A Recepcao Das Ideias de Otto Groth No Brasil

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A recepção das idéias de Otto Groth no Brasil José Marques de Melo Professor Emérito da Universidade de São Paulo e Diretor da Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação O livro de Otto Groth O poder cultural desconhecido: fundamentos da ciência dos jornais (Petrópolis, Vozes, 2011), que a pós-doutoranda Liriam Sponholz (Universidade de Erfurt, Alemanha) organizou e traduziu por inspiração do professor Eduardo Meditsch, da Universidade Federal de Santa Catarina, constitui um marco na vida acadêmica do país. Preenche uma lacuna bibliográfica que perdurou quase meio século. Embora o pensamento grothiano tenha sido explicado de forma enciclopédica, composto por vários tomos, maturado durante 30 anos, mas escrito num período de 15 anos, na verdade o sétimo volume é o mais elucidativo. Por isso mesmo foi escolhido para integrar a coleção “Clássicos da Comunicação Social”, da Editora Vozes. Sua circulação em língua portuguesa permite o conhecimento da essência do legado teórico daquele autor alemão, suscitando naturalmente algumas questões de natureza epistemológica e historiográfica. Vou me limitar, neste breve comentário, à conjuntura e às circunstâncias que caracterizaram a recepção das idéias de Otto Groth no Brasil. Em seu estimulante prefácio, Sponholz e Meditsch resgatam a chegada dessas teses em nosso país, situando-as no início dos anos 70. Eles partem concretamente de duas evidências: 1) a publicação do opúsculo escrito por Wilson da Costa Bueno - O jornalismo como disciplina científica: a contribuição de Otto Groth (São Paulo, ECA-USP, 1972) e 2) a circulação no país do ensaio de Angel Faus Belau – La ciência periodística de Otto Groth (Pamplona, Universidad de Navarra, 1966), texto que serviu de referência para a versão resumida do autor brasileiro. Além disso, os prefaciadores levantam hipóteses sobre a acolhida das ideias do teórico alemão pelos seus pares brasileiros. Dois ícones da contemporânea bibliografia do jornalismo são arrolados: Adelmo Genro Filho, que faz referência explícita a Otto Groth em seu livro O segredo da pirâmide (Porto Alegre, Tchê, 1987) e Luiz Beltrão, autor do clássico Iniciação à Filosofia do Jornalismo (Rio, Agir, 1960). Neste último, supõem que os “caracteres” beltranianos do jornalismo embutem influências grothianas. Trata-se de problemas investigativos a exigir análise mais aprofundada, através de um cotejo textual. Confesso que incursionei brevemente pelas fontes sugeridas (Kayser e La Suarée), sem encontrar pistas claras e referências explícitas. Creio que o fluxo esboçado - Alemanha/França/Espanha/Cuba/Brasil – talvez seja menos elucidativo do que o triângulo Alemanha / USA / Brasil, cuja primeira etapa encontra-se bem documentada no mesmo prefácio. Assim sendo, gostaria de fazer algumas observações que podem ser úteis a quem enveredar por essa brecha historiográfica, decifrando o enigma enunciado. No caso de Adelmo Genro Filho, o percurso é mais simples porque o autor gaúcho, naturalizado catarinense, atesta na abertura da sua dissertação de mestrado que foi motivado a esboçar uma “teoria marxista do jornalismo” pela proposta de Otto Groth de estudar o jornalismo como “objeto

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A recepção das idéias de Otto Groth no Brasil José Marques de Melo Professor Emérito da Universidade de São Paulo e Diretor da Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação O livro de Otto Groth O poder cultural desconhecido: fundamentos da ciência dos jornais (Petrópolis, Vozes, 2011), que a pós-doutoranda Liriam Sponholz (Universidade de Erfurt, Alemanha) organizou e traduziu por inspiração do professor Eduardo Meditsch, da Universidade Federal de Santa Catarina, constitui um marco na vida acadêmica do país. Preenche uma lacuna bibliográfica que perdurou quase meio século. Embora o pensamento grothiano tenha sido explicado de forma enciclopédica, composto por vários tomos, maturado durante 30 anos, mas escrito num período de 15 anos, na verdade o sétimo volume é o mais elucidativo. Por isso mesmo foi escolhido para integrar a coleção “Clássicos da Comunicação Social”, da Editora Vozes. Sua circulação em língua portuguesa permite o conhecimento da essência do legado teórico daquele autor alemão, suscitando naturalmente algumas questões de natureza epistemológica e historiográfica. Vou me limitar, neste breve comentário, à conjuntura e às circunstâncias que caracterizaram a recepção das idéias de Otto Groth no Brasil. Em seu estimulante prefácio, Sponholz e Meditsch resgatam a chegada dessas teses em nosso país, situando-as no início dos anos 70. Eles partem concretamente de duas evidências: 1) a publicação do opúsculo escrito por Wilson da Costa Bueno - O jornalismo como disciplina científica: a contribuição de Otto Groth (São Paulo, ECA-USP, 1972) e 2) a circulação no país do ensaio de Angel Faus Belau – La ciência periodística de Otto Groth (Pamplona, Universidad de Navarra, 1966), texto que serviu de referência para a versão resumida do autor brasileiro. Além disso, os prefaciadores levantam hipóteses sobre a acolhida das ideias do teórico alemão pelos seus pares brasileiros. Dois ícones da contemporânea bibliografia do jornalismo são arrolados: Adelmo Genro Filho, que faz referência explícita a Otto Groth em seu livro O segredo da pirâmide (Porto Alegre, Tchê, 1987) e Luiz Beltrão, autor do clássico Iniciação à Filosofia do Jornalismo (Rio, Agir, 1960). Neste último, supõem que os “caracteres” beltranianos do jornalismo embutem influências grothianas. Trata-se de problemas investigativos a exigir análise mais aprofundada, através de um cotejo textual. Confesso que incursionei brevemente pelas fontes sugeridas (Kayser e La Suarée), sem encontrar pistas claras e referências explícitas. Creio que o fluxo esboçado - Alemanha/França/Espanha/Cuba/Brasil – talvez seja menos elucidativo do que o triângulo Alemanha / USA / Brasil, cuja primeira etapa encontra-se bem documentada no mesmo prefácio. Assim sendo, gostaria de fazer algumas observações que podem ser úteis a quem enveredar por essa brecha historiográfica, decifrando o enigma enunciado. No caso de Adelmo Genro Filho, o percurso é mais simples porque o autor gaúcho, naturalizado catarinense, atesta na abertura da sua dissertação de mestrado que foi motivado a esboçar uma “teoria marxista do jornalismo” pela proposta de Otto Groth de estudar o jornalismo como “objeto

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autônomo” (p. 19), embora dela se distancie por considerar “genérico e abstrato” seu fundamento “estrutural” do fenômeno jornalístico (p. 21). Quanto a Luiz Beltrão, a dificuldade reside na ausência de registros concretos a propósito de Otto Groth. Por isso mesmo, quero dar o meu testemunho sobre o conhecimento das ideias de Otto Groth por Luiz Beltrão. Durante suas aulas e por ocasião de nossos colóquios intelectuais no Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, jamais ouvi ou li qualquer referência do fundador do ICINFORM ao legado grothiano. É possível que, mais adiante, Beltrão tenha compartilhado com seus colegas europeus eventuais comentários a esse respeito, especialmente com Otto Roegele, seu companheiro de jornadas no âmbito do jornalismo internacional. O arcabouço teórico-conceitual do Jornalismo, segundo Otto Groth, só me chegou em 1965, quando realizava estudos de pós-graduação no CIESPAL – Centro Internacional de Estudios Superiores de Periodismo para América Latina – em Quito, no Equador. A bolsa de estudos que recebi da UNESCO continha um suplemento destinado à aquisição de livros. Apliquei-a inteiramente na compra da coleção editada pelo CIESPAL, que me abriu as portas ao conhecimento plural sobre os fenômenos da comunicação em geral e ao jornalismo em particular. Ali iniciei a preparação das duas teses que me habilitaram ao ingresso posterior no doutorado da USP. Foi exatamente nessas fontes que cheguei a Otto Groth, guiado principalmente por Raymond Nixon, então editor da revista Journalism Quartely, canal de difusão dos teóricos alemães nas universidades norte-americanas. Esse fluxo começa em 1930, através do artigo de autoria de Emil Dovifat (volume 7, n. 3), intensificando-se nos anos 60 (v. 38, n. 1, v. 39, n. 1), tendo como porta-voz o professor Ralph Nazfiger, “um dos poucos journalism scholars que lia alemão”, como anotam diligentemente Sponholz e Meditsch no já referido prefácio intitulado “Bases para uma Teoria do Jornalismo 2.0” (p. 11). Fascinado pelas leis grothianas das “relações funcionais”, peregrinei por bibliotecas e livrarias em busca de subsídios para arquitetar a minha classificação das ciências da comunicação, especialmente para conceituar a disciplina Jornalismo. A única referência então disponível foi o tratado escrito por Emil Dovifat – Zeitungslehre – publicado nos anos 50 e logo traduzido para o espanhol na coleção Ciências Sociais da editora mexicana Uthea (1959-1960). O volume 2 dessa obra publicado em 1960 resgata no capítulo V um fragmento da fortuna crítica de Otto Groth, particularmente sua “lei do financiamento do jornal” para fundamentar a tese do autor a propósito da “economia jornalística” (p. 152-154). Julguei insuficiente o recorte exemplificado por Dovifat, limitando-me, na primeira versão da monografia “Ciências da Informação: Classificação e Conceitos” (publicada pela revista Comunicações & Problemas, n. 5, Recife, ICINFORM, 1966, p. 71-91), a conceituar o Jornalismo, fundamentado nas obras de Fraser Bond (Introdução ao Jornalismo, Rio, Agir, 1959) e Luiz Beltrão (Iniciação à Filosofia do Jornalismo, Rio, Agir, 1960). Quando me chegou às mãos o ensaio de Angel Faus Belau – La ciência periodística de Otto Groth (Pamplona, Universidad de Navarra, 1966) – tive maior clareza sobre o pensamento do teórico alemão. Senti mais firmeza lendo o endosso dado pelo diretor do Instituto de

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Ciência Jornalística da Universidade de Munich, Otto Roegele, em conferência proferida no colóquio internacional “Ciencia y enseñanza del Periodismo” (Cuadernos de Trabajo, n. 11, Pamplona, Universidad de Navarra, 1967, p. 37-56). Nessa ocasião, o professor Roegele destacava a importância da obra de Otto Groth para a compreensão multidimensional do Jornalismo – como profissão, negócio, espaço público e disciplina científica. “A respeito disso, devo informar que acaba de ser publicado o quinto volume da nova obra de Otto Groth...” (Roegele – A formação do jornalista na Alemanha, In: Ciencia y enseñanza del Periodismo, Pamplona, Universidad de Navarra, 1967, p. 53). Incorporei tais conhecimentos ao meu acervo teórico, revisando o conceito de Jornalismo divulgado na fonte antes mencionada e debatendo-o com os alunos das primeiras turmas do Curso de Jornalismo da ECA-USP (anos 1967-1970). Esse conceito revisado e atualizado de Jornalismo figura explicitamente no segundo capítulo do meu livro de estréia no mundo acadêmico – Comunicação Social: Teoria e Pesquisa (Petrópolis, Vozes, 1970, p. 68). Defino ali o Jornalismo em função de 4 caracteres: atualidade (respaldado no pensamento beltraniano), oportunidade (fundamentado em Dovifat), universalidade (seguindo as pegadas de Otto Groth) e difusão (que Groth denomina “publicidade” – Publizitat – no sentido de acessibilidade). Mas, nesse caso, preferi buscar ancoragem nas idéias abrangentes de Marshall McLuhan, que extrapolavam o universo gutenbergiano (aquele em que viveu Groth, nele moldando suas concepções jornalísticas). Meus alunos passaram a discutir regularmente a fortuna crítica grothiana, tanto assim que o texto de abertura da antologia Jornalismo como disciplina científica (São Paulo, ECA-USP, 1972). Seu capítulo introdutório procede da única fonte acessível a leitores não germânicos, ou seja, o já mencionado livro de Faus Belau. Apesar da atitude irônica de colegas que, encastelados em suas visões imediatistas e instrumentalistas da profissão, desdenhavam a cientificidade possível do Jornalismo, ou daqueles sempre engajados em cruzadas anti-weberianas, anti- lazarsfeldianas, etc., prossegui difundindo o pensamento grothiano, sem descuidar de compará-lo com as demais correntes que circulavam na academia. Foi nessas circunstâncias que motivei o meu aluno Wilson da Costa Bueno, então monitor (hoje corresponderia ao bolsista de iniciação científica) junto à cadeira de Jornalismo Comparado, a preparar uma síntese da síntese, que extrapolou o universo uspiano, circulando em todo o país. O opúsculo “O Jornalismo como disciplina científica: a contribuição de Otto Groth”, assinado por Bueno permaneceu como fonte exclusiva do pensamento de Otto Groth no Brasil até que este foi descoberto e valorizado por Christa Berger e Beatriz Marocco no volume 1 da coletânea A era glacial do Jornalismo (Porto Alegre, Sulina, 2006). Agora com a publicação do texto-chave da teoria grothiana do Jornalismo, acolhido na coleção “Clássicos da Comunicação Social” (Editora Vozes), esse clássico alemão, discípulo de Max Weber, pode conquistar espaço na academia brasileira.

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Justifica-se, portanto, a nota final escrita por Antonio Hohlfeldt para apresentar a edição brasileira desse livro: “De agora em diante não precisaremos mais de citações de terceira mão. Os leitores brasileiros (...) vão consultá-la em seu próprio idioma.” O mais difícil, para lograr a inclusão das teses de Groth nas universidades nacionais, vai ser a ultrapassagem da barreira constituída pelos professores de teoria do jornalismo, que se sentem mais confortáveis trabalhando com os manuais disponíveis no mercado, onde o cientista alemão do jornalismo figura como grande ausente. Quem sabe, até 2015, no cinquentenário da morte do autor, a situação mude e nessa ocasião seu pensamento possa circular em todos os segmentos da academia, provocando a reflexão crítica que permitirá saber em que medida suas teses permanecem vigentes, mesmo considerando o ocaso do jornalismo impresso, o que não corresponde à morte do jornalismo, como sugerem os mais pessimistas. Mas essa é outra questão. Os interessados poderão encontrar mais elementos no meu novo livro História do Jornalismo (São Paulo, Paulus, 2012).