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1 A PRESENÇA DO EPICURISMO NO LIVRO SATIRICON DE PETRÔNIO (27 – 66 d.C) doi: 10.4025/XIIjeam2013.camargo8 CAMARGO, Paulo Edyr Bueno “Eu dou valor às consolações da carne. Não tenho paciência com as almas covardes, que depois falam em fraqueza. Sustento que o prazer é uma prova de capacidade” (Bertolt Brecht – A vida de Galileu Introdução A apreciação crítica satisfatória dos clássicos - no caso do autor romano do século I objeto desse estudo Petrônio (27 d.C – 66 d.C) - exige um conhecimento fundo da época em que ele viveu. É necessário, em outras palavras, situar o autor em sua dimensão temporal e histórica. Qual é o contexto social, a moldura do quadro, em que Petrônio teceu os seus escritos e, sobretudo, por que o fez, o que o movia, quais necessidades sociais procurava responder? De início, é preciso salientar que Petrônio viveu num tempo histórico de profunda crise social – o Império Romano principiava o processo de seu declínio e aos mais atentos não seria nenhuma surpresa a sua fatídica queda -, e Petrônio a sua maneira procurou a saída (ou seria fuga?) às tragédias de seu tempo. O edifício corre o risco de ruir quando os alicerces, que o sustentam, começam a apresentar fissuras e rachaduras. No século I, o colossal Império Romano começava a desmoronar e Roma, a Cidade Eterna, notava que a sua suposta perenidade estava sendo colocado em dúvida, já que o modo de produção escravista, responsável pelo surgimento, manutenção e reprodução da sociedade romana, entrava em processo de crise e dissolução. O edifício social começa a ruir. Todos os problemas sociais, prostituição, fome, miséria, violência, são pintados com maestria por Petrônio (27 d.C – 66 d.C) nesse grande painel da sociedade romana do século I, que é o livro Satiricon. Devemos compreender o pensamento de Petrônio (27 d.C – 66 d.C) no contexto de uma profunda crise social em seu estado inicial de desenvolvimento, pois apenas

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A PRESENÇA DO EPICURISMO NO LIVRO SATIRICON DE

PETRÔNIO (27 – 66 d.C) doi: 10.4025/XIIjeam2013.camargo8

CAMARGO, Paulo Edyr Bueno

“Eu dou valor às consolações da carne. Não tenho paciência com as almas covardes, que depois falam em fraqueza. Sustento que o prazer é uma prova de capacidade” (Bertolt Brecht – A vida de Galileu

Introdução

A apreciação crítica satisfatória dos clássicos - no caso do autor romano do século I

objeto desse estudo Petrônio (27 d.C – 66 d.C) - exige um conhecimento fundo da época

em que ele viveu. É necessário, em outras palavras, situar o autor em sua dimensão

temporal e histórica. Qual é o contexto social, a moldura do quadro, em que Petrônio teceu

os seus escritos e, sobretudo, por que o fez, o que o movia, quais necessidades sociais

procurava responder? De início, é preciso salientar que Petrônio viveu num tempo

histórico de profunda crise social – o Império Romano principiava o processo de seu

declínio e aos mais atentos não seria nenhuma surpresa a sua fatídica queda -, e Petrônio a

sua maneira procurou a saída (ou seria fuga?) às tragédias de seu tempo. O edifício corre o

risco de ruir quando os alicerces, que o sustentam, começam a apresentar fissuras e

rachaduras. No século I, o colossal Império Romano começava a desmoronar e Roma, a

Cidade Eterna, notava que a sua suposta perenidade estava sendo colocado em dúvida, já

que o modo de produção escravista, responsável pelo surgimento, manutenção e

reprodução da sociedade romana, entrava em processo de crise e dissolução. O edifício

social começa a ruir. Todos os problemas sociais, prostituição, fome, miséria, violência,

são pintados com maestria por Petrônio (27 d.C – 66 d.C) nesse grande painel da

sociedade romana do século I, que é o livro Satiricon.

Devemos compreender o pensamento de Petrônio (27 d.C – 66 d.C) no contexto de

uma profunda crise social em seu estado inicial de desenvolvimento, pois apenas

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vislumbrava o pior que ainda estava por vir. Não seria um despropósito imaginarmos que,

num estágio mais aprofundado da crise, Petrônio não tivesse sequer a oportunidade de

ocupar cargos de importância junto ao imperador, porque, nesses momentos, mostra a

história, o poder enxerga na inteligência uma potencial ameaça. É preciso também destacar

que a literatura dos romanos, pelo geral, não primava pela originalidade e não possuía o

vigor e a grandiosidade da literatura grega. A Grécia, vencida pelos romanos, venceu os

vencedores pela sua civilização intelectual e artística. A literatura romana é uma pálida

imitação da grega. A última é fonte inesgotável onde beberam as artes e as ciências, e que

serviu de modelo aos poetas e escritores latinos.

Petrônio foi confidente e vítima da cabeça coroada e oca de Nero (37 d.C – 68 d.

C). Petrônio pagou um alto preço pela sua proximidade aos poderes instituídos de uma

sociedade decadente. Aconteceu o que era temível. Petrônio foi acusado de conspiração

contra o imperador, ou seja, passou a representar uma ameaça. Envolvido em intrigas

palacianas, foi impelido por Nero a cometer suicídio. Petrônio cortou os pulsos, entrou nos

banhos e deixou correr, pouco a pouco, o sangue de suas veias. Abandonou lentamente a

vida. O horror da cena, denominada de “morte suave”, é um presságio do que aconteceria

séculos mais tarde com a própria sociedade romana. Vale a pena lembrar que o próprio

Nero aos 37 anos também se suicidou. O Império Romano não morreu, ao contrário do que

muitos acreditam, de morte violenta, de forma espetacular, por causa da invasão dos povos

bárbaros que, a rigor, aconteceram no decorrer de vários séculos. As ondas de invasões

bárbaras não foram a causa do fim do Império Romano, mas propriamente conseqüência

do seu enfraquecimento, aos poucos as forças do império foram se esvaindo, assolado por

divergências e disputas políticas internas, esmagado pelo seu gigantismo e incapaz de

reproduzir a sua existência por intermédio do modo de produção escravista. Foi uma morte

lenta e agônica. O edifício social implodiu.

Discutiremos, no presente texto e como parte integrante de uma pesquisa mais

ampla a respeito do epicurismo e do estoicismo, a presença do epicurismo no pensamento

de Petrônio, em especial, em seu livro Satiricon. Partiremos da premissa de que o melhor

retrato de um pensador é sempre oferecido por seus próprios escritos. De resto, assim

procedendo, desacreditamos nas caricaturas que os movimentos filosóficos tecem entre si,

em particular a caricatura que o estoicismo, e depois o pensamento católico, fizeram do

epicurismo.

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Referencial teórico e metodologia

Na matriz epistemológica marxista, teoria e método são indissociáveis. A utilização

do método revela uma teorização a respeito do objeto de estudo e o referencial teórico

necessariamente lança mão dos princípios do método marxista. O marxista húngaro

Georges Lukacs diz que a ortodoxia no marxismo é uma questão de método. Procurarei, no

âmbito do marxismo em que a pesquisa se enquadra, confirmar a assertiva de Lukacs,

sendo fiel aos princípios do método de Karl Marx. Nesse sentido, deve-se situar o objeto

de estudo numa perspectiva de totalidade, isto é, compreendê-lo no conjunto das relações

sociais de produção. Outro parâmetro do método marxista é a reconstrução histórica do

objeto de estudo, a compreensão do fenômeno em sua gênese constitutiva e, por fim, o

princípio da contradição presente na lógica dialética do marxismo.

O modo de produção escravista, originado na Grécia Antiga, conheceu um

dinamismo muito maior no período de ascensão do Império Romano. “O militarismo

predatório da República romana era a sua principal alavanca de acumulação econômica. A

guerra trazia terras, tributos e escravos; os escravos, os tributos e as terras forneciam o

aparato para a guerra” (ANDERSON, 1991, p. 60). Porém, nos primeiros séculos da era

cristã, o modo de produção escravista entrou em crise. A escravidão de adultos

representava um investimento de capital perecível para o seu proprietário e que era

totalmente perdido com a morte do cativo, de maneira que a renovação do trabalho

compulsório requeria altos investimentos. Com o fim da expansão política e militar de

Roma, o escravismo tornou-se cada vez mais raro e incômodo e, no limite, os proprietários

passaram a libertar os seus escravos por causa das dificuldades de custeio. Além disso, a

manutenção e a supervisão dos trabalhos escravos eram notoriamente dispendiosas.

Enfim, o Império Romano conheceu um período de crise estrutural no momento em que as

forças produtivas entraram em conflito com as relações de produção.

Satiricon mostra uma sociedade romana em franco processo de decadência

originado pela impossibilidade de manutenção do grande contingente de escravos pelos

seus senhores, no início do século I. Era um problema que principiava nos tempos de

Petrônio, mas que ele captou, percebendo a gravidade da questão e compreendeu seus

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desdobramentos em todos os setores da sociedade, sobretudo, na educação e na cultura. A

maior parte do Satiricon é justamente a descrição do singular banquete do abastado

Trimálquio. O motivo do banquete não era outro senão a comemoração da “libertação” dos

escravos.

A presença do epicurismo no Satiricon

Satiricon é uma obra importante para o conhecimento dos costumes e das

condições sociais da sua época. Os personagens magistralmente pintados por Petrônio

mostram a decadência e a superstição que assolavam a sociedade romana. Nas primeiras

páginas, Encólpio, o narrador das aventuras (e desventuras) do trio de jovens romanos

formada por ele, Chitão e Ascilto, realizou um brilhante discurso no qual fala do seu

inconformismo com a decadência da eloquência romana. Reparem que os nossos três

“heróis”, sobretudo Encólpio, são estudantes promissores, criativos, inteligentes e de muito

talento, mas o grave quadro de crise social não permitia que as suas potencialidades

desabrochassem. Eles não eram jovens ruins estavam perdidos nos labirintos da sociedade

em decomposição. Agamenon, lente de retórica, elogia o discurso de Encólpio e oferece os

seus préstimos de professor.

- Jovem, tuas expressões não refletem o gosto dominante, Tens bom senso, qualidade rara em tua idade. Quero revelar-te os segredos de minha arte. A ruindade de nossas lições não é culpa dos professores. Diante de cabeças sem cérebro, não se pode falar razoavelmente. Como observou Cícero, se o ensino não é agradável, o ‘professor logo ficará sem ouvintes’ [...] O professor de retórica, como o pescador, sabe muito bem que, se não puser a isca preferida pelo peixe, ficará sentado toda a vida no rochedo, sem esperança de fisgá-lo (PETRÔNIO, s/d, p. 09).

De acordo com Azevedo (1961, p. 27), entre os gregos, os sofistas, procuravam

convencer pela argúcia e com o prestígio das palavras. Nas mãos dos romanos, a

eloquência transformou-se em declamação. Eram debatidos assuntos frívolos, por falta de

objetos importantes, os jovens ensaiavam as suas forças na ginástica mental que deviam

utilizar na vida pública. O senado romano degradou-se de assembléia de legisladores em

corporação decorativa. As declamações amesquinharam a eloquência. Transcreveremos,

abaixo, na íntegra o discurso de Encólpio. Como interpretar corretamente a influência

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negativa do pensamento oriental na decadência da eloquência em destaque no final do

discurso? Conforme Pessanha (1992, p. 63), primeiro Felipe, rei da Macedônia, depois seu

filho Alexandre e, por fim, os romanos encerram a experiência política e cultural da Grécia

Clássica. A civilização helenística foi o período em que o pensamento grego sofreu um

grande processo de expansão, em que helenos e orientais são forçados aos mais estreitos

contatos e se influenciaram mais intensamente. Surgiu, assim, o período helenístico que

duraria cerca de três séculos, da morte de Alexandre em 323 a.C à conquista de romana.

Com efeito, a cultura grega com a qual os romanos se depararam já estava em processo de

decadência, mas apesar disso influenciou enormemente a literatura latina que apenas

engatinhava.

- Alimentados com essas tolices, como poderão os jovens formar seu gosto? Um cozinheiro tem sempre o cheiro da cozinha. Não vos ofendais, ó retóricos, mas é de vós que vem a decadência da eloqüência! Reduzindo o discurso a uma harmonia pueril, a meros jogos vazios de palavras, vós o tornastes um corpo sem alma, um esqueleto apenas. Quando o gênio de Sófocles e Eurípedes criou uma nova linguagem dramática, não se exercitava ainda a juventude nessas declamações. Pedantes cobertos pela poeira das salas de aula ainda não esmagavam os talentos no berço, quando a musa de Píndaro e de seus nove rivais ousou fazer ouvir cantos dignos de Homero. E, mesmo sem citar os poetas, não creio que Platão e Demóstenes se tenham exercitado nesse gênero de composição. Como uma virgem pudica, a verdadeira eloqüência não conhece o exagero. Simples e modesta, eleva-se com naturalidade, tornando-se bela graças apenas a seus próprios encantos. Não faz muito que essa loquacidade bombástica passou da Ásia para Atenas. Como um astro maligno, sua influência assassina reduziu na juventude os impulsos do gênio, e desde então calaram-se as fontes da verdadeira oratória. A partir dessa época, nenhum historiador se aproximou da perfeição de um Tucídides, do renome de Hiperides. Não há mais um só poema onde brilhe o bom gosto; todos esses abortos literários se assemelham a insetos que nascem e morem no mesmo dia. A pintura não conhece outro destino, desde o dia em que o presunçoso Egito abreviou os processos e as regras dessa arte sublime (PETRÔNIO, s/d, p. 08 e 09).

Segundo Azevedo (1961, p. 06), ainda que mutilado, com a perda de 14 livros, dos

16 que o constituía, o Satiricon, que nos ficou reduzido a fragmentos de 2 livros, pelo teor

alegre e desenvolto, pela finura de análise e pela observação acusada, em que suas

narrativas são apresentadas, lembra-nos a novela licenciosa de Boccaccio. Notamos

também o caráter epicurista do Satiricon. “A sensação da brevidade da vida levou Petrônio

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à conclusão lógica e à prática da máxima epicúria, que ele, põe na boca de Encólpio, e pela

qual sempre e em toda parte se há de viver, como se cada daí que se goze, seja o último”

(AZEVEDO, 1961, p. 35).

Antes de continuarmos a análise das inúmeras passagens do Satiricon em que se

discutem os graves problemas sociais da Roma de sua época, devemos nos deter um pouco

no conceito de epicurismo. Herdamos uma visão distorcida do pensamento epicurista,

resultado das caricaturas realizadas pelos seus opositores, em princípio, pelos seus

contemporâneos do movimento estóico e, mais tarde, de forma ainda mais contundente,

pelo catolicismo. A leitura apressada das máximas de Epicuro (342 a.C – 270 a. C) ou os

comentaristas da sua obra, como exemplo podemos citar a apreciação realizado por

Azevedo (1961) no final do parágrafo anterior, podem deixar a impressão, e nos seus

difamadores a absoluta certeza, de que o epicurismo é a busca incessante e frenética dos

prazeres corporais.

Não obstante o epicurismo considerar todo prazer como corpóreo, não legitima

todo e qualquer tipo de prazer. Faz-se necessário distinguir o verdadeiro prazer, estável,

daqueles que resultam em pesares ou partem de carências, movendo-se entre insatisfações.

Eis um primeiro esclarecimento importante. Epicuro viveu no século III a.C. Ele constrói e

difunde sua filosofia centrada no prazer, na serenidade e na alegria. O epicurismo dialoga e

se contrapõe, sobretudo, ao pensamento platônico. Se a tradição platônica acreditava que a

filosofia era a preparação para a morte, Epicuro, do seu lado, dizia que a filosofia era a

procura da alegria. O objetivo do epicurismo é a cura da alma e o remédio é o logos

filosófico. De acordo com Pessanha (1992, p. 58), o logos epicurista é portador da verdade

aclaradora, o discurso enquanto phármakon, enquanto curativo porque discurso-razão que

afasta as trevas das crendices, expulsando os males da alma. O epicurismo, filosofia de

caráter essencialmente racionalista, salienta a necessidade de o homem se libertar dos

deuses e caminhar firme no sentido do domínio da natureza. O epicurismo rejeita a busca

da transcendência divina, o sentido da vida não pode ser buscado no sobrenatural, naquilo

que está acima do natural e do homem. O importante é a valorização do homem e a busca

da felicidade terrena. Epicuro é exaltado como glorioso libertador da humanidade,

descobridor da verdade que afasta os terrores da alma, o portador da luz que liberta e salva.

Percebemos que a salvação advogada pelo epicurismo é racional e não

transcendente. Portanto, não deve causar estranheza, o fato de ser tão criticado, tão

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rejeitado e tão caluniado pelo catolicismo, já que ele é seu oposto. É possível fazer

aproximações entre o estoicismo e o catolicismo. Contudo, a tentativa de conciliar Epicuro

com a Igreja, a ciência pagã com a consciência católica, era trabalho perdido. O jovem

Karl Marx (1818-1883), não por acaso, em 1839, iniciou uma tese em que mergulha na

filosofia epicurista, reinterpretando-a com o objetivo de obter lugar de docente na

Universidade de Bonn. Possuímos uma edição brasileira do trabalho de Marx, publicado

pela Editora Global, de São Paulo, em 1979, sob o título Diferenças entre as filosofias da

natureza em Demócrito e Epicuro. O humanismo radical proposto por Karl Marx tem as

suas raízes no epicurismo. O ateísmo em Marx é mais bem compreendido por intermédio

da leitura de Epicuro. Ele e Friedrich Engels (1820-1895) ao fazerem a crítica ao

materialismo francês, no livro A sagrada família, escreveram o seguinte:

Pedro Bayle, dissolvendo a metafísica pelo cepticismo, fez mais do que preparar ao materialismo e à filosofia do bom senso a sua adopção em França. Anunciou a sociedade ateia que devia estabelecer-se brevemente, demonstrando que podia existir uma sociedade de puros ateus, que um ateu podia ser um homem honesto, que o homem se rebaixava não pelo ateísmo, mas pela superstição e pela idolatria. Segundo a expressão de um autor francês, Pedro Bayle foi o “último dos metafísicos no sentido do século XVII” e “o primeiro dos filósofos no sentido do século XVIII” (MARX e ENGELS, 1972, p. 75 e 76).

O combate a toda forma de obscurantismo e crença e o propósito de colocar o

pensamento a serviço da felicidade terrena compõem o projeto salvacionista alicerçado na

ciência, realizado pela vez primeira pelo grego Epicuro, e que muitos séculos depois

também encontraremos em Marx e Engels, herdeiros da tradição iluminista do século

XVIII. Somente o conhecimento é capaz de libertar o homem, a procura da salvação e do

sentido da vida são atributos da razão humana, não da crença e da adesão ao mistério, mas

possível de ser efetivado por meio da filosofia enquanto compreensão clara, racional e

comprovável.

Epicuro, ao contrário de Platão que no diálogo Fedon alimenta a esperança na

imortalidade da alma, defende a viabilidade e o direito do homem alcançar qualidades que

só os imortais possuem perenemente. Ele acredita ser possível provar nesta vida breve as

delícias que os imortais usufruem na eternidade. É possível adquirir na vida terrena as

qualidades que a imortalidade confere aos deuses no outro mundo. Com o objetivo de

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colocar em prática o seu desiderato, Epicuro, em 306 a.C, vai para Atenas e funda a sua

escola filosófica, o Jardim, na realidade uma confraria ou comunidade que admite entre

seus membros mulheres, escravos e estrangeiros. Neste aspecto, novamente se contrapõe a

República de Platão, em que eram aceitos somente os cidadãos gregos, isto é, pessoas do

sexo masculino nascidas na Grécia, excluindo, portanto, os demais membros da sociedade

leiam-se mulheres, escravos e estrangeiros. Ainda com relação às diferenças entre o Jardim

de Epicuro e a República de Platão, em que pese o caráter idealista e utópico do último, -

os críticos dizem que Platão foi o único morador da sua cidade ideal -, percebemos a

intenção de criar um projeto coletivo de procura do bem comum e da justiça.

Na República de Platão, o rei seria o filósofo ou o filósofo seria o rei, em outras

palavras, seguindo Pessanha (1992, p. 60), o sábio era aquele que comandava o leme da

nau da Cidade. Epicuro, na questão em pauta deu um passo atrás em relação ao

pensamento platônico, pois acreditava que a única nau que o homem podia governar era a

sua própria vida, abdicando assim da participação na vida política e social. Ele buscava a

felicidade pessoal, cada um devia cultivar seu próprio “jardim”, o mais importante e único

mundo era o mundo interior. É certo que contexto social em que viveram Platão, século V

a.C, e Epicuro, século III, não são o mesmo. O esplendor do século de Péricles, o século de

Platão, já havia passado. Nos dois séculos que separam os autores, o modo de produção

escravista, a base da sociedade grega e, posteriormente, também o alicerce da sociedade

dos tempos de Petrônio, começavam a dar sinais de insuficiência. Em momentos de crise

social são comuns, e extremamente criticáveis, as “soluções” pessoais, o esquecimento da

política e o interesse quase exclusivo pelos segredos e mistérios do mundo invisível. Em

outras palavras, o mergulho solitário na subjetividade pessoal. Seria equivocado considerar

a proposição dos epicuristas uma espécie de fuga?

Petrônio dedica a maioria das páginas do livro Satiricon, pelo menos a parte

conhecida por nós, a descrição do banquete de Trimálquio. O banquete foi realizado em

comemoração à “libertação” dos escravos. A ironia de Petrônio mostra a felicidade dos

escravos e como ficaram gratos pela bondade e generosidade de seu amo e senhor. Na

realidade, os escravos estavam recebendo o passaporte para o mundo da miséria e do

descalabro.

Encantado com esse desafio, Trimálquio nos disse:

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- Meus amigos, os escravos são homens como nós; amamentaram-se com o mesmo leite, embora a sorte lhes tenha sido madrasta. Entretanto, desejo que, dento em breve, e estando eu ainda vivo, eles bebam a água dos homens livres. Enfim, eu os liberto a todos em meu testamento. Lego a Filargiro, ademais, um trato de terra e sua mulher; a Cario, um bloco de casas com o produto da vintena e um leito guarnecido. Quanto à minha Fortunata, faço-a minha herdeira universal, e recomendo-a a todos os meus amigos. Se torno públicas minhas últimas vontades, é para que todas as pessoas de minha casa me queiram desde agora como se eu já estivesse morto. Todos os escravos começaram a agradecer a generosidade e a bondade de seu amo, mas ele, tomando a coisa a sério, mandou vir o testamento, e leu-o de ponta a ponta, em meio aos gemidos de todos os seus domésticos (PETRÔNIO, s/d, p. 97).

Não há dúvida também que o ex-escravo, o novo rico, pintado por Petrônio, o

personagem Trimálquio, era um grande proprietário de terras e de escravos.

Trimalquio possui domínios tão vastos, que um falcão não poderia atravessá-lo em seu vôo. Ele acumula os juros dos juros e há mais prata na casa de seu porteiro, hoje em dia, do que em todo o patrimônio das pessoas. Quanto a seus escravos, juro-te, não acredito que a décima parte deles conheça seu senhor. Mas o temor que ele lhes inspira é tão grande que, com um simples pigarro, poria todos a correr desabaladamente (PETRÔNIO, s/d, p. 52).

Trimálquio mostra em diversas passagens do Satiricon o grotesco de suas maneiras

plebéias e de sua absoluta falta de educação e de gosto. Como todo novo rico, sabedor da

insuficiência de sua formação intelectual, Trimálquio não se furtava ao ridículo nos seus

momentos de desastrosa pedantaria. O seu público, entre eles o jovem Encólpio, estudante

de talento, e narrador do Satiricon, tal como os personagens de Molière (1622-1673), era

obrigado a suportar as suas declamações e cantos.

[...] Trimálquio, de pé, inteiramente nu, fazia com sua fanfarronice habitual insípidos discursos, que fomos obrigados a escutar. Ele dizia que nada era mais agradável do que banhar-se longe da massa importuna; que aquela estufa fora anteriormente uma padaria. Por fim, cansado de estar de pé, sentou-se; mas, por infelicidade, a sala possuía uma acústica que lhe deu a idéia de cantar. E eis que fez estremecer o recinto com seus uivos, entrecortados pelos soluços da embriaguez, assassinando árias que, segundo aqueles que compreendiam algo do assunto, eram canções Menecrates (PETRÔNIO, s/d, p. 100).

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Os clássicos gregos e latinos, e os ouvidos da platéia, penavam nas mãos da nova

elite endinheirada e ralé intelectual.

Um escravo que estava deitado aos pés de Habinas, sem dúvida por ordem de seu amo, declamou em voz estentórica: Enéias e sua frota se haviam feito ao mar . . . Jamais um som mais excruciante penetrou em meus ouvidos, pois, além de o bárbaro elevar e baixar o tom de sua voz sempre nos momentos errados, misturava à recitação versos tomados de empréstimo às farsas atelanas. Pela primeira vez em minha vida, Virgílio me desagradou (PETRÔNIO, s/d, p. 93).

Não queremos ofender os leitores mais sensíveis, mas o horror da sociedade

romana tem que ser mostrado. Não é um quadro estranho aos dias atuais. De resto, é

melhor ser atingido na sensibilidade, o que é um sinal de humanidade, diga-se de

passagem, do que permanecer na indiferença.

Ele falava, ainda, quando vimos entrar uma senhora das mais respeitáveis: Filomena era seu nome. Na juventude, ela havia especulado bastante com seus encantos para extorquir heranças; agora, porém, velha e fenecida, apresentava seus filhos e filhas a velhos sem herdeiros, e sucedendo-se assim a sim própria continuava a exercer seu honesto comércio. Procurou, então, a Eumolpo e confiou, à austera bondade dele, os filhos, sua única esperança, segundo ela (PETRÔNIO, s/d, p. 205).

Satiricon mistura poesia com a narração em prosa. Destacaremos, abaixo, duas

passagens que mostram que os problemas da sociedade afetaram também o Direito. As

leis, supostamente responsáveis pela manutenção da ordem e da justiça, revelam-se na

prática totalmente insuficientes como arrimos de um edifício social que desmorona.

Ademais, como escreveu o escritor George Orwell, no livro A revolução dos bichos, todos

são iguais perante a lei, mas alguns (os endinheirados) são mais iguais do que os outros.

Onde o ouro é todo-poderoso, de que servem as leis? Se não tem dinheiro, o pobre perde seus direitos. O cínico, que é tão frugal e severo em público, Secretamente negocia com a verdade. Até mesmo Têmis se vende e, em seu tribunal, A balança pende conforme o vil metal (PETRÔNIO, s/d, p. 27).

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O camponês e sua companheira já haviam aceito a troca, quando dois oficiais de justiça, que tinham a aparência de ladrões noturnos, querendo apropriar-se do manto, exigiram em alta voz que fossem depositados provisoriamente em sua mãos os objetos em disputa (PETRÔNIO, s/d, p. 28).

A religião também não passou incólume aos problemas sociais. Ela compunha o

todo que é a sociedade romana. Em certos momentos dos períodos de crise social, o apelo

religioso aumentou grandemente. Surgiram novas seitas e religiões. Não é um despropósito

afirmarmos que essa é uma questão atual, atualíssima. “Existem neste país tantas

divindades protetoras, que os homens se tornaram mais raros que os deuses” (PETRÔNIO,

s/d, p. 31). O povo sofre e as religiões pedem paciência. O povo tolera: os miseráveis, ao

invés de revoltarem-se, entorpecem-se.

A sabedoria popular já dizia que é mais valorizado aquilo que falta, o que é raro

passa pelo melhor. Quando o dinheiro, responsável pela manutenção da existência, torna-se

escasso, as amizades deixam de ser sinceras. Aqui, mais uma vez, utilizaremos uma

passagem em prosa e outra em verso.

Crede-me, amigos, um homem só vale por aquilo que tem; sede ricos, e vos estimarão. Foi assim que eu, vosso amigo, que não passava, antigamente, de uma rã, me tornei agora tão poderoso quanto um rei (PETRÔNIO, s/d, p. 106). Amizade é uma palavra que existe enquanto é útil; Como a peça de xadrez, vai e volta no tabuleiro quadriculado Quando a sorte está a nosso lado, amigo, teu sorriso é amplo; Quando parte, tu nos dás as costas e vilmente te afastas. A comédia mostra: este é o pai; Aquele o filho; um terceiro é rico. Mas as páginas passam, encerram-se os papéis agradáveis, As verdadeiras faces surgem, desfaz-se a pintura (PETRÔNIO, s/d, p. 110).

O conhecimento, as artes e a filosofia são notadamente degradadas e desvalorizadas

em tempos de crise social. O epitáfio de Trimálquio, um dos pontos altos do Satiricon, é

exemplo disso.

“AQUI REPOUSA GAIO POMPEU TRIMÁLQUIO, DIGNO ÊMULO DE MECENAS:

EM SUA AUSÊNCIA FOI NOMEADO UM DOS SEIS;

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PODERIA TER PERTENCIDO A TODAS AS DECÙRIAS DE ROMA, MAS RECUSOU ESTA HONRA;

PIEDOSO, VALENTE, FIEL, NASCEU POBRE E CONSEGUIU DEPOIS UMA GRANDE FORTUNA; DEIXOU TRINTA MILHÕES DE SESTÉRCIOS

E JAMAIS ASSISTIU ÀS LIÇÕES DOS FILOSÓFOS. PASSANTE, DESEJO-TE A MESMA SORTE” (PETRÔNIO, s/d, p. 98).

O personagem Eumolpo também merece destaque. Ao contrário dos demais

personagens, ele luta para não afundar-se na barbárie, procura manter acesa a luz da razão

e do conhecimento. Logicamente, um personagem com tais características não era bem

visto pelo conjunto da sociedade.

Mal havia Eumolpo acabado sua declamação, quando as pessoas que passeavam pelos pórticos fizeram cair sobre ele uma chuva de pedras. Acostumado a tais manifestações, ele cobriu a cabeça e fugiu do templo. Temendo que me tomassem também por um poeta, eu o segui de longe, até a beira-mar (PETRÔNIO, s/d, p. 122).

Em um diálogo com Encólpio, Eumolpo conta as agruras e desventuras de um

homem de letras numa Roma decadente. É justamente a Eumolpo que Petrônio, aliás, faz

recitar seus melhores versos.

Enquanto eu lançava aos ventos meus queixumes inúmeros, vi entrar na galeria um velho de cabelos brancos, cujo rosto anunciava a reflexão e parecia prometer qualquer coisa de grande, embora não tivesse uma aparência muito cuidada: tudo, em seu exterior, denunciava ao primeiro olhar um desses homens de letras que, geralmente, são alvo do ódio dos ricos. Ele se deteve junto a mim. - Eu sou poeta – disse-me. – E gabo-me de ser um poeta de algum mérito, a julgar pelo número de lauréis que me têm concedido. É verdade que os dão freqüentemente também, por favor, a ignorantes. Por que então, me perguntarás tu, estás tão mal vestido? Pelo fato mesmo de ser poeta, eu te respondo: o amor às letras jamais enriqueceu pessoa alguma. Quem confia no acaso do mar amontoa lucro imenso; Quem segue as armas e a guerra pode cingir-se de ouro; O adulador barato deita-se bêbedo em leito púrpura; O devasso ganha dinheiro com o adultério. Só a eloqüência treme esfarrapada no inverno, E desvalida invoca as artes desprezadas (PETRÔNIO, s/d, págs 113 e 114).

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Conclusões

Nas últimas páginas do livro Satiricon, o nosso “herói” Eumolpo também se

degrada, tornando-se amante fervoroso dos prazeres corporais regados a bebida e sexo. Ele

surge inesperadamente no livro como governante da cidade de Crotona, retratada por

Petrônio como análoga a Roma decadente. Antes disso, porém, faz uma lúcida reflexão.

“Um espírito generoso, porém, não se engana assim: sabe que o gênio só pode conceber e

dar à luz uma grande produção quando foi fecundado, antes, por longos estudos“

(PETRÔNIO, s/d, p. 166).

Petrônio, nos últimos parágrafos do Satiricon, fez o seu derradeiro apelo, deixou o

seu último conselho, ministrou a sua mais importante lição: [...] nada é mais seguro que

consultar a razão em todas as coisas (PETRÔNIO, s/d, p. 207). A última palavra ficou com

a razão, com a luz, com o conhecimento e, portanto, não podemos perder a esperança. A

leitura do Satiricon deixa uma lição historicista para a sociedade contemporânea: a

sociedade já atravessou períodos de crise social similares ao nosso e conseguiu superar as

suas contradições e desumanidades mais agudas. Precisamos manter acesa a luz da razão e

não deixarmos as conquistas do processo civilizatório se perder. O menos que podemos

fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, e manter acesa a chama da

razão e do conhecimento sobre a realidade, evitando que sobre ela caia a escuridão,

propicia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. O pessimismo não é construtivo.

REFERÊNCIAS:

ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. Trad. Beatriz Sidou. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

AZEVEDO, Fernando. No tempo de Petrônio. 3ª ed. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1961.

PESSANHA, José Américo. As delícias do jardim. In: Ética (org. Adauto Novais). 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PETRÔNIO. Satiricon. São Paulo: Circulo do Livro, s/d.

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ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MARX, Karl. Diferenças entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. São Paulo: Editora Global, s/d.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1972.