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A PRODUÇÃO DE SABER/PODER E OS PROCESSOS DE DISCIPLlNAMENTO NA ESCOLA: REVIVENDO O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT José Gerardo Vasconcelos' 1 INTRODUÇÃO Este estudo constitui parte de uma pesqui- sa que desenvolvemos sobre o pensamento de Michel Foucault, extensão do qual foram alguns seminários, proferidos na Universidade Estadual do Ceará, em maio de 1994, tendo como temática cen- tral a Ética, a Violência e o Poder. Procuraremos entender aqui a possível rela- ção do assunto com a escola, tomando-se em consi- deração o fato de que a possibilidade de atuação sobre os corpos dos indivíduos torna-se mais visível nos espaços institucionais. Isso não quer dizer po- rém, que o poder deixe de se manifestar nas demais esferas do cotidiano, pois que este grande objeto dos estudos de Foucault deve ser entendido corno algo essencialmente relacional, produtor de saber e de subjetividade. Assim, pois, é que o autor da Microfísica do Poder se posiciona acerca da ex- plicação dos movimentos do poder: Quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana ( FOUCAULT, 1986b: 131) Mostraremos inicialmente, a elaboração do disciplinamento e a rede que passa a ser construída nas relações espaço-temporais, para, em seguida, podermos entender os possíveis reflexos da pro- dução saber/poder na escola. • Professor Assistente do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação - Universidade Fede- ral do Ceará e Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. 32 . Educação em Debate - Fortaleza· Ano 17/18· n 2 29-30-31 e 32 de 1995 - p. 32·37 2 O PODER DISCIPLINAR, ESPAÇO E TEMPORALlDADE o poder corno instrumento de análise capaz de explicar a produção de saber e de subjetividade foi terna introduzido por FOUCAULT(1986a) no livro Vigiar e Punir, em que o autor discutira a história da violência nas prisões. Dando continuidade ao projeto, FOUCAULT (1985) buscava, ainda, a mesma temática na História da Sexualidade I- A vontade de saber, mostrando os lugares determinados para que se falasse sobre a se- xualidade, tecendo com efeito, processos discursivos de disciplinamento, consoante se pode inferir da cer- teza que lhe fez RA]CHMAN (1987: 45) A História da Sexualidade termina so- licitando-nos que consideremos que "um dia numa diferente economia de corpos e de Pra- zeres", as pessoas já não entendam por que razão, durante milênios, desenvolvemos uma cultura da confissão com relação ao sexo. É bem verdade, antes da discussão do poder disciplinar, FOUCAULT(1993) indica pontos funda- mentais na História da Loucura, principalmente no que se refere à crítica contundente ao historicismo, pois recortava vários períodos fundados na descon- tinuidade, possibilitando o entendimento e a pro- dução de um saber específico gerado com a loucura. Isso não poderia ser feito de forma linear ou teleológica. É que não faz sentido tornar a loucura historicista. Seria razoável demais acreditar em tal possibilidade. MA] O R (1994), expressa leve sobres- salto a respeito da inexistência de liames entre lou- cura e sexualidade:

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A PRODUÇÃO DE SABER/PODER E OS PROCESSOS DE DISCIPLlNAMENTONA ESCOLA: REVIVENDO O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULTJosé Gerardo Vasconcelos'

1 INTRODUÇÃO

Este estudo constitui parte de uma pesqui-sa que desenvolvemos sobre o pensamento deMichel Foucault, extensão do qual foram algunsseminários, proferidos na Universidade Estadual doCeará, em maio de 1994, tendo como temática cen-tral a Ética, a Violência e o Poder.

Procuraremos entender aqui a possível rela-ção do assunto com a escola, tomando-se em consi-deração o fato de que a possibilidade de atuaçãosobre os corpos dos indivíduos torna-se mais visívelnos espaços institucionais. Isso não quer dizer po-rém, que o poder deixe de se manifestar nas demaisesferas do cotidiano, pois que este grande objetodos estudos de Foucault deve ser entendido cornoalgo essencialmente relacional, produtor de saber ede subjetividade. Assim, pois, é que o autor daMicrofísica do Poder se posiciona acerca da ex-plicação dos movimentos do poder:Quando penso na mecânica do poder, penso em suaforma capilar de existir, no ponto em que o poderencontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos,vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seusdiscursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana (FOUCAULT, 1986b: 131)

Mostraremos inicialmente, a elaboração dodisciplinamento e a rede que passa a ser construídanas relações espaço-temporais, para, em seguida,podermos entender os possíveis reflexos da pro-dução saber/poder na escola.

• Professor Assistente do Departamento de Fundamentos daEducação da Faculdade de Educação - Universidade Fede-ral do Ceará e Doutorando em Sociologia pelo Programa dePós-Graduação em Sociologia da UFC.

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2 O PODER DISCIPLINAR, ESPAÇO ETEMPORALlDADE

o poder corno instrumento de análise capazde explicar a produção de saber e de subjetividadefoi terna introduzido por FOUCAULT(1986a) nolivro Vigiar e Punir, em que o autor discutira ahistória da violência nas prisões.

Dando continuidade ao projeto, FOUCAULT(1985) buscava, ainda, a mesma temática na Históriada Sexualidade I - A vontade de saber, mostrando oslugares determinados para que se falasse sobre a se-xualidade, tecendo com efeito, processos discursivosde disciplinamento, consoante se pode inferir da cer-teza que lhe fez RA]CHMAN (1987: 45)

A História da Sexualidade termina so-licitando-nos que consideremos que "um dianuma diferente economia de corpos e de Pra-zeres", as pessoas já não entendam por querazão, durante milênios, desenvolvemos umacultura da confissão com relação ao sexo.

É bem verdade, antes da discussão do poderdisciplinar, FOUCAULT(1993) indica pontos funda-mentais na História da Loucura, principalmenteno que se refere à crítica contundente ao historicismo,pois recortava vários períodos fundados na descon-tinuidade, possibilitando o entendimento e a pro-dução de um saber específico gerado com a loucura.Isso não poderia ser feito de forma linear outeleológica. É que não faz sentido tornar a loucurahistoricista. Seria razoável demais acreditar em talpossibilidade. MA] OR (1994), expressa leve sobres-salto a respeito da inexistência de liames entre lou-cura e sexualidade:

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Relendo F oucault, fiquei surpreso pela au-sência de relação, em sua obra, entre a lou-cura ea sexualidade. Existe, é verdade, umahistória foucaultiana, a história de umaobra, de um percurso que vai da Históriada loucura à História da Sexualidade, masé a história de duas histórias diferentes, deduas histórias "impossíveis" sob muitos as-pectos, senão essencialmenteimpossíveis, tan-to é verdade que a loucura e a sexualidadesão sem história (MAJOR; 1994:44)

É de necessidade, ainda, registrar que as aná-lises de FOUCAULT( 1995) descritas na Arqueo-logia do Saber, insurgem-se contra as grandesnarrativas, os longos períodos, e apresenta adescontinuidade e a noção de acontecimento. ParaMACHADO (1986b), essas tematizaçõesrefletem sobre as precedentes análises históricas como objetivo não só de explicitar ou sistematizar massobretudo de clarificar ou aperfeiçoar os princípiosformulados a partir das próprias exigências das pes-quisas (MACHADO, 1996b: x)

A análise do poder em FOUCAULT(1986b)opõe-se ao lIuminismo e ao projeto supostamente"humanista" da modernidade, denunciando os pro-cessos simbólicos de adestramento e de violência.

Há numerosas indicações de que, pelo me-nos como intelectual, F oucault erafortementecontrário a muito do que descobriu em nossahistória "profunda". Ele opunha-seprofun-damente, arqueologicamente, aos meios "ra-cionais" ou tecnocrdticos que a nossacivilização criara para lidar com a loucu-ra, a doença, o crime e a sexualidadei ...) atémesmo em As Palavras e as Coisas, éclaro que F oucault é hostil à cultura quecoisifica o hamem ~ insiste com o leitor paraque adira à idade pôs-humanista por eleprevista (RAJCHMAN, 1987: 43).

Ao mesmo tempo, põe a ressalto a inviabili-dade das reformas dos manicômios e das prisões, oque dificultaria aos seus oponentes simplesmenteapartá-Io de projetos emancipatórios. No caso das ins-tituições carcerárias o próprio autor de Vigiar e Pu-nir argumenta:

sabe-se que a prisão não reforma, mas fa-brica a d~linqühzcia e os delinqüentes. É esteo momento em que se percebe os benefíciosque sepode tirar dessafabricação. Estes de-

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VQFclinqüentes podem servir para alguma coisa,pelo menos para vigiar os delinqüentes(FOUCAULT, 1986b: 136)

A concepção de poder em FOUCAULT(1986b) não é edificada somente no aspecto repres-sivo, mas, essencialmente, na sua'dimensâo produ-tiva e/ou de adestramento. É melhor vigiar do quepunir. É por isso que ele polemiza com as noçõesque simplificam o poder, analisando-o somente noaspecto negativo, consequentemente, em tomo daforça e da repressão.

Ora, me parece que a noção de repressão étotalmente inadequada para dar conta doque existejustamente de produtor no poder.Quando se define os efeitos do poder pelarepressão;tem-se uma concepçãopuramentejurídica desse mesmo poder; identifica-se opoder a uma lei que diz não. O fundamen-tal seria a força e a repressão. Ora, creio seresta uma noção negativa, estreita e esqueléticadopoder, que curiosamente todo mundo acei-tou. Se o poder fosse somente repressivo, senão fizesse outra coisa a não ser dizer não,você acredita que seria obedecido? O quefazcom que opoder se mantenha e que seja acei-to é simplesmente que ele permeia, produzcoisas, induz ao prazer, forma saber, pro-duz discurso (FOUCAULT: 1986b: 7 e 8).

Essa abertura teórica, na realidade, vai in-surgir-se contra as concepções clássicas de poder,inaugurando outro olhar sobre a realidade. Recupe-ra teoricamente um espaço de questionamento acer-ca da repressão mostrando que o funcionamento dasinstituições é muito mais complexo que as tentati-vas simplificadoras denominadas por FOUCAULT(1986b) de Teoria Jurídica do poder ou Econo-micismo da Teoria do Poder. Para isso, seria ne-cessário que a polemica fosse extensiva aospensadores contratualistas como HOBBES(1983),LOCKE(1983) e ROUSSEAU(1983), sem, contudo,deixar de criticar algumas leituras do marxismo.

Se o primeiro modelo, segundo Foucault,concentra o poder numa ordem contratual ou numpacto de associação como mediador do poder de es-tado, o segundo - concepção marxista do poder -aponta para a funcionalidade econômica no sentidode que o poder desempenha um papel restrito àsrelações de produção, dando um lugar de destaqueà chamada luta de classe. Para FOUCAULT(1986b),

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o poder não se dá, não se troca, nem se retoma, masse exerce, só existe em ação, como também da afir-mação que o poder não é principalmente manuten-ção e reprodução das relações econômicas, mas acimade tudo uma relação de força. Questão: Se o poderse exerce, o que é a sua mecânica? ( FOUCAULT,1986b: 175).

É nesse caso que a concepção deFOUCAULT (1986b) se propõe a inverter o posicio-namento e o ângulo de visualizar a repressão. Ana-lisa os mecanismos de poder partindo de níveis maisbaixos e periféricos. Tal, porém, não significa queo particular se esgote em si. Na realidade, os fenô-menos particulares estão articulados com os níveismais gerais da produção discursiva e de saber, o quepode levantar um movimento que vai do particularao universal, com retorno no inverso sentido.

O que Foucault critica não é o universal emsi, mas as visões dedutivas do poder, visão que bempode ser demonstrada em cinco precauçõesmetodológicas expostas por ele.

Em primeiro lugar, sua preocupação é comnão perder as ramificações do poder, de maneira queas centralizações extremadas, além de simplificarem,podem ensejar destruições tentaculares da realida-de e do poder. É necessário, nesse caso, que as aná-lises sejam deslocadas do centro para as zonasperiféricas. Como assinala o próprio autor,não se trata de analisar as formas regulares e legíti-mas do poder em seu centro, no que possam ser seusmecanismos gerais e seus efeitos constantes. Trata-se, ao contrário, de captar o poder em suas extremi-dades, em suas últimas ramificações, lá onde ele setoma capilar (FOUCAULT, 1996b: 182)

Em sentido assim, trata-se, de captar o podernas formas cada vez menos jurídicas, que possamser expressas fora do âmbito das normalizações, ul-trapassando os aparatos e os esquemas repressivos.A rede tentacular que ocupa a esfera do mundo vi-vido é o espaço que' leva a tona as análises deFOUCAULT (1996b), retirando o poder do seu cen-tro, entendendo-o como realmente é, a forma comoé exercido, seu modo de atuação e a maneira detransformar os indivíduos.

O segundo cuidado é o entendimento dopoder não a partir de quem o detém, mas das mani-festações, práticas e seus exercícios efetivos. É, nes-se caso, que o poder não pode ser corporificado ouconcentrado, mas entendido como processo contínuoe ininterrupto, processos defuncionamento, processos desujeição.

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Estudar opoder onde sua intenção - se équehá uma intenção - está completamenteinoestida em práticas reais e efetivas; estu-dar opoder em sua face extrema, onde eleserelaciona direta ou indiretamente com aqui-lo que poderemos chamar provisoriamentede seu objeto, seu alvo ou seu campo de apli-cação, quer dizer, onde elese implanta epro-duz efeitos reais I FOUCAULT; 1996b: 182)

Esse raciocínio é precisamente contrário aomodelo hobbesiano, que quer explicar efetivamen-te quem tem o poder e, no processo do pacto deassociação, concentrá-I o no corpo do soberano. O in-divíduo para FOUCAULT(1996b) não é o outro dopoder, mas um de seus principais efeitos.

A terceira precaução vem propor que o poderseja analisado de forma heterogênea e não como umfenômeno de dominação maciço e homogêneo, poisque só deve funcionar em cadeia, uma vez que circulaos corpos dos indivíduos. O caráter de homogeneizaçãoquestionado pelo autor de Eu, Pierre Riviêre... éapresentado como dimensão compactada de domina-ção, podendo ser de um indivíduo ou de um gruposobre o outro. Afirma sobre isso que se deve ter bempresente que o poder - desde que não seja considera-do de muito longe - não é algo que se possa dividirentre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamentee aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. Opoder deve ser analisado como algo que circula, oumelhor, como algo que só funciona em cadeia.(FOUCAULT; 1996b: 183)

É essa dimensão circular que movimenta opoder, de maneira que este não se aplica aos indiví-duos, mas passa por eles, efetuando relações produ-tivas e discursivas. O indivíduo é um efeito do podere, concornitantemente, seu centro de transmissão.As análises homogêneas do poder impedem essemovimento, simplificando, assim, as individualida-des como vítimas do poder e da violência.

A desconfiança de Foucault em relação àanálise descendente do poder é a quarta cautelaproposta. O que pode haver nesse tipo de análise éum falseamento da realidade a partir de vastos pro-cessos de homogeneização, podendo, destarte, che-gar a conclusões simplificadoras. A dedução é semprepossível, é sempre fácil e é exatamente essa a críticade Foucault. Na realidade, há um movimento deinversão e uma prioridade aos mecanismos efetivosdo poder, sem soltar sua dimensão histórica e semse perder apenas num processo dedutivo.

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oquefaço éo inverso:examinar historicamente,apartirde baixo, a maneira como osmecanis-mos de controlepuderam funcionar: Porexem-pIo, quanto a exclusão da loucura ou arepressão eproibição da sexualidade, ver como,ao nível efetivo da família, da vizinhança, dascélulas ou níveis mais elementares da socieda-de, essesfenômenos da repressão ou exclusão sedotaram de instrumentos próprios, de umalógica própria, responderam a determinadasnecessidades:mostrar quaisforam osseus agen-tes, sem procurd-los na burguesia em geral esim nos agentesreaist quepodem ser afamília,a vizinhança, os pais, os médicos, etc.)(FOUCAULT, 1986b: 185).

As simplificações do tipo marxista em que aburguesia explica todos os mecanismos de domina-ção, incluindo o manicômio, a sexualidade infantil,a escola, a prisão e demais instituições como refle-xos da luta de classe passa a ser questionada porFOUCAULT(1996b). Ele abre a possibilidade paraque o poder seja entendido em seu funcionamentoconcreto, ou seja, no que é próprio do poder e nassuas ligações tentaculares e moleculares.

A quinta diligência metodológica deFOUCAULT(1996b), no que se refere ao poder dis-ciplinar, é com a ideologia, o que implica afirmar queo poder, se quer funcionar, tem necessariamente queproduzir mecanismo de saber inerente ao limiar es-paço-temporal no sentido de atender aos processossimbólicos que não necessariamente são ideologias,pois não podemos afirmar que as representações fa-zem mover o poder como uma força mecânica e ex-terior, mas a efetivação de mecanismos de saber éque podem ser articulados ao poder.

Aqui, o poder deve ser tematizado a partirde técnicas e táticas de dominação, situando-o forado modelo do leviatã de HOBBES(1983). Consoan-te a lúcida intervenção de MACHADO (1988: 194),É importante notar que a disciplina nem é um apa-relho, nem uma instituição: ela funciona como umarede que os atravessa sem se limitar a suas frontei-ras, é uma técnica um dispositivo, um mecanismo,um instrumento de poder.

3 ESCOLA,PODER DISCIPLINAR E IDEOLOGIA

Tematizar a escola em meio a essa rede dedisciplinamento é entendê-Ia como instituição de

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vivências, disputas de conhecimento, de processossimbólicos, mas principalmente, de relações de po-der, de saber e de violência.

A escola poderá ser estudada como um espa-ço onde as relações de poder se manifestam de for-mas efetivas, em que os agentes sociais devem serbuscados concretamente entre professores, alunos,diretores e funcionários, ou em suas manifestaçõese ramificações tentaculares, geradoras de olharesmúltiplos, de vigilâncias perpétuas que podem servisualizados em códigos e processos normalizadores.

O que não podemos é simplesmente chegara uma identificação entre poder e ideologia paraconceituar a escola. Foucault, mesmo sem negar aideologia, mostra que, na base, nas ramificações, estanão acontece necessariamente....houve provavelmente, por exemplo, uma ideolo-gia da educação; uma ideologia do poder monárquico,uma ideologia da democracia parlamentar etc. Masnão creio que aquilo que se forma na base seja ideo-logia: é muito menos e muito mais que isso. São ins-trumentos reais de formação e de acumulação desaber: métodos de observação, técnicas de registros,procedimentos de inquéritos e de pesquisas, apare-lhos de verificação (FOUCAULT, 1986b: 186):

A centralidade da preocupação foucaultianatoma-se evidente: é com o funcionamento do po-der. Ele não parte de algo já estabelecido, mas quermostrar a tecnologia do poder, ou seja, como se exer-ce, o que ele produz e que tipo de indivíduos seri-am gerados para atender às instâncias de·adestramento da sociedade, como ocorre com a esco-la. Esta, para alguns pensadores comoBAUDRILLARD (1996) já deixou de existir, poistodos os espaços e temporalidades são marcados pelaviolência e pela cultura do medo, onde as trocas sim-bólicas seriam inviabilizadas e a única possibilidadeestaria na violência teórica:

... se a fábrica já não existe, é que o tra-balho está em toda parte - se a prisãonão existe mais, é que o seqüestro e areclusão estão em todo lugar no espaço/tempo social- se o asilo deixa de existir,é que o controle psicológico e terapêu-tico se generalizou e banalizou - se aescola acabou, é que todas as fibras doprocesso social estão impregnadas dedisciplina e de formação pedagógica C.. ).Se o cemitério não existe mais, é que ascidades modernas inteiras assumem essa

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forma: são cidades mortas e cidades demorte (BAUORILLARO, 1996: 173)

Esse pânico pós-moderno de redefiniçõesespaço-temporais revela o lado caótico de uma épo-ca marcada pela violência, quando a morte serialançada contra a morte. A escola insere-se nesse pro-cesso. Contudo, não poderemos identificar imedia-tamente poder e força com matriz exclusivamenteem um lugar comum, mesmo que este seja suposta-mente o locus de produção de verdade e de saber.Como afirma FOUCAULT(1986b),

Não se pode compreender nada sobre o sa-ber econômico se não se sabe como se exercia,quotidianamente, o poder, e o poder econô-mico. O exeraao dopodercria perpetuamentesaber e, inversamente, o saber acarreta efei-tos depoder. O mandarinato universitário éapenas a forma mais visível, mais esclero-sada, e menos perigosa, dessa evidência. Épreciso ser muito ingênuo para imaginar queéno mandarim universitário, que culminamos efeitos de poder ligado ao saber. Eles es-tão em todos os lugares, muito mais difusos,enraizados, perigosos, que nopersonagem dovelho professor(FOUCAULT, 1986b: 142)

A abertura que Foucault constrói, de umlado, mostra a positividade do poder, mas, de outro,revela a parte escondida por todas as teorias do po-der. No caso da escola, a idéia que vigorou durantemuito tempo e foi reforçada por um certo marxismoera a de que a escola seria mero reflexo da ideologiadominante. Não se chega à idéia como mostra(MUCHAIL, 1985: 199), de que as instituições es-tão articuladas ao surgimento de saberes e ao exerci-cio de um poder disciplinar.

Desde o começo a prisão deveria ser um ins-trumento tão aperfeiçoado quanto a escola,a casernaou o hospital, e agir com precisãosobre os indivíduos. Ofracasso foi imediatoe registrado quase ao mesmo tempo que opróprio projeto. Desde 1820 se constata quea prisão, longe de transformar os crimino-sos em gente honesta, serve apenas para fa-bricar novos criminosos oupara afundd-losainda mais na criminalidade (FOUCA ULT,1986b: 131e 132).

Se o fracasso das instituições carcerárias évisível, pois só consegue produzir novas formas decriminalidade no seu interior, gerando indivíduos

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marcados cada vez mais pelo ferro em brasa da vio-lência, a escola conseguiria realmente ser geradorade conhecimento?

Até onde a escola, mantenedora do saber for-mal, sistematizado e repassado, consegue garantir umespaço de vivência, de liberdade, democracia e deformação integral do homem? Muitas indagaçõespoderiam ser remetidas ao espaço institucional daescola. Contudo é preciso lembrar que as respostasnem sempre abrigam verdades. Oetenninadas inter-rogações podem ficar sem resposta, como, por exem-plo, o caso de Pierre Rioiêre, um camponês de cercade 23 anos, que mal sabia ler e escrever, mas teriaaprendido durante a sua prisão preventiva a tarefade detalhar o seu crime, o assassinato da própria mãe,de sua irmã e de seu irmão, em junho de 1935.FOUCAULT(1988) encontra um manuscrito ondeo camponês apresenta os detalhes do parricídio. Oque mais assustava na época era o silêncio dos espe-cialistas frente a lucidez do estilo de Riviêre, A be-leza do manuscrito encanta Foucault mas, ,principalmente, a disputa discursiva entre os váriostipos de saber.

Todos eles, e em sua heterogeneidade, nãoforam nem uma obra nem um texto, mas umaluta singular, um confronto, uma relação depoder, uma batalha de discursos e atravésde discursos. E ainda dizer uma batalha nãoédizer o bastante; vários combates desenro-laram-se ao mesmo tempo e entrecruzando-se: os médicos tinham sua batalha, entre eles,com os magistrados, com opróprio Rioiêre(FOUCAULT; 1988:XIl)

Estudar a escola, hoje, provavelmente encan-te pelo emaranhado discursivo gerado em tomo dochamado espaço institucional. Os seus vários produ-tores de saber cada vez mais amparam-se em novasverdades que na maioria das vezes, são as mesmasmentiras que fazem matrizes, centralizadoras, homo-gêneas, que, ao obstar que a história jorre, impedemtambém que a escola seja emancipadora, libertadorae produtora de novos caminhos.

4 CONCLUSÃO

novidade teórica proposta por FOUCAULT(1986a) é a caracterização de um tipo específico de

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poder produtor de saber, cuja positividade discursivaprocessa elementos contundentes que levam àormatação dos indivíduos. Não adianta, nesse caso,omente reprimir, dizer não ou massacrar os corpos

dos indivíduos, produzindo mil mortes, conformemostra FOUCAULT (1996a) no Vigiar e Punir. Opoder disciplinar é acima de tudo heterogêneo,relacional e pode ser encontrado em toda parte, poiscircula os corpos dos indivíduos, adestrando-os con-forme os interesses do sistema. A rigor, esse tipo depoder nem existe, pois não tem uma essência. O quetemos são práticas e relações efetivas de poder ine-rentes ao mundo vivido.

É a partir dessa nova prática de poder quepoderemos entender os novos mecanismos de con-trole exercido no interior da escola, isto é, a sutilezado poder, que, detalhadamente, enquadra os indiví-duos como criaturas dóceis, adestradas, prontas acumprir os papéis necessários exigidos pela grandemáquina social moderna. Mas FOUCAULT (1986a)é essencialmente moderno, compartilhando as mes-mas preocupações, sem, contudo, apresentar um pro-jeto legitirnad or do instituído. Critica asmeta-narrativas, insurge-se contra toda e qualquerespécie de dominação, não poupa críticas aos histo-riadores, aos psiquiatras, ao cristianismo e, implici-tamente, à pedagogia.

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