): nado de peito feito em equilíbrio sobre uma

perna; Tourniquet (torniquete): giro sobre seu próprio eixo; Disque antique (disco):

lançamento de disco como no atletismo; Poidsaualtère (halteres): levantamento de

halteres em quatro movimentos; Le patinage (patinação): movimento do patinador,

que, embora no mesmo lugar, provoca a ilusão de deslocamento; Grande godille

(remo): remar em forma de oito.

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Fig.7 Desenho de Lecoq dos Vinte Movimentos.

torniquete barqueiro patinação disco parada de mão

Fonte: Lecoq, 1987

Na Escola de Lecoq essas sequências são aprendidas ao longo do primeiro ano

visando desenvolver os princípios do movimento, constituindo-se numa espécie de

alfabeto, como entendia Lecoq, a partir do qual o ator torna-se habilitado a “escrever”

ou “dizer” o que quiser com o corpo. O professor referia-se constantemente à

importância da arquitetura do corpo e da cena e da instrumentalização do ator para

que, com base neste alfabeto básico, técnico e dramático, possa “desenhar” o seu

próprio projeto.

Identifico na prática de Lecoq dois princípios principais: o trabalho a partir de

modelos e outro que almeja desenvolver a criação pessoal. O grande modelo é a

natureza e suas manifestações, tais como: os elementos (água, ar, terra, fogo e suas

variantes, sólidos, líquidos, gasosos, pastosos, etc.); as matérias ou materiais (papel,

ferro, manteiga, gelatina, açúcar, etc.); os animais (felinos, répteis, pássaros, insetos,

etc.); os cataclismos (enchente, incêndio, vendaval, tempestade, avalanche, terremoto,

etc.). São usados também alguns esportes, tais como a patinação, o levantamento de

pesos, a natação, o lançamento de discos, o remo, como modelos ensinados como

sequências de movimentos codificados. Através dos Vinte Movimentos, portanto, são

transmitidos princípios como equilíbrio, economia, ritmo, compensação, élan,

desenho do corpo no espaço, linhas do corpo, controle, utilizando elementos da

mímica para manipulação de objetos invisíveis. Há ainda outro grande tema utilizado,

intitulado “abordagem às artes”, que toma a pintura, a poesia e a música como

modelos de movimentos, de composição, de texturas, de dinâmicas. O foco central

dessa aprendizagem é aquele de identificar a dinâmica interna de cada manifestação e

procurar transpô-la para seu próprio corpo pelo rejogo e para o jogo com os colegas

de cena, procurando reconhecer o que há como Fundo Poético Comum em todas elas.

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Nas aulas de análise do movimento na Escola, além de se aprender essas

sequências codificadas, são também desmembrados outros gestos e atividades que

partem da observação de como elas são executados na vida cotidiana e, por meio da

mímica de ação33, são recriadas e organizadas em uma série determinada de

movimentos, passíveis de serem contadas e repetidas. Esse procedimento auxilia o

aluno-ator a aprimorar o gesto, ou mesmo uma cena, em um procedimento semelhante

ao da construção de partituras corporais usadas por Barba e Grotowski. Na Escola são

usadas, por exemplo, atividades como cortar lenha, preparar um coquetel ou navegar

em um barco a vela, que são desmembradas em um número determinado de ações que

devem ser repetidas tal qual aprendidas. Esse procedimento é bastante útil para atores

que não conseguem repetir o que foi feito, para que possam memorizar cenas,

deslocamentos, contracenações.

Ao final do primeiro ano, os alunos da Escola passam por uma prova

individual na qual devem organizar uma sequência própria dos Vinte Movimentos,

com variações de ritmos, de intensidades e de direções, com deslocamentos no espaço

que os torne interessantes para quem assiste. As sequências são apresentadas

individualmente diante de todo o grupo e comentadas pelos professores, fazendo parte

da avaliação final do processo técnico-criativo do aluno. O primeiro ano serve,

portanto, como base para aquilo que será ensinado no segundo ano da Escola, os

estilos teatrais propriamente ditos, chamados de grandes territórios por Lecoq: o

melodrama, a commedia dell’arte, os bufões, a tragédia, o clown.

O objetivo do aprendizado dessas sequências na pedagogia de Lecoq reside na

compreensão pela via corporal das leis do movimento que as embasam, enfatizando a

maneira como cada deslocamento é realizado, como cada parte do corpo desenha uma

trajetória no espaço. Essas noções podem parecer abstratas, mas elas tornam-se

concretas no palco e no corpo do ator, constituindo o que Lecoq (1997, p.32)

considerava o fundo dinâmico de sua pedagogia. Tal como para o mestre, essas

consistem igualmente nas linhas mestras do meu trabalho prático, e que procuro fazer

33 Mímica de ação, segundo Lecoq, é a base para analisar as ações físicas dos seres humanos. Consiste em reproduzir uma ação física com tanta atenção quanto possível, sem nenhuma transposição, em um primeiro momento, mimando o objeto, o obstáculo, a resistência. Para tanto, em sequências de alguns esportes, como a natação e a patinação, por exemplo, de atividades como a do pedreiro, do cortador de lenha, etc., ou o manejo de objetos, como abrir uma mala, fechar uma porta, tomar uma xícara de chá, etc. (Sachs, 2004:60)

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entender às pessoas que ensino, ao aplicar esses exercícios como ferramentas para a

preparação corporal e para a cena. Exercícios esses que servem também para

estabelecer um diálogo primeiro com os alunos-atores sobre corpo, ritmo e espaço,

uma vez que possibilitam certa organização, controle e consciência sobre o mesmo. O

objetivo é o de propiciar gestos detalhados, próprios para um estilo de teatro que

utilize uma linguagem não cotidiana, mas que pode ser utilizado para outras

linguagens com as quais se queira trabalhar.

Embora sendo vinte movimentos, costumo usar no máximo dez deles quando

estou ensinando, de maneira que me possibilitem poder aprofundar, repetir e

consolidar seus aspectos técnicos. Dentre aqueles que mais utilizo estão: a ondulação,

a ondulação inversa, a eclosão, o travelling, o la brasse (o giro com os braços), as

nove atitudes, o barqueiro, o bastão, o tourniquet. Quando trata-se de um grupo que

já tenha alguma experiência com acrobacia uso também a roda, a invertida, os

rolinhos para frente e para trás. Entretanto, quando o grupo não possui experiência,

prefiro não usar a acrobacia, por exigir um cuidado técnico mais apurado, logo,

considero imprudente tratá-la como se fosse algo simples, pois corre-se o risco de

causar lesões graves e permanentes.

Lecoq inicia a análise do corpo humano baseado em três movimentos que

considera naturais da vida cotidiana: ondulação, ondulação contrária e eclosão. Esses

movimentos podem ser associados à três posições dramáticas, segundo o mestre, que

são “estar com”, “estar para”, “estar contra”34. Ele sustentava que a ondulação é o

primeiro movimento do corpo humano e de diversos outros seres, aquele que dá

suporte à toda locomoção. Progredindo a partir de uma alavanca normalmente

representada pelo chão, o esforço é gradualmente transmitido para todas as partes do

corpo, como pode ser verificado no caminhar humano, por exemplo. Como aponta o

mestre (LECOQ, 1997, p.84), a ondulação é a força motora que embasa todo o

esforço físico que se manifesta no corpo humano, incluindo a noção de empurrar/ser

empurrado e puxar/ser puxado.

A ondulação auxilia a flexibilização da coluna envolvendo, como em todos os

movimentos, o corpo inteiro, que deve estar alerta e participante. A onda começa nos

pés que pressionam o chão, mas é o olhar que conduz o movimento: deve sempre

34 No original, em francês, être avec, être pour, être contre. (LECOQ, 1997, p.84)

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estar vivo, para fora, no centro do rosto e não desviado para cima ou para baixo. O

olhar deve acompanhar o corpo, delimitando um círculo invisível ao redor de si. Olha-

se para cima no ponto zênite e a partir dali o movimento deve engajar a coluna,

deslocando-se o peso à frente e, de acordo com o princípio do equilíbrio,

desequilibrar-se para se mover. Costumo orientar meus alunos de forma que o olhar

acompanhe os limites da sala de trabalho, percorrendo os cantos do teto, descendo

pelas paredes, passando pelos rodapés, vindo, pelo solo, encontrar a ponta dos dedos

dos pés. A partir dali, deve subir pelo próprio corpo, até chegar ao peito e novamente

lançar-se para o alto, voltando a refazer o trajeto. Deve-se observar a posição dos

braços, não abandonar as mãos, não franzir a testa, não encolher os ombros.

Uma das atrizes da Cia. Oigalê, ao comentar sobre a colaboração desses

exercícios de Lecoq, chama atenção para a ondulation:

Sim, colabora, porque têm essa característica de aquecer a articulação, pois existe no trabalho do ator, principalmente, uma falta de compreensão do seu corpo, falta de um entendimento de como funciona e do que é necessário para que ele esteja disponível para o trabalho. Esse trabalho do Lecoq é legal porque ele vai lubrificando as articulações, é um trabalho todo de dobras e deslocamentos e que vais aos poucos respeitando seu corpo. Quando se faz a ondulation, por exemplo, que vai soltando toda a coluna, ‘deus o livre’ de fazer aquilo direto, de soco, aquilo vai lhe entrevar, mas você vai soltando, vai azeitando esses ossos, essas articulações, os espaços ‘entre’...(PAZ, 2012)35.

A ondulação inversa, como o próprio nome indica, é praticamente o mesmo

movimento, porém invertido. Ao invés de começar pelos pés contra o chão, ele inicia

na cabeça, mas o corpo todo deve ser mobilizado. A diferença é que apóia-se uma

perna para trás, o que desenha duas linhas diagonais com o corpo, o que a ondulação

para a frente não faz. Exige equilíbrio, controle do quadril, força nos músculos das

coxas, firmeza nos pés. Passar por essas linhas serve como aquecimento para As Nove

Atitudes(foto abaixo), que passa também por duas diagonais, além de mudança de

planos em nível baixo e médio.

35 Karine Paz, atriz da Cia Oigalê, trabalha nos espetáculos “Miséria, ...”e “O Baile...”. Entrevista realizada em 30/10/12 em Porto Alegre.

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Fig. 8 – As Nove Atitudes

Fonte: Lecoq, 2010, p.125

Claramente baseado nos movimentos da commedia dell’arte, As Noves

Atitudes iniciam com a postura do samurai, que demanda a abertura ampla das pernas

tomada como base, os pés firmes no chão, força nas coxas e atenção para não forçar

os joelhos. Os braços estendidos ao longo do corpo, ligeiramente afastados do tronco,

também manterão essa posição ao longo das nove posturas, o que também consiste

num desafio. A partir do quadril, que é desencaixado deslocando-se para trás, o tronco

desce e coloca-se em paralelo ao solo com as costas alongadas, na postura de ‘mesa’.

É comum os alunos não terem noção do quanto devem baixar, para isso a utilização

da imagem de mesa auxilia pela preocupação em não deixar cair nenhum copo

imaginário que estaria sobre ela, de maneira que os alunos vão ajustando seus corpos

sem terem que olhar-se no espelho para tal, mas sim de dentro para fora, ativando

aquele olhar interno despertado anteriormente no exercício do scanner. Seguindo a

sequência, o corpo deve ir erguendo-se aos poucos, tomando então a postura típica do

arlequim, com uma perna flexionada e a outra alongada com o tronco voltado para

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ela, numa atitude tanto servil de agradecimento como de deferência a alguém

superior. Em seguida, eleva-se o corpo um pouco mais e transfere-se o peso para

chegar à quarta atitude, abertura à frente, olhando no horizonte, e, depois, chega-se à

quinta posição pelo giro do tronco naquela posição. Essa última posição é uma das

que mais exigem do corpo, pois todo ele deve alinhar-se à perna alongada, tendo

como apoio a outra, flexionada, provocando um equilíbrio precário, nada natural, mas

que justamente serve para quebrar padrões estabelecidos. A partir daí o corpo fará

esses mesmos movimentos para o outro lado, descendo como se fosse um espelho dos

movimentos anteriores, o que requer concentração e coordenação para ser alcançado.

O olhar também deve estar alinhado com os membros que traçam linhas diagonais

durante toda a sequência, como se pode observar pelo desenho esquemático que o

próprio professor fez.

Concepção herdada de Conty, o mestre denominava “atitude” um momento

isolado dentro de um movimento, a imobilidade que pode ser colocada no início, no

fim ou em um ponto-chave de uma sequência. Um movimento em seu limite, ali

revela-se uma atitude. Como em uma estátua, imóvel, que expressa toda a grandeza

de um momento em si. As atitudes fornecem uma estrutura para o movimento que vai

além dos gestos naturais. O teatro clássico japonês, o jogo com máscaras da

commedia dell´arte, a ópera de Pequim, empregam esse tipo de acentuação, onde os

movimentos dos atores explodem literalmente em poses monumentais. As atitudes são

eminentemente dramáticas. Solicita-se aos alunos-atores que descubram diferentes

variações, especialmente nas transições de uma atitude para a próxima, de forma que

auxilie ao ator a reter os princípios estruturais que dão suporte a essas atitudes,

mesmo em suas versões menores e mais íntimas a partir das transposições. Para o

mestre, a noção de atitude está sempre presente no trabalho do grande ator, qualquer

que seja o seu estilo de teatro, pois na realidade, as plateias teatrais exigem atitudes

que elas possam seguir. O objetivo maior é a precisão e a clareza dos gestos.

A questão da autoria do ator inicia-se aqui, no momento em que ele domina

esse seu desenhar com o corpo, que sabe o que está propondo visualmente.

Desenvolvendo a consciência em duas mãos, de dentro para fora e de fora para

dentro: essa forma que o corpo adquire vai ser o canal de expressão da sua

personagem, vai ser o que impulsiona sua expressão, que vai ser o veículo para trazer

à tona aquilo que quer “dizer”, ao mesmo tempo em que percebe a imagem que

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produz no espaço. Se ele compreende tais princípios com seu próprio corpo, ele

poderá estende-los para a cena, por exemplo: o equilíbrio necessário para que se possa

ficar com o apoio na perna de trás numa postura como esta mostrada abaixo, é o

mesmo que vou transpor para uma cena em relação a um objeto ou mesmo ao espaço.

Um dos aspectos que considero mais importantes no exercício desses

movimentos é o de compreender as linhas que o corpo desenha no espaço. Qualquer

parte do corpo que esteja abandonada aparece em cena, diminui a força do ator, a

menos que seja proposital. As mãos, os braços, a posição dos joelhos e do quadril,

todos precisam estar sob controle total do ator. Perceber que o corpo do ator tem uma

forma e que, dependendo de sua posição e da relação com o colega da cena, objeto ou

cenário, um quadro é pintado para o espectador. Dessa maneira desenvolve-se um

cuidado com o aspecto visual e plástico do espetáculo, preocupado com o sentido de

composição, como estudado nas artes visuais. Esse aspecto das linhas aparecerá

durante todo o trabalho, iniciando pela consciência da maneira como o próprio corpo

se desenha no espaço, desenvolvido pelo trabalhado dos Vinte Movimentos, e mais

adiante quando, nas improvisações, trabalha-se com a pintura, que abordo no item 5.3.

Fig.9 – Oskar Schlemmer - “Danse des Bâtons”, 1928

Fonte: Catálogo Danser sa Vie , 2012, p.179

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Na foto acima vemos Oskar Schlemmer, expoente da Bauhaus, que também

pautava-se por pressupostos bastante semelhantes em relação ao desenho das linhas

no espaço, que aqui exponho enquanto modelo para as linhas do corpo às quais se

referem esses exercícios dos Vinte Movimentos. Em aula não temos essa imagem,

antes, ela parte do olhar interno que busca organizar seu corpo com elas em mente,

essa sim sendo uma busca de dentro para fora. Com o alongamento dos braços que

seguem essas linhas ao infinito, e a consciência das linhas que as pernas desenham, o

corpo tende a tomar um espaço maior, que poderia ser comparado com o “corpo

dilatado” de Barba.

No trabalho de preparação do espetáculo ‘Miséria...’, da companhia Oigalê,

por exemplo, meu o objetivo era o de produzir a corporeidade da commediadell’arte,

pois trata-se de uma adaptação da peça “Arlequim, servidor de dois patrões”, de

Goldoni. Trabalhamos esses mesmos movimentos, além da construção corporal de

cada tipo da commedia e de seu jogo. Na foto abaixo, pode-se identificar as linhas

emanadas dos corpos, a base bem aberta, a composição visual que apresentam, como

descreve o depoimento do ator da Oigalê que participou de ambos trabalhos

‘Miséria...’ e ‘O Baile...’:

O que trabalhamos especificamente de Lecoq e que serviu diretamente na limpeza de movimentos do “Miséria...” foi isso de que o movimento tem início, meio e fim. A limpeza de movimentos se dá a partir disso. Quando tu tensionas de propósito, é um controle do teu corpo, tu sabes onde inicia um movimento e que ele tem um meio e um final. E isso torna-se um jogo orgânico em cena porque eu começo, termino e passo a ‘bola’; o outro começa, termina e passa a ‘bola’. Isso é o que a gente vê em cena, e foi salientado por quem viu de fora. Por mais que a gente racionalize e teorize sobre isso, é interessante quando escutamos de alguém, me serve mais! Quando alguém que vem de fora, que não viu tudo o fizemos, não viu essa parte de treinamento, e diz “gostei do espetáculo de vocês porque tem limpeza de movimentos, os movimentos têm início, meio e fim, que não é o que eu assisto na maioria das vezes, gostei da energia que vocês colocam, as linhas que aparecem, as oposições”…, nossa!, parece que o cara estava junto comigo quando eu estava fazendo a aula! Então isso é que é interessante porque a gente não tentou fazer um trabalho como resultado da técnica do Lecoq. Não, a técnica foi introduzida dentro do organismo e apareceu!(BRASIL, 2012)36

36 Ator da Cia.Oigalê Paulo Brasil. Entrevista concedida em junho/2012.

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Fig.10 - Espetáculo “Miséria servidor de dois estancieiros” da Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais, 2008. Em cena os atores Mariana Höeler, Bruna Espinosa e Paulo Brasil.

Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)

A eclosão é um movimento que se abre a partir do centro do corpo,

considerado o ponto abaixo do umbigo. Está associado à ideia de que diferentes

manifestações da natureza possuem o mecanismo de abrir e fechar como, por

exemplo, as flores desabrochando, a luz do dia que clareia e depois volta ao escuro, as

idades do ser humano, as batidas do coração, o piscar dos olhos, para citar algumas.

Inicia-se agachado no chão, procurando ficar do menor tamanho possível para então

abrir-se e levantar simultaneamente até terminar ereto, com as pernas alongadas e os

braços estendidos para cima, semelhante ao final dos exercícios de ginástica olímpica,

porém mantendo-os dentro do seu campo de visão. O importante é mover-se de

maneira constante, com todo o corpo seguindo o mesmo ritmo, sem que nenhuma

parte preceda a outra. A dificuldade é encontrar o equilíbrio e a fluência do

movimento, de forma que o momento em que os dedos da mão estiverem chegando ao

seu máximo de altura seja o mesmo em que os calcanhares estarão tocando o solo e os

joelhos sendo alongados. A eclosão converge uma sensação global de expansão e de

contração, é um exercício de concentração, calma e equilíbrio. Abaixo, os desenhos

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esquemáticos de Lecoq demonstram o momento inicial (braços abertos de pé) e o

final (agachado com os braços fechando o corpo). Fig.11 – Éclosion

Fonte: Lecoq, 1987. No travelling (foto abaixo) é enfocado, principalmente, a atenção na separação

de um movimento de outro, desenvolvendo assim o caráter de economia e de limpeza

do gesto. Onde ele inicia e onde termina. Quando termina, nem o cabelo pode sacudir,

costumo brincar. A sequência, que consta de apenas três movimentos, segue a

seguinte lógica: você vê, vai em direção à(?), gira o tronco. Serve para trabalhar a

organização e a decupagem do movimento, a consciência corporal, o controle e a

percepção do momento que antecede qualquer ação: o ponto inicial, o trajeto e o

ponto final. Essa prática contribui para suprimir braços que ficam balançando em cena

sem ter porquê, pés que não param em um mesmo lugar, mãos que não sabem o que

fazer. Economia do movimento, só o que for necessário, dentro da ideia de “menos é

mais”, defendida por Copeau. Fig.12 – Atriz Heloise Vidor - Preparação corporal de “Uma Lady MacBeth” - Florianópolis, 2010.

Fonte: Arquivo pessoal

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A atriz de “Uma Lady Macbeth37” compartilha sua experiência com essa

prática, salientando que sua formação, apesar de ter experimentado diferentes técnicas

corporais, não foi muito pautada pelo trabalho físico, tendo sido “mais

stanislavskiana, partindo normalmente de um texto e criando corpo e ações para a

personagem”. Ela pondera que são caminhos diferentes, sem juízo de valor, mas sua

escolha pode, por vezes, incorrer numa certa falta de precisão corporal, como o hábito

de ficar movendo-se como um pêndulo, indo de uma perna para outra, ou a utilização

de gestos cotidianos, reduzidos apenas às mãos, por exemplo. Para ela, “a limpeza que

aquelas sequências propiciam está relacionada ao momento quando você vai compor,

você pode até fazer um gesto “macarrônico”, mas aquilo torna-se precisamente uma

escolha e não uma falta de escolha – o trabalho com essas sequências, portanto,

mostram-se como um caminho interessante para alcançar limpeza e precisão”.

Outro dos movimentos que costumo usar é la brasse, para a coordenação dos

braços, o uso da gravidade, do peso real do corpo, do ritmo, tanto o deixar cair como

o élan acima, o alcance máximo antes da queda. O exercício auxilia também para

relaxar a parte superior do tronco, braços, ombros e nuca, onde geralmente

concentramos muita tensão, além de abrir o plexo solar, disponibilizando de forma

sutil a parte afetiva para o trabalho. A dificuldade encontrada por muitos em relação à

coordenação desses movimentos auxilia na quebra de padrões mentais, quando a

pessoa deve permitir que o corpo encontre o caminho do movimento por si e menos

pela indução mental, pois, aparentemente, quando se tenta compreender esse

movimento ele torna-se ainda mais descoordenado.

O massue (a clava) consiste em quatro movimentos indicados da seguinte

maneira: inicio na posição do samurai. Vejo uma clava na minha diagonal média.

Desloco-me em sua direção. Eu pego. Golpeio com ela em um determinado ponto do

espaço. Em seguida, vejo outra clava na diagonal, na outra direção. Desloco-me em

sua direção, porém sem largar a primeira clava, que fica fixa naquele lugar, um ponto

fixo no espaço. Eu pego esta nova, olho para a anterior, largo, volto a olhar para a que

acabo de pegar, golpeio em um lugar do espaço e ali fixo o ponto outra vez. Assim

recomeço a próxima sequência38. O movimento de pegar com a mão implica em

37 Heloise Vidor. Entrevista realizada em 26/10/12 em Florianópolis.

38 No original, em francês: Je vois, j’y vais vers, je prends, je frape, je vois an autre, j’y vais vers mais sans lacher le premier que est point fixe. Je prends l’autre. Je frape.

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quatro movimentos: eu mostro a palma da mão, eu a relaxo ligeiramente, mostro

novamente e então pego o objeto (imaginário). Essa prática vai tornando-se mais

fluida e as mãos passam a ter uma qualidade diferente da cotidiana, na qual pego

rapidamente (algo?) sem nem mesmo me dar conta do movimento ali implícito.

Essa prática visa também à precisão, à economia, ao desenho do gesto, à

concentração, à atenção. São todos exercícios que requerem um rigor total para que

surtam efeito, para que o aluno-ator compreenda que não é de qualquer maneira que

se pode fazer aquilo, como não o é entrar em cena. Princípios que vão sendo

internalizados e expandidos para outros momentos.

No estágio de verão da Escola de Lecoq que fiz como aluna, a professora

Paola39 trabalhou os seguintes movimentos: o travelling, la brasse, le bâton e

éclosion. Após a parte técnica, experimentamos variações de ritmos e de

transposições, como, por exemplo, um maestro regendo uma orquestra que iniciava de

maneira mais convencional e aos poucos ia aumentando o gesto e entrando na

dinâmica de labrasse. Trabalhamos também com a manipulação do bastão

imaginário, lebâton, com enfoque no ponto fixo e na manipulação. A manipulação,

nesse contexto, é um trabalho técnico proveniente da mímica que implica uma

sequência de cinco movimentos com a mão que servem para a manipulação de

objetos, assim como para movimentos expressivos das mãos: inicia-se com a mão

relaxada, mostra-se a palma, pega-se algo imaginário, mostra-se de novo a palma,

relaxa-se a mão. Quando já estávamos com algum domínio sobre esse movimento e

sua dinâmica, passamos a aumentá-lo e diminuí-lo de maneira que outras ideias iam

surgindo sobre o que poderia estar acontecendo.

Além de ser aplicada para o gesto, essa técnica é utilizada para a cena,

possibilitando a transposição dessa linguagem para outras mais realistas, por exemplo.

Experimentamos o mesmo tipo de manipulação com um pequeno carrinho imaginário,

procurando detalhar a maneira de abrir sua minúscula porta e seu porta-malas, assim

39 Paola Rizza. Nascida em 1961, em Milão (Itália), já fazia teatro quando decidiu mudar-se para Paris para fazer escola, de 1983-1985. Estudou também com Philippe Gaulier, Monika Pagneux, Alain e Gautré Guy Freixe. Fundou duas companhias com Christian Lucas: uma focada no burlesco, Felix Culpa, e a Companhia Caza House, focada no teatro de marionetes e no teatro visual. Paralelamente à sua carreira como atriz, continua a investigação sobre marionetes e objetos. A pedagogia a leva, depois, a trabalhar com vários grupos e com o circo (ENACR e CNAC) e, gradualmente, como diretora de espetáculos. Depois de um curso de verão na Escola em 1995, Jacques Lecoq convidou-a a integrar a equipe de professores.

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como o deslocamento desse objeto, sem, entretanto, abandonar o resto do corpo pelo

fato de estar com o foco nas mãos. Passamos para a manipulação de uma caixinha de

fósforos, também imaginária: abrir, tirar o fósforo, fechar, acender. Um outro

exercício executado com o mesmo objetivo foi o de segurar algo bem pequeno, passar

cuidadosamente para um colega, e receber também algo de alguém. Por último,

fizemos uma improvisação, trabalhando o ponto fixo como sendo uma barra de

segurança do metrô na qual três pessoas seguram-se ao mesmo tempo: o que pode

acontecer ali? Um roubo da carteira? Uma briga por espaço? Surgiram situações

cômicas, inusitadas, absurdas. Em todos esses exemplos de partir de um exercício

técnico e transpor para uma situação cênica, identifico a ideia de imaginação como

músculo que, inicia com uma ação e torna-se outra coisa, num claro mecanismo de

associação de ideias.

Esse é o encaminhamento que normalmente acontece: depois de trabalhados

os movimentos básicos, passa-se aos tratamentos para esses exercícios, tal sejam,

variações para explorar diferentes adaptações do movimento, no intuito de expandir o

seu campo expressivo. Os rudimentos técnicos empregados são: expansão e redução,

equilíbrio e respiração, desequilíbrio e progressão, os quais são aplicados a todos os

outros movimentos e ações físicas. Uma vez conhecidos, portanto, são rearranjados

por meio da experimentação com diferentes ritmos e intenções, passando de uma

técnica corporal à expressão dramática através do método de transferência, onde se

modificam diferentes aspectos para mudar o significado da sequência. Através do

método evolutivo, que vai do mais simples ao mais complexo, são trabalhados

aspectos como expansão e redução de gestos, conexão de gesto e voz, escalas e níveis

de jogo, restrições e dificuldades impostas usadas como provocações de outros

estados e possibilidades.

O método das transferências, para Lecoq aponta duas possibilidades

principais, como o próprio mestre descreve:

Se faço um movimento de lançamento do disco, por exemplo, eu posso lhe transferir a um estado interior; empurrar alguém para fazê-lo cair não é somente um ato físico, posso empurrá-lo para fazê-lo cair, mas posso lhe empurrar para que saia do seu lugar também. Numa sociedade onde a hierarquia é tão forte, podemos lhe empurrar para tomar o poder. Então sempre há esse lado da transferência, uma coisa é análoga a outra, e tudo é relativo à gravidade. É interessante como o corpo humano retém tudo isto! Há também a transferência das coisas da natureza: se eu pego uma matéria, o óleo, e o deixo derramar no chão, esse movimento me produz uma

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sensação interna, eu tombo e escorrego no chão, me alongo, e digo “desculpa”, ou “obrigada”, ou qualquer outra coisa, mas eu me diminuo diante dos outros, é terrível. Agora, quando algo se diminui, há qualquer coisa que aumenta, se eleva, e tome cuidado, esse que vai se elevar pode se aproveitar disso! (LECOQ no vídeo de ROY e CARASSO, 1999).

O método das transferências consiste em apoiar-se nas dinâmicas dos

elementos da natureza para melhor jogar o ser humano, visando à transposição teatral.

Pode-se partir de algum objeto para humanizá-lo aos poucos ou, ao contrário,

adicionar traços de determinado elemento ao ser humano. Para humanizar, por

exemplo, pode-se partir de um determinado animal ou de um elemento como o fogo e

imprimir neles comportamentos humanos, como falar ou relacionar-se com outros. Na

outra possibilidade de transposição, uma personagem humana pode passar a

demonstrar traços de algum animal ou elemento, como, por exemplo, uma pessoa que

escova os dentes e seu movimento vai se tornando mais rápido, com gestos curtos,

aparecendo o modo como um rato limpa seus bigodes, o que lhe imprime uma

qualidade de neurose ou obsessão; para um bêbado, pode utilizar-se a consistência da

gelatina, o deslocamento do siri, e assim por diante.

As transferências estão diretamente relacionadas à imaginação, à passagem do

real para o imaginário. A imaginação na pedagogia de Lecoq é trabalhada em duas

vias principais, portanto, através desses movimentos codificados e das improvisações,

como mencionamos anteriormente. Voltarei a esse ponto no capítulo 4, quando

abordo a questão da improvisação. Antes, porém, consideremos alguns pontos sobre o

treinamento com gestos codificados.

4.2 TREINAMENTO

A palavra treinamento geralmente vem carregada de um sentido de

adestramento, de submissão a uma aprendizagem e de educação pela repetição,

principalmente. Usada indiscriminadamente no campo artístico, esportivo, militar ou

ainda para animais, suscita a ideia de processo de desenvolvimento de vigor corporal

e resistência através de exercícios sistematizados. Féral (2000) aponta para a

diferença entre os termos ‘treinamento’ e training, palavras que geraram controvérsias

especialmente no final do século passado, dada sua utilização em inglês. Segundo a

autora, o termo training, em inglês, quando aplicado ao teatro, designa tanto o ensino

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ministrado nas escolas de formação, cursos, estágios e oficinas, como exercícios que

antecedem uma produção específica, e ainda como o treinamento efetuado por atores

como aprimoramento de sua arte sem que visem a uma produção específica. Dessa

forma, training tornou-se um termo genérico que abarca três finalidades diferentes da

prática corporal: formação, produção e desenvolvimento do trabalho do ator.

Conforme Féral, na França o termo training, aplicado ao teatro, teria surgido

mais tarde, com as publicações de Eugênio Barba nos anos 1982 a 1985, tendo sido

antes sempre referido com a palavra ‘treinamento’. A partir dali, tornou-se comum a

utilização do termo training para designar treinamento. No Brasil, no entanto,

incorporamos o termo treinamento desde essa mesma época, que também coincidiu

com a passagem de Barba por nosso país. Entretanto, a controvérsia se dá muito mais

em relação à utilização de treinamentos em si do que à palavra que o designa. Parece

haver uma relação quase unívoca entre treinamento e Antropologia Teatral, quando,

na verdade, o que nos interessa é aquilo que as práticas sistematizadas podem aportar

ao trabalho do ator. Como bem esclarece Féral, nesse mesmo texto, é a mudança na

prática atoral em si que reside a questão, mesmo que ela tenha coincidido com a

evolução das palavras.

A evolução nas práticas acompanharam uma mudança ideológica, revelando

uma nova concepção do que deve ser o treinamento para abarcar a crescente

importância que a figura do ator conquistou. Com o corpo tomando o centro da cena,

uma nova pedagogia se instalou, visando não somente à preparação física dos atores

ou ao acréscimo de competências, mas a “uma educação completa que desenvolveria

harmoniosamente o seu corpo, o seu espírito e o seu caráter de homens”, como

afirmava Copeau (1974, p.134), além de um certo despojamento do ator. De

Stanislavski a Grotowski, passando por Meyerhold, Vakhtangov, Tairov, por um lado,

mas também por Jaques-Dalcroze, Appia, Craig, Reinhardt, Copeau, Dullin, Jouvet,

Decroux, Lecoq, por outro, o século XX foi marcado por novas pedagogias do

trabalho do ator. Todos buscavam desenvolver sistemas para promover um estado de

criatividade ao ator em cena, ainda que cada um tenha formulado exercícios, técnicas

e métodos bastante diversos uns dos outros.

Herdeiro de Copeau em vários aspectos de sua pedagogia, como vimos

anteriormente, Lecoq não utiliza a noção de treinamento, preferindo chamar tal

atividade de preparação corporal. Ainda assim, identifico características de

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treinamento em sua pedagogia, uma vez que ela reitera certos preceitos apontados por

Féral que o caracterizam. Conforme a autora, no decorrer dos textos desses teatristas

foram reiterados alguns dos princípios fundamentais de um treinamento que

envolvem, principalmente, o contato direto com um mestre, a compreensão de que a

técnica não é tudo, o tempo para a descoberta de si e para a assimilação do

conhecimento ali presente, a prática precisa dos exercícios e a individualização do

aprendizado. Vejamos a pedagogia de Lecoq à luz dessas características.

Em sua Escola, o contato acontecia diretamente com o mestre40, que não só

aplicava exercícios sistemáticos, mas, aos poucos, passava por meio de seus

comentários e críticas ao que era sendo feito, toda a sua visão de teatro e arte. O

contato direto com ele, em minha experiência pessoal, foi um marco tanto profissional

como pessoal, pela clareza das análises que realizava após cada exercício, pela

maneira franca e direta com que tratava os alunos, com a paixão que tinha por aquilo

que fazia, visível em seu olhar e na empolgação ao falar da natureza, da poesia, das

artes. Um olhar apurado para o movimento, para a cena, para o ator. Nas aulas de

grande grupo ele circulava e ia detectando momentos interessantes em alguns alunos,

por vezes chamava todos para verem, e assim íamos compreendendo o que estávamos

buscando, caminhos possíveis. Os depoimentos a seguir de Ariane Mnoushkine e de

Philippe Avron vêm ao encontro dessa mesma percepção:

Quando fiz a escola ela já tinha grande reputação. Sabíamos que na escola não iríamos somente dizer textos, somente desenhar preto sobre o branco, mas que havia o trabalho com as máscaras, com a commediadell’arte – o teatro como eu havia visto no oriente. Fui até ele procurando um professor, mas Jacques Lecoq é mais que um professor, é um mestre. É o corpo que escuta, é o corpo que sofre, que se submete antes de agir. São as leis universais do Teatro. Elas existem, Jacques não as inventou, elas existem muito antes da nossa existência. Mas há poucas pessoas que te relembram sobre elas, e ele foi uma dessas pessoas, ele sabe nos mostrar: ‘ou vocês as obedecem e fazem teatro, ou vocês as ignoram e não querem lhes indicar, e fazem “literatura com figurinos” na melhor das hipóteses’ ele dizia.(Ariane Minoushkine apud ROY e CARASSO, 1999)

No mesmo vídeo, Avron também refere-se a ele como mestre, afirmando que,

no trabalho de ator, “não sabemos como fazer, e precisamos que alguém nos ajude,

nos acolha. As vezes é o diretor que nos ajuda, alguém que nos dê a permissão, e ele

40 Após seu falecimento, em 1999, a escola seguiu funcionando até 2012 sob a liderança de sua esposa Fay Lecoq e de seu filho François Lecoq, além de professores convidados. Com o recente falecimento da sra.Lecoq a escola deve seguir sob a liderança de seu filho.

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nos dá a permissão”. Carasso (apud FÉRAL, 2003, p.182) afirma que, pelo menos

para um grande numero de alunos, Lecoq foi um mestre. Não que ele se designasse

como tal, mas porque os próprios alunos, com o tempo, assim o consideravam. O

autor sustenta que a dimensão de seu ensino se manifesta pela atitude muito particular

que ele adotava frente aos alunos, por vezes bem próximo a eles e por outras com uma

enorme distância, com a capacidade de ser firme quanto às exigências universais do

teatro e ao mesmo tempo flexível quanto à personalidade dos próprios alunos.

Quanto à compreensão de que a técnica não é tudo, Lecoq costumava incitar

seus alunos à observação da vida cotidiana e das manifestações da natureza. Modelos

em constante mutação, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração. Além

disso, insistia na noção de que é somente passado pelo menos cinco anos da

experiência do aluno em sua escola que ele pode realmente avaliar tudo o que ali

aprendeu. Da minha parte, confirmo essa afirmação, pois quando escrevi minha

dissertação de mestrado, dez anos após minha saída da Escola, pude perceber a

profundidade filosófica que embasa essa prática, que até então só percebera através do

trabalho prático, mas que, no momento de aprofundar os conceitos ali subjacentes, foi

como refazer a viagem da qual ele sempre falava.

Da mesma maneira, acreditava na necessidade de uma prática de longa

duração, que possibilitasse o aprofundamento necessário e a compreensão de seus

fundamentos. Ao final do primeiro ano da Escola, cada aluno passava por uma

entrevista individual com Lecoq na qual ele tecia comentários sobre seu

aproveitamento e condições para ingressar ou não no segundo ano. Por ocasião da

minha entrevista, o mestre convidou-me para o segundo ano, o que me deixou

bastante honrada. Entretanto, quando mencionei minha dificuldade financeira naquela

época, que me fazia pensar em fazer o L.E.M.41 ao invés do segundo ano, por ser mais

acessível, Lecoq ficou agitado – até mesmo zangado – , e argumentou que sim, eu

poderia fazer quantos cursos quisesse, que se constituía em um tipo de experiência de

valor, porém, se eu realmente quisesse assumir minha carreira artística como atriz, era

necessário aprofundar um caminho, pelo menos, ao qual os outros viriam ‘colorir’

depois. Por, desaconselhou-me a escolha pelo outro curso, ainda que fosse dentro de

41 L.E.M. – Laboratoire d’Études des Mouvements – curso que faz parte de sua Escola, porém dedicado a construções de estruturas mais ligadas a cenários e composições visuais da cena.

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sua própria escola, uma vez que acreditava na necessidade da continuidade do

aprendizado, na duração.

Uma outra característica do treinamento apontada por Féral refere-se à prática

justa dos exercícios. Os Vinte Movimentos, aqui em questão, enfatizam justamente

esse primeiro momento da aprendizagem no qual o ator deve tentar executar e

dominar perfeitamente os exercícios. Com finalidades próprias, como mencionamos,

os exercícios são voltados principalmente para o trabalho sobre o equilíbrio, a

respiração, a concentração, a flexibilidade, etc., capacitando o ator para a fase

seguinte, na qual ele deverá utilizar-se dessas técnicas modelando-as, modulando-as,

controlando-as, para improvisar e criar de maneira personalizada. Tal como

Grotowski, Barba, Meyerhold, Decroux, entre outros, Lecoq seguia esse método de

formação em sua escola, cada qual com suas escolhas atreladas aos diferentes gêneros

de representação teatral por eles privilegiados. O exercício de “entrar” numa outra

forma, ou ainda, de adquirir uma forma já existente, copiada e repetida conforme

outrem, tem seu valor na disciplina que aporta ao corpo, fazendo-o obedecer àquilo

que lhe impomos, que mais tarde deverá capacitar-lhe para movimentações que

somente por sua experiência própria e cotidiana talvez não alcançasse.

Fazia tempo que eu não fazia nada tão codificado, como o Samurai e a Mesa, por exemplo. Esse desafio para mim é muito bom! Treinar o corpo com uma coisa diferente daquilo que estou acostumado faz muita falta. Inclusive na faculdade, acho que não tem ninguém que trabalhe assim, codificado, no trabalho de corpo. Eu sentia muita falta de fazer um treinamento assim desde quando eu fiz com Tatiana Cardoso, em Porto Alegre, baseado na Antropologia teatral de Barba, acho isso muito importante... como sair de seu corpo e entrar num outro... (SPILHERE, 2012)42

O valor da repetição de movimentos codificados está no possibilitar que o ator

se exponha a outras maneiras de fazer diferentes do que ele faria ou do que ele já sabe

fazer, de aprender a aprender, de abrir-se àquilo que é diferente de si. É o lado

positivo do “adestramento”43, é um desafio que a própria pessoa se impõe e que vai

42 Marlon Spilhere, Ator e performer, aluno na oficina realizada no FITUB em Blumenau, 2012. 43 Essas questões de treinamento, de disciplina, de discurso do corpo, poder e condicionamento, nos remete aos estudos à luz de Foucault. Para ele, o conceito de disciplina é considerado como uma técnica de poder sobre o corpo, intimamente ligada à questão do poder. Nesse sentido, o treinamento também apresenta formas concretas e sistemas de práticas corporais que fornecem ferramentas de dominação do corpo. A descrição de ideal do corpo do soldado, como descreve Foucault (1975), aproxima-se de um certo ideal de corpo que se pode encontrar na expectativa dos corpos tanto na dança como no teatro. Entretanto, optamos em não aprofundar os estudos nessa direção no presente estudo.

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alargar não só sua capacidade física com a aquisição desses princípios, mas também

sua confiança e conhecimento. É um sair de si em direção a um outro corpo e outra

forma, quebrar padrões. Nesse sentido, parece uma experiência rica, pois pode ser

expandida para a questão da alteridade implícita na relação entre ator e personagem,

no quanto ele é capaz de afastar-se de si e chegar à personagem.

Além desses aspectos, a repetição relaciona-se, em Lecoq, à herança dos

esportes, inegável referência em sua prática. O mestre entendia o ato teatral como

semelhante ao ato esportivo, que é intencional, tem um objetivo específico, é

praticado aqui e agora individual ou coletivamente, e implica rigor, disciplina,

precisão, tenacidade, concentração, foco. Enquanto Copeau provém do universo

literário, Lecoq provém do esportivo. Desde jovem interessava-se por movimento,

sendo atraído por todos os tipos de esporte, tornando-se atleta. Através daquela

prática, segundo ele, percebeu a geometria dos movimentos e a projeção do corpo no

espaço, sensações que procurava estender à vida cotidiana, procurando estabelecer o

que chamava de “poesia do esporte” em tudo o que o rodeava.

O aspecto disciplinar desse treinamento pode servir como um apoio para o

ator que trabalha sozinho, como podemos constatar neste relato desta atriz durante a

preparação de seu trabalho solo:

Nunca tinha feito um trabalho solo. Então, como nós tínhamos trabalhado sempre juntas o início com aquela prática, sempre que estava sozinha, sem ninguém da direção ou da preparação, eu fazia aquela prática, e parece que aquilo me ajudava a entrar no trabalho. Então, acho que criou-se um ritual de preparação e de entrada para o campo de criação. Depois, eu sempre usava como aquecimento aquelas sequências antes das apresentações, como uma maneira de rápido acessar a tudo o que tinha sido feito na etapa de preparação. Funciona um pouco assim com o filme do Al Pacino também, quando fico um tempo sem me apresentar, eu assisto ao filme e aquele universo volta, então são alguns recursos que a gente tem quando não se apresenta em sequência, que é o que acontece comigo nesse trabalho. (VIDOR, 2011)

A repetição e sistematização dessa prática serve também como uma espécie de

diagnóstico do trabalho do ator com os quais se está lidando. Além de suas aptidões

corporais pode-se constatar outros aspectos relacionados à disponibilidade, à

capacidade de concentração e de observação, que contribuem para o professor ou

diretor escolher exercícios e propostas que se ajustem mais a tal ou qual ator.

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Também para o preparador de elencos esse “diagnóstico” torna-se útil. Uma vez

detectados os objetivos específicos a serem atingidos para aquele espetáculo, é

necessário encontrar maneiras de ajudar o ator a encontrar ou a desbloquear caminhos

o mais rápido possível, pois normalmente trata-se de processos curtos e intensivos.

Um exemplo disso pode-se verificar no relato desta atriz que cursou a Escola no

início dos anos 80, em sua experiência como professora que apresento abaixo.

Quando questionada sobre o que mais utilizava da pedagogia de Lecoq, declarou que

costuma iniciar com o trabalho sobre os Vinte Movimentos:

O trabalho dos Vinte Movimentos cria uma linguagem básica e comum porque, se você não faz, quando chega na máscara, não tem como exigir a limpeza do movimento, e quando chega na máscara neutra não tem o equilíbrio. É também uma maneira de irmos nos conhecendo e ampliando os limites. (...) Então os Vinte Movimentos criam uma linguagem comum, uma maneira de começar a “trocar as figurinhas” com os alunos e, ao mesmo tempo, vejo o nível de conexão que eles têm com o próprio corpo. É muito fácil você fazer um diagnóstico preciso ensinando e vendo, desde que eles trabalhem sozinhos, (... ) e tem gente que não consegue ir adiante, que meses depois ainda não consegue fazer esse movimento de coordenação motora. Evidentemente, depois vemos que são limitações talvez de uma ordem mais grave, e também porque existem tantos tipos de atores diferentes que eu não posso também ser seletiva nesse sentido. Ele vai funcionar melhor talvez em um outro estilo de teatro, também não posso obrigar que todos tenham uma execução perfeita, embora empurre para isso e faça meus exames e observações, estou sempre trabalhando. (MALHEIROS apud SACHS, 2004, p.156)

Considerando todos os aspectos apontados acima, pode-se enquadrar a

pedagogia de Lecoq como treinamento, pelo menos em relação à prática dos Vinte

Movimentos dela constituinte. Ainda assim, é importante lembrar que sua pedagogia é

fruto de uma pesquisa constante, não foi algo que nasceu pronto, mas que foi sendo

construída ao longo do tempo embasada na experiência direta com os alunos. Assim

como outras metodologias de encenadores que podem hoje ser vistas erroneamente

como sistemas fechados que tenham sido criados independentemente do caráter

prático – como as de Stanislavski e de Meyerhold, por exemplo. Na verdade, é

importante reconhecê-las como organizações de práticas que foram alcançadas de

forma experimental, por meio de pesquisas, normalmente interrompidas somente com

o falecimento de seus proponentes. Assim também ocorreu com Lecoq, embora deva-

se levar em conta que vários aspectos confirmados de sua pedagogia já repetiam-se

praticamente da mesma maneira há vários anos,tais como certos exercícios e temas de

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improvisação, ou escolha das músicas com as quais trabalhar, que aparentemente

seguem as mesmas.

Como essa análise da contribuição da prática de Lecoq está sendo realizada na

segunda década do século XXI, não podemos ignorar certos parâmetros apontados

pelos estudos da teoria do teatro contemporâneo, dos quais destaco algumas noções

do teatro performativo a partir de Féral, dos estudos da performance de Schechner, e

do pós-dramático de Lehmann.

Questionado sobre o lugar do treinamento ou da prática sistematizada para o

ator no teatro pós-dramático e sobre como pensar a preparação do ator nesse contexto,

Lehmann (2010)44 declarou que o que importa, sobretudo, é a presença e o saber

artístico. Segundo o professor, é importante conhecer outras artes, ter uma formação

ampla que possibilite ao ator participar de diferentes linguagens, pois o ator treinado

em um único tipo de teatro acaba engessado no mesmo e depois não se encaixa em

outras formas de teatro. Além da técnica, convém que ele tenha uma formação em

outras artes, juntamente com tudo o que ele tenha lido, aprendido, vivido, sua

curiosidade em relação ao mundo que o rodeia, sua capacidade de esquecer-se de si

mesmo para estar no aqui no momento presente. Dependerá de sua escolha, ele deve

sempre perguntar-se para que tipo de teatro.

Já Féral (2010), quando interpelada sobre semelhante questão, reconhece a

dificuldade em instituir alguma maneira específica, já que não há mais teorias do jogo

dominantes, mas modelos tão diferentes como as diferentes práticas e estéticas dos

encenadores que se destacam. Interessada na problemática do ator contemporâneo,

Féral (2001) realizou uma série de entrevistas com diversos encenadores sobre a

formação que gostariam de encontrar nos atores, por meio das quais constatou que,

embora já tenha havido uma tendência ao trabalho com atores sem formação, os

diretores de hoje preferem trabalhar com aqueles que possuem uma boa formação e

conhecimento técnico. Richard Schechner (1934-), um dos entrevistados, declarou

que, considerando as diferentes teorias do Oriente ao Ocidente (passando pelos

principais encenadores), pode-se detectar um denominador comum: todas essas

teorias supõem um treinamento. Ele acredita que o ator deve aprender certas técnicas

44 Seminário apresentado na UDESC, Florianópolis,10/08/2010.

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básicas de jogo, deve ser capaz de dominar e dirigir o corpo e o espírito, de

reconhecer certos acontecimentos à sua volta e responder a eles.

Baseada nessas entrevistas, Féral (2001a) aponta algumas técnicas de base que

permitem ao ator estar presente, estar à escuta, andar, falar, projetar-se no espaço,

relacionar-se com os diferentes materiais da cena, arriscar-se, propor. A autora

destaca características que foram ressaltadas como as competências esperadas do ator,

tais como: desenvolver uma presença, sendo que para isso existem diversas e variadas

técnicas possíveis; transitar entre diversas linguagens e qualidades expressivas;

desenvolver autonomia de criação, considerando a questão da des-hierarquização;

agrupar as práticas que lhe interessam, que sente que lhe auxiliam; questionar, refletir,

falar sobre sua prática; ter o “como” e o “porquê” como norteadores; produzir

sentidos a partir, sobretudo, da relação que estabelece com os materiais de atuação,

modos de articulação e reinvenção dos códigos e convenções teatrais. Interessante

constatar a semelhança entre sua definição das competências desejáveis para o ator e

aquelas apontadas por Lehmann, que servem, portanto, como balizas para esse estudo,

constituindo os principais parâmetros que orientam minha visão sobre o trabalho do

ator.

A partir dessas considerações pergunta-se: como deve ser a formação desse

ator? Um ator jovem, iniciante, é capaz de reunir todas essas competências? Espera-se

dele algo inovador, não ilustrativo, competente, crível e com domínio corporal,

considerando corpo-voz-mente-espírito! Como é o processo de formação para a

atuação desse indivíduo? Será que há alguma escola ou curso universitário capaz de

prepará-lo para tarefa tão complexa? Certamente temos que levar em conta que a

formação de um artista nunca está completa, e que as escolas ou universidades serão

sempre um momento de passagem. Questões inquietantes, principalmente do ponto de

vista da professora e da pesquisadora. Como professora, pela preocupação em

dialogar com outras técnicas e colaborar com a formação de artistas que devem

estabelecer contato com seu momento histórico e social.

Ainda que a palavra treinamento remeta fortemente aos esportes com as ideias

de repetição, eficácia e habilidade, assim como adestrar, condicionar, domesticar,

podendo, desse modo, minimizar a dimensão expressiva, o valor dessas práticas ainda

parecem ter seu lugar assegurado no trabalho do ator. Nesse sentido, alinho-me a

esses autores mencionados acima, no que concerne à necessidade fundamental do ator

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em algum momento de sua trajetória experimentar um aprofundamento em algum

treinamento e que envolva noções básicas do jogo teatral. O objetivo do treinamento é

justamente o do desenvolvimento do ator no sentido de provê-lo com uma bagagem

que possa carregar consigo em outros trabalhos que venha a desenvolver. E essa

constatação me responde positivamente sobre a validade de Lecoq nos tempos atuais,

pois mesmo parecendo estar ligado a uma estética restrita, reafirma-se justamente por

meio desse estudo, a amplitude de sua proposta.

Ainda assim, devemos levar em conta que, como alertou o professor

Lehmann, essas práticas podem se tornar uma prisão para o ator, no sentido de ele não

conseguir fazer outra coisa depois, usando sempre uma mesma maneira de atuar. Por

mais que cada um dos sistemas de atuação se pretendam abertos, universais e

abrangentes, cada um acaba por construir um certo tipo de corpo e de modos de agir,

como um sistema de crenças. Além da observação desses padrões em diferentes

atores, a experiência com a prática lecoquiana também pode acarretar nisso, pois

embora fique claro durante o curso, assim como nos registros escritos de Lecoq, que

sua pedagogia visa a formar artistas para além de uma linguagem do gesto somente,

pode-se facilmente identificar modos de atuação oriundos diretamente dela. O

depoimento da colega do estágio de verão na Escola reflete essa questão:

O primeiro dia quando cheguei lá pensei, “oh, todos estão se movendo como no livro do Lecoq!” Me chamou atenção que havia um estilo que devia ser seguido, mas, quando experimentei, fui encontrando e entendendo que há muita verdade nesse movimento. Parece que há um estilo, mas agora, quando faço, faz todo o sentido! Eles desenvolvem esse entendimento. Não sei se há realmente esse ponto a alcançar, mas o desafio de procurar! Tem um caminho para o trabalho. Como, para mim, quero ter mais liberdade em criar sem fazer “qualquer coisa”, então isso é algo bem preciso para eu ter como objetivo, tentar tocar (o instrumento) através disso, através das cores. Me dou um jogo, como para jogar futebol. Importante ter uns limites do jogo, como jogar, e assim sei por onde ir. Se não, você não progride. (KIREGNTEIN, 2011)45

É um risco que o ator incorre, o de cristalizar a técnica e de não conseguir ir

além. De qualquer maneira, o que parece realmente importante conquistar é a

consciência da diferença do corpo cotidiano, que sempre expressa, porém com

gestuais comuns, clichês e sensos comuns corpóreos, como aponta Ferracini (2011).

45 Maja Von Kiregntein- Musicista natural da Alemanha. Colega no estágio de verão. Entrevista realizada em Paris, em 23/09/11.

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Concordo com o autor sobre o que queremos para a cena, que é o corpo aberto a

novas possibilidades, capaz de reconfigurar tempo, espaço e forma, cuja necessidade

justifica empreender um treinamento. Cada um vai configurar o seu corpo, individual

ou em grupo, ao longo de sua trajetória, escolhendo técnicas que melhor o capacite

para seu trabalho, que alargue seus limites, que o insira em um estado de criação.

Ferracini (2011) aponta dois pilares básicos como alicerces do treinamento

que se comunicam em rizoma: memória e vivência. Pautando-se em Bergson, afirma

que a memória acumula o passado e o presente, não somente enquanto lembranças

concretas, mas como “virtuais de memória que vão acumulando-se independentes de

nossa vontade, criando uma espécie de memória ontológica” – visão que ecoa os

pressupostos de Jousse. A atualização constante desses virtuais pode ser mecânica,

como a ação de dirigir um carro, por exemplo, ou sem o controle de nossa vontade,

como acontece quando sentimos um cheiro que nos remete a uma lembrança, como o

autor explica. Nesse sentido, ele afirma que a atualização é uma criação, que recria tal

passado no presente e que pode-se estender para a ideia de uma atualização da

memória corpórea para um fim estético. O ator deveria ser capaz de atualizar essa

memória de forma consciente na medida que fosse capaz de recriar o fluxo poético

dos movimentos aprendidos, adquiridos pela vivência proporcionada pelo

treinamento. O principal resultado deste tipo de trabalho dialoga com a abordagem de

Lecoq, quando considera que trata-se de traços que se inscrevem no corpo,

possibilitando às emoções dramáticas encontrarem um caminho para aflorarem,

construindo uma memória corporal.

Essa noção de memória que Ferracini propõe à luz de Bergson vem, portanto,

ao encontro da ideia de imaginação que proponho aqui, no sentido de que a

experimentação de movimentos a partir da observação da natureza serem

gradativamente registrados enquanto memória corporal, sempre passíveis de serem

alargadas com base em tais modelos que são infinitos. Aqui também pode-se

estabelecer relações com Jousse, em relação ao mecanismo do mimismo, da absorção

até as camadas mais profundas do corpo.

Não apenas a prática com os Vinte Movimentos, mas também as

improvisações com os elementos e as matérias podem ser tomadas como

possibilidades para essa atualização mecânica. Portanto, além de exercitar essas

características técnicas mencionadas, também atuarão como indutoras da imaginação

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123 

 

pelo mecanismo típico da mente humana, de associação de idéias. Através do método

das transferências, mencionado acima, procura-se dar outras significações às

sequências, utilizando recursos como a expansão e a redução dos movimentos, que

leva ainda a outras possibilidades de leituras. Como na demonstração de Lecoq e seus

alunos, no vídeo de Roy e Carasso (1999), a partir do movimento do passeur, por

exemplo, que procuram encontrar algo a dizer, associar a uma situação, transpor para

um mecanismo de ação e reação, questionar o que aqueles movimentos suscitam.

Nesse caso, pode-se identificar o mecanismo de distanciamento sugerido por Piwnica

anteriormente, que nesse caso referir-se-ia ao ator que afasta-se de si, de seu corpo

que executa algo, para outro universo, outra pessoa, outra situação, libertando-se do

mundo objetivo, por meio da imaginação.

Pelo mecanismo de associação de imagens, a atenção passa da observação de

seu próprio corpo para uma visão mais ampla, do em torno, da dinâmica do

movimento, de modo a permitir que as ideias surjam ou ainda, investindo-os com um

sentido, numa explícita tentativa de aliar o movimento físico à imaginação. “E como

imaginar, desconhecendo as leis fundamentais do imaginário?” Tomo a pergunta de

Bachelard (2001, p.232) como trampolim para abordar o universo da imaginação.

Para que se possa analisar os diferentes procedimentos que ali sucedem, voltemos à

questão da imaginação em si.

“A imaginação age como uma potência do corpo: sem imagens não haveria

imaginação” (PIWNIKA, 2010, p.14). Sendo assim, reiteramos a importância do

treinamento que implique um alargamento das imagens com as quais os ator, o diretor

e os artistas possam trabalhar. Para o ator, em especial, o treinamento de Lecoq é

relevante por ser uma via a partir do corpo, é um modo de iniciar a construção de

personagens e das cenas. Não é tudo para a construção de um personagem, porque

tem também a construção da cena, a dinâmica da cena, o ritmo, os desenhos que ela

compõe, mas....é... realmente uma maneira de treinar a imaginação!

O jogo se ensina? Sim, se ensina. Há a tendência natural do ser humano de jogar

– homo ludens –, assim como de outros animais. Porém, há o ensinar, o oportunizar, o

criar meios, o aprender maneiras alternativas de jogar, de brincar, de se mover. Com

os esportes, aprendemos maneiras definidas de golpear, assumindo uma série de

regras do jogo, como se faz um golpe de karatê, um jogo de tênis, um duelo de

esgrima, um jogo de basquete, de vôlei e assim por diante. E a imaginação se ensina?

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124 

 

Para o ator, pode-se ensinar outras maneiras de se mover, de gesticular, a partir de sua

observação do mundo, pode-se, portanto, estimulá-lo a essa observação, ensiná-lo a

observar e pode-se ensiná-lo a mover-se tal qual, a imitar, a organizar seu corpo de

forma que lhe dê maior controle sobre seu instrumento de trabalho – ele mesmo.

Portanto, sim, se pode ensinar.

Lecoq admirava as ideias de Bachelard sobre a imaginação, que utilizava não só

como embasamento filosófico de seu pensamento, mas, por vezes, usava diretamente

nas aulas, lendo trechos de sua obra, como o que exponho a seguir.

Poderíamos dizer que o vento furioso é o símbolo da cólera pura, da cólera sem objeto, sem pretexto. Os grandes escritores da tempestade (...) amaram esse aspecto: a tempestade sem preparação, a tragédia física sem causa. Pouco a pouco o clichê desgastou a imagem: fala-se da fúria dos elementos sem viver-lhe a energia elementar. A floresta e o mar agitados pela tempestade sobrecarregam, às vezes, a grande imagem dinâmica simples do furacão. Com o ar violento poderemos compreender a fúria elementar, aquela que é só movimento. Encontraremos aí importantíssimas imagens em que se unem vontade e imaginação. [...] Ao viver intimamente as imagens do furacão, aprendemos o que é a vontade furiosa e vã. O vento, em seu excesso, é a cólera que está em toda parte e em nenhum lugar, que nasce e renasce de si mesma, que gira e se volta sobre si mesma. O vento ameaça e uiva, mas só toma forma quando encontra a poeira: visível, torna-se miséria. Ele não exerce todo seu poder sobre a imaginação senão numa participação essencialmente dinâmica; as imagens figuradas fariam dele antes um aspecto irrisório. (BACHELARD, 2001, p.232)

A prática de Lecoq envolve uma parte de treinamento na qual trabalha-se com

os Vinte Movimentos, como vimos acima, e outra mais aberta e lúdica através da

improvisação, que veremos mais adiante no capítulo 4. Considero essas duas

instâncias fundamentais no trabalho de formação do ator, que podem ser abordadas

por diferentes metodologias, mas que sempre devem buscar essas mesmas

capacidades apontadas por Féral anteriormente. Ressalto ainda, entretanto, que essas

capacidades do artista habitam o mundo da imaginação, e, portanto, alimentam-se

dela num vai e vem difícil de apanhar, dada sua natureza fugidia, abstrata e ao mesmo

tempo fundamental do ser humano em seus sistemas mais básicos de representação.

Para que o ator seja capaz de dominar e dirigir o corpo e o espírito, arriscar-se,

propor, etc., ele deve exercitar sua imaginação que, assim como os músculos do

corpo, é o veículo que conduz a criação.

Uma das perguntas que buscava responder com esta pesquisa é justamente

sobre a formação do ator nos dias de hoje e como a pedagogia de Lecoq pode

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contribuir, em vista de certos parâmetros do teatro contemporâneo. Seguimos,

portanto, com o aquecimento metafórico, através da exposição de questões

controversas que vêm animar a discussão.

4.3 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS

No intuito de situar o trabalho de ator enfocado nessa pesquisa, apresento aqui

alguns pontos de vista a partir de estudos da teoria do teatro contemporâneo. Sendo

assim, teço algumas considerações sobre controvérsias que concernem à classificação

do trabalho dos egressos da Escola de Lecoq enquanto teatro físico ou mímica, ou

ainda ‘Teatro Total’, ocorridas principalmente na Inglaterra dos anos 80, onde

mostrava-se como forte tendência de contraposição ao teatro convencional.

Considerando que estamos na segunda década do século XXI, busco aproximar-me

do momento mais atual do teatro contemporâneo, questionando o status do trabalho

do ator de teatro nesse contexto, discutindo a influência da performance e suas

consequências na prática atoral.

4.3.1 Teatro Total

Alguns esclarecimentos sobre a classificação enquanto gênero teatral em que

se insere comumente a prática de Lecoq me pareceram necessários. Seu trabalho está

associado normalmente ao teatro físico, ao teatro do gesto, à mímica. Entretanto, o

que deve-se considerar, sobretudo, é que trata-se de um tipo de teatro que não

pressupõe um texto ou uma personagem como pontos de partida, embora não os

exclua. O foco do trabalho é o de disponibilizar o corpo para a criação, que tende a ser

de autoria própria ou do grupo de forma compartilhada. Compactuo com

Chamberlain46 (MURRAY, 2007) para analisarmos os percursos trilhados em busca

46 Franc Chamberlain leciona Drama and Theatre Studies na Universidade College Cork, na Irlanda e é professor visitante de Performance Studies and Creative Practice na Universidade de Northampton, Inglaterra. Está editando o Decroux Companion com Thomas Leabhart e trabalhando em uma nova edição do livro de Craig On the Art of the Theatre. (Murray, 2007, p. xvi) Foi coordenador do Mime Festival Workshop in Londres nos anos 80.

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da definição de uma terminologia capaz de definir tal teatro, por muitos denominado

‘teatro físico’. Embora esse autor refira-se à realidade da Inglaterra, onde esse termo

foi muito discutido para ser aceito pelo conselho de artes que regulamenta o teatro

naquele país (ArtsCouncil).

Baseado em Callery (2001), Chamberlain procura isolar alguns traços-chave

desse teatro, tais como: a importância do ator como criador, mais do que como

intérprete; processos colaborativos e somáticos; a relação aberta entre palco e

espectador. Segundo ele, em meados de 1985 parecia claro o que era teatro físico, e

ele cita vários grupos que se enquadravam nesse guarda-chuva, como o Théâtre de

Complicité, o Footsbarn, Dario Fo, Théâtre du Mouvement e até mesmo Steven

Berkoff – todos ex-alunos de Lecoq. Costumava associar mímica e teatro físico à

virtuose física, enquanto a questão central estava, de fato, na fisicalidade da

experiência. Ele pondera que o teatro físico tornara-se uma maneira de delimitar um

lugar para a mímica nos anos 80, separando-a tanto da dança como da redução

somente ao trabalho de Marcel Marceau (1923-2007). Segundo o autor, a presença do

crescente número de graduados de Lecoq, na Inglaterra, ainda vistos como mímicos e

não como atores, foi um fator importante nesse movimento encontrar um termo para

denominar o teatro que faziam.

Havia também uma certa ideia de que os trabalhos provindos de práticas de

Barba e de Grotowski pertenciam a uma tradição de “teatro de diretor” ao invés de um

agrupamento de performers criadores, de um teatro dirigido por atores. Até hoje ainda

considero válida a diferenciação, que Chamberlain comenta que havia naquela época,

a qual entende que grupos de atores criadores podem trabalhar com um diretor, ainda

que trate-se de diferentes relações entre, por exemplo, Barba e o Odin Teater e

McBurney e o Théâtre de La Complicité. Barba mantém-se no papel de diretor,

enquanto McBurney desloca-se entre os papéis de ator e de diretor. Volto a comentar

essa questão de direção e de modo colaborativo de trabalho no capítulo 5 sobre

criação.

Chamberlain (MURRAY, 2007, p.119) relata que, em 1991, a Federação

Europeia de Mímica designou um grupo de trabalho para examinar questões de

transversalidade nessas práticas. O relato desse grupo sugeriu que ‘gesto’ poderia ser

o elemento transversal que conectaria novos desenvolvimentos no teatro

contemporâneo. Entretanto, o uso de “gesto” como o ponto de partida seria

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demasiadamente evocativo do “teatro do gesto” de Lecoq, que em inglês é traduzido

como ‘teatro físico’, o que fechou o círculo e não resolveu o problema, pelo menos na

língua inglesa. Ainda que essa tentativa de encontrar saídas para denominar as

diferentes abordagens pudesse acabar tornando-se rígida ou formar guetos, a

identificação dessas linhas abriram a possibilidade para múltiplos cruzamentos.

Ainda segundo esse autor, por volta de 1996, o termo ‘teatro físico’ tornou-se

contestado, em que podia-se identificar duas linhas principais: uma linhagem da

mímica decorrente de Copeau através de Decroux e Lecoq (incluindo Dario Fo), e

uma proveniente da dança que tinha como ícone maior o grupo ‘DV8’. Uma terceira

linha decorrente de Meyerhold, Artaud e Grotowski, que havia estado obscurecida nos

anos 80, era também reconhecida claramente como parte desse campo. Nesse mesmo

ano, o Mime Action Group (MAG) sugeriu o termo “physically-based-theatre” (teatro

baseado na físicalidade), mas foi rejeitado e denominado “Total Theatre Network”

(Rede de Teatro Total), com o objetivo de representar o espectro mais amplo possível

de práticas performativas, com ênfase naquelas de características mais físicas e

visuais. Evidentemente o fato de todo o tipo de teatro engendrar o corpo – mesmo se

for ao manipular objetos – e dar-se a ver, é tomado como garantido, não entrando,

portanto, na discussão da denominação dessas práticas.

O termo “Total Theatre Network” manteve-se até 2005, cobrindo uma grande

diversidade de estilos e de abordagens conectadas ao teatro físico como um

movimento de distanciamento das práticas estabelecidas e da categorização por

críticos, acadêmicos ou mecanismos de fomento. Aos poucos, porém, foi perdendo

sua função por não mais descrever um movimento de renovação no teatro e

performance britânicos, nem uma maneira inovadora de ensinar ou fazer

performance, nem mesmo um termo crítico. Era necessário um novo termo que

abarcasse a diversidade do que estava acontecendo no mundo das artes cênicas, ainda

ligado às características do teatro físico, mas que fosse além. Chamberlain

(MURRAY, 2007, p. 120-121) propõe o termo ‘performance pós-física’ por uma

série de razões que explicita em seu artigo, mas às quais não vamos nos ater aqui.

Importante mencionar que, embora as características que ele descreve se pareçam em

grande parte com as do pós-dramático de Lehmann, ele esclarece que seu termo “não

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é sinônimo da noção de teatro pós-dramático porque, em um nível bem básico, não há

rejeição fundamental do dramático nem na performance47 física nem na pós-física”.

Assim como afirma McDermott48 (MURRAY, 2007, p.203), concordo que o

chamado teatro físico seja aquele que “pode criar mundos imaginários, alongar a

imaginação”, tendo sempre em conta que a especificidade do teatro é a habilidade de

criar mundos paralelos de maneira presencial, diferencial frente ao cinema, à TV, a

vídeo games e à internet. O autor questiona-se sobre o que é que o teatro físico pode

nos dar que o trabalho com texto não consegue, e sustenta que “o que é interessante

não é somente que uma produção possa ser física, mas que nossas imaginações sejam

alongadas além da mera representação do que está presente, mostrando o que está

acontecendo em cena e o que está acontecendo no olho da imaginação, trabalhando o

corpo para revelar a alma”.

A prática com que trabalho é embasada nesse tipo de teatro e, portanto,

considera o ator como criador de seu próprio teatro, de seus próprios personagens e

não a partir de personagens pré-existentes. Nesse sentido, pretende-se ser um teatro

mais autoral, onde o ator é seu próprio autor, ele não parte de um texto pré-escrito, ele

cria as personagens a partir de um tema, de uma ideia, de uma estória que ele queira

contar. O ator tem a liberdade da criação da personagem, ele não parte de uma

personagem pré-existente. Não tem o trabalho de mesa nos mesmos moldes daquele

tradicional onde é priorizada a compreensão dos aspectos psicológicos da

personagem.Evidentemente, esse não é um princípio normativo, pois deverá ser

sempre flexível ao modo de trabalho que cada encenação suscitar.

Nesse teatro de formas, ou o teatro não-psicológico, o trabalho do ator alinha-

se à tradição do mimo e mais tarde da commediadell’arte, que está(?) sempre

alicerçado pelo jogo corporal, pela improvisação, pela criação de meios para seu

teatro, independente de trabalhar com um grupo ou não, com um diretor ou não,

características que estabelecem-se mais tarde na história do teatro. Acredito que essa

tradição exista até hoje nos trabalhos de clown e de bufão, de criação coletiva, em

47 Performance aqui provém do original em inglês, no sentido de espetáculo e não de arte da performance.

48 Phelim Mc Dermott é diretor de teatro, fundador do Derek Derek Productions e do Improbale Theatre. Trabalhou com o The Tiger Lillies, entre outros, em colaboração com Philip Glass na English National Opera em 2007. Também participa do grupo de improvisação do Comedy Store Players. (Murray, 2007: xix)

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núcleos de teatro colaborativo, que são formas do teatro contemporâneo que dialogam

com as questões relativas ao teatro performativo e ao pós-dramático. A maneira de

preparar-se desse ator é diferente, pois tem objetivos diferentes daquele que vai

construir uma personagem já existente, com um texto a ser posto em cena. Sem juízo

de valores, nem querer desmerecer tais práticas, pois partir de um texto escrito

implica igualmente num grande desafio.

Esse panorama se propõe a colaborar na justificativa do porquê, nessa

pesquisa, o foco está nos atores que não dependem de um diretor ou um texto

dramático para impulsionar seu trabalho, especialmente aquele que antecede a

abordagem do texto. Atores que criam a partir de temas, de materiais, de estímulos

que não aqueles do texto e da personagem pré-existentes – embora não exclua esse

tipo de construção. Por materiais, entende-se desde o seu próprio corpo até o texto

com o qual trabalha, objetos de cena, figurinos, cenário, luz, memória, espaço,

colegas, enfim, tudo o que compõe a cena, ou ainda “qualquer elemento que adquire

uma função no processo de construção de identidade do próprio objeto”, conforme a

concepção de Bonfitto (2002, p.17). É interessante entender o jogo do ator a partir

dessa relação com os diferentes materiais como ignições para o jogo, que foram

propostos pelo professor Bonfitto na disciplina teórico-prática intitulada

“Investigação Cênica II: Seres Ficcionais: treinamento, composição e dramaturgia(s)”

que pretendia explorar possibilidades de trabalho na fronteira entre ator e performer.

Enfocar no material físico e estrutural que o ator vai trazer para a criação ainda em

estado bruto, para então dar forma. Tomando a questão da influência da performance

no teatro contemporâneo e os conceitos de performatividade e pós-dramático

anteriormente mencionados, procuro estabelecer relações entre o performer e o ator, a

dramaturgia do work in progress e o jogo do ator.

4.3.2 Atuação e Formação: Ator ou performer?

Na prática teatral contemporânea verifica-se uma tendência a tomar a arte da

performance como o novo modelo universal teórico e prático, como afirma Pavis

(2007, p.51). Segundo esse autor, “a inflação da performance em todos os domínios e

como novo paradigma universal vai influenciar nosso objeto de estudo, a mise en

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scène e a maneira de compreendê-la, em todos os sentidos do termo.” A performance

vem se mostrando importante meio de expressão escolhido para a articulação da

“diferença” nos discursos sobre multiculturalismo e globalização, com enorme

aumento no número de performers e de espaços dedicados à sua realização não

apenas na Europa e nos Estados Unidos da América, mas no mundo todo, como nos

esclarece Goldberg (2006). Essa autora também sustenta que a arte da performance

apresenta-se hoje como importante referência nos estudos culturais, não só no teatro

ou na dança, mas também na filosofia, na arquitetura e na antropologia, acrescentando

que também os estudos acadêmicos voltaram-se para ela, e vêm desenvolvendo uma

linguagem teórica para o exame crítico de seu impacto sobre a história intelectual.

Na mesma linha de pensamento, no prefácio de seu livro, Carlson (2004)

afirma que, em um nível cultural mais amplo, performance continua a desenvolver-se

como uma metáfora central e ferramenta crítica para uma variedade desconcertante de

estudos, cobrindo quase todos os aspectos da atividade humana. Segundo o autor, o

discurso da performance e de seu parceiro teórico ‘performatividade’, dominam hoje

não só o discurso crítico nos estudos culturais, mas também nos negócios, na

economia e na tecnologia. Esse aumento no interesse em performance está

relacionado a uma grande mudança ocorrida na cultura, que passou de “o que” para

“como”. Mais do que o interesse na acumulação de informação social, cultural,

psicológica, política ou linguística, o interesse encontra-se, sobretudo, na maneira

como esse material é criado, valorizado e mudado, como ele vive e opera dentro da

cultura. Seu sentido real é agora procurado em suas ações, em sua prática, em sua

performance. Além disso, valoriza-se o fato de que a performance está associada não

só ao fazer mas também ao re-fazer, incorporando a tensão entre uma forma dada ou

conteúdo do passado e os ajustes inevitáveis de um presente sempre mutante. Isso faz

dela uma operação particular em um tempo de amplo interesse em negociações

culturais – como padrões humanos de atividades são reforçados ou mudados dentro de

uma cultura e como eles são ajustados quando várias culturas diferentes interagem.

O mesmo autor aponta que a divisão entre o teatro tradicional e a performance

art que havia, hoje está bastante diluída, uma vez que as técnicas que antes eram

relacionadas a uma ou a outra linguagem vêm sendo desenvolvidas e trocadas entre

elas através da exploração de novos meios. O interesse que o teatro vem mostrando

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pela performance desde os anos 70 deve-se fundamentalmente à necessidade de

captar seu frescor, sua pulsação, mesmo que através de uma rejeição ao que está

sendo proposto. O impacto que uma performance pode gerar deixando todos os

envolvidos num estado de alerta, entrega e abertura, é o que o teatro também quer

gerar, mas que às vezes não consegue produzir por suas repetições mornas, atuações e

personagens inverossímeis, textos vazios, apelo plástico sem um conteúdo pulsante.

Evidentemente, nada garante um bom espetáculo ou uma performance interessante,

não se trata aqui de juízo de valores e sim de possíveis pontos de contato. A

performance mantém em comum com o teatro o desejo do encontro, mesmo que em

condições diferentes. O que se pode afirmar com certeza é que uma das contribuições

que a performance trouxe para o teatro foi a quebra de padrões nos âmbitos do

trabalho do ator, do diretor, do professor e do espectador.

Importante difusor desse campo no Brasil, Renato Cohen (1956-2003)

desenvolveu a pesquisa da performance como linguagem, acreditando ser esta uma

arte de fronteira, de ruptura de convenções, formas e estéticas, um movimento de

quebra e de aglutinação, uma função do espaço e do tempo. Segundo o autor (1998,

p.158), “a performance é o elo contemporâneo de uma corrente de expressões

estético-filosóficas do século XX desde o futurismo, o dadaísmo e o happening”. Ele

sustentava que a performance não poderia ser considerada como uma expressão

isolada, tanto pelas características de linguagem, como, por exemplo, o uso da

colagem como estrutura, o predomínio da imagem sobre a palavra, a fusão de mídias,

etc., quanto pelas suas premissas ideológicas, pela liberdade estética, uma arte que se

presta ao combate.

A performance se aproxima do teatro através da expansão do uso de

tecnologias midiáticas, da exploração de estruturas audiovisuais e da maneira como se

relaciona com o espaço e o tempo. Conforme Lehmann (2007), também o teatro

experimental não se orienta mais pelo desdobramento psicológico das ações e das

personagens e se ajusta às influências de ritmos de percepção mais acelerados. Esse

autor sustenta que é possível entender o que chama de teatro pós-dramático como uma

tentativa de conceituar a arte no sentido de propor uma não representação, uma

experiência do real recorrendo à noção de arte conceitual como floresceu nos anos de

1970. O termo “pós-dramático” é, em suas próprias palavras, um conceito guarda-

chuva, amplo, que engloba várias manifestações expressivas teatrais desde os anos 60

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até agora, século XXI, e que inclui a grande maioria dos nomes mais expressivos da

cena experimental contemporânea. Inclui o chamado teatro concreto, teatro físico,

teatro de imagens, dança, dança-teatro, performance, “peças-paisagem”, entre outros.

Teatro pós-dramático são práticas que envolvem um deslocamento do modelo de

drama tradicional aristotélico que envolve ação, fábula, conflito de valores, tempo,

início, meio e fim. Ele, criou esse conceito para ajudar as pessoas a falarem de suas

próprias experiências contemporâneas49.

Alguns dos parâmetros do pós-dramático apontam o espetáculo como evento,

como acontecimento, obra em aberto, processo, work in progress; a prevalência da

experiência sobre a representação e a ficção; o espectador considerado como

participante da obra, como parte do espetáculo, sendo esse envolvimento do

espectador compreendido como uma situação política, a partir da relação que cada

espectador estabelece com o que está acontecendo. Para Lehmann, é a forma que vai

definir o político, a maneira como trabalhar as informações e não a informação em si,

pois esta está nos jornais, na TV e nas outras mídias. Considera-se ainda a des-

hierarquização das funções, com trabalhos cada vez mais colaborativos e não mais de

diretor, importando sobremaneira o contexto dentro do qual são apresentados. A

mimesis é vista na qualidade de representação e, segundo ele, o momento da

representação não deve desaparecer. O conceito da mimesis e da representação instala

mais um problema do que provê alguma resposta, como se transformasse a

representação mesma em um problema, não só artisticamente como filosoficamente.

É uma estratégia de interrupção entre o real e o fictício. Simultaneidade,

fragmentação, colagem: a cena é reivindicada como ponto de partida e não mais o

texto, que se transforma num elemento da própria representação, ao mesmo nível da

luz, do movimento ou da música. Todos elementos da cena têm o mesmo peso, não há

hierarquia entre imagens, movimentos e palavras, textura que se assemelha à

colagem, à montagem e ao fragmento, não ao curso de acontecimentos estruturado de

modo lógico, interessa promover uma textura de percepção. Não mais um tempo

ficcional, mas o tempo real, ou mais lento, descontínuo, o próprio tempo é um tema.

Os discursos cênicos se aproximam em vários aspectos de uma estrutura onírica,

49 Considerações apresentadas no Seminário Teórico “Além do Teatro Dramático”, UDESC, Florianópolis,10/08/2010.

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imagens de sonhos. O corpo passa a ocupar o ponto central não só como portador de

sentido, mas em sua substância física e gesticulação.

Para Féral (2008, p.201), a performance redefiniu os parâmetros da arte e do

teatro. No lugar de teatro pós-moderno e de teatro pós-dramático, entretanto, ela

propõe a noção de performatividade como aspecto central no funcionamento dessas

práticas dentro do panorama contemporâneo bastante diversificado, preferindo o

termo “performativo” para designar essas manifestações artísticas.

Para construir a noção de performatividade, Féral (2009) discute o conceito de

performance considerando duas visões: a de conceito antropológico, difundido por

Richard Schechner (1934 - ), para quem o ato performativo caracteriza-se como um

jogo ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer), showing doing (mostrar o

fazer); e a do conceito oriundo das pesquisas e criações da performance art. Para ela,

no teatro performativo estamos na esfera do acontecimento, que pertence à ordem da

ocorrência (eventness), e não mais na representação. Coloca-se em cena o processo,

realçando o aspecto lúdico do acontecimento, num risco real do performer. Féral

mostra ainda que a performatividade tem a ver com os elementos de desconstrução,

de intertextualidade e de processo. Há uma desconstrução dos signos e o espectador

descobre o prazer em participar dessa experiência, passando a atentar mais para a

execução do gesto, para a criação da forma, para a presença do ator.

Em Schechner, o termo performance toma um sentido muito amplo: ao

abarcar todos os domínios da área da cultura, desde os ritos, esportes, eventos

espetaculares, etc., ele abala definitivamente as fronteiras e limites da arte, trazendo-a

para o plano da mente e da impossibilidade de categorização. Segundo Lehmann

(2007, p.393), Schechner designa como “texto da performance” a totalidade da

situação real da apresentação teatral, enfatizando nela o impulso de presença que

motiva a arte performática. Também para esse autor (2007, p.287), o que está em

primeiro plano, tanto para a performance como para o teatro pós-dramático, não é a

encarnação de um personagem, mas a presença provocante do homem: “a análise e a

reflexão acerca do tempo teatral dizem respeito a essa experiência, que Bergson

distinguiu do tempo objetivável e mensurável como ‘duração’”.

Carlson (2003) acredita que, embora o uso comum do termo performance no

teatro possa parecer associado com habilidade técnica, principalmente por seu

significado em inglês, na verdade o termo está mais relacionado à qualidade de ação

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duplicada, repetida ou restaurada. Ideia baseada no conceito de “comportamento

restaurado” de Schechner, que refere-se ao comportamento particular dos seres

humanos em que uma pessoa finge que é alguém que não si mesmo. Sob esse título,

Schechner agrupa qualquer comportamento conscientemente separado da pessoa que

o está fazendo – tanto no teatro como em outras atuações, transes, xamanismo, rituais.

Esse conceito, portanto, aponta para uma qualidade de performance na qual não está

envolvida a demonstração de habilidades, mas sim certa distancia entre “self” (ele

mesmo) e comportamento, análogo à relação entre o ator e o papel que ele joga em

cena, a distância entre o ator e a máscara, entre o atuar e o não atuar que veremos em

seguida. Ainda que uma ação no palco seja idêntica a uma na vida real, no palco ela é

considerada “desempenhada”(performed) e fora do palco meramente “feita”(done).

Todas as pessoas têm consciência de desempenhar um ou vários papéis

socialmente, reconhecendo que suas vidas estão estruturadas de acordo com modos de

comportamento repetidos e estabelecidos socialmente. Dessa forma, toda a atividade

humana pode ser potencialmente considerada como performance, ou pelo menos as

atividades feitas conscientemente. A diferença entre fazer e desempenhar, de acordo

com esse pensamento, parece basear-se não no quadro teórico que distingue teatro de

vida real, mas no como se faz, se a pessoa está consciente ou inconsciente da ação em

si e se está sendo observado ao fazê-la. Então, ainda segundo Carlson (2003, p.4), há

dois conceitos diferentes de performance: um envolve uma exibição/exposição de

habilidades, e o outro também envolve exibição/exposição, mas de padrões de

comportamento socialmente codificados. Já quando se trata de teatro, sempre se leva

em conta que serão ações feitas para alguém, para um público que as reconhece e as

valida como tal.

Na busca por uma renovação, de uma revitalização e de um sentido de

experiência para o espectador, o teatro contemporâneo acabou incorporando, portanto,

diversos aspectos da performance, inclusive no trabalho atoral. No trabalho do ator, a

maioria das práticas do século XX – e das práticas dominantes do século XXI –

estiveram voltadas para a construção de personagens ou tipos, de um “outro”,

baseados largamente na noção de representação e de mimesis como imitação. Já na

performance, seus praticantes não baseiam seu trabalho em personagens previamente

criados por outros artistas, mas em seus próprios corpos, suas próprias autobiografias,

suas próprias experiências específicas em uma cultura ou no mundo, tornadas

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performativas por suas consciências delas e pelo processo de exibi-las para plateias,

como esclarece Carlson (2003, p.5).

Encontro na pedagogia de Lecoq uma série de pontos comuns com essas

noções tanto de pós-dramático como de performativo, tais como o uso da colagem, o

predomínio da imagem sobre a palavra, a ênfase no jogo, o não psicológico e mesmo

o caráter de work in progress das apresentações. Ainda que não fosse encorajada em

sua Escola que essa forma seja a final, a apresentação semanal das cenas que os

alunos constroem ao longo da semana nos auto-cours a partir de determinados temas,

normalmente é algo sem finalização ou fixação, justamente com caráter experimental,

que associo ao work in progress, aberto às críticas dos professores que não

interferiram anteriormente. A maneira como se trabalha no horário designado ao auto-

cours é colaborativa, na qual todos opinam e propõem, um exercício de ceder, de

escutar, de compartilhar, de aceitar - qualidades fundamentais para qualquer atividade

em grupo. Voltaremos ao auto-cours no capítulo 5 sobre criação.

Há algo, porém, que difere bastante a pedagogia de Lecoq em relação à

performance que é o caráter de representação que mantém. A questão da

representação surge como ponto central na discussão do teatro contemporâneo. Até os

anos de 1970, o trabalho do ator era caracterizado pela representação. Quando

falamos em representação estamos falando em mimesis, a mimesis como modelo, em

uma relação em que o ator representa um modelo, e o modelo inspira a representação

do ator. Depois dos anos 70 tudo isso entra em crise: o ator será um performer que é a

qualificação mais ampla possível para substituir a de ator, porque esse atuante

contemporâneo não é mais a pessoa que faz a representação, mas pode-se dizer que é

a representação mais ele mesmo, como esclarece Mostaço (2010)50. Não é mais a

representação pura no sentido aristotélico clássico de espelho, pois tem também ele

mesmo, e isto é fundamental. Portanto, ainda se trata de um trabalho de representação,

mas não mais um trabalho de representação como mimesis. Não é a utilização ou não

de textos, de códigos ou de convenções teatrais e culturais que determinam as

possíveis diferenças entre o ator dramático e o pós-dramático, mas, como foi antes

mencionado, a maneira como trabalha as relações entre os materiais concretos,

abstratos e subjetivos.

50 Edélcio Mostaço, em reunião de orientação, Florianópolis, 3/12/2010.

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A formação proposta por Lecoq visa à criação de personagens que, mesmo se

não forem seres humanos, são seres ficcionais com certeza. Parte da ideia de máscara,

ainda que não só facial, mas o corpo como máscara, que mantém um espaço de jogo

entre ela e o ator que a porta. Na Escola, quando inicia-se o trabalho com a máscara

neutra, é enfatizado o cuidado que se deve ter em permitir sempre um espaço entre

seu rosto e a máscara, que pode ser transposto para o espaço do jogo, o espaço entre

dois atores, o espaço que permite que algo aconteça “entre”, mas sempre tendo a

representação em uma das extremidades. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma

analogia com o continuum atuação e a não-atuação de Kirby onde a atuação seria a

máscara e a não atuação o próprio ator.

Michael Kirby (1931-1997), colega de Schechner na Universidade de Nova

Iorque (NYU), propunha um continuum entre a atuação e a não atuação, baseado em

parâmetros como intenção, afeição, técnica, relação com a platéia e simulação sobre

as quais todas as performances podem ser descritas. Nesse continuum temos em uma

extremidade o não atuar e na outra o atuar, e entre elas identificamos gradações de

representação no comportamento da pessoa. Gradações de personificação, de

simulação, de fingimento, de representação, conforme uma maior ou menor atuação,

ou seja, mais perto de uma personagem ou mais perto de si mesmo. Quando se trata

de performance, o ator não joga um ser ficcional, mas ele mesmo em um estado de

“dar-se a ver”, no extremo da não atuação. O autor exemplifica, citando os

happenings que, segundo ele, demonstraram que nem toda performance é atuação.

Embora atuação fosse às vezes usada, os performers nos happenings geralmente

tendiam a “ser” ninguém ou nada mais do que eles mesmos; nem representavam, nem

fingiam estar em um tempo ou lugar diferentes daqueles dos espectadores. Eles

caminhavam, corriam, diziam palavras, cantavam, lavavam pratos, varriam, operavam

máquinas e aparatos cênicos, por exemplo, mas não fingiam nem personificavam.

Esses extremos, entretanto, não são posições estanques, pode-se ter um ir e vir entre

esses eles. Como explica o autor (Kirby, 1987, p.3), normalmente é relativamente

fácil identificar e reconhecer o atuar ou não atuar, sabemos quando a pessoa está

atuando e quando não, mas há uma escala ou um continuum de comportamento

envolvido, e essas diferenças podem ser pequenas. O autor sustenta que esses casos

podem ser de difícil categorização, e talvez alguns nem deem importância a isso, mas

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que, na verdade, são precisamente esses casos incertos que podem prover insights na

teoria de atuação e na natureza da arte.

Esse continuum não implica uma escala de valores, como aponta Kirby (1987,

p.20), é uma questão de gosto pessoal que prefere um ou outro tipo de atuação. Os

vários graus de representação e personificação são “cores”, por assim dizer, no

espectro da performance humana; artistas podem usar quaisquer cores que queiram. É

interessante observar que não se trata de considerar se é real ou ficção, se o ator e o

público creem ou não no que é mostrado, se é uma atuação simples ou complexa, se é

o ator ou a personagem, pois ele pondera que o ator é sempre visto em cena, mesmo

jogando uma personagem. Trata-se de graus de atuação, que pendem mais para um

extremo ou outro, e que possuem em si um continuum que se aplica para cada aspecto

individual da atuação, que vai do mais simples ao mais complexo, do mais real ao

mais fictício e assim por diante.51

Na visão de Lecoq, entretanto, os atores não devem falar deles mesmos,

abordagem que se opõe à aproximação com as noções de teatro contemporâneo,

performativo, pós-dramático que propõe a aproximação entre a personagem e o ator,

enfatizando o próprio jogar a si mesmo em cena, usando sua autobiografia como

texto, em que deixa o espectador em dúvida se aquilo que diz e a maneira como age

faz parte da vida real daquele indivíduo ou se é ficção. Para Lecoq, se a personagem e

o ator se tornam um só, o jogo se anula. Aqui reencontramos a ideia sobre o espaço

necessário entre o ator e a máscara para que haja jogo, se a máscara cola no rosto do

ator ele já não tem espaço para jogar. Da mesma maneira, ele não deve colar nos

colegas, mas jogar com eles, formar corpos com eles, mas sempre com algum espaço

para que o jogo possa acontecer. “Se essa osmose pode servir para os grande planos

do cinema psicológico, o jogo teatral deve transpor a imagem até o espectador.”

(LECOQ, 1999, p.71)

Ainda assim, considero que sua prática corporal pode contribuir para a

formação desse performer, no sentido de organização técnica corporal, mesmo se os

desejos de criação sejam outros. Quando os atores criam as personagens, inicialmente

51 Penso também num continuum cujos extremos seriam a ética e a estética, onde o performer estaria mais ligado à ética e o ator à estética. Parece que para o performer a ética é a motivação principal de seu trabalho, o compromisso social e político, ainda que dentro de um enquadramento estético. Um não invalida o outro, é claro que o ator também pode ter uma motivação sócio-política, mas não obrigatoriamente. É uma proposta de discussão que ainda gostaria de aprofundar.

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não há o mesmo distanciamento que um texto já escrito por uma autor proporcionaria.

Eles iniciam com uma inspiração de alguém que querem mostrar, de um tema que

querem abordar, de algumas linhas como ideia para essa personagem. Associam com

um ou mais animais, definem alguns traços básicos do caráter dessa pessoa. A partir

daí são colocados em situações para que possam reagir a partir dessas pessoas,

buscando suas nuances, seus modos de agir e de se posicionar de acordo com uma

lógica própria que vão criando.

Como aponta Bonfitto (2008, p. 98), o ator vai transitar em zonas de

ambiguidade, sobreposição entre linguagens e estilos como a performance, teatro,

dança, execução de tarefas. O ator não deve mais necessariamente contar um história,

nem se limita a reproduzir códigos e convenções teatrais, ele ultrapassa a ilustração de

situações e circunstâncias para colocar em evidência, por exemplo, a corporeidade e

suas qualidades expressivas.

Tais conceitos que separam ator e performer parecem muito estanques,

quando na prática parece haver uma mescla de ambos ou tendências mais para um

tipo do que outro. Embora essa definição me pareça defasada por não considerar o

ator que cria seu próprio teatro e que pode não ter texto, segundo Pavis (1999, p.31) o

ator é o vínculo vivo entre o texto e o autor, alguém que simula uma ação, fazendo-se

passar por seu protagonista pertencente a um universo fictício, embora ao mesmo

tempo em que realiza ações cênicas, ele continua a ser ele próprio, vive a duplicidade

de viver e de mostrar, de ser ele mesmo e ser outro, “um ser de papel e um ser de

carne e osso, tal é a marca fascinante de seu trabalho”. O performer é definido por

esse autor como “aquele que fala e age em seu próprio nome enquanto artista e

pessoa, e como tal dirige-se ao público, ao passo que o ator representa sua

personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. De forma redutiva,

portanto, Pavis (1999, p.285) define o performer como aquele que realiza uma

encenação de seu próprio eu, enquanto o ator faz o papel de outro”.

Já em um sentido mais amplo, Schechner (1994, p.166) afirma que o ator é

aquele que quer “entrar” na personagem, “perder-se dentro” do papel, no qual a

personagem é tomada como uma pessoa e o trabalho do ator é o de tornar-se aquela

pessoa. Os ensaios concentram-se em técnicas que ajudam o ator a fazê-lo, usando

dispositivos como lembranças emocionais para ajudá-lo a encontrar seu próprio

passado análogo às experiências da personagem que ele está “retratando”, de forma

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que ele possa sentir o que a personagem deve ter sentido. No chamado teatro

ambiental52, o diretor eliminou a hipótese de que “há duas pessoas”. Em vez disso, há

o papel e a pessoa do performer, e tanto um quanto o outro são percebidos

visivelmente pelo espectador: “os sentimentos são os do performer estimulados pelas

ações do papel no momento da performance”. Segundo esse autor, o ator some dentro

do papel, enquanto o performer encontra-se em uma relação perceptível com o papel,

e o que o público experiência não seria nem o performer nem o papel, mas a relação

entre os dois. Uma relação imediata que existe somente no aqui e agora da

performance, em que o performer não tenta mascarar suas dificuldades, sua maneira

de lidar com o papel é do maior interesse na performance.

Diferentemente do ator, o performer não tem uma máscara para escudá-lo, não

joga com personagens, mas sim com seu eu “aumentado”. Ele não tem a preocupação

de construir um outro, de pesquisar como é esse outro, seja um tipo, uma personagem

ou qualquer ser ficcional. Como esclarece Bonfitto (2010), “no trabalho do performer,

o processo é completamente diferente daquele do ator, pois a idéia não é buscar um

outro, mas buscar uma expansão do eu, e como se dá essa expansão, em que medida

isso se dá, em que sentido ela se dá, e quais são as práticas envolvidas nisso.”53

Portanto, ele parece se vestir de uma presença que age, propondo assim algo a ser

decodificado, experienciado. Nesse sentido, a definição que parece melhor estabelecer

essas relações foi aquela proposta por Kirby (1983), na qual os performers são eles

mesmos, não estão retratando personagens, estão no teatro, não em algum lugar

imaginário ou representado. O que dizem é certamente verdade, pode-se outorgar que

os performers realmente acreditam no que dizem, que eles realmente sentem que

essas leis são injustas, e ainda assim eles estão atuando.

Na qualidade de atriz pesquisadora, lancei-me em uma experiência prática

para melhor entender como seria essa atuação de si mesmo ou não atuação. A

disciplina teórico-prática oferecida pelo curso de pós-graduação da UDESC

ministrada pelo professor Bonfitto54 iniciou com a pergunta sobre o que cada aluno ali

presente gostaria de fazer enquanto artista naquele momento, ou ainda, qual era o seu

desejo artístico. O meu era o de realizar um solo que trabalhasse com essas questões 52 No original, Environmental theater. 53 Entrevista concedida durante a disciplina na UDESC, Florianópolis, maio 2010.

54 Disciplina do PPGT Investigação Cênica II: Seres Ficcionais: treinamento, composição e dramaturgia(s) com Prof. Dr. Matteo Bonfitto. Florianópolis, 2010.

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da performance, do atuar e não atuar e do autobiográfico, de experimentar algo que

friccionasse minha prática, normalmente mais voltada para a construção de seres

ficcionais a partir do corpo, herdada da experiência lecoquiana.

Constituímos um grupo juntamente com colegas que possuíam desejos afins.

A primeira proposta sugerida por um deles foi a de escolhermos um trecho do livro de

Nijinski (1998), que um deles trouxera e, a partir dele,deveríamos inserir uma parte

pessoal. Li um parágrafo e imediatamente me veio a lembrança de uma vivência forte

que tive. E o que fazer com aquilo? Optei em me abrir para a experiência e ver onde

iria dar, pois queria algo novo, que envolvesse um risco, que me desacomodasse. Mas

como construir uma cena com esse texto, com esse tema, essa vivência pessoal? Usei

as estratégias sugeridas na primeira parte da disciplina, de trazer materiais e explorar

relações com eles. Trouxe alguns objetos, algumas músicas e um figurino. Vesti uma

camisola de voile rosa com chambre acompanhando e chinelos vermelhos trazidos

pela colega. Esse figurino direcionou o trabalho para uma atuação realista. Dei

segmento ao que estava surgindo, adicionei uma mesinha de vidro que estava na sala,

um aparelho de som que eu manipulava, e me sentia num recinto hospitalar, que era o

local onde ocorria o fato que eu descrevia. Tudo tornou-se muito óbvio, fiquei

encurralada em um tipo de atuação realista e melodramática pelo teor do texto,

embora ainda procurasse manter a maneira como dizia o texto o mais ‘eu mesma’

possível, o mais “não atuação” possível, buscando não criar uma personagem,

diferente do tipo de teatro que costumo fazer. Parecia-me que o figurino havia

“colado” em mim, como se eu recriasse uma mãe que relatava um acontecimento,

coisa que era explicitada no texto, que o figurino tornou a personagem piegas e falso.

Meu hábito de criação a partir do figurino e do corpo só atrapalhavam naquela

situação, tornaram-se uma armadilha.

O professor veio assistir e me sugeriu uma mudança radical no figurino e na

figura que eu estava jogando: invés de uma mulher de chambre, sugeriu uma mulher

elegante, bem arrumada, uma locutora de radio novela da Broadway. A locutora de

rádio me possibilitou um distanciamento entre eu, Cláudia, que tinha passado por

aquela experiência e eu, Cláudia, que estava contando aquela história ali. Até aí, nada

de diferente do que um atuar com personagem, mas o que era diferente é que eu

estava contando algo muito pessoal que eu não contaria para um público

desconhecido. Experimentei a proposta e me senti melhor, mais livre para improvisar,

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agora com essa figura/tipo para me escudar, pois a outra figura estava muito “colada”

em mim.

O fato de falar sobre minha experiência pessoal em público teve um efeito

curativo para mim, quase terapêutico, um encontro de arte e vida, mas a pergunta

permaneceu: como é essa atuação de si mesmo ou não atuação? Minha vontade de

experimentar um relato autorreferencial se concretizou, mas precisei da máscara da

locutora para fazê-lo. Se isso importa para o público, se era verdade ou não, quais

partes eram verdadeiras e quais não, no teatro performativo não vem ao caso, uma vez

que o limite cambiante entre o real e o fictício é justamente uma das suas

características. Do ponto de vista da atuação, havia uma máscara, tratando-se, porém,

de uma atuação situada mais ao centro do tal continuum, como uma máscara mais

diluída, mais próxima de mim mesma.

Sempre estive mais ligada ao tipo de atuação que Kirby consideraria

complexa, com criação de personagem e mergulho total nele. No experimento

relatado, entretanto, sinto que, pela primeira vez, consegui me afastar um pouco desse

extremo, deixando aparecer um pouco mais de mim mesma, principalmente através

do texto, uma pequena diminuição na “quantidade” de atuação. Ainda assim, há uma

personificação de uma figura que me permite jogar com mais liberdade. Lecoq

costumava falar sobre a propriedade da máscara de propiciar uma maior liberdade de

jogo ao ator, uma vez que sente sua personalidade protegida e se permite atitudes e

ações que em outros contextos teria vergonha de fazer. Essa máscara me remete

àquilo que Kirby chama de “enquadramento” (framing), a que Féral (2008, p.197)

também se refere, na qual, dependendo da situação em que a ação acontece – seja no

palco, nas ruas da cidade, ou através de um vídeo no teatro, por exemplo – haverá

uma leitura sobre o grau de teatralidade envolvido, e a consequente quantidade de

atuação em jogo.

Mas como fica a formação do ator no teatro contemporâneo? Como ele se

desloca de seu eu cotidiano para esse eu expandido sem construção de uma

personagem obrigatoriamente? Em que técnicas, princípios, linhas mestras se baseia?

Certamente, a escolha de linguagem com que cada indivíduo vai querer trabalhar deve

encaminhá-lo para determinada estética e poética, e provavelmente será a partir dela

que vai surgir a necessidade de um tipo de preparação específico. A questão do ator

contemporâneo e as variações propostas por Kirby quanto ao grau de representação

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utilizado pertence a essa discussão sobre a imaginação em Lecoq, na medida em que

estamos tratando de uma prática que foi criada baseada completamente na

representação, mas que sigo utilizando nos dias de hoje, e portanto deve ser

questionada a maneira como ela seria vista a partir desses estudos. A representação

está diretamente relacionada à imaginação, características ontológicas dos

mecanismos de nossa psique. Portanto, não podemos passar à margem dessa

discussão de mais ou menos representação, uma vez que o ator com quem trabalho

está sujeito a essa controvérsia, e considero importante acompanhar o movimento das

manifestações atuais, contaminadas pela performance, sem acreditar que são tipos de

teatro que não dialogam entre si. Enquanto estivermos conscientes do lugar onde

queremos nos posicionar nele, poderá existir diálogo entre todas essas possibilidades

de representação dentro do continuum de Kirby.

Renomada performer na contemporaneidade, Marina Abramovic (1946-)

utiliza uma série de exercícios como método de trabalho. Como aponta Richards

(2010, p.114), a artista acredita que “é somente através de uma extensa preparação da

mente e do corpo que podemos estar verdadeiramente receptivos e disponíveis às

correntes de energia necessárias para o processo criativo”. Para ela, a primeira coisa a

fazer é “limpar a casa”, e para tanto ela propõe técnicas direcionadas ao

condicionamento físico, à consciência sensorial e receptividade, à memória e ao “re-

lembrar”. “Limpar a casa” me parece semelhante à “página em branco” enquanto

princípio, porém com maneiras diferentes de fazê-lo, são as técnicas que mais lhe

parecerem eficazes que cada um vai escolher.

Parece possível, portanto, estabelecer pontos de contato entre todas essas

abordagens de trabalho de ator. Acredito na capacidade dialógica entre eles, não

deixando de considerar as especificidades de cada um. Continuam existindo certas

competências que se espera de todo ator e que podem igualmente servir como

parâmetros para o performer. Dependendo da necessidade, poderão ser usadas desde

as técnicas desenvolvidas ao longo do século passado, como as de Stanislavski,

Grotowski, Barba, Copeau, Decroux, Lecoq, Peter Brook, até abordagens mais atuais

como os Viewpoints55, vivências e meditações como propostas por Abramovic, ou

ainda uma compliação tomando aspectos de umas e de outras.

55 Técnica desenvolvida por Ann Bogart, os Viewpoints são usados tanto para dança como para o teatro, usando diferentes deslocamentos, dinâmicas e organização no espaço.

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5 IMPROVISAÇÃO

O treinamento ou preparação corporal para o teatro enfocado aqui é, portanto,

herdeiro ou continuador daquele teatro físico, teatro total, teatro de imagens, seja qual

for a denominação preferida. A prioridade é o movimento e, sendo assim, é

praticamente impossível pensar em trabalho do ator sem aquecimento e improvisação

com o corpo: são bases dadas. Nesse contexto, parece evidente a compreensão de que

a imaginação é um músculo, e é por esse caminho que daremos continuidade à nossa

discussão. A imaginação é trabalhada pela improvisação que implica diretamente em

movimento corporal.

Nesse capítulo inicio com a prática que envolve os elementos – água, ar, fogo

e terra –, que constituem as matérias e que serão a base para a pintura. Todos temas

desenvolvidos no primeiro ano da Escola e que mantenho em minha prática pelo seu

caráter objetivo de trabalhar o corpo de maneira a despertar outras possibilidades de

expressão pelo movimento e de levar à compreensão da noção de Fundo Poético

Comum, expandindo a capacidade imaginativa do ator.

A evolução da pedagogia da Escola dá-se através de temas que são

trabalhados de maneira acumulativa nas diferentes aulas, baseados nos mesmos

princípios. A cada novo tema introduzido, os alunos devem partir para a observação

em diferentes locais onde possam entrar em contato com ele. De volta à sala de aula,

trazem sua experiência e, aliadas às técnicas corporais desenvolvidas nas aulas de

análise do movimento, procuram aplicar ao jogo dramático aquela dinâmica, o pulsar

daquele tema através de seus corpos.

Lecoq não menciona essa relação direta entre aquilo que fazemos nas aulas,

chamadas genericamente de improvisação, e o termo rejogo especificamente. Porém,

baseada em suas declarações a respeito do uso desses termos a partir do entendimento

de Jousse, e do que pude averiguar nos escritos do antropólogo, entendo que há uma

relação direta entre as aulas de improvisação que fazemos inicialmente sendo o rejogo

e depois, a improvisação orientada com situações, o jogo. O mecanismo do rejogo,

como mencionado no item 1.3.2, trata-se de reproduzir os eventos, as manifestações e

as formas que foram observados tal como são, sempre em função de suas dinâmicas.

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Nesses exercícios de passar pelos diversos elementos, por exemplo, o que se faz é,

portanto, o rejogo, como aquele de fazer a água com o corpo tal qual a percebemos

pela nossa observação que imprime imagens e memória de movimentos. Em seus

escritos, o mestre menciona também o mecanismo de mimodinâmica, que refere-se a

esse mesmo procedimento de traduzir as sensações externas em movimentos

corporais, embora nenhum desses termos sejam utilizados nas aulas práticas. Esses

termos técnicos não são utilizados para explicar os exercícios, nem quando fui sua

aluna na Escola nem atualmente com seus continuadores, aparecendo apenas em suas

entrevistas registradas no livro O Corpo Poético e no vídeo Les Deux Voyages de

Jacques Lecoq, e alguns outros poucos registros escritos. Não usar termos técnicos

em aula está em consonância com sua crença de não tomar a prática como local de

estudo teórico, priorizando o aprendizado do corpo pelo corpo.

Baseado na concepção de Jousse, portanto, Lecoq encaminha o processo a

partir da absorção do mundo exterior para, em seguida, ser expresso com

características próprias de sua maneira de ser, o que constitui o “jogo”. O ator lhe

imprimirá um ritmo, uma medida, uma duração, um espaço, uma forma à partir desses

movimentos meramente repetidos de sua observação para então jogar nos exercícios

de improvisação e criação. Num segundo momento é proposto um tema para se

improvisar, criar, estabelecendo uma situação onde os elementos se confrontarão, por

exemplo.

No jogo são desenvolvidas propostas definidas, situações, oportunidades para

criar relações, enfim, é quando acontece o fazer teatral. Quando trabalhamos em

grupos com os elementos, as matérias, etc., estamos experimentando movermo-nos tal

como, é o rejogo que estamos fazendo, reproduzindo aquilo que vimos,

preferencialmente, ou que lembramos, ou ainda, uma mistura de ambas as coisas.

Esse é o momento de ir povoando a imaginação com possibilidades outras daquelas

que normalmente usaríamos para construir uma personagem, mormente baseadas nas

técnicas de Stanislavski em sua primeira fase, tal seja, características do caráter

baseado em aspectos psicológicos.

Por mais abstrato que seja o tema, por menos realista que seja a encenação,

para Lecoq o jogo deve estar sempre ancorado na vida real e, portanto, tomar esses

aspectos da natureza e suas dinâmicas como base para sua construção artística.

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5.1 ELEMENTOS

“Escolha um lugar na sala. Pare. Em pé, feche os olhos e cruze as duas mãos

sobre o peito – observe seu equilíbrio, o contato dos pés no solo, os ruídos ao redor, a

sua respiração. Você é uma garrafa no mar. Em alto mar – mar calmo, imenso.

Perceba esse pequeno movimento do alto mar. Aos poucos começam a surgir ondas –

enormes, mas que não estouram. A tendência de qualquer coisa no mar é aproximar-

se da praia, portanto, a garrafa vai seguir esse percurso. Aos poucos vá soltando os

braços e você vai se tornando a água do mar – agora já com ondas maiores que

começam a se armar para estourarem. Ondas estouram na beira da praia e recuam –

como é essa dinâmica? Até onde elas se estendem antes de recuarem? Onde ralentam,

onde aumentam a velocidade? Essas ondas vão escoar num rio (mesmo se na natureza

o caminho é o contrário, do rio em direção ao mar.). O quê modifica? Como se

desloca essa água agora, ela muda de textura também? Do rio, você desemboca numa

lagoa, ampla, calma. Como é a dinâmica dessa água agora? Depois chega num lago

menor, com águas quase paradas. No solo, sinta o lodo do fundo do lago. Ele vai

penetrando seu corpo, vai adensando. Pés, pernas, quadril, tronco, braços, cabeça, vão

tornando-se cada vez mais espessos. Como mover-se nessas circunstâncias?

Experimente sair do lugar, por onde se inicia o movimento? O lodo tem terra e água,

argiloso. A água começa a evaporar, restando somente a terra. Você vai secando, e

como isso afeta seu movimento? Com a dificuldade de mover-se vão surgindo raízes,

deixe-se enraizar, deixe-se tornar uma grande árvore. Que árvore você seria? Que

tamanho são suas raízes? O tamanho das raízes define o tamanho da copa, perceba seu

tamanho, todo o corpo se alonga em direção ao centro da Terra e ao céu – enormes,

firmes, desenhadas no espaço. Uma brisa começa a bater na ponta de seus galhos –

leve, delicada, sutil. A brisa vai aumentando de intensidade, torna-se vento, ventania,

muito forte, até arrancar uma folha da árvore! Você é essa folha que é levada pelo

vento. As rajadas fazem com que ela caia, levante, gire, e você vai se tornando o

próprio vento. O vento passa por uma fogueira e começa a incitar aquele fogo – aos

poucos você se torna o fogo. Grandes labaredas, em todas as direções, umas maiores

outras menores, de diversos tamanhos, direções, intensidades, cores. O fogo vai

diminuindo, até ficar somente algumas pequenas chamas na lenha, brasa, carvão, pó.

Bate um vento e dissipa o pó”.

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Essa é a descrição de uma maneira como conduzo o exercício para abordar o

tema dos elementos. Muitos já trabalharam com os elementos da natureza como

subsídios para a expressão corporal, porém, como atestam diferentes relatos de

alunos, essa abordagem, baseada nas premissas de Lecoq, é profunda e abre portas

para muitas outras imagens e possibilidades.

Gostei muito do trabalho. Tem algumas coisas que eu já tinha trabalhado algumas vezes, que é a questão das densidades, que á algo que eu trabalho enquanto diretor, eu aplico com quem eu trabalho no Cabaré. É um exercício super recorrente: a gente usa a água e a lama, principalmente. E aqui foi mais profundo do que a gente costuma fazer, você veio com umas imagens que certamente pretendo usar, como a água do mar, depois vai para a cachoeira, depois vai para o lodo, depois evapora, sei lá, dá para ‘pirar’ muito mais nisso, porque já percebi que isso dá uma qualidade de presença muito diferente. Quando tu chegas com uma densidade, com uma consistência, nossa, você cresce, amplia, achei ótimo. (SPILHERE, 2012)56

Busca-se encontrar maneiras como representar a natureza com o seu corpo.

Observar as linhas e os ritmos com que se deslocam e aquilo que esses eventos

provocam no espaço. Enquanto desenho, surge uma composição de imagens,

contínuas ou não, capazes de serem delineadas como num filme quadro a quadro,

dada a capacidade de repetir movimentos com precisão, o cuidado com o gesto

trazido provavelmente da arte da mímica. Costumo alertar os alunos-atores para

trabalharem com os olhos abertos, pois não se trata de terapia, mas de exercícios

técnicos que demandam atenção e consciência para com seu próprio corpo e dos

colegas ao redor. Perceber também o efeito desses movimentos enquanto grupo.

Um exemplo das diferentes linhas que se pode observar é quando olhamos as

águas das cachoeiras em relação às águas do mar e da lagoa. As águas do mar são

organizadas em ondas no sentido mais horizontal, irregulares, com movimentos de

elevação, de suspensão, de descida com maior velocidade, de impulsos de energia

com intervalos constantes que ativam o desenvolvimento do planeta desde sempre. Já

as cachoeiras são verticais, contínuas em sua dinâmica, rápidas, linhas quase retas,

ininterruptas. Nas lagoas, a água parece praticamente parada, com pequenos

movimentos na superfície incitados pelo vento. Todas têm um fundo comum, todas

são água, possuem um ‘fundo’ comum, mas nem por isso são iguais. Essa é a

56 Marlon Spilhere, Ator, performer, aluno na oficina de Blumenau-FITUB, 2012. Entrevista concedida nessa ocasião.

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dilatação de possibilidades que a prática de Lecoq traz para o fazer artístico. Trata-se

de povoar a imaginação a partir de exemplos concretos, a partir da natureza.

Acho que vai ficando mais claro assim, conforme a gente vai entendo melhor, vai entrando… Essa coisa de observar o mínimo que acontece na natureza, eu não sei bem o que acontece, mas tu começas a parar para olhar e ver “aquela árvore quando bate o vento nas folhas ela mal e mal se mexe”, “mas a palmeira faz assim” (mostra com o braço o movimento). Tu vais notando essas diferenças. A água num copo (pega o copo e olha). Tu começas a criar um olhar sobre isso e isso é muito legal. E passar isso para o corpo eu acho difícil, mas é um processo, tu tens que absorver aquilo que tu enxergas, diferentes de absorver o que tu tateias, acho mais difícil absorver aquilo que tu vês e trazer para o corpo.” (HÖELER, 2012)57

Fig.13: Monges meditando nas cachoeiras.

Fonte: Arquivo pessoal

Quando observamos algo, os olhos percorrem a composição visual de

diferentes maneiras. Nesse trabalho de observação da natureza, procura-se observar e

desenvolver essas maneiras. Tomemos a foto acima, por exemplo. Qual o trajeto que

seus olhos fazem para “ler” essa foto? Quais as linhas que você vê primeiro? Quais as

manchas de cores? Como características como linhas, cores, luz, textura compõe a

imagem? Quais as relações entre elas? As tensões que causam no espaço ao se

entrecruzarem? Além das linhas verticais desenhadas pela água e as horizontais pelas

57 Mariana Höeler, atriz da Cia Oigalê, em entrevista em 10/11/2012.

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rochas, os quatro monges – traços vermelhos que riscam a tela – nos ajudam a

perceber o impacto que causam os corpos no espaço, no desenho, na tela, na imagem

– uma imagem em movimento, uma imagem dinâmica, uma composição visual. Tudo

isso pode ser expresso pelo corpo, ou pelo menos servir como estímulo para tal.

Trata-se de alimentar a imaginação com essa percepção visual do entorno, da

observação cuidadosa das coisas, das matérias de que são feitas e como se

movimentam em função disso.

Esse tipo de análise da imagem e do movimento se pode aprender na Escola,

principalmente durante o seu primeiro ano, que é dedicado a propiciar a

disponibilidade física, mental e sensorial do aluno, pelo reconhecimento da vida a

partir da observação do cotidiano. Pode-se aprender, depende de cada pessoa, de cada

artista. Segundo o mestre, no primeiro ano não se fala de teatro, mas daquilo que vive

(LECOQ, 1972 apud DE MARINIS, 1980, p.207). Essa percepção é incentivada

constantemente em todos os exercícios, de forma objetiva através do corpo. Essa

compreensão de dinâmica e de composição é justamente o que se quer ter despertada

para o momento do jogo, da brincadeira, da criação. A capacidade de estabelecer

relações com os outros em cena, de estar ao mesmo tempo em jogo e atento à imagem

que está sendo criada de maneira constante. Ter consciência da maneira como se dá o

movimento em cena, das imagens que são criadas, sejam de pessoas, animais, ou

outros seres – sempre a partir do corpo, ‘fazer com o corpo’58.

Na Escola, Lecoq conduz o que chama de “Viagem Elemental” com a máscara

neutra. Nela sucede uma grande travessia orientada da seguinte maneira: inicia ao sair

do mar, avista-se ao longe uma floresta, cruza-se a areia da praia, entra-se na floresta,

busca-se uma saída, depara-se com uma montanha. Escala-se a montanha e no topo

descortina-se uma vasta paisagem: um rio, mais adiante uma planície e, por fim, o

deserto. Desce-se a montanha e cruza-se esses lugares até chegar a tempo para assistir

o pôr-do-sol no deserto (LECOQ, 1999, p.52). Independentemente do trabalho com a

máscara neutra, o que importa é o despertar para os elementos básicos da natureza e

para as diferentes dinâmicas que eles possuem e que são passíveis de serem

transpostas para o corpo. Esse exercício é semelhante àquele que propunha Dullin

58 No original, em francês, “faire corps avec”.

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denominado ‘descoberta do mundo’, também com máscara, descrito em suas

anotações, como aponta Lorelle (2007, p.35).

Quando perguntado se o que fazia era mímica, Lecoq explicava que “a mímica

que se pode aprender na Escola está na base de toda a expressão do homem, seja

gestual, plástica, sonora, escrita ou falada – a mímica que chamo “de fundo” é a

maior escola de teatro, aquela baseada no movimento” (LECOQ, 1972 apud DE

MARINIS, 1980, p.202). O mestre explica que a Escola encontra sua base no gesto

sob o gesto, no gesto sob a palavra, no movimento dos materiais, dos sons, das cores,

das luzes. É a faculdade que o homem possui de “mimar”, como na concepção de

Jousse, que é identificar-se com o mundo re-executando-o, tomando consciência de

tudo que se move. Voltamos aqui à acepção que trata da dinâmica interna, da mímica

interna, da mimesis interna, do mimismo, ou ainda, a imitação do sentido interno, tal

como expõe Jousse. Por outro lado, é possível compreender pelo ponto de vista de

Bachelard, pela identificação com a matéria que acontece ali.

No estágio de verão, trabalhamos a dinâmica do mar da seguinte maneira: no

salão maior da Escola, um grupo avança ao longo de sua maior extensão, como ondas

do mar. Todo o grupo é uma grande onda, com sua irregularidade, com seu ritmo que

cresce, estoura e vai se espalhando mais e mais lento, até chegar ao seu limite e

começa a retroceder, recuando lentamente e pouco a pouco vai se acumulando para

tornar-se uma grande superfície puxada para a vertical, até que vai se tornar outra

onda que explodirá. Num outro momento, experimentamos fazer a mesma coisa num

espaço bem menor, transpondo aquele deslocamento para o corpo. Como produzir

essa mesma impressão de deslocamento e de variações de ritmos, sem todo aquele

deslocamento?

Realizamos, nessa mesma ocasião, um trabalho sobre as formas, ou seja, sobre

a dinâmica que se pode identificar nelas. Trabalhamos com bastões, de maneira

semelhante ao exercício demonstrado no vídeo de Lecoq (Roy e Carasso,1999).

Iniciamos caminhando pela sala com os joelhos flexionados e os pés deslizando no

chão fluidamente como o deslocamento do teatro Nô. Carregamos um bastão

horizontalmente, com os braços estendidos ao longo do corpo, numa só mão, sem

pressioná-lo. Vamos passando uns pelos outros, pegando bastões e deixando que

peguem também. Não podem haver sobressaltos, é tudo bem suave, mas direto,

objetivo, econômico. Os bastões deslizam em linhas horizontais, seguem uma

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tendência de moverem-se na direção que apontam, são eles que estão em evidência.

Num segundo momento, em pares, seguramos um único bastão apenas com o dedo

indicador, pressionando-o contra o dedo do colega. Experimentamos as possibilidades

de movimento dessa linha, observando sua relação com nossos corpos e com o

espaço. Pegamos, então, um bastão cada um e os colocamos paralelamente com o

bastão do colega, fazendo uma superfície imaginária, como uma ilusão de ótica.

Experimentamos como se pode mover essa superfície juntos, sem perdê-la, sem

quebrar a ilusão. Em seguida, em grupos de três pessoas, um bastão cada, procuramos

fazer outras formas se moverem. Cada um segura a ponta de dois bastões com uma

mão só na aresta da figura, formando um triângulo com três jogadores, ou um

quadrado com quatro jogadores, ou ainda, como experimentei com uma colega,

intercalando a segunda mão de uma pessoa para outra. Como se move essa forma? A

dica é de seguir a direção das linhas e dos planos. E se adicionarmos uma cor a essa

forma, como isso afeta sua dinâmica? Como se move um quadrado amarelo? É

diferente de um vermelho?

O fato da professora sugerir adicionar uma cor ao triângulo com o qual

trabalhávamos, parece que o deixava mais leve ou mais pesado, conforme ela sugeria

o amarelo e depois o preto. Poder de sugestão? Sim, certamente, pois os bastões eram

os mesmos, num claro exemplo dos mecanismos de associação da mente, que aqui são

diretamente transpostos para a maneira como vou segurar esses bastões, para a

mudança na movimentação dessa forma, para a relação com eles. Além da

experimentação física, esses exercícios agem, portanto, como um despertar para a

observação das formas que se pode ver em torno de nós, para serem transpostas para a

noção de composição para a cena. O fato de ter realizado o exercício com essa colega

que é alemã, musicista, que trabalha com performance, estudou em Nova Iorque,

cursou uma escola Waldorf59 do fundamental ao ensino médio na Alemanha, fez toda

a diferença, visto que é alguém que já possui uma trajetória de trabalho artístico e

corporal, com uma consciência de ritmo, espaço e deslocamento.

As diferentes experiências provindas de diferentes culturas fazem diferença na

Escola de Lecoq. É algo que ele sempre valorizou muito, a troca entre as culturas e a

tentativa de estabelecer bases comuns para todas elas. Nesse sentido também a busca

59 Escola Waldorf, cuja pedagogia é embasada na antroposofia de Rudolf Steiner.

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da noção de permanência e de fundo comum parecem ecoar seu desejo de atingir o

cerne do teatro com a mímica de fundo, ou seja, a mimesis de que todas as artes são

instrumentos. O instrumento, no nosso caso, é o corpo do ator. Corpo e mente

indissociáveis, premissa básica. Portanto, a pessoa do ator/atriz como agente da

mimesis, cuja techné é a de Lecoq enquanto treinamento físico e enquanto inspiração

ou fonte da natureza como fundo infinito e interconectado de possibilidades concretas

capazes de serem desdobradas em analogias as mais abstratas que a imaginação possa

proporcionar.

A Escola recebia alunos com alguma experiência prévia, não eram

completamente iniciantes, fosse qual fosse seu ramo artístico. Principalmente no

estágio de verão, onde parece que o público é ainda mais eclético. Somente no ano em

que lá estive, 2011, havia colegas da Itália, da China, da Alemanha, do Canadá, da

Turquia, do Brasil, da Espanha, dos Estados Unidos, da Austrália, que eu possa

recordar. Da França havia uma cantora lírica e professora do Conservatório Nacional

de Canto, uma baterista de uma banda de rock, uma estudante de sociologia

interessada em performances políticas de resistência, uma atriz. Essa mistura de

culturas parte em busca dessa compreensão do que é comum entre todas elas,

propondo elementos da natureza como algo que deve ser reconhecido por todas, assim

como a base mesma da arte, a mimesis que está por baixo de toda manifestação

artística.

Fig.14 – Alunos na oficina “Imaginação e criação pelo movimento” – Blumenau-SC, 2012.

Fonte: Arquivo pessoal

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Observando os corpos dos alunos60 nas fotos acima, podemos reparar nas

possibilidades de movimentos que surgem, mesmo tendo como foco a maneira como

as formas podem se deslocar em função de suas linhas. As linhas puxam ou

empurram-nas pelo espaço possibilitando diferentes imagens. Da mesma maneira

pode-se perceber desenhos diferentes dependendo de onde o corpo do ator se coloca

em relação às linhas.

Além de trabalhar precisão, atenção, foco, percepção espacial, esses exercícios

com os bastões servem também para perceber momentos de transição. Passar do

equilíbrio para o desequilíbrio é o que leva algo a se mover. Até mesmo para

caminhar é necessário desequilibrar, portanto, qualquer movimento, por mais simples

que seja, deve passar por esse estágio. Busca-se que o ator organize seu movimento e

esteja sempre consciente ao passar de um momento da cena para outro, que confie no

desequilíbrio, pois ele é necessário para que o jogo tenha seguimento. Dependendo do

foco almejado há diferentes capacidades que se pode experimentar nesses exercícios,

tais como o jogo do ator com o objeto – fazer do objeto sujeito, colocá-lo em

evidência –, do ator em relação à forma, da forma em relação ao espaço, da maneira

como se segura o bastão, do ritmo do deslocamento, da combinação de mais de uma

forma. Esse exercício com os bastões mostra-se útil também para o trabalho realizado

com a pintura, analisada no item 5.3. No caso dessa combinação de formas, por

exemplo, nos remete a quadros de Kandinski com aquela espécie de jogo de formas

geométricas de uma de suas fases. Fig. 15 – Kandinski - Composition VIII, 1923.

Fonte: http://www.wassilykandinsky.net/ Acesso em 15/01/13

60 Alunos durante a oficina em Blumenau, 2012.

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No estágio de verão, em Paris, experimentamos também as águas do mar

enquanto linhas no espaço, trabalhadas da mesma maneira com os bastões. Um grupo

de cinco ou seis pessoas ao fundo da sala, com os bastões segurados na posição

horizontal na altura do peito, avançam pelo espaço buscando reproduzir a dinâmica do

mar, com a irregularidade das ondas, através das linhas que os bastões desenham.

Umas mais para cima, outras abaixo, valorizar o objeto e o grupo para alcançar o

“corpo” do mar. Tudo se trata de transpor, de traduzir para o corpo! São expressões

bem enfatizadas lá.

Fizemos essa improvisação de grupo com os bastões, criamos a dinâmica do mar... a coisa toda é sobre encontrar o ritmo, a dinâmica, como podemos jogar juntos e criar essa dinâmica. É sobre escutar uns aos outros, sentir o “pulsar”. Isto é o mar? É o ritmo do mar? E depois transpor esse ritmo para um tema e aparecem coisas que você nunca iria imaginar e seu trabalho transforma-se em algo maior do que aquilo de “ok, você se move para cá, depois vai para lá”. É outra coisa! Na verdade está tocando no invisível, tocando algo mais profundo. (MACPHERSON, 2011)61

Fig.16 Ondas do mar (acima); Preparação corporal Cia Oigalê (Sequência de 3 fotos).

Fonte: Arquivo pessoal

61 Colleen Macpherson , atriz canadense colega no Estágio de Verão da Escola. Entrevista concedida em 23/09/11 em Paris.

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Fonte: Arquivo pessoal

Com a Cia Oigalê realizamos o mesmo experimento, inicialmente com os

bastões (figuras acima) e depois sem eles, procurando manter a mesma dinâmica, os

mesmos movimentos do corpo e de deslocamento. Esse exercício foi utlizado mais

tarde transposto à dinâmica do vento, e levado para a cena de “O Baile…” nas

passagens em que a personagem Minuana, a matriarca, impunha-se perante todos os

demais, instaurando uma ventania em cena (figura abaixo).

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Fig.17 Atriz Mariana Hoeler e Ator Paulo Farias em “O Baile dos Anastácio”- Porto Alegre, 2012.

Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)

Os exercícios costumam ser propostos com instruções objetivas, sucintas, sem

muitas explicações. É no fazer que vamos nos dando conta, é em movimento que

vamos avançando e construindo um entendimento de todos esses aspectos. Ao sair da

sala de trabalho e deparar-se com a rua, as pessoas, os sons, vai-se instalando uma

maneira de ver e de observar constante, e isso é o aprendizado do olhar. Tal como

Lecoq (1997, p.31) afirma, é uma “escola do olhar”. É nesse sentido que a imaginação

vai sendo trabalhada, a partir da atenção ao redor, da observação da natureza de que

falava Lecoq e que identificamos como parte da herança de Copeau, de Hébert e de

todo um pensamento de época, como mencionado no capítulo 1.

Para trabalhar com o fogo com a Oigalê, fomos para o pátio do Hospital São

Pedro, local onde a companhia trabalha, acendemos alguns palitos de fósforos para

observarmos as chamas. Um por um, observamos como ela cresce, como se balança

com o vento e como se extingue: início, meio e fim, como nos movimentos que

fazemos sempre há essa preocupação que visa a limpeza, clareza, quando relacionadas

à consciência do movimento. Em seguida, observamos um pedaço de jornal amassado

ao qual foi ateado fogo: pequenas chamas, no início, depois longas, verticais,

“gordas”, amarelas, e seu conseqüente processo de extinção. Observamos as pequenas

viradas do papel incitado pelo próprio movimento das chamas e as brasas que vão

diminuindo até tornarem-se cinzas pretas que se espalham com o vento. Pode parecer

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estranho ficar observando uma folha de papel queimar enquanto temos tanto trabalho

a fazer para montar um espetáculo que já tinha até data de estreia, mas a riqueza das

imagens que se pôde observar é muito diferente de somente lembrá-las. Em seguida

os atores procuraram reproduzir o que haviam assistido. O trabalho foi no próprio

pátio onde estávamos, o que foi prejudicial à qualidade dos movimentos, pois

iniciaram no chão e evoluíram a partir dali, mas o solo sujo e irregular dificultou a

liberdade de movimentos e eles não conseguiram evoluir o quanto seria desejável.

Quando voltamos a experimentar o fogo dentro da sequência dos elementos como

descritas anteriormente, a qualidade dos movimentos foi bastante diferente, com mais

nuances, sutilezas e entrega dos atores à experimentação, além da capacidade de

agruparem-se de modo mais interessante, ao comporem a imagem da fogueira. O fato

de ter a memória renovada e a atenção que talvez nunca tivesse sido empregada dessa

maneira e com esse propósito, alterou a capacidade de percepção dos atores

viabilizando diferenças em suas movimentações.

Nesse caso, não nos baseamos na observação ‘automática’, mas na “percepção

atenta” que se refere Sham’s (2003, p.58) em seus estudos sobre o imaginário a partir

de Bergson. Baseado nesse autor, Sham’s refere-se à observação ‘automática’ como

uma espécie de reconhecimento pela distração e a outra como um reconhecimento

atento, assim como existem os movimentos automáticos e os conscientes. Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais se afirma, cria hábitos nascentes que a sufocarão se ela não se renovar por um esforço constante: o automatismo a espreita. O mais vivo pensamento se congelará na fórmula que o exprime. (BERGSON, 1979, p.172)

É por causa da tendência em cair no automatismo que o ator deve combater

incansavelmente essa espécie de névoa que pode adormecer sua criatividade.

Automatismo induzido pela repetição e pela falta de atenção a estímulos que, no caso

da natureza como usados por Lecoq, estão sempre a seu dispor. Devemos levar em

conta que a percepção é uma seleção, ela não cria nada, pelo contrário, seu papel é de

eliminar do conjunto de imagens que se vê aquelas que não interessam, ou que não

são suportáveis. Essa compreensão provém não só de Bergson, desdobrada em sua

obra sobre matéria e memória, mas está também na base dos estudos psicanalíticos

provenientes de Freud e seguidos por Lacan. Daí a importância da condução da

observação como oportunidade de o ator dedicar sua atenção e perceber detalhes que

não havia reparado anteriormente.

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O trabalho com os elementos realizado com a Oigalê contribuiu na pesquisa

relativa ao processo de “O Baile...” principalmente pela afinidade com o tema, que

trata da terra, dos pampas, com o vento Minuano e com o fogo, aqui visto como “a

biblioteca cultural do gaúcho”, que reunia as famílias no local onde assavam o

churrasco e esquentavam a água do chimarrão. Perguntado sobre a contribuição desse

trabalho, um dos participantes afirma:

Esse trabalho contribui muito, fica como um subtexto para o trabalho, contribuindo para a imaginação do ator não só na hora de criar, mas na hora da cena mesmo, de como tu manténs isso. Uma coisa é trabalhar o ar, outra é trabalhar as várias intensidades de ar, (...) e do próprio fogo: esse fogo queima, o fogo azul é mais forte que o amarelo... A questão da imaginação pode ser bem profunda nesse sentido e pode ajudar bastante na criação. (LEITE, 2012)62

O tema dos elementos, na Escola, estende-se aos cataclismos, como, por

exemplo, terremotos, tempestades, incêndios e nevascas. Quando a quebra de uma

situação harmônica é levada ao extremo, pode haver uma perda de controle da

situação, tornando-se uma situação de emergência, onde travamos uma luta para

seguir vivendo frente a estes eventos extremos vindo do exterior. Experimentamos

também o combate entre os elementos, a troca de um para o outro, as situações

cotidianas onde as pessoas têm a característica desses elementos, como que

“incorporam” em suas atitudes. Quando participei como aluna no curso de formação

na Escola, meu grupo criou o ambiente de um bar no qual chegavam algumas pessoas

que haviam escolhido a mesma mesa para sentarem-se. Cada uma delas entrava em

cena com o registro corporal de um elemento, ou seja, como fogo, terra, água ou ar, e

com essa sua maneira de se movimentar e agir, surgiam as relações entre elas e o jogo

ocorria.

62 Hamilton Leite, ator, diretor, produtor, fundador da Cia Oigalê de Teatro. Entrevista concedida em 30/10/12.

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5.2 MATÉRIAS

O artista dedica sua vida ao que ainda não é real, mas que reside dentro da matéria. (Aristóteles)

No estágio de verão na Escola experimentamos algumas matérias, tais como o

torrão de açúcar, o ferro, a manteiga. Começamos pelo torrão de açúcar:

primeiramente ela pediu para fazermos um torrão de açúcar desmanchando-se na

água. Em seguida, trouxe para a sala um copo d’água onde pudemos observar a

maneira como o torrão de açúcar se desmancha efetivamente: inicia pelas

extremidades, vão caindo uns poucos grãozinhos, depois uns pedaços maiores, como

se ele se ajoelhasse, e então outro pedaço, até que vai dissolvendo todos os

pedacinhos que restam. Voltamos a experimentar com o grande grupo, pesquisando

nos próprios corpos, voltando ao mecanismo de rejogo do material. Apresentamos

individualmente, de três em três alunos, e depois pequenos grupos que constituem o

torrão. A partir daí a proposta foi uma transposição para o jogo do coro: a situação foi

a de uma multidão que inicia de costas e, quando se vira, encontra sua cidade sendo

destruída por chamas. Somos a multidão e vamos nos tornando a própria cidade, que

vai tombando como os torrões de açúcar. Surgiram imagens fortes, emocionantes,

mas sem sentimentalismo, a pura dinâmica da destruição, do trágico. É igualmente

importante assistir aos colegas, quando pode-se constatar uma sobreposição de

imagens, do torrão e da cidade, nesse caso, voltando à ideia de ‘metáfora da metáfora’

antes mencionada.

Do ponto de vista técnico, é evidente a diferença entre a tentativa de mover-se

como o torrão antes e depois de presenciar o evento real da dissolução, o que atesta a

importância dada à observação das coisas como elas são, colhendo da natureza sua

dinâmica própria e singular, observando seus detalhes. É muito diferente a primeira

experimentação, apenas de memória ou suposição, e aquela após a observação do

evento real.

Comentando sobre os elementos e as matérias, a professora chama a atenção

para o fato de que os elementos são ativos, eles provocam os movimentos, mas as

matérias não, elas são movidas por algo, sofrem uma ação, se submetem, são

passivas. Isso se reflete diretamente no trabalho corporal, implica em o ator ativar o

“motor” que os vai mover. Trata-se de transpor, ou ainda, de traduzir os vários temas

trabalhados anteriormente, como as cores, os elementos, as matérias. Usar oposições

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para colocar algo em evidência, por exemplo: se queres preto, colocas um ponto

branco; se queres mostrar a altura, colocas ao lado de algo que desce, e assim por

diante.

Dando seguimento a essa lógica de trabalho, improvisamos, então, ‘o drama

da manteiga’. Seu processo de derretimento desde que um pedaço é tirado da

geladeira até ser colocado numa panela. Acende-se o fogo e ela vai derretendo-se a

partir das extremidades e depois ferve! Achar a maneira como isso se dá e como

transpor para o corpo essa dinâmica, como parecer manteiga, sentir-se manteiga,

mover-se tal qual. Fizemos um círculo que era a frigideira e observamos vários

colegas derreterem-se como manteiga, o que evidenciou aqueles que se aproximaram

mais da dinâmica do material em si, que encontraram o ritmo desse evento, que se

deram o tempo e a entrega do corpo para esse fim. Em seguida experimentamos algo

bem oposto, o chumbo. Em pares, um é o material e o outro tenta dobrá-lo. Trabalha-

se a resistência, o peso, a densidade, trazendo para o corpo a memória dessas

sensações, percepções, atualizando a memória tanto corporal como imaginativa.

Num segundo momento, depois de experimentar as matérias no próprio corpo,

passamos para uma improvisação em que devemos preparar uma receita para comer:

os diferentes ingredientes, suas diferentes consistências quando puras e quando

misturadas com as outras, a mudança de estado, de consistência da matéria gera algo

trágico. Em grupo, preparamos uma galinha assada com vegetais cozidos ao redor.

Assim, passamos pelos estágios de sermos descascados, partidos, temperados,

alternando o fazer e sofrer a ação com a liberdade que a abstração permite.

Com esse mesmo intuito de ‘treinar’ a observação, paramos para olhar como

um saco plástico amassado se desdobra quando largado no chão durante a oficina de

Blumenau. Para tanto, sugeri que nos sentássemos para observar algumas matérias em

movimento, como um Sonrisal efervescente no copo d’água, assim como um saco

plástico e um papel se desamassando. Uma matéria por vez, atentando para possíveis

mudanças desde o início, seu ápice e a desaceleração do movimento até parar ou se

dissolver completamente. Em seguida propus reproduzirmos esses processos com o

corpo. Quando refizemos esses exercícios no dia seguinte, dessa vez sem a

observação direta dos objetos, pude observar claramente a diferença entre os alunos

que haviam presenciado o fenômeno e os que não. Aqueles que haviam visto traziam

maior detalhamento nos movimentos, maior sutileza, mostravam ritmos e impulsos

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diferentes baseados nas matérias reais. Os outros faziam movimentos bem menos

claros, dando a impressão que estavam apenas cumprindo uma tarefa solicitada.

Você colocou o saquinho de plástico ali e ficamos observando, isso é muito importante! A gente fez um exercício parecido na aula de Técnicas, só que lá a gente escreveu num papel, tínhamos que falar sobre o papel, por exemplo, que é branco, é reto, é amassado, mas a gente ia escrevendo, o que é diferente de visualizar o papel amassado. Depois até amassamos o papel, mas depois que já fizemos, então é muito num nível mental, falar e depois fazer, e eu gosto dessa coisa assim de fazer e depois falar! Adorei, quero mais!(SPILHERE, 2012)63

Outra aluna dessa mesma oficina, professora de artes onde trabalha teatro com

crianças, comentou que este trabalho com matérias e cores abriram-lhe um caminho

de possibilidades para aplacar as dificuldades que tem em trabalhar o corpo com suas

crianças, “fazer essa relação direta, pois com os pequenos temos que mostrar, ao invés

de dizer ‘faz!’”.

No trabalho com a companhia Oigalê introduzi também o trabalho com os

elementos e posteriormente com as matérias. Improvisamos também com a manteiga

e com a pasta de dente. A manteiga inicia dura, gelada, retangular na geladeira e

depois é colocada numa panela e começa a derreter, fritar, cada um individualmente

no chão, depois vou conduzindo e indico que coloco um punhado de alho picado que

a manteiga envolve e frita, depois um macarrão e eles vão se juntando enquanto

macarrão, quando já estão misturados e por vezes são o macarrão que se separa, por

vezes a manteiga que o envolve.

A pasta de dentes inicia como água e vou conduzindo seu tornar-se mais

espessa ao serem adicionados produtos que lhe conferem a consistência de pasta. Esta

vai sendo colocada dentro de um tubo e tomando sua forma, comprimida para enchê-

lo completamente, ficando ali confinada uns instantes ao ser colocada uma tampa –

tudo imaginário, evidentemente. Num dado momento ele será apertado para ser

colocado sobre uma escova de dentes para ser usado. Como se dá essa saída do tubo?

Experimentar diferentes maneiras, em pé e no chão.

Sempre, nesses exercícios, instruo os atores a experimentarem falarem

algumas frases e observarem a sua voz, que deve servir como alternativas para seus

63 Marlon Spilhere, ator e performer, participou da oficina em Blumenau, 2012. Entrevista concedida nessa ocasião.

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trabalhos mais tarde. Da mesma maneira, peço que verifiquem se é possível deslocar-

se, e como se dá esse movimento, para encontrar outros caminhos para o corpo. No

caso da pasta de dentes, observar o que modifica na voz e nos deslocamentos quando

a tampa é aberta e sai do tubo, por exemplo. Outras matérias utilizadas foram um

Sonrisal efervescente num copo d’água, um pedaço de plástico fino amassado, um

saco de um plástico mais resistente também amassado e depois solto, um retalho de

espuma de aproximadamente um metro que era dobrado e amassado o máximo

possível e, depois de solto, que fazia uns poucos movimentos bruscos e caía com

leveza de uma vez só.

No exercício do Sonrisal, fui indicando o copo com água, retomando a

sensação de água e o momento em que o Sonrisal foi colocado gerando grande

efervescência. Da mesma maneira conduzi o experimento dos dois tipos de plástico e

da espuma, sempre solicitando o experimento da qualidade da voz naquele ritmo,

naquela textura, naquela dinâmica.

Num segundo momento, propus uma improvisação onde havia um baile no

qual as pessoas iam chegando e estabelecendo as relações entre eles, sendo que cada

um deveria entrar com uma matéria como apoio de sua movimentação e gestos.

Surgiu um homem que queria conquistar todas as moças com seu jeito pastoso, um

brigão que pegava fogo, uma moça que ficava deslocada, com quem ninguém queria

dançar, falava com frases curtas, com o desajeitamento da espuma, e assim por diante.

As fichas vão caindo aos poucos…esse trabalho das formas, da água, da matéria, do corpo…Para mim, uma coisa muito legal é essa pesquisa da água, quando ela deixa de ser água, tu consegues botar uma qualidade no teu corpo! Eu não quero fazer que sou água, mas quando tu tiveres a qualidade dessa água em movimentos de dar a mão, de dar um tapa, ou qualquer ação… A pasta de dente, parece que tem vontade própria, tu apertas o tubo e ela puff, cai pra fora (vai mostrando com o corpo), … cai de outro jeito… ela se molda…(risos) Sim, e tu começas a ver isso em cena, alguém que chega do teu lado e vem te contar uma estória (vai demonstrando chegando perto da colega…) “tri pasta de dente"! Esse é o barato da coisa, quando começas a brincar com isso… (BRASIL, 2012)

Procuramos trabalhar diferentes possibilidades de texturas das matérias, tais

como o duro, o mole, o flexível, o quebrável, o em pó, o líquido, o gosmento, o

opaco, o com brilho, o absorvente, etc. A matéria vista de dentro: o corpo é a matéria

que pode ser manipulada ou não, mas ela mesma não manipula visto que é passiva,

como um chicle na boca sente os dentes, a língua e torna-se bola. Observamos como

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cada matéria se comporta, suas especificidades, que vão contatar com aquilo que é

comum a todas, e aí tocamos o cerne da visão de Lecoq, o Fundo Poético Comum.

5.3 PINTURA

Tema bastante abstrato para abordar com o corpo, seu desenvolvimento desse

exige a passagem por várias etapas antes de chegar à pintura em si. Na Escola,

envolvem exercícios com rudimentos da linguagem da pantomima, da música, da

percepção do espaço, da luz e das cores. Minha abordagem nem sempre cumpre todas

as etapas dessa mesma maneira, seleciono conforme as condições dos atores e do

tempo disponível para o trabalho. Tanto a pintura quanto a música e a poesia são

temas que estão incluídos naquilo que Lecoq chamava de ‘abordagem às artes’. Numa

medida, todos os três seguem uma mesma lógica de trabalho, o de detectar a dinâmica

intrínseca, procurar reproduzi-las e jogar com elas. O primeiro temas das artes

trabalhado é o da música, depois a poesia e por último a pintura.

Os exercícios de improvisação com a linguagem da pantomima servem como

estímulos para alargar as possibilidades de criação que passam a ir além da realidade,

pode-se fazer coisas que são normalmente impossíveis, como na lógica dos desenhos

animados, que costumam inspirar esse trabalho. A liberdade do jogo nessa linguagem

abre caminhos para a imaginação ao aproximar-se das brincadeiras infantis em que

tudo é possível, tudo pode ser transformado sem nenhuma preocupação com a

verossimilhança, com a lógica conhecida, com parecer absurdo.

No estágio de verão o exercício com a pantomima foi conduzido da seguinte

maneira: iniciamos em duplas com a proposta de um dizer para o outro que ela/ele é

bela/o, convidá-la/o para nadar e ela/ele não aceitar. Sem palavras, mas com o corpo

todo, pode-se usar o que for necessário como argumento para convencer o outro.

Exercício divertido que, embora partindo de uma proposta simples, já anuncia a

dificuldade de encontrar meios para se expressar somente pelo corpo sem ser banal e

explícito. O segundo exercício consistia em desenhar com o dedo uma paisagem que a

pessoa conhece bem, atendo-se aos detalhes, envolvendo concentração e memória.

Em seguida leva-se o braço e depois coloca-se todo o corpo nesse desenho. No

exercício seguinte, desenha-se com o dedo e o braço um rosto que se conheça bem.

Por último, desenha-se um personagem com rosto e corpo com o dedo e em seguida

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todo o braço passa a desenhar, até que “entra-se” nele, dando-lhe movimentos, dando

vida a esse ser. Em todas as etapas, sempre tem-se a oportunidade de olhar o trabalho

uns dos outros, o que vai enriquecendo o imaginário, alimentando a criatividade com

novas possibilidades de movimentos e ideias, estimuladas pela diversidade dos

participantes de diferentes nacionalidades, com maneiras de se moverem e paisagens

assaz distintas. Como o resultado é bastante abstrato, o que fica são impressões,

imagens, alternativas de movimentos. Não visam torna-se cenas, são meios, mas

podem ser desenvolvidas a fundo para mais tarde, desenvolverem-se como linguagens

próprias. Essa é justamente a forma como se formaram as várias companhias ao longo

dos anos da Escola, que inspiram-se em algum aspecto da pedagogia e a desenvolvem

como modo ou estilo próprios.

No final desta aula foi proposta uma improvisação na qual dever-se-ia

escolher uma situação, em grupos de cinco pessoas, e procurar utilizar todas aquelas

possibilidades de expressão relacionadas à pantomima. A situação do grupo do qual

participei foi a de um assalto a uma carruagem que vinha trazendo um casal nobre.

Uma colega fazia o som dos cavalos com uma batucada em seu próprio corpo, eu

cantava uma música de faroeste, tínhamos o casal e o cocheiro à frente: os ladrões os

surpreendem e assim acontece o assalto. O professor avaliava cada apresentação,

introduzindo as regras de utilização do espaço, de foco da ação, de busca de algum

sentido e compreensão de uma narrativa, ou seja, não se trata de total liberdade sem

parâmetros, não é “qualquer coisa” (ce n’est pas n’importe quoi) como costumava

dizer Lecoq. De maneira geral não funcionou muito bem porque, sendo um curso de

curta duração, as pessoas não tinham ainda destreza e limpeza gestual suficientes para

conseguirem aludir às imagens que queriam.

Quando fiz o curso de formação na Escola, esses exercícios sem palavras eram

mais precisos, trabalhávamos muito mais tempo em cada etapa. Nesta experiência do

estágio de verão, foi um tanto escolar, também pela falta de clareza sobre quando

inicia e quando termina a cena, sobre a ação geral e a de cada um. Ainda assim,

começava-se a perceber uma presença diferente nos atores, uma qualidade de

movimento um pouco diferenciado naqueles que começavam a perceber a

necessidade de se afastar de seu corpo e de seus movimentos cotidianos. Foi um

primeiro vôo da imaginação, um empurrão para uma experimentação mais ousada,

mais criativa, sem compromisso com o real, com o coerente, com o possível. É um

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exercício que permite que você acesse a dimensão lúdica, como brincadeira de criança

onde tudo se transforma de um instante para o outro, em que se pode ser tudo, pode-se

mudar de lado, ser a polícia e ser o ladrão. Uma espécie de aval para a liberdade

criativa, ainda que existam regras que vamos assimilando ao assistir aos colegas, tais

como a de não se mover todos ao mesmo tempo, de passar o foco da ação, de deixar

claros os gestos que explicitam a ação, com início, meio e fim definidos. É o primeiro

salto imaginativo mais amplo, a partir de ferramentas relativamente simples, como

essas de desenhar o que se quer e de entrar no desenho possibilitando assim trazer

diferentes objetos e elementos para a cena de forma inusitada. A pantomima tem um

lugar na pedagogia muito mais no sentido de via para a imaginação do que tanto pelo

aspecto técnico, embora ambos estejam intrinsecamente conectados.

Já o trabalho com a música inicia, na Escola, com todos escutando uma

música escolhida pelo professor de maneira bem relaxada, duas vezes, com a tarefa de

observar que sensações suscita, que palavras vêm à mente. Na terceira vez, todos

experimentam movimentarem-se de acordo com a atmosfera da música, que no caso

era melancólica, triste. Como é o caminhar, qual o ritmo desse deslocamento, como o

resto do corpo se engaja? Experimentamos então uma improvisação cujo tema era

“encontro e desencontro”: duas pessoas por vez, sempre com a mesma música para

acessar a emoção, jogar e ser verdadeiro. Observar a tensão entre os dois atores, as

tensões que se produzem no espaço, a qualidade do movimento, a ‘cor’ da cena. No

meu caso, joguei um encontro numa parada de ônibus com a colega Ayça, da Turquia.

A tensão do jogo foi aumentando, deixando transparecer uma raiva, com jogos de

olhares que não se encontram, porém acabei exagerando e perdendo a medida do

verdadeiro e tornou-se caricato, embora cômico, mas que não era a proposta, pois não

era o clima da música. A proposta, afinal, era a de jogar ‘com’ a música, a favor dela,

no espírito dela e não contra, como tornou-se minha proposta. Jogar ‘contra’ a música

é uma outra proposta, que resulta em outra linguagem, que pode ser cômica ou

mesmo a dos bufões.

Entretanto, como tratam-se de exercícios, é importante manter os limites do

jogo proposto, uma vez que são através deles, justamente, que sucede a maneira de

ensinar as regras do jogo, as diferentes possibilidades, não deixando cair no ‘qualquer

coisa’. Afinal, trata-se de uma pedagogia que estabelece essas restrições de jogo como

desafios para o ator e, nesse momento, ainda não se está trabalhando com a criação

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livre, que terá a sua hora. São passos estabelecidos para favorecer a criação, etapa que

por vezes não é bem aceita pelos alunos, que se sentem tolhidos, reclamam não ter a

total liberdade, talvez como herança romântica de ver o trabalho do ator como

dependente apenas da sua inspiração, relegando a técnica a um plano inferior.

O trabalho segue com outro professor de forma bastante semelhante ao

anterior quanto à dinâmica inicial de escutar a música relaxadamente, sem fazer mais

nada, de apenas entregar-se ao escutar. A música escolhida agora é a de Bella Bartok,

compositor favorito de Lecoq para os exercícios, pois ela tem variações intensas,

mudanças de climas, de tons, de instrumentos, sonoridades. Escutar a música e

observar: Que palavras vêm à mente? Alguma forma? Alguma cor? Que material?

Matéria? Formas? Sensações? A primeira proposta foi a de mover-se como “eu sou a

música”, atentando para os diferentes instrumentos e as diferentes dinâmicas. No

segundo momento, mover-se sem a música, mas com ela em mente. No terceiro

momento, estar no espaço ‘com’ a música: como ela te move? Como ela te puxa e te

empurra? Em que direções? Com que força? Com que duração? No quarto momento,

você toca na música com as mãos, como se ela fosse um objeto, deslocando-se pelo

espaço pode-se acariciá-la, tentar pegá-la, acompanhá-la num percurso, segui-la para

onde ela lhe levar, em diferentes direções e níveis, a música é um objeto que pode ser

manipulado, jogado, amassado, preso, e assim por diante. No próximo momento do

exercício, experimenta-se ser puxado ou empurrado pela música, reagindo a esses

impulsos que ela lhe provoca, move-se ‘depois’ dela. No próximo, você é Deus, você

cria a música, seus movimentos são ‘antes’ dela, gerando-a, antecipando o que vem.

Por último, experimentamos jogar o ‘contrário’ da música, momento em que entramos

no universo da loucura, do deboche, do bufão, da farsa, do clown.

Seguindo com as improvisações com o tema da música, no estágio de verão,

fizemos uma preparação com acrobacia e depois trabalhamos ações cotidianas com a

música. A proposta era a de cada um escolher um prato da culinária que sabe fazer e,

somente com mímica, gestos e movimentos do corpo, colocar as ações no ritmo da

música, que era bem rápida, tipo ‘napolitana’. Inicia com os movimentos de tamanho

normal, depois vai aumentando, vai ‘decolando’, sem preocupação com o realismo,

mas mantendo coerência com o que está fazendo. Il faut s’amuser!! Divertir-se com

isso, incluir movimentos virtuoses reais ou sugeridos: podem-se lançar coisas, jogar

para cima e pegar, ou seja, sair da lógica comum realista. Realizamos primeiramente

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individualmente, depois em grupos de três ou de quatro ao mesmo tempo, o que já dá

ares de uma cena. Nesse caso, jogar com as tensões entre os colegas, procurar

estabelecer dinâmicas em relação a eles, como, por exemplo, um vai diminuir o ritmo

enquanto o outro está ‘enlouquecendo’, mas sempre com total controle dos seus

movimentos, dos colegas, da cena, levando sempre em conta que o ritmo inclui pausa.

Trabalhamos também com uma segunda proposta a partir de uma música de

Schubert, em grupos de cinco, na qual todos ‘somos’ a música. Escutamos primeiro,

como das outras vezes, e depois nos movemos. Devemos observar aspectos como a

criação de espaços entre os membros do grupo, não moverem-se todos ao mesmo

tempo. Levando em conta o ponto fixo, criar oposições, tensões, a pulsação da

música, as linhas que podem ser desenhadas, mas sem usar somente os braços, que é a

tendência que se observa. Não se trata de dançar a música, deve-se atentar para não

‘colar’ demais a ela, mas jogar ‘com’ ela, deixando espaços para ela possa aparecer

sozinha, para ela ter a sua vez no jogo e não ofuscá-la com nosso constante mover

‘sobre’ a mesma.

Uma outra proposta de improvisação utilizando o trabalho sobre espaços

internos e externos foi “o Escritor”. Com a mesma música que já havíamos trabalhado

no dia anterior, de Bartok, temos em cena uma cadeira e uma mesa com uma caneta e

algumas folhas. Situação 1: Espaço Externo. O escritor quer escrever, mas há uma

porção de coisas que o distraem, o perturbam, o impedem. São barulhos externos,

carros, porta, vento, vizinhos, o que quiser. A música é esse agente externo, joga-se a

reação em função de seus movimentos. Reforça-se a ideia de jogar com a música, ela

é o parceiro de cena. Observar que a cena tenha um crescento, como a música propõe.

Buscar maneiras de mostrar o que está acontecendo externamente com o corpo e as

ações ou não ações. Como é esse espaço onde o escritor está? Tem janelas? Quantas?

Onde estão? Estão abertas? Como são? Como é o piso? Esta frio? Muito quente?

Mostrar o externo, tomando a música como o apoio: “apoiar-se” nela, nas ações no

espaço. Situação 2: Espaço Interno. Agora a proposta era jogar o contrário, ou seja, a

música está dentro do escritor, ela é o apoio interno para suas emoções, aquilo que vai

impulsionar as ações. Como pode-se mostrar o que se passa internamente? Quais

ações poderão evidenciar esse estado? É importante procurar definir e desenhar o

espaço externo também, mas em função do que se passa internamente.

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De volta à universidade, no Brasil, propus um experimento semelhante

realizado com duas colegas64 no intuito de refazer essa prática com a música e escutar

suas impressões. Intencionava trabalhar com atrizes brasileiras e experientes, verificar

como difeririam seus comentários daqueles das colegas estrangeiras. Já escolher uma

música não foi uma tarefa fácil. Não é qualquer uma que serve para esses fins. A

música precisa ter rompantes, ter ‘climas’, surpresas, para que se possa jogar com ela.

Percebi que na Escola, desde que havia tido aulas com Lecoq e agora, vinte anos mais

tarde, ainda era Bella Bartok e Schubert as mais usadas. Optei por Verdi #6, que tinha

as nuances necessárias para o exercício. Escutamos uma vez com perguntas em mente

como as mencionadas acima sobre cor, palavras, imagens que viriam à mente. Em

seguida, propus os vários aspectos na mesma música, tais como: eu sou a música, eu a

manipulo, eu sou manipulado, eu sou deus, sempre mantendo a conexão com as

matérias, as cores e as palavras.

Observando as imagens captadas em vídeo, observei que a diferença entre as

três atrizes foi significativa, principalmente no que tange suas diferentes raízes

práticas. Num primeiro momento, todas inclinam-se a movimentarem-se como já

conhecem, mesmo dentro das diretivas estabelecidas. Heloise, que trabalhou sempre

mais voltada para o texto e o método de Stanislavski, movia-se mais com os braços e

tronco ou como se fosse um personagem. Bárbara, com trabalho de dança e corpo

predominantemente, como que dançava com a música, e eu, com base em Lecoq,

tendia a desenhar objetos, manipulando mais do que qualquer outra coisa. Como a

música tinha sete minutos, foram surgindo outras possibilidades na medida que

esgotavam-se as referências conhecidas, e é aí que o exercício ganha força e surgem

quebras de padrões, ou seja, o hábito vai dando espaço para a imaginação.

A primeira impressão após o término da música evidencia o prazer de brincar

com essas propostas. A tendência, entretanto, é a de dançar com a música, a maneira

como estamos acostumados, o corpo responde quase que automaticamente a esse

estímulo. Bárbara comenta sobre os contrastes na música, o quanto colaboram para

gerar diferenças entre movimentos fracos e fortes, que propiciam movimentações

mais densas, gerando diferentes estados. A dificuldade é justamente conseguir sair do

padrão, descolar-se da música, e é justamente nesse aspecto que tal prática colabora,

64 Heloise Vidor e Bárbara Biscaro. Encontro realizado na UDESC, 11/11/11.

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na medida em que nos deixamos contaminar por ritmos que não são os nossos, como

oportunidades de alargar as próprias possibilidades. Há um momento em que a música

parece que vai terminar e então recomeça, ou seja, ela “puxa o tapete” do ator,

oportunizando o inusitado. Heloise avalia que em alguns momentos ela é capaz de

visualizar toda uma cena, com um local, pessoas, todo um contexto pronto.

Concluímos, de maneira consensual, que a música em si já preenche a

imaginação, que independente de pensarmos em uma situação ou não, podemos nos

sentir dentro da proposta de qualquer forma. Foi interessante perceber o que ativa a

imaginação de cada uma. A música costuma mexer facilmente com as pessoas, em

maior escala do que a pintura o faz, por exemplo. Acredito que seja por isso que

começamos pela música na Escola, pois já fazemos um levantamento de cores,

imagens, possibilidades, que depois serão fundamentais para a abordagem da pintura.

Numa improvisação desse tipo há altos e baixos, momentos em que nos

desconectamos, o que é normal, é quando caímos nos movimentos habituais. Assim,

esse jogo entre o corpo que já sabe e o corpo que quer saber é uma tensão constante,

principalmente para quem já tem um treinamento, o que tende a aprisionar-nos à

nossa própria maneira de nos movermos. Nesse experimento não tínhamos público, o

faz toda a diferença, pois o olhar do outro colabora para nos organizar. Há uma

medida que vamos encontrando ao se sentir assistidas. “Dar forma é o grande nó.

Como ela vem e como se estrutura, o barro que você vai dando forma”, comenta

Bárbara. Concluímos que essa é a razão pela qual é importante que haja alguém que

assista esse trabalho de ativação corporal, para que possa fazer uso desse material no

momento da criação, pois, do contrário, sua transformação arrisca de não acontecer.

Função normalmente atribuída ao diretor, partir desse tipo de improvisação para

construir o espetáculo faz toda a diferença para o ator, pois contribui no sentido de re-

presentificar a experiência, uma vez que ele poderá re-presentificar aquele gesto com

uma tal cor, uma tal textura, oriundos de tal ou qual estímulo.

Esse olhar treinado para observar a natureza, sua dinâmica e desenhos no

espaço, mencionado anteriormente, vai percorrer também as linhas da arquitetura, em

exercícios propostos com esse fim. O tema da pintura, portanto, inicia-se com

improvisações nas quais são enfocadas os espaços, as luzes, as cores, considerando as

matérias e os elementos que já foram trabalhados enquanto textura e possibilidades

dinâmicas.

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No estágio de verão o professor propôs alguns exercícios para a percepção da

luz, como, por exemplo, a observação das lâmpadas fluorescentes que iluminam a

sala. Ele as liga e desliga algumas vezes para observarmos a maneira como ela se

espalha na lâmpada até ficar totalmente acesa, num primeiro momento, e depois

experimentamos reproduzi-la com o corpo, todo o grupo ao mesmo tempo

experimenta como é ser essa luz, no mecanismo de rejogo. Em seguida assistia-se a

pequenos grupos de quatro alunos para identificar onde poder-se-ia detectar o

movimento mais justo, aqueles nos quais consegue-se identificar a luz que

conhecemos e que tínhamos observado recentemente. Experimentamos também uma

luz externa, de um dia de sol e de um dia nublado, no sentido de perceber como isso

afeta o movimento do corpo.

Passamos para exercícios com o espaço: ver o espaço, ser o espaço. A

proposta de improvisação foi a de um grupo de cinco pessoas ao mesmo tempo, mas

individualmente, chegarem à Gare du Nord. Uma das maiores estações de trens de

Paris, normalmente conhecida por todos por sua importância e beleza, um local

amplo, com pé direito altíssimo, muito bem preservado, com enorme circulação de

pessoas. Mostrar como é esse espaço através do corpo, considerando os diversos

deslocamentos em diferentes direções que acontecem simultaneamente ali, assim

como a luz, a amplitude do lugar, o tamanho, as cores, o espaço interno e externo

(antes de entrar na Gare e estando lá dentro). Depois experimentamos o espaço de

uma adega, oposto ao anterior, escuro, apertado, frio, sem ninguém. O terceiro local

foi a galeria Lafayette, com seu altíssimo pé direito, a quantidade de pessoas

circulando, a luz, o apelo das compras.

Exercícios de difícil execução, nos quais não há certo ou errado, há uma

busca, uma pesquisa que gera maneiras diferentes de se mover e de criar, gerando um

alongamento tal relacionado a essas imagens e sensações. Contribuem para o

desenvolvimento de um olhar para essas características do entorno, que afetam

diretamente a percepção a partir daquelas tentativas de rejogo.

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Fig. 18 Gare du Nord, Paris.

Fonte: Arquivo pessoal

Fig.19 Shopping Centre, Paris.

Fonte: Arquivo pessoal

Na improvisação seguinte, que enfocava ainda os espaços internos e externos,

cada pessoa devia escolher um lugar que quisesse mostrar e os colegas procuravam

descobrir que lugar era. Devíamos atentar para aspectos como se era um local interno

ou externo, qual a temperatura do ambiente, seu tamanho, se é público ou privado, se

havia mais gente presente, se a luz era natural ou artificial. Em seguida, passamos

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para um exercício no qual experimentavam-se espaços externos e internos da própria

pessoa. Cada um escolhia uma situação num lugar onde deveria chegar, mostrar de

forma mais ou menos realista o que se passa nesse ambiente externo a si.

Subitamente, o ator procura mostrar o que se passa dentro de si, o que sente, o que

gostaria de fazer e não pode através de “quebras”, e, em seguida, volta ao “normal”.

Segundo o professor Christophe, o que se quer ver é o imaginário de cada um, o que

ele traz consigo, o que quer trabalhar. Nesses exercícios apoiamo-nos em lugares e

coisas que conhecemos, que temos lembrança de uma experiência, e como nosso

imaginário a recompõe. Para que o corpo possa transpor esse imaginário, ir além dele,

pode-se utilizar todos os recursos trabalhos, como a acrobacia, os Vinte Movimentos

e as improvisações, que visam abrir outras possibilidades de movimentos, para que o

corpo possa sair dos seus hábitos e se distanciar do cotidiano.

Nesse exercício, entretanto, muitos dos alunos acabam por cair num gênero

mais psicológico, demonstrando a dificuldade de atingir-se o distanciamento com o

cotidiano, o que fragilizava a atuação, não atingindo nem o objetivo do não-cotidiano

e nem mesmo uma verdade que nos levasse a acreditar no que ele propunha. Não

voltamos a fazê-lo, infelizmente, mas trata-se de um tipo de exercício que deve ser

repetido para que, aos poucos, se consiga entrar realmente na proposta.

Uma das colegas65 propôs uma sala de aula em que ela entrava, estabelecia

bem o espaço, a presença de colegas, a carteira onde sentava-se e tentava chamar a

atenção da professora. Subitamente ela tem um ataque de impaciência, sobe na

carteira, ‘enlouquece’, e imediatamente depois já está de volta sentada, sorrindo e

ainda com a mão no ar esperando ser atendida pela professora. Esse foi o exercício

que melhor funcionou, no qual era possível identificar os dois espaços de maneira

crível, um salto imaginativo no tempo e no espaço num estalar dos dedos.

Após o trabalho com os espaços, entramos no tema das cores, iniciando pelas

luzes. Na época em que cursei a Escola fizemos ainda exercícios relacionados as luzes

que envolviam a observação e consequentente rejogo de diferentes momentos do dia,

os reflexos das luzes da cidade no chão molhado depois da chuva, a luminosidade de

diferentes estações, e assim por diante.

65 a musicista alemã Maya Von Kiregntein.

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São exercícios de difícil execução, uma pesquisa cujos resultados efetivos já

iniciam no momento em que o ator dispõe seu corpo para essa tentativa, a própria

experiência de passar por essa busca e de observar os momentos em que alguém

alcança essa sutileza, há uma rede de imagens que vai tomando forma, seja

concretamente na cena ou abstratamente na imaginação, ambas acarretando no

alargamento criativo a partir das possibilidades que ali surgem.

Há pinturas que se prestam para esse exercício mais do que outras. É

interessante haver tensão entre as formas e as linhas que se opõe, que se possa

perceber uma dinâmica, algo que talvez uma “natureza morta” não vá propiciar, pelo

menos enquanto exercício, para promover essa leitura pictórica que se está propondo.

Como no exemplo abaixo, é uma pintura que facilita essa percepção de linhas, planos,

contrastes, formas, tensões.

Fig.20 “Guernica” de Pablo Picasso, 1937.

Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/search/guernica/1. Acesso em 15/01/13.

Entramos, então, no tema das cores. Tema controverso, uma vez que implica

num descobrir a dinâmica das cores, porém já existe uma espécie de definição para

cada uma delas, o que é questionável. A ideia parte da busca em perceber a dinâmica

das cores, o espaço que usam, o tempo que duram, se ela move-se no nível alto ou no

baixo, qual a intensidade de seus movimentos, se tendem a puxar ou empurrar.

Normalmente trabalha-se com as cores do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo,

verde, azul, índigo, violeta. Num primeiro momento, o grande grupo trabalha em

conjunto, ainda que individualmente, procurando mover-se da maneira com a

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dinâmica de cada cor. Cinco pessoas ficam em cena, experimentam uma dada cor,

depois um por um os demonstra e procuramos detectar onde parece mais preciso, le

plus juste. O mais impressionante é que podemos realmente perceber em quem

identificamos melhor uma dada cor, ou, pelo menos, as cores que não são. Por

exemplo, o amarelo tem uma dinâmica mais rápida, mais luminosa, mais aberta,

diferente de alguém que move-se com ritmos lentos ou com o corpo encurvado,

fechado.

Para Lecoq, depois de muitos anos desenvolvendo esses estudos

experimentais, as dinâmicas das cores já estão mapeadas, e, portanto, os alunos

acabam sendo induzidos a encontrarem aquelas dinâmicas. Pode-se questionar essas

dinâmicas e o fato de ter que ser percebidas da mesma maneira por todos, mas quando

assistimos as pessoas se moverem, vemos que faz sentido aquilo que ele propõe.

Segundo Lecoq, as características e os movimentos específicos de cada cor seriam os

seguintes: amarelo: ritmo rápido, movimentos em todas as direções, para fora, grande,

leve, respira, saltos, histeria; laranja: acrescenta-se torção ao amarelo, mais aberto,

redondo, diminui a intensidade, mas ainda bem dinâmico; vermelho: torção, emoção,

vibrante, concentrado, denso, para dentro, intenso; verde: golpes rápidos, movimentos

bruscos, porém leves e direcionados, aberto, mais denso, para a frente e acima,

buscando amplitude; azul: como que planando, flutuando, amplo, horizonte, grandes

linhas; azul ultramarino ou índigo: infinito, movimentos longos, como que sendo

puxado para o infinito, denso, intenso, profundo, mistério; violeta: fechado, profundo,

amedrontado, opressão, espaço limitado. Essas características foram anotadas quando

cursei a Escola com o professor em 1992, e constatei que seguem semelhantes com os

professores que o sucedem atualmente.

O que é particularmente controverso sobre essa abordagem das cores é, no

meu entender, a questão cultural. A colega chinesa ilumina essa discussão ao nos

informar que na China o vermelho é uma cor alegre, usada para casamentos, que

jamais associaria com violência, peso, densidade, como havíamos sido induzidos a

percebê-la nos exercícios durante o estágio de verão. Da mesma maneira ocorre com

o branco, que no ocidente é considerado a cor da paz, da calma, do casamento, para

eles é usada em funerais. A colega comenta, então, que estava ansiosa em voltar a

Hong Kong e usar essa nova conexão com as cores, experimentar trazer para o

público outras ideias sobre o vermelho, não só a do casamento, podendo trazer à tona

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a violência, ou a guerra, ou o calor, pois que essas ideias alargaram sua imaginação

para além do mero uso das cores. Ela sustenta que, por ter estado na França e ter tido

a oportunidade de ver o trabalho de outros alunos de outras partes do mundo, era

capaz de ver diferentes vermelhos, diferentes amarelos, diferentes maneiras de pensar,

o que foi uma experiência ímpar em sua vida.

Nesse momento penso que a dinâmica por trás das cores deveria ser a mesma independente do background cultural de cada pessoa. Porque, generalizando, dizer que vermelho é quente ou é frio, são interpretações. Acredito as cores deveriam ser uma língua/linguagem que todo mundo conhece. [...] Deve haver algo em comum, porque quando fizemos o exercício do vermelho, muitos se moveram de maneiras bastante semelhantes, todos se moviam com uma energia similar, então acredito que deva haver algo em comum nas cores [...] Sim, acho que a arte é uma linguagem comum, que ali temos uma linguagem comum para todos. (YANG, 2011).66

Nesse sentido é que aparece a questão cultural, ou seja, a simbologia associada

à determinada manifestação da natureza, neste caso. As cores são ondas luminosas

percebidas visualmente que possuem determinadas frequência que as definem como

tal ou qual, são raios que refletem-se sobre células especializadas da retina que

transmitem informações para o cérebro permitindo sua percepção67. São fenômenos

da natureza que mostram-se para todos os humanos da mesma maneira, enquanto

percepção, independentemente de valores atribuídas a elas. O que pode diferir,

portanto, são as associações simbólicas a elas relacionadas. A busca do ‘amarelo de

todos amarelos’ ou o ‘vermelho de todos os vermelhos’, faz sentido, portanto,

enquanto busca do ‘fundo comum’ a todas elas, daquilo que é sua manifestação

natural. O Fundo Poético Comum refere-se, portanto, àquilo que está além da leitura

simbólica, instancia que as ciências e a espiritualidade, mais do que as artes,

costumam referir-se, o que apresenta-se como um diferencial dessa visão de teatro.

Na abordagem às cores realizamos um exercício que é uma passagem por um

“tubo do Arco-Íris”. Quando ministrado por Lecoq na época que cursei a Escola, o

exercício propunha a passagem por um corredor definido por todo o espaço da sala,

como num corredor onde por hora tudo é violeta, depois azulão, azul claro – e vão se

66 Atriz e poetisa, Adda Yang, Hong Kong, China. Colega no Estágio de verão. Entrevista em 23/09/11, Paris.

67 Definição baseada em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cor – acesso em 17/01/13

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seguindo as cores do arco-íris. Devíamos atentar para as seguintes questões: que

sensação cada cor causa? Que movimento cada uma suscita? Que ritmo (mais lento,

mais brusco,etc.)? Você fica com vontade de ficar ali ou de passar rápido? Que ideia

de espaço vem com a cor (é um teto alto, baixo, é amplo, estreito, etc.)?

Já no estágio de verão a improvisação proposta como “tubo do arco-íris” foi

diferente: ao longo da sala há um tubo imaginário das cores do arco-íris delimitado

pela professora, através do qual o aluno desloca-se enquanto ela vai colocando

bastões no chão para marcar a extensão de cada cor. A principal questão a ser

percebida é: Qual o espaço que cada cor usa, tanto na horizontal como na vertical e

em outras direções? Pode-se questionar se os tamanhos são senso comum, ou se

somos induzidos a encontrar esse padrão que já é fruto da pesquisa anterior de Lecoq

que as entendeu assim. De qualquer maneira, faz sentido aquilo que é proposto, é uma

aproximação, não uma verdade inquestionável, que serve para fins pedagógicos, para

que se possa visualizar esses espaços e assim trazer tais qualidades para o seu

trabalho. Fig.21 – “O concerto” - Marc Chagall, 1957.

Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/search/chagall/1. Acesso em 15/01/13

Como introdução para o tema da arte da pintura tivemos como tarefa de casa

observá-las em museus de Paris durante o fim de semana. Além de visitar

presencialmente alguns museus, pesquisei na biblioteca do Centre Georges Pompidou

em livros de pintura, enormes, onde pude buscar alguns dos que me são mais

conhecidos e que queria rever, como Chagall, Caravaggio, Miró, Calder, Kandinski.

A seguir apresento relatos do que observei neles, de acordo com o que já conhecia

dessa prática.

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Michelangelo Caravaggio(1571-1610): Luz e sombra. Subitamente surge da

escuridão um rosto, uma mão, uma parte do corpo. Cenas fortes: decapitação, jogo,

disputas, corpos nus, morte, tortura. Detalhes das mãos, do olhar. Pinceladas suaves

de branco aparecem de vez em quando. Situações, como fotos de momentos

dramáticos da vida daquelas pessoas ali. Pessoas tristes, velhas, enrugadas. Muito

preto, alguns vermelhos.

Wassily Kandinski(1866-1944): A invenção do abstrato. Associava a pintura à

música, com reflexões teóricas comparando a linguagem sonora à imagética. Cores

intensas, fortes, manchas, azuis, pretos, brancos, amarelos, pinceladas, linhas,

algumas formas. Kandinski é tido como o lançador do movimento pela abstração nas

artes visuais, na pintura. Buscava a abstração da música, apoiava-se na música para

pintar. Início do século XX, 1912. Vejo claramente uma relação com esse trabalho,

cem anos depois, no qual apoiamo-nos na pintura, na música e na poesia para transpor

para o jogo do ator. Interessante pensar em “apoios”, agora não mais abstratos, mas

bem concretos, misturados à “vida real”.

Mark Chagall(1887-1985): o livro chama-se Les couleurs de la poesie (as

cores da poesia): amarelo solar, pulsante, alegre; manchas cor de laranja propiciam

profundidade; pinceladas soltas, riscos pretos leves, muitos deles sobrepostos definem

as figuras de seu universo permeado por cabras, flores, galos, cidades, pássaros,

símbolos bíblicos, letras judaicas; azul mais sombrio, denso, noturno; vermelho

pulsante, sangue, paixão, vida e morte, entrega.

Joan Miró(1893-1983): Fundo com diferentes tons, manchas esfumaçadas,

formas geométricas pretas, ligadas por linhas que dão movimento, ritmo, dinâmica.

Parece sempre em movimento. Estrelas. Pouco a pouco as formas ficam maiores e há

os espaços de uma apenas uma cor. Fundos azuis.

Alexander Calder(1898-1976): Leveza, ar dinâmica, movimento em seus

móbiles.

Allan Kaprow(1927-2006): Em 1959 o artista faz o primeiro Happening

jamais feito, “Eighteen Happenings in 6 parts”, onde ele usou os “Rearrangeable

Pannels” (Painéis rearranjáveis) que estão expostos no museu Georges Pompidou.

Esses painéis deveriam ser expostos por cada expositor, em galerias e museus, da

maneira como quisessem. Este novo gênero buscava quebrar as fronteiras entre arte e

vida, entre artes visuais e artes do espetáculo (performance art). Outra textura,

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espesso, diversidade de objetos, de linhas e planos, espelhos, miscelânea,

versatilidade, multicores, colagem. Sinto como que entrando numa jornada através do seu corpo, explorando a poesia, a pintura, a música e tudo mais, você acaba por conectar com aquela parte de você que nunca imaginou, particularmente porque estamos falando do corpo. Fala-se da mente, do intelectual, mas aqui é através do corpo e de como você abre uma porta de sua imaginação – trata-se de abrir a imaginação! Você começa a ver quais cores estão naquela pintura, como se movem, para onde se dirigem, todo o trabalho está relacionado ao fazer emergir sua imaginação. (MACPHERSON, 2011)68

No estágio experimentamos um jogo de improvisação com o “combate das

cores”. Em grupos de cinco ou seis pessoas, nos dividíamos em duas cores. As

questões a resolver eram do tipo: Como elas se relacionam? Quanto espaço cada uma

toma? Alguma se sobreporá à outra formando uma terceira cor? Trata-se de uma

briga? Os que assistem tentam decifrar que cores eram. Meu grupo jogou com azul e

amarelo. O azul mais condensado, o amarelo brilhava ao redor. Entretanto, faltou

unidade no amarelo, que acabou se dispersando e não passou a ideia da cor, ou seja,

não foi evidenciado e os colegas não decifraram o que fizemos. Houve outro grupo

que fez uma briga entre o vermelho e o verde, na qual era evidente a dificuldade de

misturar essas duas cores. Ao mesmo tempo, podia ser vista como uma cena de

batalha, rica e ampla, passível de ser transposta para alguma situação e vir a tornar-se

parte de um espetáculo. Fig.22 “Naufrágio”, 1805. William Turner

Fonte: http://www.wikipaintings.org/en/search/Turner/1. Acesso em 17/01/13

68 Atriz Coleen Macoherson, Toronto, Canadá. Entrevista concedida em 22/09/2011.

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A primeira improvisação com o tema da pintura foi a partir de um quadro de

Turner (1775-1851), proposto pelo professor, mostrando uma foto num livro (foto

acima). Os alunos contemplam a figura durante um tempo, enquanto o professor vai

conduzindo a observação chamando a atenção para as linhas, os volumes de cores, a

luz, os contrastes, as tensões entre as formas e as cores, o equilíbrio e desequilíbrio

elas, o trajeto do olhar. Como nosso olhar percorre a pintura, para onde olha-se em

primeiro lugar, e em seguida, e para onde retorna o olhar, qual a leitura que o pintor

propõe. Observar a matéria, o ritmo das pinceladas desse pintor, que é diferente em

cada artista. Em grupos de cinco ou seis pessoas experimentamos mostrar o quadro.

Assistimos uns aos outros e vamos procurando identificar as cores, as formas, as

tensões, os ritmos, as soluções que cada um encontra para transpor determinado

aspecto. No caso desse quadro acima, em especial, surgiam questões sobre como

mostrar esse movimento da água que sobre em oposição ao barco que desce, a tensão

em relação às pessoas na água, as linhas propostas pelas velas e a quebra que a luz

aporta para a estrutura do quadro. São questões de observação, identificação,

transposição.

Normalmente inicia-se com uma imagem que seria a primeira impressão do

quadro e logo passa-se para outras imagens seguindo a dinâmica que acredita-se ser

mais justa para causar a sensação do todo da tela. São enfatizadas as transições, o não

movermos todos juntos para valorizar determinadas instâncias do quadro, assim como

a dinâmica do corpo ao mover-se que seguirá tal ou qual matéria e cor, a composição

com os corpos dos colegas, o espaço que utiliza, as linhas ali presentes, enfim, os

diversos aspectos que haviam sido anteriormente trabalhados aqui fazem sentido, são

o esteio que temos para amparar a improvisação, agora já no campo da criação

embora ainda com regras delimitantes.

Ao assistirmos os trabalhos dos diversos grupos detectam-se as diferentes

maneiras de cada um para alcançar o objetivo. Mesmo quando não se consegue

nitidamente ver o quadro de onde partiram, surgem imagens do grupo e dos atores

ricas, curiosas, matéria bruta para construir cenas. Ao observar o trabalho dos colegas,

pode-se enxergar situações, atmosferas, conflitos, estados dos atores e do grupo de

prontidão e entrega, de jogarem-se num mundo abstrato com a concretude de seus

corpos.

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Na oficina ministrada em Blumenau propus um trabalho a partir de um quadro

de Van Gogh (1853-1890) mostrado na figura abaixo. O trabalho iniciou com o grupo

observando a foto dessa pintura que escolhi no livro que lhes apresentei. Orientei a

observação no mesmo sentido daquele proposto no curso de verão em Paris. Pedi que

tomassem alguns minutos para se organizarem e em seguida mostrarem o quadro em

grupo, com três trocas de composições que acompanhassem a dinâmica dessa obra.

Fig.23 “Um trigal com Ciprestes”, 1889. Van Gogh.

Fonte: http://www.vangoghgallery.com/. Acesso em 15/01/13

Fig. 24 Alunos da oficina “Imaginação pelo Movimento”- Blumenau

Fonte: Arquivo pessoal

Observando as fotos pode-se notar que os alunos reproduziram a imagem do

quadro como um espelho e não para o público. Pode-se notar principalmente a partir

do rapaz de verde que se coloca como o volume do cipreste à esquerda, enquanto que,

na tela, essa árvore está à direita. Esse experimento foi realizado no terceiro dia de

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oficina, foi a primeira tentativa após exercícios preparatórios com aqueles mesmos

Vinte Movimentos que costumo usar, mencionados anteriormente, assim como com

cores e matérias. Percebe-se que alguns dos alunos ainda estão muito preocupados

com a forma mimética, usando sobretudo os braços para mimar a forma externa. Ao

seguirmos o trabalho vamos em busca do movimento que essa imagem propõe, com

suas formas, cores, textura, composição. Não basta uma imagem reproduzida, mas é

uma série delas para expressar o movimento que ela traz, levando em conta sua

emanação: intensidade, teor, a tensão entre as cores, as formas, umas em relação às

outras e em relação à moldura, a composição, a pressão do pincel que denota o ritmo

das pinceladas como ficam evidentes em Van Gogh, por exemplo.

Com a Oigalê trabalhamos com um quadro de Rubens (1577-1640), na foto

abaixo, enfocando os mesmos aspectos técnicos. A escolha deste quadro foi em

função de ser uma paisagem com linhas mais abertas e amplas, pelas quais poderia

estabelecer imagens campesinas, que se assemelhassem à ideia dos pampas, universo

pictórico com o qual íamos trabalhar no espetáculo. Surgiram movimentos e

composições interessantes, com o arco-íris sendo “desenhado”com a execução de uma

estrelinha (ou roda, da acrobacia) por uma das atrizes que impulsionava a troca de

posição de todos os outros em cena, que se aglomeravam de um lado como o bloco

escuro das árvores que podemos observar no quadro.

Fig.25 “Paisagem com Arco Íris”, 1638. Peter Paul Rubens.

Fonte: http://www.peterpaulrubens.org/. Acesso em 17/01/13

Em outro dia de ensaio trabalhamos com uma pintura de Rubens, no

intuito de, além da questão técnica das linhas e composições, aproximarmo-nos do

ambiente dos bufões, linguagem que o grupo pretendia usar em seu próximo

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espetáculo. Importante ressaltar que a cada vez que vamos trabalhar com um quadro

em especial, normalmente através de fotos em um livro, aproveita-se para conhecer

outros quadros, para assim poder observar seu estilo, sua poética, suas pinceladas, as

atmosferas que cria, os temas que aborda, conjunto que vai influenciar na construção

corporal. Nesse caso, portanto, todo o livro serviu como estímulo de criação. O

resultado não foi tão proveitoso como esperado, suponho que pela dificuldade do

elenco em mergulhar no universo da feiura e do grotesco que essas obras abordam, e

que o grupo ofereceu bastante resistência em penetrar. Tanto foi assim, que optamos

por deixar a ideia de bufões, dada a pressa para a construção do espetáculo que já

tinha data de estreia, fato que não permitia o tempo de experimentação necessário

para esse tipo de linguagem.

Esse trabalho dos quadros, de uma maneira geral, me abre muito a percepção para ver o equilíbrio dos corpos no espaço, das formas no espaço. Então se tu conscientizas isso fica tão bom quanto o início, meio e fim do movimento dos corpos em cena. Então isso tudo torna-se um organismo e aí tu consegues o quadro, se isso estiver bem. E consciente, então, nossa! É para isso que eu quero estar aqui trabalhando. (BRASIL, 2012)69

Quando interrogada sobre o trabalho com a pintura no estágio de verão em

Paris, a colega chinesa Adda, comenta que não conhecia a maioria dos pintores com

os quais improvisamos, mas, ainda assim, acredita que o fato não constituía uma

barreira para ela poder contribuir com o grupo:

...conhecia alguns, os mais famosos, pois não tenho a oportunidade de vê-los em Hong Kong. Por exemplo, o pintor com o qual trabalhamos, Carravagio, eu não conhecia antes [...] e mover-se de acordo com essa pintura eu acho muito muito interessante, porque isso me convenceu de que uma pintura ou qualquer forma de arte pode ser uma linguagem comum. Isto é muito lindo e tocante. (YANG, 2011)

69 Ator Paulo Brasil da Cia.Oigalê.

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6 CRIAÇÃO

Chegamos ao ápice da prática, ao objetivo maior de todo o processo de

preparação até aqui exposto. A criação equivale ao auto-cours na pedagogia de

Lecoq, ou seja, o momento de criar algo, organizado de alguma maneira, sobre um

dado tema para ser mostrado a um público, como foi explicado na apresentação de

aspectos da Escola. Aqui me estenderei também para outras experiências de criações

que resultaram em espetáculos, no sentido de analisá-las quanto às possíveis

contribuições dessas práticas em tais processos criativos, do ponto de vista da direção

e da atuação.

6.1 AUTO-COURS

A improvisação já é uma prática de criação que propicia a transformação do

ator em autor na medida em que permite liberar suas forças criativas. Entretanto, da

maneira aqui exposta, encontra-se ainda limitada a um caminho determinado por um

professor ou diretor, ou seja, são jogos com regras definidas. O espaço para criação

refere-se ao momento mais livre no qual, a partir de todas as práticas anteriores, o

artista vai procurar expressar suas ideias, seus desejos. Na pedagogia de Lecoq existe

um tempo diário reservado para esse tipo de exercício chamado auto-cours, o modo

como Lecoq designa o trabalho que os alunos desenvolvem sozinhos, suas criações

pessoais. Na Escola, a cada sexta-feira os alunos recebem um tema para improvisar,

como, por exemplo, “um lugar, um fato”, “o homem invisível”, “o combate das

matérias”, “um quadro, um pintor”, “a cidade”. Eles organizam-se em pequenos

grupos que trabalharão durante toda a semana sem a supervisão de um professor, por

cerca de uma hora, tempo designado para essa criação, que será apresentada na sexta-

feira seguinte diante de todos os professores e colegas da Escola.

Ao final do primeiro ano, no último trabalho do auto-cours, os alunos

escolhem um tema de seu interesse, concreto ou abstrato, como, por exemplo, “ o

lixo”, “o pão”, “o risco”, “o imigrante”, “o hospital”. Eles saem para as ruas para

observar o cotidiano dos lugares onde se manifesta esse tema, procurando captar tudo

o que faz parte daquele universo. Baseados nessa experiência vivida, criam um curto

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espetáculo, apresentado nas soirés, uma das poucas ocasiões em que a Escola é aberta

ao público em geral.

Alguns alunos reclamam desse sistema, sentindo-se lesados por pagarem tão

caro por uma escola em que devem trabalhar diariamente um período sem o professor,

somente com os colegas. Alegam, por exemplo, que seria mais proveitoso se fossem

criticados ao longo da semana, para não chegarem no dia da apresentação com

trabalhos precários, como pode acontecer, o que aproxima-se do que sucede em uma

situação qualquer de estreia. No meu entender, são alunos que têm dificuldade em

compreender esse momento como uma aprendizagem, ou uma parte dela, pois estão

acostumados com a concepção hierárquica através da qual um professor é o mestre e

ele o aprendiz, numa atitude passiva, subalterna, filial. Essa atitude é, muitas vezes,

transferida para o diretor, e os atores vão continuar esperando que eles, então, lhe

digam o que fazer. Considero fundamental essa experimentação sem a orientação

direta de um professor, com a dificuldade da criação em grupo, com diferentes

desejos e entendimentos que se entrecruzam em busca de soluções. Há uma diferença

significativa na postura desses atores, uma vez que passam a perceber a necessidade

de sua própria contribuição. Espera-se que o ator pesquise sobre sua personagem, que

busque referências corporais e comportamentais para ela, que encontre as palavras

que ela diria, que construa o universo ao qual ela pertence. O diretor vai dando pistas,

a encenação vai tomando corpo, mas no meu entender, o ator deve trazer sua

colaboração, a partir de sua pesquisa pessoal.

É uma experiência que visa forjar uma atitude artística, onde se é forçado a se

colocar, a contribuir, acarretando um amadurecimento tanto em termos artísticos

quanto pessoais. É também uma oportunidade rara de exercitar a criação

dramatúrgica, aspecto difícil de ser trabalhado sem o apoio do texto. Esse

procedimento contribui para a autonomia do ator frente a seu trabalho, salientando a

capacidade de tornar-se autor de seu próprio teatro, uma crença ali difundida e com a

qual compartilho.

Nesse sentido, o auto-cours pode ser considerado uma prática inovadora em

Lecoq que ecoa no teatro contemporâneo, uma vez que subsidia a valorização da

criação colaborativa. Trata-se de um exercício pedagógico que, além da atuação,

trabalha também a direção e a dramaturgia. É um momento em que todos os atores

são criadores, em que têm a oportunidade de exercerem sua autoria, ainda que em

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constante negociação com os colegas. O exercício de apresentar semanalmente

desenvolve um sentido de objetividade na criação, de aguçamento do olhar e de

capacidade crítica – tanto ao fazê-la quanto de estar aberto para recebê-la. Baseado na

premissa “não falem, façam”, o auto-cours propicia uma vivência mais próxima à

vida profissional, em que há um prazo determinado para estrear, e o artista deve

contribuir, sem ficar esperando que alguém defina o que ele deve fazer – a não ser que

seja essa a atitude dele esperada.

No estágio de verão, em 2011, foi proposto o auto-cours com um trabalho

sobre a pintura. Chegara o momento da criação de um quadro. Após treze dias de

práticas diárias permeadas de exercícios que identifico como preparatórios, tais como

os rudimentos de acrobacia, de máscara neutra, alguns dos Vinte Movimentos,

improvisações com os elementos, com as cores e algumas matérias, desenho das

linhas com bastões, com os temas da música e da poesia, passamos à pintura.

Surpreendeu-me constatar a maneira como todos os exercícios feitos até então eram

relevantes para o que queríamos desenvolver.

Os professores e os alunos trouxeram livros com diferentes pintores, a partir

dos quais deveríamos definir os grupos em função do artista com o qual quiséssemos

trabalhar. Meu grupo formou-se com seis pessoas em torno das obras do pintor inglês

Francis Bacon e, em consenso, escolhemos o tríptico May–June (foto abaixo).

Fig.26 “May–June”, 1973 - Francis Bacon

Fonte: http://www.francis-bacon.com/paintings/triptych-may-june-1973/?c=72-73.Acesso em 17/01/13

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Tal como a experiência com o quadro de Turner, fomos instruídos a iniciar

pela estrutura do quadro, pela primeira impressão que ele suscita, pela sensação que

causa. Atentar para onde o olhar é dirigido a partir das linhas, das formas, das cores,

das manchas, considerando as tensões e as relações de equilíbrio e desequilíbrio entre

esses elementos. Fizemos uma primeira tentativa a partir dessas diretivas dadas pelo

professor, dando início ao processo de criação, em grupo, de forma colaborativa.

Decidimos, primeiramente, encontrar as cores e tons daquele quadro, bem como

maneiras de transpor seu equilíbrio na tela para o espaço onde estávamos, buscar

modos de traduzir a imagem do plano bidimensional para o tridimensional. Em

seguida, buscamos com o corpo as matérias que traduzissem a densidade daquelas

formas, que nos “apoiasse” na construção. Que matéria teria esse preto? Surgiram

relações com piche, com vômito, ou ainda, de vômito com a espessura do piche.

Passamos a identificar as formas: os retângulos vermelhos escuros na vertical, os

beges na horizontal, a figura central que parece girar ou torcer várias cores

simultaneamente, e ainda as linhas brancas que demarcam todas essas formas. Parecia

haver um movimento em espiral que girava em tensão…

Iniciamos pelas linhas verticais e uma horizontal presentes na tela, uma pessoa

procurou trazer o vermelho escuro das laterais, outra o preto central, outra trazia essa

figura densa, multicolorida com um movimento contido, outra ainda ficava na lateral

como que empurrando todas as outras, sem se tocarem, dando uma impressão de

compressão, outra tentava estabelecer o retângulo bege de base. As flechinhas brancas

e a lâmpada deixamos para outro momento.

Quanto à composição da tela, nos questionávamos e experimentávamos em

movimento: será que é essa figura central que se move ou é o espaço que se move ao

redor dela? Parece que era o espaço mesmo que se movia ao seu redor, como a

sensação do quarto girando para alguém que bebeu demais. Formamos, então, a

estrutura das linhas brancas com nossos corpos, e aos poucos nos movíamos ao redor

da figura central que, por sua vez, provocava um constante desequilíbrio. Algumas

colegas voltavam para as linhas verticais, mas com um constante movimento de

agrupamento no centro. Uma colega fazia uma torção com o corpo descendo em

“ponte”, até que chegávamos a uma espécie de explosão em diversas direções e

ritmos, que acalmava-se no momento que eu fazia um movimento para a frente me

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espraiando no solo, inspirada na dinâmica das ondas no mar, em alusão ao vômito que

identificáramos.

Outro grupo trabalhou com um quadro de Van Gogh e o outro ainda com um

de Caravaggio. As diferentes dinâmicas das cores e das formas de cada pintor, o ritmo

de suas pinceladas, a espessura da tinta utilizada, as nuances propiciadas pelas luzes,

eram características que tornavam-se visíveis diante dessa pequena plateia, com maior

ou menor clareza dependendo do grupo. Embora partindo de um modelo, os quadros,

o objetivo final é que possamos ser o pintor. Que se possa pintar o que se queira com

o corpo, seja uma pintura que um diretor queria usar como parâmetro ou algo que

decidimos usar internamente para nos guiar. Por exemplo, se vou fazer uma

personagem de Lorca, posso associar a ele determinadas cores, matérias, dinâmicas,

animais, poesia, música, enfim, uma gama de possibilidades imaginativas que se

abrem para contribuir com a criação.

Percebe-se aqui a influência do alargamento da imaginação, que veio sendo

trabalhada nas improvisações a partir das identificações com a natureza das coisas e

suas dinâmicas, instrumentalizando o corpo no sentido de alargar suas possibilidades

de ritmos, qualidades de presença, percepção de composição no espaço. É com esse

corpo previamente trabalhado que o ator vai formar, vai criar uma linguagem. O

objetivo maior de todo esse trabalho de absorção anterior é justamente chegar a esse

momento com o corpo disponível, com meios concretos, físicos, materializados,

incorporados, com a imaginação desperta fluindo através de movimentos corporais de

cunho poético.

Foi importante constatar como, nesse processo, emergia a vontade e a

necessidade de usar vários exercícios propostos anteriormente, confirmando o acerto

do caminho pedagógico da Escola. Precisávamos das matérias, das cores, da

manipulação e da movimentação dos bastões em formas, das tensões entre nós, de não

nos movermos todos ao mesmo tempo, do mar com bastões, enfim, tudo estava a

serviço da construção daquela tela de Bacon. Para expressar algo tão abstrato havia

várias ferramentas para se lançar mão, gerando uma presença a partir de diferentes

estados e de possibilidades imaginativas inscritas no corpo.

Pode-se reconhecer, portanto, o cuidado com a sistematização dessa

pedagogia, da construção metodicamente encaminhada a fim de prover meios

concretos como ignição para o processo criativo. O ponto de partida poderia ser um

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texto, uma personagem já descrita em uma obra dramatúrgica ou literária, mas aqui é

um quadro por meio do qual pode-se identificar características da pintura de Bacon,

além da tela em si. Não se trata de expressar de qualquer jeito, há uma linguagem

previamente ensinada para que se possa falar aquela língua da pintura - assim como a

da poesia e a da música - através do corpo.

Embora não mencionasse e talvez nem tivesse conhecimento direto da prática

de Rudolf Laban (1879-1958), muitas das ideias de Lecoq assemelham-se às desse

artista, especialmente no que tange às relações do corpo com o espaço, com o peso,

com as direções, com as linhas e tensões que ele cria e desenha. Entretanto, segundo

Gordon (2009, p.214), a pedagogia de Lecoq nunca alcançou a coerência sistemática

conceitual de Laban. Sem estabelecer uma hierarquia valorativa entre as duas

abordagens, tampouco aprofundar aqui sobre o ensino de Laban, discordo de Gordon,

pois considero a pedagogia de Lecoq bastante sistematizada, com uma evolução passo

a passo que vai induzindo a construção dessas ideias no corpo e, consequentemente,

no jogo do ator, o que justamente constitui seu diferencial perante outras. Entretanto,

sua pedagogia só pode ser inteiramente compreendida através da experiência prática

de colocar-se naquelas situações, vivenciando concretamente aquelas dinâmicas,

pesquisando em si mesmo, com as dificuldades e complexidades que isso acarreta,

reiterando o caráter experiencial e concreto mencionado acima. Sua pedagogia é

altamente estruturada, concatenando todas as aulas ao redor de um tema, que produz

um arsenal de possibilidades físicas e imaginativas a serem utilizadas. Sua

experiência quer como atleta quer como professor de educação física, de reabilitação

corporal e de arquitetura contribuiu, certamente, para alicerçar essa sistematização.

A linguagem corporal, em parte codificada e proveniente de uma pesquisa

com limites definidos – como aqueles referentes às diferentes dinâmicas das cores,

por exemplo –, possui limites estabelecidos a partir de parâmetros previamente

pesquisados por Lecoq. Há uma margem de liberdade para procurar seu próprio

movimento nesse contexto que, entretanto, no estágio de verão não foi possível,

devido à falta de tempo. Mesmo no curso de formação, não havia tempo suficiente

para a experimentação, o que acarretava em uma indução àquelas possibilidades de

movimentos. Na Escola são fornecidas técnicas para tal pesquisa, porém caberá a

cada ator desenvolvê-las, aprofundá-las, experimentar outras nuances das cores, como

os claros e escuros, por exemplo. Pesquisar as cores e também as luzes, de maneira tal

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que tenha-se diferentes possibilidades de experimentação ao aliar luz e cor, adicionar

brancos e pretos, mexer com a própria palheta de cores, para então jogar com a

maneira como uma estrutura se move no intuito de tornar visível tal pintor e tal

quadro.

6.2 DIREÇÃO

Nos trabalhos desenvolvidos com a companhia Oigalê, apliquei também essas

práticas, porém com objetivos diferentes, um enquanto preparadora corporal e outro

enquanto diretora. Em “Miséria...”, como apontei anteriormente sobre o treinamento

com os Vinte Movimentos, o trabalho foi bem assimilado, alcançando ótimos

resultados. Os atores apropriaram-se da técnica tanto para a criação de suas

personagens bastante fundadas na construção corporal, como para o jogo estabelecido

entre eles. O principal motivo do resultado ter sido positivo, acredito, foi a

confluência entre a prática e a linguagem explicitamente baseada na commedia

dell’arte, o que possibilitou aos atores uma transposição mais direta entre treinamento

e cena. Segundo Hamilton Leite, diretor do espetáculo, o trabalho desempenhado foi

essencial para as linhas de corpo e para o espetáculo como um todo, que usa como

espaço cênico um losango, ou seja, sua concepção utiliza a ideia de linhas dentro de

um espaço e não uma roda, um semicírculo.

Essas linhas do trabalho com (as práticas de) Lecoq, contribuiram não só no corpo, mas foram sendo encontradas nos deslocamentos dos atores nesse espaço cênico já delimitado em losango, e a partir disso se chegou num retalho do figurino do Arlequim, que no caso é o Miséria. Contribuiu, também, trazendo uma maior limpeza e precisão para a atuação e obviamente para a encenação como um todo. (LEITE, 2012)70

Já no trabalho de direção de “O Baile...”, o resultado a partir das técnicas de

Lecoq não foram tão diretamente perceptíveis, ainda que também tenham contribuído

de diferentes modos. Além do uso delas como instrumentalização dos atores, o

70 Ator, diretor, produtor e fundador da Cia. Oigalê de Teatro. Entrevista concedida em 30/10/12 em Porto Alegre.

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processo criativo foi embasado na ideia de auto-cours, de criação pessoal, de criação

colaborativa, com seus prós e contras.

O convite para a encenação me chegou em um momento determinante dessa

pesquisa, quando eu estava ainda desenvolvendo meus estudos com “bolsa sanduíche”

em Paris e intencionava fazer mais um experimento prático ao voltar ao Brasil. Ainda

que não fosse uma escolha própria, mas uma encomenda, a criação desse espetáculo

suscitava um instrumental para a direção que eu almejava utilizar como parte do

corpus de análise. Assumir essa direção surgiu, portanto, como a possibilidade de

realizar tal experimento, não só em relação ao trabalho de ator, mas também de outro

ponto de vista sobre essa mesma prática.

Quando ingressei no projeto de “O Baile...” já havia um canovaccio71

elaborado com base no material colhido nas pesquisas do grupo realizadas em

diversas cidades no interior do Rio Grande do Sul, e era chegada a hora da montagem,

que deveria resultar num espetáculo de rua. Escrito pelo renomado dramaturgo

brasileiro Luis Alberto de Abreu, propunha como narrativa principal a história do

Baile dos Anastácio, um baile que durou 30 dias. Fato verídico que serviu como fio

condutor para abordar temas como o descaso com as terras do pampa sul americano,

passíveis de serem vendidas para quem pagar mais. De forma alegórica, as terras são

representadas por Pampiana, uma moça cujos pais, Minuana e Riograndino

Anastácio, desejam casar com o pretendente que lhes pareça o mais lucrativo. Os

pretendes representam os interesses sociais, econômicos e políticos, através de um

rapaz de família tradicional da região, um empresário e um candidato político,

respectivamente.

Iniciamos com dois encontros de uma semana cada, com oito horas diárias,

nos quais trabalhamos com várias práticas antes descritas nesse estudo, como o

alongamento, o aquecimento e as improvisações. O elenco era diferente daquele com

o qual havia trabalhado no espetáculo “Miséria...”, com exceção de dois atores.

Embora jovens, a maioria possuía experiência anterior e, além de disciplina e de

disposição para o trabalho, demonstraram rapidez na aprendizagem das sequências e

abertura para mergulharem nos temas dos elementos e das matérias. Abertura de

71 Canovaccio ou canevas, espécie de roteiro utilizado pelas companhias de commedia dell’arte para orientar as improvisações que apresentavam de acordo com o local, o público, o intento da apresentação.

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espírito, pois há sempre aqueles que julgam demasiado simples ou abstratos esses

temas, apresentando grande resistência para se deixar levar e experimentar o contato

com essa dimensão da dinâmica interna das manifestações. Ainda assim, o trabalho

foi produtivo e prazeroso, como atestam os depoimentos dos atores.

Tu crias uma memória corporal, algo que não é psicológico, não é intelectual, é o corpo que aprende. Não é só eu olhar e observar e entender “ah, ok, é assim mesmo”, e tu vais lá e faz. Não, tu passas pelo processo e ele fica no corpo, impregna, e quando tu precisas, tu “snap” (estala os dedos) e está lá. (PAZ, 2012)72. Todo esse trabalho das linhas fica latente, essa impressão que fica lá. Então se pegarmos uma foto do “Miséria...”, de uma cena qualquer, num momento qualquer, a vamos achar aquilo que trabalhamos agora com o quadro: tem linhas, tem profundidades, tem o equilíbrio das formas no espaço. A gente encontra isso, está lá! O interessante é quando a gente liga as nossas antenas consegue visualizar e conduzir isso dentro de cena para não chegar ali e se colocar num espaço qualquer. Não, eu não estou num espaço qualquer, eu estou no equilíbrio na cena. Então eu tenho que observar quem está onde, pra compor, né? E acho que o legal disso é o resultado, o objetivo, o fim, e a experiência que a gente passa agora te capacita pra chegar lá, te dá um foco. (BRASIL, 2012)73

O cannovaccio de Abreu propunha que “um grupo de atores chegava a uma

praça e começava a contar a história de um baile que durou um mês”. A primeira

questão foi, então, a de definir quem era esse grupo. Como os atores da companhia

haviam manifestado seu desejo de trabalhar com a linguagem de bufões, propus

alguns exercícios para este fim nos dias que se seguiram. Na pesquisa por eles

realizada havia muitas histórias de assombrações e de mortos que se tornaram santos

em algumas pequenas cidades do interior. Experimentamos juntar essas duas ideias,

mas, após alguns dias de tentativas com os bufões, percebi que o grupo não estava

pronto para tal desafio, pois não teríamos tempo suficiente para aprofundar essa

linguagem. Resolvemos que o grupo seria dos mortos sobre os quais havia registros.

Definimos quais deles seriam incluídos e quem faria quais personagens.

A partir dessas escolhas, solicitei que cada ator pesquisasse sobre a sua

personagem dentre o vasto material por eles coletado e registrado em textos, vídeos,

entrevistas, livros, etc. Pedi que escolhessem figurinos do guarda-roupa do grupo

tanto para as suas personagens, como para as dos outros, e, ao vesti-los,

72 Atriz Karine Paz, da Cia.Oigalê, entrevista concedida em junho/2012.

73 Ator Paulo Brasil, Cia.Oigalê, entrevista concedida em junho/2012.

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experimentassem formas de andar, de fazer gestos, de falar, de se relacionar com os

outros, baseados na vida daqueles que as inspiraram. Propus algumas situações para

eles jogarem com aquelas figuras, como um baile onde cada um chegava e estabelecia

relações com os outros. Essa proposta foi praticamente a mesma que havíamos feito

anteriormente como exercício com as matérias, o que inspirou a improvisação. Agora

com os figurinos, aliavam as matérias como dinâmicas de movimento, como, por

exemplo, a maneira “pasta de dente” como o Negro Maruca – um escravo que fora

enterrado vivo – se arrastava com uma corrente atada ao seu pé, ou ainda a

movimentação em ondas que Maria do Carmo usava para atrair a atenção sobre si –

ela era uma “mulher de vida airada”, livre, com modos não condizentes com a sua

época. O interesse por essas personagens foi tamanho que tomamos muito tempo com

eles, geramos muito material, como a encenação da morte de cada um em três cenas e

depois em três fotos.

Quando o dramaturgo voltou para assistir o trabalho, algumas semanas mais

tarde, porém, alertou-nos para o fato de termos material para dois espetáculos! Se para

o andamento desse processo esse trabalho poderia ser considerado perda de tempo,

enquanto pesquisa foi o momento em que pude constatar o quanto a técnica

alimentava o fogo criativo dos atores, e que contribuiu significativamente no

momento da criação em si.

Como tratava-se de uma montagem profissional, com patrocínio e obrigações

definidas previamente, a partir daquele momento procurei encaminhar a montagem do

canovaccio de forma mais objetiva, propondo improvisações que partiam diretamente

dele, como, por exemplo, “como Zé Joça convenceu o patrão a beber”.

Experimentávamos uma mesma situação com diferentes atores jogando aquelas

personagens e comentávamos o que parecia mais interessante, possibilitando que

todos contribuíssem com sua criação para a cena. Por último, jogavam os atores

designados para os papéis com a proposta de inserir as sugestões, ideias e comentários

precedentes.

Em um mecanismo de vai e vem com o dramaturgo, registrávamos o material

levantado nas improvisações, enviávamos para ele, e depois Abreu nos retornava um

texto rimado, com ritmo de trovas, conciso, inteligente e divertido. Com admiração e

deleite voltávamos então a encaixar esse texto nas cenas e nas personagens, agora

elevadas ao patamar de alegorias. Esse procedimento resultou em um material

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bastante rico, principalmente para as primeiras cenas, porém tomavam muito tempo,

pois experimentávamos várias alternativas, inclusive com elementos ou matérias

diferentes, o que por fim tornou-se difícil de sustentar, dado o pouco tempo que

restava para a estreia.

Ajustar os textos recebidos àquilo que havíamos criado anteriormente

representava um desafio para todos. A primeira barreira que surgia era a do próprio

corpo do ator, agora mais preocupado em lembrar as palavras certas para acertar a

rima, incorporá-las e torná-las orgânicas. Ao mesmo tempo, sentíamos o alivio de

poder agora trabalhar no sentido de estabelecer as ações, de fixar as movimentações e

repeti-las, possibilitando o aprofundamento em detalhes como de limpeza e de riqueza

dos gestos, do ritmo de cada um e do todo, aos poucos fazendo o polimento

necessário. Como outro estágio da imaginação na criação, agora o trabalho com as

matérias, os elementos, as formas e linhas enfatizadas anteriormente iam voltando,

começando a fazer sentido outra vez, enriquecendo os movimentos, os gestos, o jogo.

Na posição de diretora, colocava-me como uma articuladora das camadas de

entendimentos estéticos provindos da equipe completa do empreendimento. Equipe

composta por artistas de diferentes áreas, que envolvia, além dos atores, o

dramaturgo, três músicos, o cenógrafo, o figurinista, os outros membros da

companhia responsáveis pela produção, a artista gráfica e até mesmo o material da

pesquisa em si. Todos deveriam estar em concordância, todos deveriam ser ouvidos,

todos deveriam e queriam contribuir. E assim foi, uma polifonia dos diversos textos

entrecruzando-se, tecendo o evento. Como textos em movimento, em palavras, em

voz, em música, em metáforas, em símbolos, em imagens, em cores, em formas, em

linhas, como quadros em movimento!

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Fig.27 “O Baile dos Anastácio” – foto de cena. Porto Alegre, 2012.

Fonte: Arquivo pessoal

Um importante ensinamento proveio dessas circunstâncias. Algo que, na

verdade, eu já vivenciara anteriormente na direção do espetáculo “O Defunto”. Esse

tipo de processo criativo demanda tempo para a experimentação, pois, do contrário,

corre o risco de acirrar a ansiedade dos atores e dos colaboradores, o que contribui

para gerar tensão, má vontade e bloqueio na criação. Não só a parte da construção da

cena em si, mas até mesmo a parte técnica, para que realmente seja absorvida pelos

atores. Com a pressa, reduzimos o tempo de aquecimento, o que implicou uma maior

dependência do diretor, parece que o ator fragilizava-se, esperando ser-lhe indicado o

que fazer ao invés de partir dele a criação. Agravava o fato de que os novos membros

do elenco não haviam trabalhado dessa forma anteriormente, podendo-se perceber a

dificuldade de se colocarem no espaço e em relação aos colegas, aos objetos do

cenário e dos adereços. Ainda que fossem bons improvisadores, capazes de propor e

de responder criativamente às ideias sugeridas, pareciam não ter noção do espaço

como um todo e da movimentação de grupo.

A metodologia de Lecoq atua no sentido de proporcionar ao ator um sentido

de ocupação de seu corpo no espaço, o que significa que, enquanto improvisa,

propondo e/ou aceitando o jogo do colega, o ator propõe um desenho no espaço. A

consciência do corpo no espaço é um diferencial para o ator, que não precisa que

alguém de fora o posicione, ele deve perceber as tensões no espaço e colocar-se de

acordo com elas, jogar com elas, usar esse recurso em sua criação. Desde o início do

processo propus o andamento da criação embebida do espírito – ou da crença – de

executar um processo colaborativo onde todos os artistas envolvidos contribuíssem

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com seus trabalhos e o meu papel seria o de orquestrar, organizar e desenhar esses

elementos, propondo caminhos para construir as cenas. Assim como o dramaturgo

contribuíra com um roteiro inicial, nessa concepção o ator também seria responsável

por originar suas personagens e o jogo que elas são capazes de propor, ficando a

cargo do diretor a ordenação, a expansão, a combinação, a criação de um desenho que

expressasse as intenções subjacentes. Nesse caso, a crítica ao poder e ao descaso para

com a terra, para com essa região pampiana e para com a mulher.

A falta de prática do trabalho com o auto-cours evidencia-se pela dificuldade

do grupo em trabalhar sem um diretor ou assistente observando. Um membro propõe

algo e antes mesmo de experimentarem aquela proposta, alguém já propõe outra

coisa, e muitas vezes acabam falando muito mais do que trabalhando na prática. Na

Escola passa-se por essas dificuldades, que considero como parte comum em

processos de criação em grupo, mas desenvolvemos essa maneira de trabalhar de

maneira autônoma, que visa encontrar um equilíbrio entre propor, acatar, discordar,

modificar, abrir mão de sua proposta, escutar-se, estar aberto para experimentar

aquilo que não lhe parece o melhor.

O tipo de direção que propus, baseada nos ensinamentos de Lecoq, portanto,

pressupõe atores que tenham autonomia de criação. Para isso, precisam de

vocabulário, de corpo e de imaginação, justamente, para que possam distanciar-se da

atuação realista, criar um universo não cotidiano, um universo alegórico. Quando me

afastei por três semanas do processo, o grupo seguiu trabalhando a parte musical, mas

as cenas não avançaram, e praticamente nada novo foi criado, embora tivessem

indicações, sugestões de um cronograma a ser seguido. O que vem a corroborar com a

ideia de que, sem passar por esse tipo de experiência que propicie alguma autonomia

ao ator, principalmente enquanto ainda em formação, a dependência para com o

diretor se perpetua.

A direção da Cláudia nesse processo foi sempre muito estimulante. Seu domínio técnico (sobretudo no que diz respeito à pedagogia de Jacques Lecoq) contribuiu grandemente na composição dos meus personagens – ao mesmo tempo em que permitia tal liberdade de criação que tornou possível a impressão no espetáculo de marcas muito pessoais de cada um dos envolvidos no trabalho. Evidentemente existiram momentos de dúvidas, hesitações, e mesmo de algumas frustrações. Mas como Anne Bogart, acredito que: “No teatro, nós muitas vezes achamos que colaboração significa concordância. Acredito que concordância demais cria espetáculos sem vitalidade, sem dialética, sem verdade. Concordância irrefletida amortece a energia em um ensaio. Não acredito que

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colaboração signifique fazer mecanicamente o que o diretor dita. Sem resistência não existe fogo”. (FARIAS, 2012)74

Também Meyerhold enfatizava a importância da liberdade de criação do ator,

da imaginação criativa, da necessidade de o ator ler, de conhecer teatro e arte, de

propor, ser artista e não ficar esperando as ordens de um diretor. Ele organizou a

biomecânica como um sistema de treinamento para que os atores adquirissem um

corpo disponível para o trabalho, para o jogo de colocar palavras, interagir com os

demais e com o público. Costumava afirmar que o teatro é um jogo! É importante

podermos falar de teatro como jogo, usar o verbo “jogar” ao invés de “atuar” e muito

menos “representar”, pois não me parece tratar-se da mesma coisa. Jogar envolve o

lúdico, envolve o prazer, a troca, aspectos que já estão implícitos na própria palavra, e

que diferem da ideia compreendida em atuar e representar.

Uma das características da prática de Lecoq é justamente dar subsídios para o

ator tornar-se mais independente do diretor. Na experiência de direção de “O Baile...”,

percebi a dificuldade dos atores nesse sentido, principalmente com os mais antigos no

grupo. Os mais novos, recém-formados ou terminando a faculdade de Artes Cênicas,

mostravam-se mais abertos, embora sem a mesma experiência de contato com o

público, ainda mais em se tratando de teatro de rua. No trabalho com as matérias e

com os elementos, a abordagem com as artes, que foi o recorte que escolhi para

estudar, o objetivo final é justamente que o ator tenha recursos de onde tirar material

para criar suas personagens. É algo que deve estar anteriormente impresso em seu

corpo, pela experiência, e em sua mente, como fonte infinita de inspiração para a

imaginação, uma vez que se trata da natureza em toda sua amplitude. A compreensão

da natureza como fonte de inspiração é o aspecto que propicia maior autonomia para

o ator, pois é uma pesquisa que ele pode desenvolver sozinho, pode buscar olhando ao

redor, observando o movimento das coisas, como apoio para criar uma personagem

diferente de si, criar um “outro”, deixar-se habitar, trazer à tona esse outro. Acredito

na construção conjunta da personagem que vai surgindo a partir de um tema, de algo

que se quer tratar, abordar, dizer com palavras ou não. Seu caráter vai sendo definido

e vai definindo as ações desse corpo.

74 Ator Paulo Roberto Farias, da Cia. Oigalê e Ato Cia. Cênica de Porto Alegre. Entrevista concedida para publicação do Jornal Informativo Oigalê em dezembro/2012.

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A partir de características relacionadas principalmente ao caráter de cada uma

das personagens, fomos agregando qualidades relacionadas aos elementos e às

matérias. Pode-se perceber influências da prática lecoquiana no espetáculo quando

Minuana faz a ventania, nas linhas de Pampiana, no cachorro de Zé Joça, qualidades

que foram trabalhadas nessas personagens após a construção primeira em que se

basearam no material de pesquisa empregado como subsídio. Anastácio, o patriarca

da história, gaúcho de tradição, trabalhou bastante as linhas provenientes da prática

dos Vinte Movimentos e das matérias, o que lhe conferiu uma figura rígida, dura e

pouco maleável para quando estava sóbrio e outra para quando estava bêbado.

Fig.28 Ator Hamilton Leite em “O Baile dos Anastácio”

Fonte: Vera Parenza (arquivo pessoal)

Dirigir um espetáculo envolve lidar com diferentes crenças sobre o fazer

artístico. Desde o que é necessário para cada dia de ensaio, o aquecimento ou não do

corpo e como fazê-lo, até a maneira como o diretor deve conduzir o trabalho, se mais

ou menos autoritário. Há aspectos disciplinares que muitas vezes são confundidos

com rigidez. Tomemos, por exemplo, a questão dos horários a serem cumpridos. O

ensaio inicia às 9 horas. Para uns, isto significa que ele deve chegar às 9h, trocar de

roupa e iniciar seu alongamento. Para outros, significa que deve chegar às 8:45, trocar

de roupa e começar o alongamento às 9h. Para outros ainda, significa que deve chegar

às 8:15, trocar, alongar e aquecer o que julgar necessário para estar pronto para iniciar

o ensaio às 9h. Ou seja, cada um tem uma preferência e deve saber o que é melhor

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para si, o que é desejável. Porém, surgem divergências entre os componentes do

grupo que querem controlar e definir qual a melhor maneira de agir. O mesmo se

aplica à maneira de como iniciar o trabalho, se esse ator tem o hábito de aquecer o

corpo e a voz, ou somente alongar-se, ou passar suas músicas. Como diretora, acredito

que quando o ator chega à sala de ensaio deve saber de si, deve estar pronto para o

trabalho de criação que será proposto para o dia. Enquanto professora, ensino algumas

técnicas, aquelas nas quais percebo a eficácia para tal fim, procuro passar uma noção

ética sobre o trabalho. Como atriz, prefiro chegar antes e me preparar com tempo, mas

entendo que são todas escolhas pessoais que cada um desenvolve com a experiência.

Já no espetáculo “O Defunto”, o processo partiu do texto homônimo de René

de Obaldia e tinha como objetivo principal a montagem de um trabalho de conclusão

de curso. A atriz75 a se graduar convidou também outra atriz com o projeto da

montagem desse texto. “O Defunto” trata do encontro de duas mulheres que

conversam sobre um homem falecido que, aos poucos, revelam uma suposta relação

em que uma delas era a esposa e outra a amante, embora sem ser explícita, causando

leituras dúbias a partir de relatos que chegam ao limite do absurdo. O projeto incluiu

uma oficina aberta ministrada por mim para alunos da universidade que quisessem

praticar gratuitamente, de maneira que formamos um grupo de trabalho com práticas

de Lecoq. Usamos máscara neutra, alguns dos Vinte Movimentos e improvisações

com os elementos, ou seja, semelhante método de encaminhamento de cursos

descritos ao longo desse trabalho. Após alguns poucos meses, precisei interromper os

encontros, seguindo apenas com a direção do espetáculo. Continuamos com algumas

dessas técnicas nos ensaios, mas já de maneira reduzida, com fins mais objetivos de

encenação e de construção de personagens.

Propus, como concepção, que a encenação se passasse toda sobre um tréteau,

um palco medindo 1 metro de profundidade por 2 metros de largura e 20 centímetros

de altura. Exercício aprendido na Escola de Lecoq, o tréteau, por suas dimensões

diminutas, suscita uma linguagem de transposição corporal ao encenar algo de

grandes dimensões ali. Quando fiz a Escola, meu grupo encenou uma “fuga da

prisão”. Com cinco integrantes sobre esse palco diminuto encontramos maneiras de

estabelecer o espaço da prisão, para então surgir um detento que, no pátio, a céu

75 Atriz Lívia Dávalos.

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aberto, é libertado por alguém que chega em um balão, joga uma corda de dentro de

sua cesta, recolhe o detento e eles partem voando nesse balão.

O trabalho seguiu de forma exitosa, embora me dê sempre a impressão de que,

com aprofundamento técnico dentro daquele universo proposto, ele poderia ter ido

mais longe. O trabalho corporal ali fica muito evidenciado, sendo esse o principal

objetivo, funciona como uma lente de aumento na situação e, consequentemente, na

atuação e na direção. Percebi, novamente, o limite imposto pelo tempo reduzido em

função da estreia, que poderia ter sido compensado pela continuidade para seu

aprofundamento, mas assim não foi. Depois da estreia, muitos atores negam-se a

voltar a improvisar e refazer cenas, nesse caso não foi diferente.

A lógica da criação, nesse contexto, é muito mais a de que as cenas e as

personagens surjam do corpo em experimentação técnica do que a de aplicar a técnica

à cena ou a um determinado personagem, embora não exclua tal possibilidade. O que

se busca é o cruzamento entre a criação racional e a criação do corpo em movimento,

em jogo, fazendo, obrando. É a busca de um ideal, onde não é o pensamento lógico

que dita a maneira como aplicar a técnica à criação, nem o conhecido “trabalho de

mesa” que definirá de antemão as cenas. Trata-se de o ator posicionar-se enquanto

criador, assumir a responsabilidade juntamente com o diretor, para, juntos, fazerem

desse material uma peça, um espetáculo de dança, um número ou uma performance.

6.3 ATUAÇÃO

A experiência de criação de “Gueto Bufo” mostrou-se como aquela em que foi

atingido esse ideal de criação. O tema surgiu em torno de duas moradoras de rua

baseadas na linguagem dos bufões. Minha colega76 havia estudado com Philippe

Gaulier, professor egresso da Escola de Lecoq que atualmente tem sua própria escola,

na qual enfoca justamente os estilos teatrais equivalentes ao segundo ano de Lecoq.

Para a construção dessas figuras fomos para a rua observar o universo dessas pessoas,

coletando ações, maneirismos, atitudes e idiossincrasias que experimentávamos

quando de volta à sala de ensaio – o mecanismo de rejogo anteriormente explicado.

76 Atriz e diretora Daniela Carmona. Porto Alegre, 1998.

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Experimentamos diferentes possibilidades de deformações corporais com

enchimentos de pano ou espuma, formando, por exemplo, corcundas, barrigas,

grandes seios, inchaços na cabeça. Da mesma maneira, exploramos alguns figurinos,

sapatos e adereços, que influíam na maneira de se mover e mesmo de falar, pois

usávamos também enchimentos na boca. Esses elementos funcionam como restrições

que visam provocar o jogo, tirar-nos do conforto e do universo dos gestos cotidianos.

Colocávamos figurinos e experimentávamos algumas situações, saíamos para a rua e

assim fomos fortalecendo essas figuras que, mais tarde, receberam o nome de Filó e

Vênus. Minha personagem, Filó, fala uma linguagem própria, o Filonês, pois minhas

propostas vinham mais como provocações através dos objetos e da musica do que

propriamente com o texto falado. Já Vênus, que não tem os braços, depende da

companheira, ainda que se considere a mais inteligente e bonita, tornado-se a líder

desse diminuto bando, partindo também da maior facilidade de Daniela para

improvisar textos falados.

Filó passou a existir por si, a ter uma lógica própria que, para mim, estava

(está) diretamente atrelada à sua postura e seu figurino. Ao longo dos 11 anos desse

espetáculo, costumava fazer meu aquecimento por cerca de uma hora e, ao iniciar o

processo de vestimenta e maquiagem, meu corpo tornava-se outro, tornava-se esse ser

que me é extremamente familiar, consistindo em uma parte da minha personalidade

que ali encontrou espaço para se exprimir. O trabalho do bufão, assim como o do

clown, é muito pessoal, insere-se na lógica de “criar seu próprio clown”, uma vez que

ambos são ancorados na expressão do indivíduo, sua blasfêmia e seu ridículo,

respectivamente.

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Fig.29 Atriz Cláudia Sachs em “Gueto Bufo”

Fonte: Arquivo pessoal

Antes desse trabalho, participei de outro espetáculo77 em que criei figuras a

partir da maneira de andar com latas amarradas aos pés, construindo um duo que

dançava e cantava, assim como outra figura que era líder de uma banda onde cantava

através de um tubo de PVC e os outros membros tocavam uma espécie de xilofone

feito do mesmo material, com sandálias Havaianas como baquetas, entre outras

atrações no estilo de circo de variedades. São todas criações autorais, pessoais, de

seres não realistas, para as quais o aprendizado de Lecoq me deu total suporte.

Comentando sobre o corpo criador a partir de técnicas de teatro físico, o ator

Danilo Dal Farra compartilha sua experiência sobre sua personagem, o Zé:

O Zé é uma forma poética ampliada de mim mesmo que chamo de personagem, porque também não poderia chamar de persona, mas eu sei que sou eu, só não posso deixar que se descaracterize esse código poético que criei para essa peça e, por isso, quanto mais vivo estiver no código, mais posso me manter nele mesmo, mais ele me dá potência para me poetizar, e mais enriquecido e verdadeiro ele fica ao passar por tantas nuances e instigares diferentes. (DAL FARRA, 2012).

77 “ Parque Extremo de Diversões”, direção de Élcio Rocini. O duo era em parceria com a atriz Betha Medeiros – Porto Alegre, 1986.

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Entrevistada por Schechner em 1998, Julie Taymor78, afirma que, para ela a

experiência que viveu na Escola de Lecoq foi determinante na maneira como trabalha,

ressaltando a questão da abstração aprendida com sua pedagogia, a capacidade de

jogar com diferentes objetos e ‘antropomorfizá-los’.

Em Lecoq, o corpo é um recurso completo que você pode usar para expressar qualquer coisa, incluindo emoções – o que estamos acostumados a fazer como atores. Mas não é sobre "agir" tristemente, mas o que é que há no "triste" que faz com que o corpo torne-se duro ou mole? Que ritmo tem "tristeza"? Portanto, o seu corpo torna-se uma ferramenta. Seu corpo é como pincéis. É totalmente não-caracterológico, em primeiro lugar. [...] O que há numa pessoa magra sobre a angularidade, o que faz alguém se sentir magra? Você deve ser capaz de transformar o seu corpo. Essa parte do trabalho de Lecoq foi incrível para mim. (TAYMOR, 1998)

Quando perguntada sobre a importância da prática como professora e atriz,

Clarissa Malheiros afirma que, para ela, é como uma pequena mala de segredos que o

ator carrega que, por mais básicos que possam parecer, serão sempre pontos de

partida ou de apoio para a criação. Mesmo quando se trata de trabalho comercial,

quando não há muito tempo para ensaiar e, portanto, convém que o ator chegue com

algumas propostas, com o texto decorado (se houver um), para ter com o quê suprir o

diretor.

Se vou trabalhar para a Companhia Nacional Mexicana, por exemplo, não vou dizer que estou trabalhando baseada numa formiga, porque é muito primário. Então é o segredo do ator! É a exploração que você faz sozinho. Você não vai fazer com um diretor, tampouco em grupo, mas é onde alguma coisa importante ficou impressa no seu corpo, como ponto de partida para a concentração do ator, para poder fazer uma proposta de personagem. (MALHEIROS, apud SACHS, 2004:199)

Segundo o relato de um dos atores79 do Théâtre Du Soleil, o trabalho do grupo

segue o seguinte andamento: Pela manhã, o grupo encontra-se com Mnouchkine e a

diretora apresenta-lhes alguns dos temas ou ideias com as quais quer trabalhar. Os

atores, então, escolhem o que querem experimentar, juntam-se a colegas ou não, e

passam cerca de uma a duas horas improvisando. A partir daí, escolhem figurinos no

guarda-roupa da companhia, expõem o que querem fazer para o músico do grupo e

vão almoçar. Quando voltam do intervalo do almoço, “servem o banquete” para a 78 Diretora americana de cinema e teatro, Encenou, entre outros, o bem sucedido espetáculo de bonecos “O Rei Leão” na Broadway. Nova Iorque.

79 O ator Andrea Simmas, Entrevista concedida em Porto Alegre, 11/12/11.

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diretora. Cada pequeno núcleo mostra sua proposta e ela vai escolhendo, anotando,

modificando, propondo variações a partir delas. Ao que parece, essa prática soa como

a lógica do auto-cours, ou seja, são os atores que apresentam um primeiro material

bruto a partir do qual a diretora trabalhará.

A questão da autoria do ator é, portanto, bastante enfatizada nessa pedagogia,

nessa maneira de fazer teatro, onde o ator é o poeta que obra poesia com seu corpo, é

ele o autor. Certamente o ator sempre será autor da maneira como joga tal ou qual

personagem. Entretanto, seu Hamlet será autoral em uma certa medida, pois que a

personagem será sempre de Shakespeare, e o diretor assinará o espetáculo, sendo

atribuída a ele a interpretação dessa personagem que o ator faz. Portanto, o que se

sustenta aqui é algo diferente, algo que o próprio ator inventará. De qualquer modo,

haverá um nível técnico básico, um instrumental para a profissão de artista de teatro.

Ter o corpo trabalhado, obrado, poetizado, como diria Lecoq, é um diferencial para o

ator, sem que isso garanta o sucesso do trabalho, afinal são muitos os fatores

necessários, como se sabe. Outro exemplo de autoria pode-se observar com o trabalho

do ator inglês Sacha Baron Cohen, conhecido por algumas personagens controversas

como “Borat”, “Bruno” e “O Ditador”, entre outras. Ele estudou com Phillippe

Gaulier, que segue as mesmas bases de Lecoq, mas vai além, especialmente nesse

aspecto relativo à autoria.

6.4 PESQUISA

No âmbito dessa tese, minha criação é toda essa reflexão sobre a relação entre

esses aspectos da pedagogia de Lecoq que utilizo, pautados pelo Fundo Poético

Comum – tanto na forma (linhas, luz, matéria, cores, tamanhos) como na dinâmica – e

a imaginação no trabalho do ator. Essa criação, escrita e ilustrada a partir do meu

ponto de vista como pesquisadora, pode ser considerada uma síntese de todos esses

pontos de vista apresentados. Uma dificuldade que sempre se coloca quando o artista

pesquisa seu próprio trabalho é a falta de distanciamento crítico do seu objeto, que

tende a fundir-se com o próprio artista, transformando-se em uma coisa só. No meu

caso não foi diferente, a paixão pelo assunto e o costume de sua prática por vezes

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pode ter obscurecido minha capacidade crítica. Ainda assim, procuro identificar

alguns dos limites com os quais me deparei ao empreender essa pesquisa.

Nesse sentido, importante ressaltar o período do “doutorado sanduíche” em

Paris, que tornou-se importante no sentido de possibilitar esse afastamento crítico.

Naquela ocasião, pude conviver com pesquisadores em artes cênicas de diversos

países, agrupados nas aulas dos cursos de pós-graduação da Sorbonne Nouvelle –

Paris 3, da Université Paris 8 e da Fondation Maison des Sciences de L’Homme,

ministradas por Josette Féral, Jean-François Dusigne e Jean-Marie Pradier

respectivamente. Conhecer a variedade de pesquisas desenvolvidas, escutar diferentes

pontos de vista aportados por esses professores e colegas, contribuíram para melhor

situar a Escola de Lecoq frente aos estudos desenvolvidos na França. Ao que parece,

Lecoq não é considerado como mestre da mesma magnitude de Decroux, de Artaud e

dos outros reformadores contemporâneos que o influenciaram. Entretanto, concordo

com Carasso (apud Féral, 2003:179), um dos entrevistadores responsáveis tanto pela

publicação do livro Le Corps Poétique quanto do vídeo de Les Deux Voyages de

Lecoq, que afirma que falta um aprofundamento nos estudos sobre ele, como sobre o

Fundo Poético Comum, sobre o qual discorro nesse estudo, sobre sua visão de teatro,

que parece ser vista como uma coletânea de práticas trazidas de outros artistas, pela

qual ele cobra caro para transmitir e motivo pelo qual, a Escola é, muitas vezes,

considerada como sendo elitista.

Mais do que o preço dos cursos, o que considero elitista é a maneira como a

Escola é até hoje fechada para quem queira pesquisar sobre Lecoq e sua pedagogia.

Os professores e funcionários não fazem a menor questão de facilitar o acesso ao

acervo que possuem, em uma atitude que dá a impressão de que temem que a

divulgação daquele conhecimento cause uma possível diminuição de alunos, ou que

esses possam apropriar-se indevidamente e tirar proveito disso. Tanto é assim que o

vídeo da performance histórica de Lecoq, Tout Bouge, só pode ser assistido em raras

oportunidades nas quais eles fazem sessões abertas dentro da Escola, que tive a sorte

de assistir quando dessa mesma ocasião da Bolsa sanduíche. É proibido tirar fotos

dentro da Escola, não se pode anotar nem durante e nem depois das aulas. Por um

lado, pode-se compreender essa atitude se comparada à de Meyerhold que não queria

deixar registros escritos sobre a biomecânica temendo que acontecesse o mesmo que

sucedera a Stanislavski, que publicou seu primeiro livro e, logo, outros ensinavam a

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partir dele. Também Lecoq acreditava na importância da transmissão pessoal, via

oral, com ênfase no aprendizado assimilado pela memória corporal.

Frente a esse aprendizado de treinamento codificado proposto na Escola, deve-

se levar em conta que uma prática pautada em modelos externos aos corpos tende à

cristalização, uma vez que existem contornos delimitados de seu alcance. Nesse

sentido, pode-se apontar um limite dessa prática, pois ela não serve para todos, não

serve para corpos que não tenham uma certa aptidão, capacidade, disponibilidade e

mesmo flexibilidade, afinal, nem todos são capazes de responder a ela. Isso implicará

escolhas pessoais, pois parece que quem não se adequa não é incluído, ou ainda, é

excluído. No campo da dança essas diferenças vêm sendo amenizadas por meio de

práticas corporais mais inclusivas, tais como a danceability ou o contato

improvisação, como dos handicapped, por exemplo. Sem esquecer que possuir um

corpo atlético ou ultra treinado não fará obrigatoriamente um bom ator, são questões

de âmbitos diferentes, que envolvem as abordagens estéticas, éticas e mesmo

ideológicas, que podem ser confundidas ao enfocar-se demasiadamente em sua

capacidade física.

Outro limite evidenciado na prática de Lecoq refere-se à ausência do uso do

texto dramático como apoio na criação, como apontado anteriormente. A articulação

entre o gesto, a dinâmica e a palavra é abordada enquanto som, mas não enquanto

discurso portador de sentido. O mestre tinha grande interesse na sonoridade das

diferentes línguas, o que levou-o a desenvolver técnicas de improvisação que

trabalham com a poesia. Ainda que extremamente rica essa experiência,

especialmente pela diversidade de nacionalidades com as quais se tem a oportunidade

de trabalhar na Escola, a opção de evitar o texto é questionável. Passa a ser uma

questão de escolha do aluno que a procura, que vai trabalhar lá aspectos outros que

não esse.

Se em alguns momentos questionei a utilidade de descrever os exercícios, tal

como fiz nesse estudo, o contato com registros de diferentes autores que descrevem as

práticas realizadas por diversos teatristas convenceram-me do contrário. As anotações

de artistas como Barrault, Dullin, Dasté, Stanislavski, Chekhov, para citar alguns dos

que mais me embasei aqui, assim como registros trazidos por autores como Yves

Lorelle, por exemplo, são documentos sem os quais tornar-se-ia praticamente

impossível de compreender como eram desenvolvidas tais práticas, e, sobretudo suas

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visões de teatro e arte encontradas nos comentários e nas entrelinhas desses escritos.

Como pesquisadora, portanto, essas constatações aproximam-me desses modos de

fazer teatrais, na medida em que também escolho essa tentativa de registro escrito que

possibilite o encontro entre a prática das salas de ensaio e de formação de artistas com

a epistemologia. É como abrir as portas e convidar o público para entrar, desta vez

autorizando as anotações, fotos e registros.

Com o acesso a mais autores que escreveram sobre esse movimento francês de

retomada do corpo sucedida principalmente na primeira metade do século XX,

compreendi que a herança que Lecoq carrega em sua escola vem de outras fontes que

não somente de Copeau, embora tenha sido ele quem desencadeou esse movimento.

Interessante conhecer os encontros dos diferentes artistas que foram criando esses

exercícios e sistemas, construindo experimentalmente os diversos métodos utilizados

para o trabalho do ator. No ato da criação precisamos lançar mão de diferentes

técnicas de acordo com necessidades da obra, cada trabalho pede um método, por isso

a importância de conhecer os diferentes pensamentos e seus modos de fazer. Todos

eles têm limites, por mais bem estruturados que sejam. Todos são históricos, ligados a

diferentes circunstâncias, portanto são datados. Enquanto Chekhov propõe a

imaginação por meio da criação mental da personagem antes de investi-la, passando a

conferir-lhe gestos e intenções, Lecoq, como aglutinador dessas técnicas

desenvolvidas a partir dessa rede de influências à qual me referi nesse estudo, inicia

diretamente no corpo, e é através dele que a criação acontece.

Pesquisar sua própria prática aparece como relevante alternativa não só para

quem a pesquisa, mas para difundir e registrar os diferentes caminhos de criação, que

podem servir como exemplos, como sugestões, como questionamentos. A prática e a

teoria profundamente imbricadas, contribuem para a qualidade do ensino e do

trabalho artístico como um todo.

Assim como reconheço limites na prática de Lecoq, aponto para aqueles dessa

pesquisa, ou seja, aquilo que ela não abarcou. No que tange à escolha dos autores com

os quais trabalhar, deixei autores importantes como Merleau-Ponty e Damásio, por

exemplo, fora da discussão sobre corpo, assim como Carl Jung para discutir a noção

de arquétipo que dialoga com a de Fundo Poético Comum. Da mesma maneira, não

estabeleci relações entre certos princípios da pedagogia de Lecoq e de outros

teatristas como Craig, Decroux, Grotowski, Barba, entre outros, que compartilham de

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pontos de vistas que podem ser equiparados, nem mesmo Brecht, no que tange à

noção de “cenas de rua”. São aspectos diversos que certamente teriam muito a

contribuir não só para a questão do ator em si, mas também para a compreensão da

posição de Lecoq no cenário do século XX. Devido à extensão que o trabalho

tomaria, evitei-os, entendendo que poderia desviar do meu propósito de aprofundar a

compreensão de Lecoq em relação à imaginação. O mesmo motivo me levou a não

aprofundar o trabalho sobre as máscaras, que sabidamente alavancaram todo esse

modo de fazer teatro ao remover o rosto, principalmente através do uso da máscara

neutra.

A opção de não traçar uma retrospectiva da história do mimo desde os rituais

até a contemporaneidade, assim como de não estabelecer relações entre o universo do

teatro gestual e físico com o contexto brasileiro, com quem seriam os continuadores

dessa tradição no Brasil, ou ainda, a maneira como essas técnicas se refletem no

cenário brasileiro atual inserem-se nesse mesmo caso, o de evitar estender demais a

pesquisa, perdendo, assim, o foco no que eu gostaria de estudar. No entanto, são

caminhos que poderiam ter sido tomados, mas que ficam como possíveis rumos a

serem desenvolvidos a partir do material que levantei nesse estudo.

Constatei também que essas práticas devem ser continuadas. O fato de ter

aulas diárias desse tipo durante um ano, na minha experiência, foi tempo suficiente

para impregnar essa maneira de criar pelo corpo. Para torná-lo poético, lúdico,

disposto a jogar, com um domínio técnico, e assim adquirir maior liberdade, maior

abertura para a criação, é necessário ter continuidade, repetição e disciplina. Nas

diferentes experiências que propus aos alunos, evidenciou-se a diferença que o tempo

de prática aporta ao trabalho. É dessa maneira que pode-se forjar o corpo como um

músculo treinado para imaginar, ou ainda, imaginar através dos músculos, desenhar

com o corpo, formar imagens em movimento, compor, totalmente imerso, em ação,

no ato de formar e deformar em si, a psyché atuando pelo corpo, fazendo, obrando,

mimando, jogando, exercendo, formando.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pode constatar, a pedagogia de Lecoq é ampla e utiliza diferentes

ferramentas para a preparação do ator, podendo ser abordada a partir de diferentes

pontos de vista, dependendo da ênfase do estudo. É notável a objetividade, o

pragmatismo, a persistência e a síntese que Lecoq alcançou com sua pedagogia a

partir dos vários preceitos em voga na segunda metade do século XX.

Ao longo do século passado ocorreu uma reconquista do corpo humano, da

psicanálise `a filosofia, contaminando a cena e reconstruindo a fragmentação imposta

pela suposta oposição entre espírito e matéria. Os trabalhos da neurobiologia sobre o

cérebro vêm contribuindo para elucidar caminhos da formação do pensamento,

valorizando mecanismos emocionais e estados da alma que podem passar

despercebidos do consciente, nem por isso deixando de influenciar nosso pensar. O

século XXI traz uma drástica imposição da tecnologia gerando novas mídias que

impõe um ritmo acelerado no acesso e no intercâmbio de informações, afetando os

relacionamentos interpessoais e possibilitando a aquisição de uma infinidade de

objetos eletrônicos. Se por um lado esse aparato pode parecer aproximar as pessoas

pela facilidade de comunicação, por outro os acomoda em ilhas de conforto e de

isolamento. O teatro, que parece andar na contramão desse movimento, resiste

bravamente procurando incorporar essas mudanças, como, por exemplo, trazendo

tecnologia para o palco, fazendo intervenções urbanas, mesclando real e ficção,

desconstruindo narrativas. Ainda assim, depende do ator, de seu corpo presente, vivo

e imaginativo para que se dê o ato teatral. Voltamos às bases fundamentais do teatro

para assegurar aquilo que lhe é permanente, que está no fundo, que é a mimesis

primeva e a expressão do Vivente para seus pares.

Justamente por considerar a complexidade da contemporaneidade é que torna-

se pertinente abordar o trabalho do ator enquanto essência, voltar à ideia de universal,

de contato com a natureza, de jogo histriônico como manifestação primeira do

Anthropos. A prática desenvolvida por Lecoq enfatiza esses aspectos, o que não

significa ter que ignorar as diferenças, as especificidades e as tecnologias do teatro

contemporâneo, mas destacar a importância dessa instância anterior e fundante da

arte. Para que algo seja permanente, ele deve mudar, pois a essência da vida é essa

constante mutação, ‘tudo se move’. Justamente em meio às constantes mudanças e à

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rapidez de informações a que estamos sujeitos, acredito na volta às origens como

fonte eterna de inspiração e elucidação, e esse é um dos principais motivos pelo qual a

visão de Lecoq me interessa. Não significa fechar-se ao novo, mas sim estabelecer e

rever valores fundamentais na prática do ator relacionados à mimesis e ao jogo através

de uma forma, de uma prática sistematizada, que pode ser desenvolvida tanto

enquanto formação para o ator como também enquanto revisão, se ele já possuir outra

anterior.

Em busca de compreender como a pedagogia de Lecoq colabora para o

desenvolvimento da imaginação do ator, encontrei como fator fundamental a

compreensão da noção de Fundo Poético Comum, que não é algo explicado nas aulas,

mas experienciado de maneira que se vai tomando consciência ao longo dessa prática.

É uma prática corporal estruturada em bases empíricas, conectada com todo um modo

de pensar e de exercer a arte do teatro.

Lecoq não escreveu um método, sua preocupação estava em passar sua visão

pelo contato direto com os alunos, reafirmando a tradição oral de transmissão de

conhecimento pelo contato e pela experiência corporal. O contato com a matéria,

deformando para formar com seu próprio corpo, expressando aquilo que absorve nos

níveis mais profundos do corpo-mente, de todas as manifestações da natureza,

despertar um olhar para ela, para os seres vivos, em micro e macro escala, com

simplicidade. O corpo é treinado com base em ideais de movimento, com modelos

que servem como base mimética para ampliar suas possibilidades plásticas e

imaginativas, exercendo a mimesis no sentido externo e interno. Essa é uma maneira

de interpretar a visão de Lecoq, que engloba aspectos do pensamento de Bachelard, de

Jousse, de Bergson, da ciências naturais e do pensamento oriental.

As manifestações artísticas hoje parecem ter que passar pelo crivo dos estudos

da performance enquanto paradigma de arte contemporânea entre o real e o fictício. O

teatro vem procurando dialogar com isso, incluindo o real e o pessoal do ator,

questionando o caráter de representação. A criação proposta por Lecoq desloca a

preocupação com o texto para a questão da composição física e da cena, a partir de

dinâmicas do movimento. Independentemente de ser uma personagem pré-

determinada por um texto ou não, psicológica ou não, estamos no âmbito da

representação, afinal, tudo é representação! Se para Lecoq o “vilão” era o teatro

psicológico, para os estudos contemporâneos – seja o teatro pós-dramático, o

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performativo, a performance –, é a representação. Sem aspirar resolver essa querela,

alio-me a Guénoun (2004, p. 132), quando afirma que só o que restou do teatro é o

jogo, diante de nós, em presença de alguém. Segundo o autor, hoje as pessoas vão ao

teatro para “ver teatro”, ou seja, não mais tanto com a expectativa serem levadas a

uma viagem imaginária calcada na realidade com a qual se possam identificar, mas

algo que vá além de um realismo forjado, evidenciando sua teatralidade. Essa

teatralidade é impulsionada pela imaginação, do ator e de todos artistas envolvidos,

que vai conduzir o espectador nessa viagem.

A discussão sobre o que é real e o que é natural, aqui é tomada em nível das

ciências naturais, de empacotamento de átomos, procurando levar em conta também a

compreensão psicanalítica e filosófica. No teatro, precisamos experimentar, mesclar,

inventar, imaginar. A proposta aqui é de tomar a natureza visível e invisível, o fundo

comum das diferentes manifestações como possíveis modelos, e por mais difícil que

seja de encontrar, já é bastante saber o que procurar.

Essa rede de diálogos entre teatro, ciências naturais – física e química,

principalmente –, filosofia e espiritualidade, converge para aspectos que constituem o

meu próprio Fundo Poético Comum. Aquilo que é comum aos meus pontos de vista,

que sou Eu, um empacotamento de átomos com certa quantidade de elementos que,

em suas menores partículas, diluem-se no Todo, e é água, é fogo, é terra, é ar e é

espaço. Por meio do teatro, do jogar, do mimar, procuro exprimir com meu corpo-

mente a minha poética, representificar essa percepção através de uma determinada

linguagem.

A escolha desse tema nasceu do desejo de estabelecer um diálogo entre

ciência, arte e filosofia, relacionados à visão que anima a prática de Lecoq. O motivo

principal foi o que esse conjunto de práticas são aquelas que costumo utilizar com a

finalidade de empreender um caminho para o trabalho de criação teatral pelo corpo,

com a compreensão de que há algo mais profundo que deve servir de fonte de

inspiração. Tomando a natureza e a vida em si, tal fonte estará sempre disponível.

Assim, proponho manter viva essa conexão com o fundo comum – o Fundo Poético

Comum –, esse despertar para a observação e absorção da vida como inspiração para

a imaginação.

As diferentes experiências provindas de diferentes culturas fazem diferença na

Escola de Lecoq. É algo que o mestre sempre valorizou muito, a troca entre as

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culturas e a tentativa de estabelecer bases comuns para todas elas. Nesse sentido,

também a busca da noção de permanência e de fundo comum parecem ecoar seu

desejo de atingir o cerne do teatro com a mímica de fundo, ou seja, a mimesis de que

todas as artes são instrumentos. O instrumento, no nosso caso, é o corpo do ator.

Corpo e mente indissociáveis, premissa básica. Portanto, a pessoa do ator/atriz como

agente da mimesis, cuja a techné é a de Lecoq enquanto treinamento físico e enquanto

inspiração ou fonte, tomando a natureza como fundo infinito e interconectado de

possibilidades concretas capazes de serem desdobradas em analogias as mais abstratas

que a imaginação possa proporcionar.

Como a árvore, cujas ramificações captam a vida em duas fontes, o Sol e a Água, seu destino é o de mergulhar tanto no ar como na terra, o corpo estabelece a comunicação entre dois mundos separados: o imaginário e o real. (LORELLE, 1974, p.142)

A imaginação do ator na pedagogia de Lecoq, portanto, está diretamente

relacionada à noção de Fundo Poético Comum. A maneira como esse ensinamento se

dá reside nos diferentes exercícios descritos aqui, uma técnica que visa despertar para

essas possibilidades de movimentos, para a criação de linhas no espaço, de ritmos da

natureza, todos aspectos que, embora muitas vezes invisíveis, estão presentes para

quem quiser experimenta-los. Desde as linhas imaginárias que o corpo desenha,

passando pelas dinâmicas e objetos invisíveis, tudo é imaginação. Sendo assim, tudo

serve como alimento para o artista em processo de criação. Acredito, portanto, no

valor dessa prática e por isso continuo a utilizá-la e transmiti-la aos atores que

encontro pelo caminho.

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