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1.  Status quo 

De modo geral, a questão colocada pela palavra «Filologia» suscita uma

referência genérica à velha e a alguma nova escola filológica, mas não se tomaem devida conta a morfologia e a etimologia da palavra para refletir sobre a suautilidade metodológica, sobre o rumo a tomar quando pesamos as palavras, overbo, a linguagem, sobre a companhia a levar para esse caminho – menosainda sobre o sentido espiritual do nosso trabalho. Tudo foi dado por adquiridohá uns séculos atrás, aliás de forma geral com alguma leviandade ‘científica’.

Mais tarde a Filologia passou a ser considerada uma réstia de pensamento jáultrapassado e, portanto, o que havia a fazer era aproveitar os seus restos(revistas, departamentos, institutos e congressos ‘históricos’) para encontrar

mais meios de publicação e financiamento para grupos de universitários(as) àprocura de curriculum. Chegados aos dias de hoje, ninguém questiona que asrevistas e os congressos de Filologia se limitem a albergar qualquer tipo deestudo sobre língua ou ensino de língua, crítica literária ou literaturacomparada, ou mesmo ensino da literatura. Isso é reflexo da total falta deprestígio da disciplina no meio académico. A principal razão da falta deprestígio vem sempre da perda de rigor, da perda de logos, precisamente. Oalheamento em relação à teorização e ao fundamento da disciplina trouxe, porconsequência, uma prática aleatória, quando não automática, de onde seausentou o rigor filológico na selecção, utilização e consideração das palavras,

do discurso, do verbo e das teorias.

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2.  Rigor filológico 

“Rigor filológico” é o rigor trazido pela Filologia. Apesar de chamar a atenção

para a utilidade metodológica do rigor filológico, não falo aqui apenas de“filologia” como “a elaboração de um método” (Carena p. 200). Com as mesmaspalavras procuro apreender uma visão ou teoria etimológicas da atividade queaplica o método; poeticamente pensando: dos passos que fazem a existência docaminho.

Filologia é uma palavra que se compõe a partir do termo grego  philos (quesignifica «amigo») e de outro termo, igualmente grego, logos, que significa«palavra» - mas «palavra» com o sentido de «proporção», palavraproporcionada e proporcional. A Filologia é, daí, o cultivado e lógico amor pela

palavra, próprio dos que amam o estudo, a instrução, o conhecimento – ou seja:próprio dos nobres. O filólogo é o amigo das palavras, aquele que tem gostonelas, que as cultiva e, portanto, as estuda.

Tendo-se modificado por um processo de especificação, o conceito de«filologia» surge modernamente ligado ao estudo da escrita, levando o trabalhofilológico às edições diplomática e crítica de um texto, por exemplo. No resumode Manuel Frias Martins, porém, “a filologia assenta na história da(s) língua(s),na etimologia, no estudo dialetal, nas vicissitudes da sintaxe e do vocabulário,acrescentando a tudo isto os frutos da erudição cultural” (Martins, 1993 p. 156)

e, contemporaneamente, da Linguística e da Crítica Textual. A Filologia alemã,a partir do Romantismo, aplicou também o termo na aceção de estudo daliteratura e da língua de um povo, ou de povos aparentados. Em paísesromânicos, como Portugal, circulou também a aceção de “ciência constitutiva eestudo crítico dos textos literários” (Martins, 1993 p. 156). Em Croce apareceuma nuance desta perspetiva: a Filologia prepara-nos para a crítica de umdeterminado texto (Croce, 1994 pp. 150-151)). Nesses países, no entanto, o termofoi tido mais na conta de estudo histórico de uma língua, ou de um grupo delínguas afins, encontrando-se em  J. Leite de Vasconcelos um dos principaisfilólogos nesta aceção, partilhada por igual com os alemães quando eles

percebem “no estudo crítico o instrumento capaz de constantemente fazerreviver aos olhos das gerações longínquas o esplendor do antigo”, sendo aantiguidade a da mítica “juventude feliz” (Carena p. 201).

O estudo histórico da língua tem por trás uma crença, de raiz romântica masque não se deu mal no plantio positivista português, a de que a história de umalíngua revela a personalidade do “povo”, da “nação”, ou da unidade políticadada como a correspondente; se ela assenta, sofisticamente, numa visãodessincronizada, estática, de nação ou povo, e isso não tem nenhuma razão deser, acompanha-se, em compensação, pelo mito da juventude feliz que paira

sobre o “esplendor do antigo”, como se pelas etimologias pudéssemos

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vislumbrar ou entrever uma teoria inaugural do mundo – uma teoria que, porinaugural, é autêntica no sentido que lhe dá  José Enes à porta do ser  (Enes, 1990).

É quase nesta aceção portuguesa do termo que penso quando falo em Filologia.Quase porque falta esclarecer a via que abre a leitura etimológica ao presente,na busca de uma solução para “o problema da origem mental da palavra”, deque fala António Telmo comentando H. Bergson. António Telmo aponta o“cruzamento da filologia com a psicologia” para que a Linguística (no sentidopleno que a palavra tem no movimento da Filosofia Portuguesa) possa dizeralgo “sobre a língua primitiva” (Telmo, 1963 p. 30). E reforça a ideia quandogarante que não há “construção linguística do passado pré-histórico que nãoparta, explícita ou implicitamente, de uma teoria da palavra no homem viventee actual”, no qual se torna, por isso, indispensável atentarmos.

É de especificar o caráter bidirecional e profícuo do relacionamento entre apesquisa da “origem mental” e o estudo da língua a partir do pensamento sobreos significados primordiais dela. Uma ponte entre esses dois polos pode ser aproposta por José Enes, quando ele diz que a “destrinça filológica1 doparentesco dos vocábulos [...] desempenha no método etimológico uma funçãosimplesmente subsidiária: serve só para sugerir indícios de presença dametáfora original, que, se o for, há de continuar viva ou nos derivados de raizprimitiva ou em outros vocábulos, sejam ou não cognatos, ou em locuções deformação recente” (Enes, 1990 p. 35). A “metáfora original” continua viva, não

por ser a primeira, mas porque ainda é funcional hoje.

1Note-se a aceção muito particular que toma aí «filologia».

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3.  Biografia viva 

A biografia viva das palavras-chave para o nosso raciocínio certamente que é de

fundamental importância, o que anima a querer entendê-las na sua composição,na sua história e na sua etimologia, como acabei de fazer com «filologia». Masinteressa-nos também organizar o campo semântico dessas palavras em tornode um pensamento que as suas várias manifestações permitem configurar.Podemos atingir assim uma “teoria” de cada palavra e estabelecer o polifónico emomentâneo acordo que a mantém no ar. Essa visão depura-se pelo contrasteentre as aceções contemporâneas e as que a nossa criatividade ou intuiçãoconstruir com os sinais deixados pela etimologia.

Não parece, pois, de valorizar a redução do campo da palavra «filologia» ao

estudo histórico de uma língua, ou de um grupo de línguas afins, ilhado nassuas cronotopias. Nem ao estudo histórico-literário – comparativo ou não – dasobras poéticas. Esse estudo histórico produz material de laboratório queusamos para experimentar ou fundamentar parcialmente as nossas hipóteses. Énecessário mas preliminar e não deve ser feito isolando o nosso objeto deestudo, privando-nos de uma visão de conjunto.

A Filologia como estou a concebê-la releva de um trabalho que, no interior docampo sobre que me vou centrar, se assemelha ao de António Telmo quandoassinalou, na edição inaugural da sua Arte poética, ao primeiro dos «Problemas

filológicos» a tarefa de traduzir “Henrique Bergson” (Telmo, 1963 pp. 15-21). Asua conceção fazia-se nesse tempo acompanhar, de uma forma ou de outra, pelopróprio movimento da Filosofia Portuguesa, que dedicou sempre um lugarestruturador à Filologia tal como a entendeu. Isso vê-se com facilidade, quer nasobras de  José Marinho e Álvaro Ribeiro, quer em Pensamento e movimento, dePinharanda Gomes (Gomes, 1974), ou na “demanda filosófica e existencial” deuma “Patriosofia” em António Quadros (Teixeira, 1993 p. 233), acompanhando-se todos com filósofos menos diretamente afetos ao movimento – por exemplode confessada filiação heideggeriana e tomista, como José Enes (Enes, 1990;Enes, 1983).

Neste conceito de Filologia o pensamento, a analogia, a intuição, bem como aespiritualidade exercem um papel fundamental. Isso, nos dias que correm,felizmente já não choca muitos. O nosso campo, que é o da leitura, da crítica eda teoria literárias, conhece também esta aceção, ou várias outras muitopróximas dela. Não a de Lanson e do positivismo. George Steiner, ao falar sobreo seu método de leitura, diz: “começo sempre por um exercício que se chama«amar o logos», quer dizer logos philein ou filologia. Trata-se de descobrir, com oauxílio de todas as ferramentas que os eruditos nos propõem, a saber osdicionários, o sentido primeiro, ingénuo, quase inocente de cada palavra”  

(Jahanbegloo, 2000 p. 78). Não sei até que ponto o ‘sentido’ é ingénuo, muitomenos inocente, mas é de qualquer forma um sentido arqueológico e o método

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está muito próximo do que falo. Steiner diz que passa depois à gramática, “amúsica do pensamento”, mas uma análise filológica já deve incluir a reflexãosobre aspetos gramaticais. Se a sintaxe (o que ele faz equivaler à gramática) nos

dá uma visão do mundo e a Filologia nos dá a matriz dessa visão, não se podeperceber a matriz sem as inserções das palavras nas frases e a significação quese extrai às estruturas sintagmáticas. Paul Ricoeur, em  A metáfora viva (Ricoeur,1983), lembra-nos precisamente que a metáfora não pode ser estudada apenasao nível da palavra, mas obrigatoriamente ao nível da frase. A própria palavranão pode ser estudada isoladamente, mas com as frases que a integram. TalvezSteiner tenha separado a “gramática” da “filologia” porque os tipos de conexãoentre frases (refiro-me a relações de coordenação, subordinação, etc.) parecem,por si só, significativos. O seu significado, porém, numa análise literária, nuncadeixa de produzir-se em articulação com os significados e mesmo a morfologia

das palavras. De qualquer modo, o que ele persegue ainda, nessa faseestruturante e inicial, é “a música do pensamento”. Não o “verdadeiro sentido”,ou a “verdadeira intenção” do autor, mas o feixe de sugestões que o poema vemmovimentar. O que justamente há de maior interesse na Poesia.

Não é pois desconhecida pela crítica atual a aceção em que tomo a palavra,apesar do positivismo e da história literária, de que falam por exemplo EduardoPrado Coelho (Coelho, 1987 p. 218) e Manuel Frias Martins (Martins, 1993 pp.150-151). Há, portanto, uma Filologia para cultivar a “ forma literal” (apositivista) e outra, que me parece pertinente, que tem o objetivo oposto: evitar

a redução ao literal. A proximidade entre Filologia e Filosofia, que foi objeto dereflexão no movimento da Filosofia Portuguesa e na sua bibliografia, tem umfundamento filológico esclarecedor a este respeito.

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4.  Palavra com proporção 

A palavra filologia, incluindo em si o grego logos, traz um outro significado, que

é muitas vezes dado como o único para o étimo, visto o facto comum deencontrarmos logos traduzido por “razão”. É verdade que, desde o começo dasua história, a palavra teve também essa entrada, a par da de “conta”, “conto”ou “recolha”. Lembremo-nos, agora, que Aristóteles usava também logos com osignificado de “proporção matemática” (Aristóteles p. 991 b).

Da dupla significação etimológica vieram duas séries de processamentos: a de“lógica, razão, faculdade racional, proporção” e a de “discurso, relato”,segundo F. E. Peters (Peters, 1983 p. 135). O sinónimo “definição”, como o“relato verdadeiro e analítico” de Platão, aponta a intersecção das duas séries e

é frequente em Aristóteles.

A partir da análise destas raízes, podemos defender que a Filologia não é só oamor pela palavra, mas o amor pelo que nela opera, como diz o Sócrates dePlatão, “a afirmação de uma característica distintiva de uma coisa”2.

A “razão certa” da ética aristotélica, dita através da palavra logos, apresenta-setambém com essa função diacrítica ao ser usada como sinónimo de «limite» e«definição» (horos). Daí que use Aristóteles a aceção de proporção, razãomatemática, de muito provável raiz pitagórica. É com tal aceção que ataca o

“problema das misturas” e atinge o conceito de «harmonia» (Peters, 1983 pp.136-137, 110, 95). Por isso, como disse Álvaro Ribeiro, a “filologia distingue-seda linguística na medida em que seja a busca do logos, do verbo, ou da razão,na linguagem [.../...] Diremos, noutra imagem, que a filologia será odesenvolvimento do Espírito, e nessa aceção a consideramos também quandopassa à análise da obra literária. A literatura é já, como ensinou Teixeira Rego,«expressão do sobrenatural»” – o que era reconhecido pelo menos desde Fílon,para o logos, que, não significando “o Deus”, participava do seu Espírito (Peters,1983 p. 137).

Note-se que a palavra “desenvolvimento” atrai na citação de Álvaro Ribeiro umcaráter etimológico e filológico muito preciso, próximo do de desenovelar,desnovelar, desdobrar. Na linha do desenvolvimento do potencial da palavra secoloca esta outra afirmação do pensador português, feita na mesma altura: “afilologia, tal como foi doutrinada na obra de Aristóteles, dos peripatéticos e dosescolásticos, permite-nos fazer a análise e a síntese dos pensamentos que seexprimem em linguagem vulgar”. Dito de outro modo: o filólogo, ao analisar esintetizar os pensamentos potenciados por uma dada língua ou palavra,

2 Teeteto , 208 c, citado de Peters, op. cit., p. 136. Cf. Fédon 76 b (igualmente referido em

Peters): “um homem que sabe é capaz, ou não, de dar razões daquilo que sabe?” (Platão,Diálogos , I, 2ª ed., trad. e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz

Costa, São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 80).

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desdobra em discursos explicativos, recorrendo a sistemas semióticos desegundo grau, as possibilidades reflexivas contidas nos nexos da linguagem“vulgar” (Ribeiro, 1972). São essas possibilidades que permitem à Filologia

destrinçar entre sinónimos, por exemplo, relacionando os campos de interseçãoe de afastamento.

 José Enes, no já citado livro À porta do Ser , verbaliza com maior nitidez a ligaçãoíntima entre esta Filologia da língua e o estudo da “literatura”, que maisespecificamente procuro situar. Discordo da tese que lhe permite associar uma“tendência para a transparência” com a essencialidade metafórica da fala, poisseria preferível dizer opacidade metafórica da fala. Mas isso não impugna avalidação do “método etimológico”, largamente experimentada À porta do Ser . Eparece-me necessária também a “intimidade com a crítica literária” para se

descobrir no estudo filológico os sentidos postos em jogo pela “multiplicidadede recursos e o seu refinado emprego na composição artística da linguagem” (Enes, 1990 p. 30). Principalmente por causa da opacidade a que me referi.

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5.  Imprecisões a-filológicas 

A linguagem crítica desatenta originou muitas vezes, na teoria da literatura,

questões e imprecisões que estão na origem de equívocos com os quais otrabalho só tem a perder.

Isso pode-se ver através de vários desvios semânticos, que são a base denominações menos corretas e, em certas épocas, fundamentais para a visão daPoesia dentro de uma determinada sociedade, ou numa dada elite artística,intelectual e académica. Foi o caso do conceito de poesia para os românticos emgeral e é ainda hoje o caso da confusão entre os termos ‘poesia’ e ‘lírica’, daíadveniente. Esta confusão gerou disparates terminológicos e problemas teóricosvários, inevitavelmente consagrados pelo uso de muitas décadas de crítica e de

teoria, que os adotaram num sentido “prático”, isto é, sem rigor filológico.

Em A noção de literatura e outros ensaios, por exemplo, Tzvetan Todorov chega aoponto de nos garantir que “Aristóteles ocupa-se da Epopeia e da Tragédia, nãoda Poesia”; opõe, portanto, “romances, novelas, peças de teatro” a “poesia”. Parece nem se lembrar de que Aristóteles exemplificava a arte ainda pornomear com esses dois géneros e a essa arte foi que deu o nome, precisamente,de arte poética ou de poesia (Todorov, 1987 pp. 24, 13).

Outro exemplo, que daqui deriva, é o da designação comum de «poemas em

prosa». Como a palavra ‘poesia’ se perdeu em certa altura do seu sentidooriginal (Barilli, 1992 p. 89) e se confundiu a sua significação com a de lírica emverso, chama-se aos “poemas em prosa” poemas, para os distinguir dasnarrativas (na medida em que “poema” ou “poético” é tomado na aceção decoisa própria do discurso lírico – veja-se o citado exemplo de Todorov) e prosa,para os distinguir dos escritos em verso na medida em que “prosa” recorre navulgarização modernista com o significado de “discurso da narrativa” (Teles,1985 p. 24).

De facto, o que se procura designar é uma espécie de composição (por isso

poema) lírica que, contrariamente ao habitual, é escrita em prosa. Bastava, pois,dizer lírica em prosa, ou prosa lírica, para nomear com rigor a espécie, visto quepode haver poemas narrativos em prosa e eles são, à mesma, poemas em prosa.O próprio termo «lírica» na sua conceptualização durante os séculos XIX e XX,revela uma grande falta de rigor filológico. A poesia lírica veio a abarcar todauma série de poemas que, por serem acompanhados de certos instrumentos e seprestarem habitualmente a certos ritmos, tinham caráter fragmentário naexposição dos conteúdos. Mas isso daria, por si, um grande livro – que não tereitempo de escrever.

Reduzo-me a um terceiro exemplo, de fundamental importância na críticaliterária, que é o da confusão entre «tema» e «motivo».

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Lembra Karl Popper, em  A miséria do historicismo, que a “ciência empregatermos que são denominados termos universais, como «energia», «velocidade»,

«carbono», «brancura», «evolução», «justiça», «estado», «humanidade»”. Essestermos, em literatura, são chamados temas e não são tantos assim.Segundo Ducrot e Todorov, o “tema de um ato de enunciação é aquilo de quefala o locutor” (Ducrot, et al., 1982 p. 325). A definição é precisada na páginaseguinte (“o tema é a questão a que o enunciado responde”) mas só temaplicação linguística. Esta definição, inserida no Dicionário das ciências dalinguagem, é uma tautologia3. Diz aquilo que se supõe desde logo a partir daorigem da palavra grega.

A palavra thema, em grego, relaciona-se radicalmente com um verbo que

significava colocar , o mesmo que dá origem a hipótese, prótese e síntese; o thema era, literalmente, o “objeto que se põe”, chegando a significar “depósito dedinheiro”. De objeto que se põe deriva a aceção “o que se propõe”, muito próximado significado de hipótese, que antigamente queria dizer “suposição”, mas hojeé uma suposição fundamentada (deduzida ou induzida) que se propõe àdiscussão em determinado campo científico. Na ciência literária, que é uma dasmais antigas na tradição europeia ocidental, o que se propõe diz respeito àquilosobre que se propõe falar o texto: o amor, a morte, a sorte, não muitos maisassuntos4.

No século XIV da era cristã o tema era ilustrado por um “texto bíblico no iníciopara ser desenvolvido e comentado como corolário do sermão” (Segre, 1998).Esse texto chamava-se tema também, por contaminação, contágio (Ullman, 1977p. 411), ou vizinhança com a sua função de ilustrar o assunto. Ele era a imagemde ligação entre várias abordagens ao tema.

Esta função não é diferente da que em outro campo lhe confere a Filologia deLázaro Carreter, para quem o tema é o “radical que permite a imediata inserçãodos elementos de flexão” (Carreter, 1990 p. 388). Trata-se de um significado queteve consequências para a ideia que se tem de tema enquanto fio unificador, ou

imagem congregadora de todas as partes de uma obra.

3Palavra exemplificada na mesma obra (Ducrot, et al., 1982 p. 344). O seu significado no

dicionário português é “tautologia / s. f. / ( lóg .) proposição dada como explicação ou como

prova, mas que, na realidade, apenas repete, em termos idênticos ou equivalentes, o que já foidito; proposição na qual o predicado diz a mesma coisa que o sujeito, quer em termosidênticos, quer em termos equivalentes”. A palavra tem origem no gr. tautología , «repetição de

palavras», segundo a mesma fonte (AAVV, 1996).4

Em latim, aquilo que é assumido, o que se toma para si, razão pela qual é dado comosinónimo de tema em português (AAVV, 1996). “Assumpto ” compõe-se a partir de [ad-sumo],

sendo o verbo traduzido por “pegar, tomar” (Ferreira, Porto p. 1108). O que se toma para si é,

de facto, o mesmo que vem depois propor-se à discussão, o tema. Parece-nos, portanto, lógicoter “na Idade Média [o tema], além do significado de ‘matéria’ [...] o de assunto tratado”,

conforme lembra Cesare Segre no artigo «Tema / Motivo» (Segre, 1998 p. 94).

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Por todos estes motivos, entendo que não se deve confundir «tema» com«motivo», ou «grupos de motivos», como sucedeu já com muitos ensaístas

(Dupriez, 1984 pp. 449, nota 1). A confusão foi facilitada pela história das duaspalavras e também porque em ambos os casos estamos perante “unidades designificado estereotipado” que organizam “áreas semânticas determinantes” (Segre, 1998 p. 107).

Os motivos são, relativamente ao tema, o mesmo que “os elementos da flexão”na definição de Lázaro Carreter. Eles fazem parte da matéria, “livrementefornecida pelo mundo que circunda o poeta”, na paráfrase que Segre faz deGoethe; os temas integram-se no que Aristóteles, para a Tragédia, chamou dedianoia5, aquela conjunção de assuntos e conceitos que se entrelaça com os

motivos dos episódios para lhes criar ou sugerir conteúdos filosóficos.

O motivo entra numa parte, ou em várias, de uma obra; o tema só secompreende a partir da totalidade da obra, o que lhe garante o “caráctermetadiscursivo” (Segre, 1998 p. 107) e ‘holístico’.

O motivo é, na literatura, aquilo que parece ter suscitado ou alimentado acriação sobre o tema, a criação do poema, ou do verso, ou do episódio, ou dacena, ou do capítulo – etc.. Ao motivo que figura a causa do poema,normalmente repetido ou transfigurado (na íntegra ou em parte) ao longo do

texto, podemos dar o nome de motivo nuclear ou principal, ou leitmotiv. Aomotivo que é suscitado pelo desenvolvimento do poema pode-se dar o nome demotivo secundário. Este, muitas vezes, não se repete ao longo da obra.

A clarificação dos dois termos acarreta efeitos colaterais, esclarecendo confusõese imprecisões, de que dou apenas dois exemplos.

O motivo também se costuma confundir com o “propósito”. O propósito “é ainformação que ele [o locutor] pretende trazer relativamente a este tema”  (Ducrot, et al., 1982 p. 325), não é o motivo, pois a sua perceção resulta já de

uma correlação entre tema e motivos. Demonstrando: por uma nova maneira derelacionar o amor (tema) e o sexo (motivo nuclear) é-nos sugerido umpropósito, uma nova maneira de olhar o «assunto»6.

Outra confusão comum, que a clarificação feita acima ajuda a superar, é entre«tema» e «tópico». Mas um tema nunca pode ser um tópico, está situado numnível acima da classificação. Cesare Segre, no artigo já citado, faz uma nítidadistinção entre os dois termos e conclui: “podemos pois dizer que os topoi são

5

Seria essa a ideia de Panofsky, segundo Segre, que a recusa por outra causa, por achar quehá temas ao nível da “forma” e não só do “conteúdo”.6

Assunto é o objeto específico de um discurso.

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motivos: o topos é um motivo codificado pela tradição cultural para ser aduzidocomo argumento”. A proximidade entre os dois conceitos (tópico e motivo) é talque podemos dizer que a repetição de um tópico no interior de uma obra forma

uma ‘isotopia’.

A par deste género de consequências, a desconsideração do raciocínio filológicotraz um segundo, pois permite que se trabalhe no estudo da literatura semqualquer atenção às potencialidades inscritas no uso e na revitalização dalíngua do poeta e na do crítico; permite que se leia uma poesia ignorando opotencial significante que a língua incute no poema e, muitas vezes, que opoema traz à língua. No entanto, é no seio desta relação que o crítico podeencontrar, uma “chave” não, mas uma caminho profícuo de leitura.

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Obras Citadas

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