A reforma protestante

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A REFORMA PROTESTANTE ECCLESIA REFORMATA SEMPER REFORMANDA.

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A REFORMA

PROTESTANTE ECCLESIA REFORMATA SEMPER REFORMANDA.

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A REFORMA PROTESTANTE

ECCLESIA REFORMATA SEMPER REFORMANDA.

INTRODUÇÃO.

A Reforma Protestante do século XVI foi o maior evento restaurador da

igreja cristã. Atingiu a dimensão de tornar o Protestantismo nascente a

maior força propulsora na história da civilização moderna. A partir

desse evento, o Cristianismo passou a possuir dois ramos: o Catolicismo

e o Protestantismo. O Catolicismo ficou caracterizado pelo Cristianismo

legalista, que serviu às nações bárbaras da Idade Média, sendo ritualista,

tradicional, hierárquico, conservador e governado pelo princípio da

autoridade. Já o Protestantismo é Cristianismo evangélico,

correspondendo à era da independência humana, sendo bíblico,

democrático, espiritual, progressivo e defensor do princípio da legítima

liberdade. Além disso, o objetivo do Protestantismo desde o seu início

foi trazer cada pessoa à comunhão com Deus, através de Jesus Cristo, o

único e todo suficiente Senhor e Salvador do pecado e da morte eterna.

Na verdade, a Reforma foi um movimento de profundas repercussões

culturais, sociais e políticas, porém, nesse estudo desejamos destacar

também os seus fundamentos teológicos e, em especial, a doutrina da

salvação dos reformadores.

De qualquer que seja a perspectiva, todos os cristãos evangélicos são

herdeiros da Reforma Protestante do século XVI. Daí, ser de grande

proveito que continuemos a estudar em que consistiu essa herança.

A AURORA DA REFORMA.

Cerca de 150 anos antes da Reforma (1375), John Wycliff na Inglaterra

entrou em luta com o papado. Ele era o mais culto e destacado professor

da Universidade de Oxford, ao mesmo tempo em que atuava como

padre na paróquia de Lutterworth. Suas posições políticas e doutrinárias

consistiam em ser contra a cobrança de impostos pelo papa à Inglaterra,

achava que não deveria haver distinções de classes dentro da igreja e era

contrário à transubstanciação.

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Apesar de ter sido declarado herege, as autoridades eclesiásticas nada

fizeram contra ele devido à sua posição e à credibilidade perante todos.

Wycliff traduziu a Bíblia (Vulgata Latina) do latim para o inglês,

escreveu inúmeros tratados e preparou um grande número de pregadores

itinerantes, os quais percorreram toda a Inglaterra instruindo o povo.

Formavam a ordem dos sacerdotes pobres, também chamados,

pejorativamente pelos seus inimigos, de lolardos (termo derivado de

uma palavra holandesa que quer dizer murmuradores). Os lolardos

cresceram grandemente em número e se constituíram numa força

poderosa na disseminação do Evangelho. Apesar de terem sido

perseguidos e martirizados no século XV, continuaram sua missão até o

tempo da Reforma.

Os ensinos de Wycliff inspiraram John Huss na Boêmia, o que conduziu

a um movimento de maior revolta contra a Igreja Romana. Huss, além

de sacerdote, era um homem muito culto e de grande influência na

Universidade de Praga. Também era estimado pregador, assim como

contava com a simpatia e o respeito de todo o povo devido a sua vida de

pureza e caráter. Na verdade, era um grande líder nacional.

Ensinou ao povo as ideias elaboradas por Wycliff, pelo que foi

condenado como herege. A história demonstra que seu julgamento foi

uma grande farsa. Condenado à fogueira, sofreu martírio na cidade de

Constança. Como resultado, os boêmios se revoltaram com grande ira,

iniciando uma guerra contra o imperador alemão e defendendo,

inclusive, a sua independência.

O AMBIENTE RELIGIOSO E SOCIAL.

A Alemanha vivia uma situação religiosa e econômica bastante crítica

no início do século XVI. A Igreja Romana agia com bastante opressão,

cobrando elevados impostos e ingerindo sobre assuntos de nomeação.

Além disso, a administração eclesiástica desenvolvida pela cúria papal

era corrupta e onerosa: a postura dos clérigos era repreensível, os

mosteiros estavam desvirtuados, o clero era isento de impostos, havia

proibição de aplicação de juros, uma elevada mendicância estava nas

ruas, havia muitos dias santos e uma incerteza religiosa quanto à

obtenção da salvação. Daí, muitos se sentiam submetidos a grandes

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temores, ansiedades e insegurança.

Era um tempo de rápidas mudanças sociais, quando o sistema feudal se

desgastava sob o impacto de novas forças emergentes. Nessa época 90%

das pessoas trabalhavam a terra e dela tiravam o seu sustento. Os

camponeses, que tinham sido oprimidos por séculos, se rebelavam mais

frequentemente à medida que o sistema feudal perdia parte do seu

poder. Novas cidades iam surgindo, nas quais uma nova classe social

composta por artesãos, banqueiros, homens de negócios, advogados,

professores etc., constituíam uma classe média.

Além disso, a invenção da imprensa por Gutemberg tornou acessível às

pessoas que viviam fora dos mosteiros e de outros círculos o

pensamento do passado e toda a sua riqueza literária.

Enquanto isso, a religião oficial sustentava todo um sistema de

dominação e opressão, nos seguintes aspectos:

1. A própria Igreja Católica era parte integrante dos sistemas

econômico e político, usando sua influência religiosa para apoiá-

los;

2. Boa parte da teologia da Igreja Medieval contribuía para

sacralizar o sistema, dando legitimidade divina;

3. O verdadeiro poder de dominação que sustentava o sistema era

exercido dentro da esfera espiritual através do sistema

hierárquico-sacramental.

Considerando o fato da Igreja estar no centro da sociedade, fazendo com

que a religião estabelecesse o ambiente no qual as pessoas viviam e se

moviam, a luta pela mudança necessariamente tinha de ser religiosa.

Esta é a razão porque Martinho Lutero surgiu como o grande libertador

na Europa do século XVI.

Além disso, a vida da Igreja Romana era indigna. Nela ocorriam muitos

abusos financeiros, o alto clero (papas, cardeais e bispos) demonstrava

uma vida escandalosa e de despreparo religioso, vivendo cercados de

luxo e interessados mais em questões políticas e financeiras do que em

valores espirituais. Por exemplo, o papa Inocêncio VIII (1484/1492)

criou novos cargos de secretário apostólico para arrecadar mais dinheiro

e casou seu filho com a filha de Lourenço de Médicis, governante de

Florença, que em recompensa teve um filho de apenas 13 anos nomeado

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cardeal. Já o papa Leão X (1513-1521), pontífice da época inicial da

Reforma, dedicava seu tempo às artes, festas, caças e teatro. Por outro

lado, o baixo clero, formado pelos curas e vigários das paróquias, era

pouco instruído e muito pobre, sobrevivendo às custas do aumento das

taxas para a celebração de batizados, casamentos, funerais etc. Muitos

deles trabalhavam administrando lojas ou albergues e, não raro, eram

dados aos jogos e à bebida, vivendo também em concubinato. Convém

destacar, também, que o número de padres e bispos que não sabia

ministrar os sacramentos, rezar a missa e apresentar aos fiéis a

mensagem do evangelho era cada vez maior.

A REFORMA PROTESTANTE.

Na época da Reforma a Alemanha representava as terras do Reno até as

fronteiras da Hungria e da Polônia, excluindo a Suíça. Não era, contudo,

uma nação unificada com um poder central, como a Inglaterra, a França

e a Espanha. O Santo Império Romano, o Império Alemão,

compreendia muitos territórios separados de variados tamanhos. Em

cada território governava, com relativa independência, os príncipes,

também chamados de Eleitor, Landgrave ou Margrave, todos sob a

liderança do imperador, o senhor feudal. A Dieta, como poder central,

consistia numa assembleia formada pelos príncipes e pelos nobres.

O monarca que mais se envolveu com a Reforma foi Carlos V, que era

de sangue alemão e espanhol. Ele era um homem da Idade Média que,

apesar de desejar uma reforma da Igreja, resistia a qualquer mudança de

doutrina. Não era subserviente ao papa, mas admitia que um concílio

geral representava a mais alta autoridade na Igreja. Possuía como rival,

às vezes inimigo e às vezes aliado, Francisco I, o ambicioso rei da

França.

Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Saxônia,

descendente de uma família de camponeses. Aos 18 anos ingressou na

Universidade de Erfurt, a mais famosa da Alemanha, a fim de tornar-se

advogado. Era um estudante aplicado, estudioso, orador fluente e

polemista, que gostava de música e da convivência com as pessoas.

Quando estava para ingressar na vida profissional, mudou a sua direção,

fazendo-se monge no Convento dos Agostinianos. Foi considerado um

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monge de vida modelar, tentando seguir o caminho da salvação segundo

o ensino da Igreja Medieval, excedendo-se em jejuns, vigílias,

flagelações e confissões. Apesar dessa intensa batalha espiritual, não

encontrou a paz e a segurança de alguém que está no caminho de Deus.

O ensino da Igreja Medieval dizia que o ser humano pode alcançar a

salvação pelas obras e pelos sacramentos que ela prescrevia, como

entidade divinamente autorizada. Lutero, contudo, tinha uma alma que

ardia com o sentimento de pecado e de estar debaixo da ira de Deus. Na

sua busca pela certeza da salvação, ele recebeu a orientação do seu

vigário geral, Staupitz, que afirmava que Deus era misericordioso e não

apenas justo. Além disso, leu sobre a graça divina nos escritos de

Bernardo de Claraval e na própria Bíblia. Livrou-se dessa angústia

quando, enquanto lia a Carta aos Romanos (Rm 1.17), encontrou que o

justo viverá pela fé. Isso inflamou seu coração, trazendo a luz da

compreensão de que a salvação lhe pertencia simplesmente pela

confiança, pela fé em Deus através de Jesus Cristo.

Por um pouco mais de quatro anos Lutero ensinou na Universidade de

Wittenberg sem romper com a Igreja, tornando-se, inclusive, um líder

da sua Ordem. Suas aulas e preleções na Universidade tinham uma nova

orientação, compreendendo explicações aprofundadas das Escrituras e

aplicação contextualizada à vida, ao invés de repetições dos pais e dos

doutores da Igreja. Esses ensinos atraíam multidões ao salão de

conferências.

Em 1517, Tetzel, um enviado do arcebispo da Mogúncia, apareceu nas

regiões próximas de Wittenberg vendendo indulgências emitidas pelo

papa, que eram pagamentos para redução das penas do purgatório ou

perdão dos pecados. Lutero indignou-se contra as indulgências. Naquela

época era costume afixar-se em lugares públicos a defesa ou o ataque de

opiniões, chamadas de teses, nas quais se debatiam as ideias e se

convidavam os interessados para o debate. Assim, em 31 de outubro de

1517, véspera do Dia de Todos os Santos, quando uma enorme multidão

afluiu à Igreja do Castelo em Wittenberg, Lutero afixou nas portas dessa

igreja as 95 Teses que combatiam as indulgências. O conteúdo dessas

teses afirmava que o cristão arrependido obtinha o seu perdão

diretamente de Deus, sem a intervenção de indulgências. Porém, as

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teses traziam também a negação do pretenso poder da Igreja Católica

Romana de ser mediadora entre o ser humano e Deus e de conferir

perdão aos pecadores. Cópias dessas teses foram impressas, vendidas e

disseminadas por toda a Alemanha. Como consequência o papa da

época, Leão X, começou a agir contra esse monge rebelde. Como

primeiro passo intimou Lutero a comparecer perante as autoridades em

Roma, o que significaria morte certa. Frederico, o Eleitor da Saxônia,

contudo, protegendo Lutero, ordenou que seu caso fosse discutido na

própria Alemanha. Diversas conferências aconteceram com os enviados

do Papa, sendo que em uma delas, a de Leipzig, Lutero declarou,

baseado em seus estudos das Escrituras, duas coisas de destaque:

1. Que o papa não tinha autoridade divina;

2. Que os concílios eclesiásticos não eram infalíveis.

Essas afirmações significaram o rompimento definitivo e irrevogável de

Lutero com a Igreja. A partir daí, Lutero prossegue com grande

coragem e rapidez, desenvolvendo uma intensa atividade literária,

divulgando e ensinando o povo alemão as virtudes do Evangelho. Seu

livro À Nobreza Cristã da Alemanha era uma convocação a toda a

Alemanha para unir-se contra Roma.

Por outro lado, Lutero expunha os desvios da Igreja Romana, que

ensinava que o papa e o clero tinham poderes sobrenaturais. Negou que

somente o papa pudesse interpretar a Bíblia. Denunciou a corrupção do

papado, suas ambições e extorsões. Adicionalmente, ele traçou um

plano para organização de uma igreja nacional alemã, independente e

reformada.

A reação de Roma consistiu em sentenciar Lutero e seus simpatizantes à

excomunhão. A bula papal de excomunhão é apresentada a Lutero em

1520, trazendo o conteúdo de se não se retratassem, seriam tratados

como hereges, isto é, seriam presos e condenados à morte. O jovem

Felipe Melanchton, professor e companheiro de Lutero, anunciou ao

povo um grande acontecimento público: a queima dos decretos papais e

de escritos dos teólogos escolásticos. Esta cena representa uma nova era

na história humana, pois se traduz no rompimento com todo o sistema

medieval.

Entretanto, a bula papal de excomunhão para ter efeito necessitava do

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poder civil. O caso foi levado à Dieta de Worms, em 1521, sob a

presidência do Imperador Carlos V. Lutero chega à Dieta com o apoio

do povo e dos nobres. Perante o imperador e de todos os eleitores das

províncias, clérigos e leigos, inclusive quatro cardeais, Lutero falou

vagarosa, calma e confiantemente, com um poder que emocionou todos

os corações, recusando alterar a sua posição. A Dieta dissolveu-se em

meio a grande confusão: enquanto os espanhóis gritavam para levar

Lutero à fogueira, os alemães empunhavam suas armas e, ladeados a

Lutero, o conduziram para fora da audiência. O Édito de Worms

condenou Lutero e seus simpatizantes à destruição, mas nenhuma

tentativa séria foi feita para levar a efeito a sentença. O povo alemão

zombava do referido decreto. Lutero estava condenado, mas se

encontrava seguro, como líder do movimento religioso nacional.

O movimento se propagou através dos ensinos reformados. A maioria

dos monges deixou o claustro para pregar as boas novas do Evangelho.

Muitos sacerdotes das paróquias se tornaram luteranos, seguidos dos

seus fiéis. Vários bispos foram favoráveis às novas doutrinas. Nos

templos, quando não se encontravam clérigos para pregar, os leigos o

faziam. O movimento se espalhou como um forte reavivamento

espiritual.

Outro movimento de reforma surgiu na Suíça alemã, sob a liderança de

Ulrico Zuínglio. Assim, na Dieta de 1526, os luteranos e zuinglianos

dominaram a assembleia, assegurando a decisão de que cada governo

podia escolher a religião do seu domínio. Já na Dieta de 1529, em Spira,

os católicos estavam mais organizados e conseguiram aprovar a decisão

de impedir qualquer propaganda da Reforma. Contra isso, os partidários

da Reforma elaboraram um protesto formal. A partir daí os seguidores

do Cristianismo reformado foram chamados de protestantes.

Objetivando pôr fim a disputa religiosa entre católicos e protestantes foi

realizada a Dieta de Augsburgo, em 1530. Nela, os luteranos

apresentaram uma declaração de princípios, denominada de Confissão

de Augsburgo, que teve como principal redator Melanchton. Não houve

acordo na Dieta e os católicos declararam guerra aos protestantes.

Lutero faleceu antes que viesse a guerra.

Muitas coisas Lutero realizou, mas o seu legado consistiu

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principalmente de:

1. Grande número de livros escritos;

2. Preparação de pregadores;

3. Tradução das Escrituras das línguas originais para a língua do

povo alemão;

4. Composição de vários hinos, sendo o mais conhecido Castelo

Forte, considerado a Marselhesa da Reforma.

5. Instituição de escolas conjugadas com as igrejas.

6. Influências em muitos países, tais como Boêmia, Hungria,

Polônia, Inglaterra, Escócia, França, Países Baixos,

Escandinávia e mesmo a Espanha e a Itália.

A guerra do imperador Carlos V contra os protestantes foi iniciada em

1546, tendo a princípio vitória a seu favor. Porém, Maurício da Saxônia

o expulsou da Alemanha, fazendo abandonar o trono. Na Dieta de 1555

foi acordada a Paz de Augsburgo, reconhecendo o protestantismo como

movimento legal e ficando para cada príncipe escolher a religião do seu

território.

A DOUTRINA CENTRAL DA REFORMA.

A Igreja Medieval exercia o sacerdócio entre as pessoas e Deus. A

Reforma rompe com essa posição reafirmando o princípio bíblico de

que como indivíduos, todos os cristãos são igualmente sacerdotes. Esse

é o sacerdócio daqueles que, pela fé, foram unidos com Cristo (IPd 2.5 e

9). Isso quer dizer, também, que cada membro individual tem comunhão

pessoal direta com a Cabeça Divina, possui responsabilidade imediata

diante dele e que diretamente dele é que obtém perdão e adquire força.

Lutero ao proclamar o sacerdócio universal de todos os crentes (IPd 2.9

e Ap 1.6) tornou impossível para um grupo na igreja manter outros em

posição inferior, ao mesmo tempo que recolocou todos os fiéis,

incluindo os considerados mais baixos, à condição privilegiada de

sacerdote. Todos estão nivelados perante Deus.

Como cada crente é um sacerdote, então cada um é capaz de fazer com

que o Evangelho e seus benefícios estejam disponíveis para os outros.

Entretanto, pessoas são vocacionadas por Deus para ministérios

específicos, a fim de fazer a igreja funcionar efetivamente e assumir

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uma administração em seu favor. Tais ministérios devem ser vistos

como chamados a proclamar uma mensagem doadora de vida e

transformadora do mundo, para servir, ao invés de ter poder sobre

outros. Desse modo, Lutero rompeu decisivamente com a divisão

tradicional da igreja nas classes de clero e laicato.

Essa doutrina não quer dizer que devemos abolir o ministério pastoral

como ordem distinta dentro da igreja, como fizeram os quacres. Nem

tampouco que cada crente é seu próprio sacerdote, possuindo o direito

do julgamento privado. Na verdade, a doutrina do sacerdócio universal

de todos os crentes quer dizer que todo cristão é sacerdote de alguém, e

somos todos sacerdotes uns dos outros (GEORGE, 1994, p. 96).

O sacerdócio de todos os crentes é ao mesmo tempo um privilégio,

quanto uma responsabilidade; uma posição, quanto um serviço. Duas

consequências práticas daí surgem:

1. Ninguém pode ser um crente sozinho, vivendo sua fé na solidão.

Não podemos servir a Deus sozinhos. Isso conduz a definição de

igreja como a comunhão dos santos, onde os creem em Cristo é

que são os santos. Portanto, a igreja não é o conjunto dos

supercristãos que estão na glória celeste, em cujos méritos se

pode conseguir ajuda para os caminhos da vida. Além disso, não

é a comunhão de uns para com os outros que vai formar a Igreja.

A base fundamental é a comunhão com Cristo que, sendo

comum a todos, produz comunhão entre os irmãos. Quando

individualmente uma pessoa passa a ter comunhão pessoal com

Cristo, no mesmo momento e por essa causa, passa a ter

comunhão também com todos os que já a possuem. Cristo é o

nosso ponto de encontro e de identificação.

2. A igreja é o povo. São as pessoas que formam a igreja, com suas

próprias vidas, e não os aspectos associativos dela em sua

organização e programas. Igreja é a gente da Igreja, não as

formas de seu agrupamento. Desse modo, em sentido bíblico

mais profundo, não formamos a Igreja, mas somos pessoalmente

a Igreja, se Deus é que nos está chamando, Cristo congregando,

o Espírito aperfeiçoando e a Palavra orientando e ensinando.

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QUATRO GRANDES POSTULADOS DA REFORMA.

1. SOLA GRATIA.

Os reformadores ensinaram que o pecador é justificado unicamente pela

graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo. Aqui, a graça é o favor

divino que o ser humano não merece, mas que, em sua soberania e

bondade, Deus quer lhe dar. Desse modo, a salvação é obra de Deus,

não da pessoa (Ef 2.8-9; Rm 11.6). O ser humano não está em condições

de dar, mas Deus o capacita a receber. Simplesmente a pessoa estende a

mão vazia para receber, não a mão cheia para oferecer, pois não possui

nada que possa ofertar em troca da salvação. Nem ao menos pode

cooperar com a graça divina para salvar-se. Sua situação é de morte (Ef

2.1-3), estando apenas disponível para receber o favor de Deus.

Esse conceito de só pela graça é um golpe contundente no orgulho

humano, pois confronta a nossa própria miséria espiritual e moral. Não

há, portanto, lugar para a autossuficiência, nem para a arrogância de

quem pretende salvar-se a si mesmo e a outros, mesmo por meio de

esforços que, na perspectiva da sociedade, pareçam nobres e heroicos. A

ideia de que o ser humano é bom por natureza e que pode auto-levantar-

se cai por terra ante a manifestação da doutrina de só pela graça de

Deus.

O ser humano é pecador por herança, pecador por natureza, pecador por

pensamento, palavra e ação; pecador como indivíduo, pecador como

ente social, criador de estruturas corruptas e perversas, a serviço das

forças demoníacas que operam neste universo. A sociedade total está

enferma. Esse é o quadro sombrio e deprimente que devemos

considerar, a fim de percebermos melhor o significado da graça de Deus

e pregar fielmente o Evangelho.

Por outro lado, devemos observar que a graça também revela o valor

imenso que o ser humano possui diante de Deus. O ser humano tem sua

origem em Deus e leva em si, ainda que afetada pelo pecado, a imagem

do seu Criador. Isto lhe concede uma dignidade especial que o eleva

bem acima das outras criaturas do mundo e lhe permite exercer domínio

sobre a natureza. É especialmente objeto do amor de Deus (Jo 3.16).

Deus é sempre o Deus de toda a graça (IPd 5.10). O Protestantismo,

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assim, nega todos os esquemas de salvação que promovem o homem e

suas atividades e cerimônias religiosas como meio de vida eterna e

perdão. Insiste ainda que a salvação vem através do puro e imerecido

favor de Deus.

2. SOLA CHRISTUS

A mensagem dos reformadores era de Cristo, sobre Cristo e centrada em

Cristo (Jo 1.17; IICo 9.15; Jo 14.6; At 4.12). Essa mensagem que ainda

ressoa é ao mesmo tempo inclusiva e exclusiva: inclui todos os que

recebem a Cristo como único mediador entre Deus e os homens, e

exclui todos que resistem à graça de Deus. Portanto, não nos cabe

incluir o que Deus não incluiu nem excluir o que Ele não excluiu. Só

Cristo salva! Mas, que Cristo?

1. O Cristo Deus, associado eternamente com o Pai e o Espírito Santo;

2. O Cristo Histórico, manifestado no tempo e no espaço da

plenitude da história humana;

3. O Cristo Humano, participante da carne e do sangue,

identificado plenamente com a humanidade;

4. O Cristo Pobre, que nasceu, viveu e morreu em profunda

pobreza, como os pobres de seu povo;

5. O Cristo Profeta, arauto de Deus Pai, intérprete da Divindade,

revelador da vontade divina para o seu povo e para humanidade;

6. O Cristo Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo através

da entrega total para a nossa redenção;

7. O Cristo Vivente, que destrói por meio da morte o império da morte,

e triunfa sobre o sepulcro através da ressurreição;

8. O Cristo Sacerdote, que está à direita da Majestade intercedendo

por nós;

9. O Cristo Rei, que virá, glorificador da sua Igreja, Rei dos reis e

Senhor dos senhores.

3. SOLA FIDE.

A descoberta de Lutero de que o justo vive pela fé (Rm 1.17) chegou a

ser um grito de batalha na Reforma: só a fé. A fé é a mão que recebe a

dádiva de Deus em Jesus Cristo. É por meio da fé que fazemos nossos

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os benefícios do Cristo crucificado e ressuscitado, fazendo com que

nossas almas e a nossa segurança eterna de salvação repousem.

Essa fé, contudo, não é cega e nem é mera credulidade. Tampouco é um

assentimento à verdade revelada. Pelo contrário, a fé se traduz em

confiar, abandonar-se nas mãos de Jesus Cristo, reconhecendo a

enormidade de nossa culpa e a totalidade de nossa incapacidade para

nos libertarmos por nós mesmos do pecado. É admitir que os méritos

humanos são inúteis para fins de justificação, lançando mão do valor

infinito da pessoa e obra do Filho de Deus. Ter fé em Jesus Cristo é

deixar-se salvar por ele.

A fé implica também em obediência (At 6.7; IITs 1.8). Quando a pessoa

crê que o Evangelho é a verdade, sente-se na obrigação de obedecê-lo.

Os reformadores afirmaram que a fé que justifica a pessoa não é uma fé

estéril e vazia, mas se harmoniza com as obras. Portanto, não somos

salvos por obras, mas, sim, para boas obras (Ef 1.10). Essas boas obras

são fruto da salvação, não a causa dela. Desse modo, a fé será mostrada

não apenas em palavras, mas também em atos que glorificam a Deus e

beneficiam o próximo e a sociedade.

Crer em Jesus Cristo significa também entrar em sério compromisso

com Ele e com a sua Igreja. Assim, depois de adquirirmos a nossa

apólice de seguro para a eternidade, somos compelidos a demonstrar um

excelente caráter ético.

4. SOLA SCRIPTURA.

Foi sob a declaração de só a Escritura que os reformadores e a igreja

oficial daqueles tempos dividiram os seus caminhos. Aceitaram os

reformadores a supremacia das Escrituras Sagradas sobre todas as

questões de fé e prática, proclamando a Bíblia como sua norma objetiva

e eficaz. Fizeram com que o assim diz Jeová e o escrito está

ressonassem poderosamente no âmbito de toda a comunidade cristã. Os

reformadores advogaram não a livre interpretação, mas o livre exame

das Escrituras. Isso sugere que devemos retirar do texto o significado

que o escritor sagrado quis imprimir dentro de um contexto cultural

determinado. Daí, faremos todo esforço possível para aplicar este

significado à nossa própria vida e à realidade que nos rodeia,

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perguntando ao texto o que tem ele para dizer-nos nesta situação

sociocultural. Por outro lado, também levaremos ao texto as nossas

perguntas, deixando que ele mesmo nos responda, sem fazer com que o

texto seja distorcido para trazer palavras que adocem os nossos ouvidos

ou ofereça apoio às nossas posturas doutrinárias preconcebidas.

Desse modo, necessitamos reafirmar nossa confiança na integridade e

na eficácia da Bíblia, renovando nosso compromisso de obediência à

autoridade das Escrituras. Além disso, devemos nos submeter ao

ministério do Espírito Santo, que pode nos guiar a toda verdade, assim

como nos mantermos dentro da comunhão dos santos, a fim de sermos

instruídos, exortados e edificados por nossos irmãos na fé, os quais têm

também a Palavra de Deus e nos quais também mora o Espírito da

Verdade e do Amor. Os reformadores fizeram o máximo para

transformar as Escrituras no fundamento e na autoridade para toda a

doutrina que criam e ensinavam. Esse zelo pela autoridade suprema da

Bíblia é uma das grandes heranças da Reforma.

OUTRAS CONSIDERAÇÕES.

A Reforma Protestante provocou na Igreja Católica inúmeras

modificações internas, fazendo-a abrir novas ações de serviço, na

tentativa de recuperar os povos e regiões que estava perdendo na

Europa. A América, descoberta alguns anos antes do início do processo

reformador, foi a mais importante área para a expansão do Catolicismo.

O objetivo fundamental da Contra Reforma foi a contenção da expansão

do protestantismo na Europa. Desse modo, a Igreja Católica reuniu-se

na cidade de Trento, no final do ano de 1535, e após muitas hesitações e

desentendimentos entre o Papa, bispos e reis, editou um documento

contendo as principais medidas que julgava, no momento, necessárias.

O Concílio de Trento reforçou o poder do Papa, criou o Índex (relação

de livros proibidos à leitura dos cristãos), eliminou a comunhão de

ambos os tipos (pão e vinho), mantendo apenas a comunhão do pão.

Além disso, obrigou os bispos a residirem em suas sedes, conservou os

sete sacramentos, reforçou o Tribunal da Inquisição, afirmou que

somente a Igreja poderia interpretar a Sagrada Escritura e fixou regras

para a formação e a vida dos padres.

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A fundação da Companhia de Jesus foi a principal arma utilizada pela

Contra Reforma Católica. Essa companhia, fundada pelo nobre militar

espanhol Ignácio de Loyola, adotou uma estrutura militar, chegando

mesmo a ser conhecida como o Exército de Cristo. Ao contrário das

antigas ordens religiosas, não se afastavam do mundo, mas atuavam

nele, procurando ter o apoio dos governantes europeus na sua luta

contra o Protestantismo, fundando escolas e catequizando os nativos dos

novos mundos surgidos com a expansão marítima.

Atualmente, o escândalo da pedofilia (envolvimento sexual com

crianças) que avassala a Igreja Católica dos Estados Unidos tem sido

tratado pelo Vaticano como um acontecimento circunscrito ao

excepcionalismo americano, produto de uma comunicação social hostil

à Igreja e de uma sociedade dominada por advogados obcecados pela

rapina das indenizações.

A Igreja Católica não tem nos EUA o poder que tem, por exemplo, na

Europa ou na América Latina. Implantada com os imigrantes irlandeses

em meados do século 19, a Igreja Católica dos EUA conheceu, ao longo

do século 20, um grande desenvolvimento, mas a sua implantação social

foi sempre superior à política. Sendo uma igreja que se tem mantido

distante das cruzadas mais recentes da política norte-americana, sejam

elas a Guerra do Golfo, a política pró-israelita, a luta contra o terrorismo

ou a pena de morte, é uma instituição politicamente vulnerável e os seus

críticos não deixarão de capitalizar o seu descrédito. O que se passa na

igreja norte-americana é a versão dramática de um mal-estar moral e

institucional que atravessa todo o mundo católico.

O mal-estar se assenta em dois fatores principais. O primeiro é a

falência, cada vez mais evidente, de um modelo institucional autoritário

e arrogante, que não aceita a efetiva participação da comunidade dos

crentes no governo da igreja, da gestão pastoral à gestão financeira; que

se assenta no trato secreto dos problemas, principalmente a respeito da

má conduta de bispos e padres para tornar possível a combinação de

cumplicidade com impunidade.

A imposição do celibato, a partir do século 12 e dos Concílios de

Latrão, foi motivado pelo medo do Vaticano de que os filhos dos padres

viessem a herdar os bens da igreja.

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Os problemas atuais da Igreja Católica não têm, aparentemente, nada a

ver com o sacro negócio da compra e venda de bulas e indulgências, que

tanto revoltou Lutero. Mas, no fundo, estamos diante do mesmo abuso

de uma posição de autoridade privilegiada, que trafica com a

ingenuidade ou a indefensabilidade das pessoas a quem vende Deus

para delas receber o corpo e a dignidade.

CONCLUSÃO.

A Reforma Protestante ocorrida no século XVI foi, na verdade, a

oportunidade mais promissora e importante de libertação que ocorreu na

Europa Ocidental na época. Consistiu numa resposta dinâmica dada

pelo poder do Espírito Santo à situação humana, através do Evangelho

que demonstrou o seu poder transformador. Assim, o Cristianismo,

muitas vezes feito prisioneiro de estruturas causadoras de falência e

desfiguração, foi portador de Boas Novas para o amanhã, recriando as

respostas necessárias para os novos desafios.

Muitos fatores tornaram a Reforma inevitável. A relutância da Igreja em

aceitar as mudanças sugeridas pelos teólogos, líderes conciliares e

humanistas e a fixação na tradição e no passado, indiferente às forças

dinâmicas de uma nova sociedade emergente, a tornou uma Igreja

alienada da realidade. Assim, a Reforma foi para o católico romano

apenas como uma revolta de protestantes contra a Igreja de Roma; para

os pensadores seculares, um movimento revolucionário, mas para o

protestante ela fez com que a vida religiosa voltasse aos padrões do

Novo Testamento.

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Apêndice 1.

ALGUMAS DOUTRINAS QUE NÃO TEM APOIO NA BÍBLIA.

Ano – Apostasia

310 – Reza pelos Defuntos

320 – Uso de Velas

375 – Culto aos Santos

394 – Instituição da Missa

431 – Culto à Virgem Maria

503 – Doutrina do Purgatório

528 – Extrema Unção

606 – Bonifácio III se declara Bispo Universal “Papa”

709 – Obrigatoriedade de beijar os pés do “Bispo Universal”

754 – Doutrina do Poder Temporal da Igreja

783 – Adoração das Imagens e Relíquias

850 – Uso da Água Benta

890 – Culto a São José (Protodulia)

993 – Canonização dos Santos

1003 – Instituição da Festa dos “Fiéis Defuntos”

1074 – Celibato Sacerdotal

1076 – Dogma da “Infalibilidade da Igreja”

1090 – Invensão do Rosário

1184 – Instituição da “Santa Inquisição”

1190 – Vendas de “Indulgências”

1200 – O Pão na Comunhão foi substituído pela Óstia

1215 – Criou-se a Confissão Auricular

1215 – Dogma da Transubstanciação

1220 – Adoração da Óstia

1229 – Proibição da Leitura da Bíblia

1245 – Uso das Campainhas na Missa

1316 – Instituição da Reza da “Ave Maria”

1415 – Eliminação do Vinho na Comunhão

1546 – Doutrina que Equipara a Tradição com a Bíblia

1546 – Introdução dos Livros Apócrifos

1600 – Invenção do Escapulário (Bentinhos)

1854 – Dogma da Imaculada Conceição de Maria

1864 – Condenação da Separação da Igreja do Estado

1870 – Dogma da Infalibilidade Papal

1908 – Pio X anula qualquer Matrimônio Efetuado sem Sacerdote Romano

1950 – Dogma da “Presença Real e Corporal de Maria no Céu” (Ascenção de Maria)

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BIBLIOGRAFIA.

GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Mundo Cristão, 1994. GONZALES, Justo L. A era dos reformadores. São Paulo: Mundo Cristão, 1983. LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del cristianismo – Tomo 2. 5.ed. El Paso, EUA: Casa Bautista de Publicaciones, 1983. NICHOLS, Robert Hastings. História da igreja cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1979. NÚÑEZ, Emílio Antonio. Herdeiros da Reforma. In: CLADE II. O presente, o futuro e a esperança cristã. São Paulo: ABU, s.d. SHAULL, Richard. A Reforma Protestante e a teologia da libertação. São Paulo: Pendão Real, 1993. WALKER, Williston. História da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 1983.