A RELAÇÃO DA ESCOLA COM AS FAMÍLIAS POBRES :...

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ISSN 2176-1396 A RELAÇÃO DA ESCOLA COM AS FAMÍLIAS POBRES 1 : A ATUALIDADE DO LIVRO “A PRODUÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR DE MARIA HELENA DE SOUZA PATTO” Edissônias Cordeiro Moraes 2 - SEEDF/UnB Grupo de Trabalho: Educação da Infância Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Esta pesquisa buscou investigar as discriminações vivenciadas por famílias pobres em suas relações cotidianas com a escola. Algumas indagações surgiram neste percurso: Qual a importância da educação para as famílias pobres? Quais os preconceitos enfrentados por essas famílias na relação com a escola? Como metodologia, utilizou-se da abordagem qualitativa, que se justifica por tratar de um estudo em que se procura entender o sujeito em suas relações intersubjetivas e subjetivas, na qual o pesquisador não se isenta na construção do conhecimento. Para coleta dos dados, realizou-se uma observação participante em uma escola pública do Distrito Federal, localizada em uma região empobrecida economicamente, distante do centro de Brasília. Utilizou-se uma entrevista semi-estruturada com uma mãe de alunos que reside em uma invasão próxima à escola. Também foi feita uma pesquisa documental junto às atas do conselho de classe para se investigar como os docentes referem-se aos alunos com dificuldades e às famílias dessa comunidade. Buscou-se nos estudos de Patto (1990) explicações para os preconceitos vivenciados pelas famílias pobres junto às instituições educativas e constatou-se que essa obra continua atual. Os resultados encontrados corroboram os achados da autora nos anos 80 e apontam que mesmo em condições de vida adversas essas famílias atribuem valor considerável ao processo educativo dos filhos. Mesmo com alguns avanços nas políticas públicas a escola se comporta atualmente buscando justificativas na teoria da carência cultural e na ausência de capital cultural para culpabilizar as famílias em situação de precariedade econômica pelos fracassos no processo de escolarização de seus filhos. Palavras-chave: Escola. Famílias pobres. Preconceitos. 1 Classificação de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística www.ibge.gov.br 2 Aluna do Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil (ESDEI). O curso é oferecido em uma parceria entre a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e a Universidade de Brasília (UnB). Professora da SEEDF. E-mail: [email protected]

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ISSN 2176-1396

A RELAÇÃO DA ESCOLA COM AS FAMÍLIAS POBRES1: A

ATUALIDADE DO LIVRO “A PRODUÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR

DE MARIA HELENA DE SOUZA PATTO”

Edissônias Cordeiro Moraes2 - SEEDF/UnB

Grupo de Trabalho: Educação da Infância

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Esta pesquisa buscou investigar as discriminações vivenciadas por famílias pobres em suas

relações cotidianas com a escola. Algumas indagações surgiram neste percurso: Qual a

importância da educação para as famílias pobres? Quais os preconceitos enfrentados por essas

famílias na relação com a escola? Como metodologia, utilizou-se da abordagem qualitativa,

que se justifica por tratar de um estudo em que se procura entender o sujeito em suas relações

intersubjetivas e subjetivas, na qual o pesquisador não se isenta na construção do

conhecimento. Para coleta dos dados, realizou-se uma observação participante em uma escola

pública do Distrito Federal, localizada em uma região empobrecida economicamente, distante

do centro de Brasília. Utilizou-se uma entrevista semi-estruturada com uma mãe de alunos

que reside em uma invasão próxima à escola. Também foi feita uma pesquisa documental

junto às atas do conselho de classe para se investigar como os docentes referem-se aos alunos

com dificuldades e às famílias dessa comunidade. Buscou-se nos estudos de Patto (1990)

explicações para os preconceitos vivenciados pelas famílias pobres junto às instituições

educativas e constatou-se que essa obra continua atual. Os resultados encontrados corroboram

os achados da autora nos anos 80 e apontam que mesmo em condições de vida adversas essas

famílias atribuem valor considerável ao processo educativo dos filhos. Mesmo com alguns

avanços nas políticas públicas a escola se comporta atualmente buscando justificativas na

teoria da carência cultural e na ausência de capital cultural para culpabilizar as famílias em

situação de precariedade econômica pelos fracassos no processo de escolarização de seus

filhos.

Palavras-chave: Escola. Famílias pobres. Preconceitos.

1 Classificação de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – www.ibge.gov.br 2 Aluna do Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil (ESDEI). O curso é oferecido em uma

parceria entre a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e a Universidade de Brasília

(UnB). Professora da SEEDF. E-mail: [email protected]

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Introdução

As reflexões desse artigo decorrem de uma pesquisa desenvolvida em uma escola

pública do Distrito Federal na qual estou inserida na comunidade escolar. A escola exerce

junto à comunidade um papel de referência, pois se localiza em uma região de extrema

pobreza do Distrito Federal. Além de receber as crianças, atende à comunidade nos horários

vagos como uma opção de lazer e também possibilita encontros de diversos grupos religiosos

nos finais de semana. A escola atende, em sua maioria, alunos da comunidade e se observa no

decorrer do ano as salas de aula se esvaziando com as faltas dos estudantes, principalmente os

da etapa da educação infantil. Isto ocorre pela grande circularidade de pessoas nessa região e

pela precariedade dos postos de trabalho. Assim, a comunidade recebe muitas famílias que

chegam e saem do local vindo de outras partes do país em busca de melhores condições de

vida. No entanto, na escola outro motivo para a evasão é apontado: para os professores

haveria desconhecimento dos pais quanto à importância desta etapa de ensino para as

crianças. Diante disso, muito do que se ouve pelos corredores da escola e nos conselhos de

classe é que essas famílias não ligam para escola e não atribuem a devida atenção à educação

de seus filhos.

Em face dessas observações, surgiu o desejo de investigar como ocorre o

relacionamento das famílias empobrecidas com a escola, mais especificamente com as

famílias que possuem filhos na educação infantil e no ensino fundamental. Além disso, a

pesquisa teve como norte as seguintes indagações: Qual a importância da educação para as

famílias pobres? Quais os preconceitos enfrentados por essas famílias nas escolas?

O trabalho conduziu-se a partir dos estudos de Maria Helena de Souza Patto realizados

no final da década de 80 e publicada em 1990, cuja obra mantém sua atualidade intacta. Pode-

se inferir, inclusive, que as escolas brasileiras, na segunda década do século XXI, mantêm a

mesma relação com as famílias pobres desde a década da redemocratização brasileira. De

acordo com Carvalho (2011) o livro “A Produção do Fracasso Escolar” tornou-se uma obra de

referência para pesquisadores em educação. O autor levanta duas hipóteses para explicar a

longevidade desses estudos: a primeira delas advém da precisa apresentação do cotidiano de

uma instituição escolar e da subjetividade dos agentes nela envolvidos. A segunda hipótese é

que essa apresentação não se reduz à peculiaridade de tal instituição, pois não se “desliga” a

escola dos condicionantes históricos de natureza política e social que sustentam as concepções

e práticas educativas em nossa sociedade.

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Preconceito contra famílias das camadas populares no decorrer da história

A relação escola pública e famílias pobres tem sido um tema frequente de interesse de

pesquisas no meio acadêmico. Ao longo dos anos, essas famílias sofrem preconceitos que são

históricos e sempre houve a tentativa de culpá-las pelo fracasso dos filhos na escola. Já no

final da década de 80 e início dos anos 90, Maria Helena Souza Patto publicou seu livro “A

produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia”, no qual constam os motivos

que levam as crianças das camadas mais pobres fracassarem na escola.

Uma das explicações se baseia em preconceitos étnicos, Patto (1990) aponta os

estudos de Gobineau (1854) publicado na França como um dos mais relevantes desta teoria.

Com a publicação de o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas o autor pretendia

mostrar as diferenças raciais, sendo que tais concepções influenciaram muitos intelectuais,

pois em suas obras transpareciam traços racistas.

Na tentativa de tornar a teoria das raças científica comprovando a superioridade da

raça branca, estudos foram feitos com escavação em cemitérios e com comparação de crânios,

buscando-se comprovar que os crânios retirados dos cemitérios das classes altas eram

diferentes dos crânios encontrados nos cemitérios das classes baixas. Para Patto (1990), “o

racismo, antes de ser uma ideologia para justificar a conquista de outros povos, foi muitas

vezes uma forma de justificar as diferenças entre classes” (PATTO, 1990, p. 32). Também na

França, as teorias de determinismo racial buscavam explicações distorcidas para evasão dos

filhos das famílias pobres do cenário educacional.

A medicina também foi utilizada para explicar os preconceitos. Francis Galton (1869

apud PATTO, 1990) foi pioneiro em estudos sobre o determinismo hereditário, em seus

estudos adotava testes psicológicos como medidores da inteligência. Utilizava-se da história

familiar de homens importantes para comprovar sua tese. Porém, os estudos do autor apenas

reforçavam a hierarquização das raças em que os considerados inaptos estavam entre os

trabalhadores pobres. “A preocupação com as diferenças individuais e seus determinantes,

[...] dos aptos e dos inaptos, só poderia ocorrer no âmbito da ideologia da igualdade de

oportunidades enquanto características distintivas das sociedades de classe”. (PATTO, 1990,

p. 38 – grifos da autora), portanto, tais estudos nunca foram válidos. Galton também ousou ir

além dos outros teóricos do racismo, propôs o aperfeiçoamento da raça humana com o

cruzamento de indivíduos selecionados para esse fim, processo denominado de eugenia.

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Com a evolução das ciências médicas, em especial a biologia e a psiquiatria, no século

XIX, os médicos se tornam os grandes responsáveis em explicar os problemas de

aprendizagem, época em que os estudos neurológicos e neuropsiquiátricos se destacam para

explicar as dificuldades de aprendizagem. É nesta época que termos como anomalias são

transferidos da medicina para educação, pois “as crianças que não acompanhavam seus

colegas na aprendizagem escolar passaram a ser designadas como anormais escolares e as

causas de seu fracasso são procuradas em alguma anormalidade orgânica” (PATTO, 1990, p.

41- grifos da autora).

Nesta época, aparece na psicologia instrumentos de medição de aptidões, com os testes

do psicólogo Binet (1895 apud PATTO, 1990) para medir a inteligência das crianças. Além

disso, os estudos de Edouard Claparède (1924 apud PATTO, 1990) se destacavam com a

criação de testes mensuráveis os quais se baseavam na ideia de comprovar que alguns

indivíduos eram inteligentemente mais aptos que outros sem considerar as implicações

socioeconômicas nas suas vidas.

Na década de 70, a teoria da carência cultural surge na psicologia norte-americana na

intenção de explicar por que negros e latino-americanos não alcançavam o mesmo destaque

na sociedade em comparação com os brancos; segundo os estudiosos isso ocorria pelas

deficiências culturais das famílias por terem pouco estudo, tornando-se, assim, o pano de

fundo para explicar o fracasso escolar nas classes baixas. De posse dessa teoria, nas escolas

passou-se a culpabilizar o próprio aluno pelo fracasso escolar, por pertencer a um ambiente

carente de estímulos e recursos financeiros. A suposição repleta de preconceitos é: “a pobreza

ambiental nas classes baixas produz deficiências no desenvolvimento psicológico infantil que

seriam a causa de suas dificuldades de aprendizagem e de adaptação escolar”. (PATTO, 1990,

p. 94).

No Brasil, esta teoria teve grande aceitação pela crença histórica arraigada da

incapacidade intelectual dos negros, mestiços e pobres. Foi mais um reforço para a

discriminação das classes pobres. Tal discurso foi, inclusive, na década de 70 a justificativa

da falta de escolas para as camadas populares. Conforme Schultz (1968 apud PATTO, 1990),

os governantes alegavam que essas crianças não se matriculavam por pobreza e outras

prioridades como a necessidades de trabalhar, deficiências físicas e mentais, que ocasionariam

o desinteresse pela escola.

Em síntese, a obra de Patto (1990) descreve que o fracasso escolar nas classes

populares é explicado no decorrer da história. Inicia-se com argumentos racistas, depois busca

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apoio na medicina e psicologia com testes sensoriais, intelectuais e de aptidão. Logo depois, a

teoria da carência cultural ganha grande aceitação nas instituições escolares e na sociedade em

geral. Mesmo com a legislação e as reformas educacionais na tentativa de incluir os mais

pobres no cenário da educação brasileira, observa que estes esforços não produziram

mudanças significativas e concretas para o alcance de todos a uma escola de qualidade.

Podemos dizer que o “ideário de déficit” que Patto (1990) apontou para explicar o

fracasso das crianças pobres na escola foi consolidado ao longo das últimas décadas no Brasil

e ampliado conforme destaca Legnani et al (2015). Segundo essas autoras, o mal-estar

docente persiste presente e pulula nas salas de aulas, nos corredores, nas salas de reunião, nos

encontros com as famílias. Uma das estratégias atuais do corpo docente, para não se

responsabilizar diante das dificuldades encontradas, é alegar despreparo e atribuir

competências para resolver os problemas de aprendizagem no interior das escolas aos

profissionais da saúde, ou seja, recorrem à medicalização dos problemas escolares. Estratégia

em que questões das ordens relacionais, socioeconômicas e culturais tornam-se meramente

biológicas e associadas a um suposto aparato cerebral disfuncional.

Assim, presenciou-se nas últimas duas décadas um aumento exorbitante do

diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade como uma explicação para

as dificuldades de aprendizagem. (LEGNANI, 2012). Conforme esta autora, foram atendidos

dois interesses: o de “desresponsabilização” dos profissionais da educação em relação aos

“alunos problemáticos” e o crescimento de mercado para os profissionais da saúde (médicos,

farmacêuticos, psicólogos, etc.), os quais dão provas de que não têm conhecimento dos

problemas educacionais ao aderirem a essa demanda de forma acrítica. Como aponta Guarido

(2007), o recurso ao uso de medicamentos e à técnica, seja ela a dos manuais de psicologia ou

de medicina, pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos.

Legnani et al (2015) destacam que além do déficit emocional em função de problemas

familiares, do déficit cultural e do déficit de atenção, temos ainda hoje outra explicação para

os problemas na escolarização para compor o conjunto desse “ideário do déficit”, qual seja: o

mito criado em torno do déficit de autoestima. Segundo Franco (2009), a expressão

autoestima tem sido considerada como uma qualidade própria do indivíduo, presente em sua

vida independentemente das condições e das relações que ele estabelece em seus contextos

sociais. As autoras explicam que se trata de uma ideia decorrente da Psicologia Positiva

estadunidense que, ao introduzir-se no senso comum, adquiriu um caráter universal,

ignorando a compreensão de que o homem seja um ser complexo, relacional, social, histórico

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e cultural. Basicamente consiste na concepção de que o sujeito deve ser capaz de acreditar em

suas possibilidades pessoais para além das experiências vividas, sendo essa crença sobre si o

alicerce para o sucesso e adequação na sociedade. Assim, essa concepção de que a baixa

autoestima seria a causa do fracasso escolar e da indisciplina não somente desconsidera a real

importância de que os alunos produzem seus processos psicológicos a partir do intercâmbio

com o outro, como também os avalia já prontos desde suas idades mais precoces. Isto é, a

valoração que o sujeito teria de si seria um aspecto pronto e acabado (FRANCO, 2009).

Bernard Lahire (1997) em sua obra “Sucesso escolar nos meios populares: as razões

do improvável” relata o resultado de uma pesquisa em escolas populares na França, em suas

análises, aponta para o mito da omissão parental. Segundo o autor, a escola ignora as lógicas

dessas configurações familiares, deduzindo a partir dos comportamentos e dos desempenhos

escolares dos alunos que os pais não se importam com a educação dos filhos.

Metodologia

Realizou-se uma pesquisa qualitativa, sendo que inicialmente foi feita uma observação

participante na escola. No segundo momento, fez-se uma entrevista com uma mãe de alunos

que vivem em situação de extrema pobreza e, por fim, uma pesquisa documental nas atas do

Conselho de Classe.

Resumo de algumas falas das docentes sobre a relação escola/alunos na faixa etária de 4

e 7 anos/famílias

Quadro 1: Professoras da Educação Infantil: alunos 4 e 5 anos

Professores Alunos/Turma

A Aluno A: muito inteligente, gosta de desafios, tem comportamento infantil, futuramente

necessita ser acompanhado pela SEAA e psicólogo. É desafiador o tempo todo, necessita de

atenção de atenção da equipe multidisciplinar. Suspeita de agressão familiar, linguagem além,

carência afetiva.

Aluno B: tem dificuldades em acompanhar a rotina/regras, desorganização pessoal, chamar a

mãe para conversar, não quer fazer as atividades propostas, quer apenas brincar.

B Aluno reprimido pelos pais (comportamento diante dos pais), longe deles se mostram agitado e

inquieto.

C Aluna carente, abandonada pela mãe, falta acompanhamento familiar; falta acompanhamento

familiar; aluna chora muito, apresenta aspecto de carência, pois a mãe trabalha e passa a semana

fora.

D Falta acompanhamento familiar nas tarefas de casa; concentração no vídeo; higiene pessoal.

Fonte: dados coletados das atas de conselho de classe do ano de 2014.

Quadro 2: Professores de alunos de 6 e 7 anos (1º e 2º ano)

Professores Alunos/Turma

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E Turma mista, agitada e infrequente; principais necessidades da turma: pré-requisitos para o 1º

ano, melhorar a frequência, participação da família na vida escolar da criança: auxilio nas tarefas

de casa, reposição de materiais escolares básicos e orientação dos hábitos básicos de higiene; o

aluno A é agressivo e tem dificuldades de interagir com os colegas em sala de aula e no recreio

(isola-se dos outros alunos) e a família reforça esse comportamento.

F Aspecto geral da turma: falta acompanhamento da família nas tarefas de casa, imposição de

limites no caso dos alunos: A: agressivo, agitado, ausência de limites e nesse caso a família foi

orientada pela equipe pedagógica a procurar ajuda do profissional habilitado para o caso e não

teve retorno. B: desinteressado pela realização das tarefas, disperso e apresenta fala

infantilizada, superprotegido pela família e ausência da mãe na reunião de pais. C: não tem

interesse em frequentar as aulas, disperso, vive no mundo dele, brinca muito em sala de aula e a

mãe argumenta que não pode ajudar nas tarefas escolares por que trabalha fora. D: participativo

e interessado, mas falta acompanhamento da família. E: apático e não tem acompanhamento da

família. F: apresenta dificuldades, mas melhorou em alguns quesitos, entretanto a mãe não

auxilia nas tarefas escolares por ser analfabeta.

Fonte: dados coletados das atas de conselho de classe do ano de 2014.

Como se percebe, por meio das frases no quadro 1 e no quadro 2, todas as concepções

sobre as dificuldades dos alunos não levam em consideração o que ocorre na relação

professor/alunos e no cotidiano escolar, ou seja, a teoria da carência cultural familiar

disseminou-se nas escolas e permanece profundamente atual.

Entrevista com a mãe de alunos da escola

A entrevista foi concedida por uma mãe que faz parte da comunidade escolar. Para que

a colaboradora se sentisse confortável com o encontro, foi lhe dado alternativas de escolha de

local para que a entrevista fosse concedida. Esta por sua vez escolheu a escola para conversar

com a pesquisadora, à tarde, depois da entrada do turno, momento que ela ia à escola deixar

seus filhos. Perante a autorização da direção da escola, no local e hora marcada a

pesquisadora e a participante se encontraram na sala de informática para realização da

entrevista.

Ana3 mora na comunidade há 5 anos, tem 33 anos, mãe de 6 filhos, quatro estudam na

escola e destes, dois na educação infantil. Mora em um barraco perto de uma erosão na

comunidade onde está inserida a escola, está desempregada e participa do programa Bolsa

Família4 do governo federal. A entrevista gravada foi concedida no dia 20 de maio de 2015.

Pesquisadora: Como você avalia o desempenho de seus filhos na escola?

3 Os nomes dos colaboradores foram mudados para preservar as identidades dos participantes da pesquisa. 4 O Programa Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação

de pobreza e de extrema pobreza do País. O Bolsa Família integra o Plano Brasil Sem Miséria, que tem como

foco de atuação brasileiros com renda familiar per capita inferior a 77 reais mensais.

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Participante: A professora disse que Gabriel é muito inteligente, eu ensino ele em

casa, faço assim – Gabriel aqui é a família do “D”, eu não preciso pegar na mão

dele não, ele faz sozinho. O outro – Marco Antônio – tem a caligrafia meio ruim e a

professora não está chamando para o reforço, mas a professora disse que ele está

melhorando, mas tem que melhorar na caligrafia – escreve faltando letras e junto.

Pesquisadora: Você acompanha os deveres de casa com eles?

Participante: ‘Ahan’, lá em casa não tem um quarto separado para os meninos

estudarem – para dizer assim: aqui é o lugar para vocês estudarem (a casa só tem

dois cômodos). Ainda não tem lugar para estudar, mas um dia vai ter.

O relato mostra a preocupação da mãe em acompanhar seus filhos na escola. Ana não

concluiu o ensino fundamental, mas sente a necessidade de acompanhar seus filhos,

mostrando-se atenta para identificar as dificuldades das crianças. Sabe que um filho necessita

do reforço escolar, que outro escreve faltando letras e/ou aglomeradas.

Como vimos, os estudos apontam que as famílias das camadas populares sofrem com a

exclusão escolar dentro de um processo histórico, político e econômico. Esse processo se

traduz de maneira concreta na vida dessas pessoas quando analisamos os motivos do

alijamento das camadas populares da escola.

Pesquisadora: Vamos falar de seus pais. Seus pais sabiam ler? Quantos irmãos

você tem?

Participante: Não tenho mais pai. Tenho 6 irmãos por parte de pai e 1 por parte do

padrasto. Não sei até quando minha mãe estudou, mas ela estudou pouquinha coisa

e assina o nome, a letra dela não é muito boa mas ela entende.

Pesquisadora: Você diz que reprovou, você lembra quantas vezes, qual foi a série?

Participante: Sim, eu reprovei duas vezes na quarta série, passei para quinta série,

mas não cheguei a cursar a quinta série. Não voltei mais a estudar porque

engravidei da menina, a que mora no Maranhão e aí não voltei mais a estudar.

Pesquisadora: Porque você não voltou a estudar? Seu marido não deixou?

Participante: É, vivi com ele um ano, assim... falei com a mãe dele que eu não ia

mais viver com ele, ele tinha ciúmes demais e queria me maltratar. Aí eu tomei uma

decisão arrumei um serviço aqui mesmo em Samambaia e vim embora para cá.

Trabalhava como doméstica, mas as casas também não me deixavam estudar, pois

trabalhar em casas é assim...

Assim vemos os impasses da experiência de Ana com a escola: a gravidez precoce e as

repetidas reprovações, o maltrato no casamento e seu emprego como empregada doméstica. A

teoria de Bourdieu (1960 apud PATTO, 1990) acerca do capital cultural aponta a escola como

instituição formal que mais reproduz os valores de uma sociedade capitalista. Tal teoria foi

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mal assimilada pelas escolas, que esvaziaram seu foco crítico sobre a sociedade que reproduz

desigualdades e passaram a apregoar que a ausência do capital cultural impede as crianças

pobres sejam bem-sucedidas nas escolas. Desse modo, as escolas normalmente ignoram que

essas famílias desafiam a própria condição para que os filhos não se sintam excluídos,

situação vivenciada por Ana no dia de um passeio ao zoológico promovido pela escola.

Pesquisadora: Você tem cinco filhos aqui com você, você disse que todos estudam.

Eu queria que você falasse das dificuldades que você enfrenta no dia-a-dia em casa

para enviar os filhos à escola.

Participante: A dificuldade maior é quando eles pedem uma coisa e eu não posso

dar, por exemplo, quando quebra o chinelo de alguém, aí eu tenho que ‘tá’

amarrando com arame ou com prego. E quando também têm eventos na escola que

precisam de dinheiro para pagar, tipo assim: a primeira vez que eles foram ao

zoológico eu vendi latinha juntei o dinheiro e comprei um salgadinho para cada um

deles levar com refrigerante.

Thin (2006) mostra que no processo de escolarização nas camadas populares as

relações sociais apontam para sujeitos com práticas sociais diferentes, “de um lado, os

professores, cujas lógicas educativas fazem parte daquilo que chamamos modo escolar de

socialização; do outro, famílias populares com lógicas socializadoras estranhas ao modo

escolar de socialização” (THIN, 2006, p. 2). Nesse desencontro, o que se observa atualmente

é um mais lento processo de exclusão dessas crianças da escola. Antes, como vimos na

história de Ana, havia quase uma naturalização da evasão escolar das crianças das camadas

populares por não se se enquadrarem no modo de socialização imposto pela escola. Hoje as

políticas públicas impedem que essa ‘expulsão’ se dê precocemente, mas isso não implica que

essas crianças tenham a uma escola que as compreendam e lhes forneçam um ensino de

qualidade.

Na entrevista, Ana informa que está à procura de emprego para dar condições

melhores aos seus filhos. Ao mesmo tempo, preocupa-se em deixar os filhos sozinhos, fato

que será resolvido com o pagamento de cuidadora dos seus filhos enquanto trabalha. “Meu

filho pequeno está na creche pública e se eu conseguir emprego, vou pagar uma vizinha para

levar e buscar os meninos na escola para mim que estão na escola integral, ela disse que não

vai cobrar caro”.

Assim, as políticas públicas atuais destinadas à inclusão das famílias carentes no

cenário educacional brasileiro visam garantir o direito a igualdade na educação. Os programas

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do governo de Escola Integral5 e Bolsa Família são citados por Ana como programas

importantes para sua família.

Eu gosto da escola integral, o professor que coordena é muito atencioso, paciente.

Para mim, a criança aprende mais, pois fica em duas salas, vai de manhã e só vem a

tarde. O lanche também é muito bom, às vezes ele leva para casa e fala assim, mãe

olha que biscoito gostoso tem na escola. Eu falo para ele, que ele pode comer, pois

na escola tem o que não temos em casa.

Ana aponta que os programas citados ajudam a incluir seus filhos na escola. O

dinheiro que recebe da bolsa família, no momento, é utilizado para ajudar nas despesas da

casa, enquanto a Escola Integral permite que seus filhos passem mais tempo na escola e

tenham complemento na alimentação.

Em síntese, os dados apontam que Ana teve um histórico de vida muito difícil, apesar

das dificuldades vivenciadas em sua vida, persiste em se preocupar com a educação de seus

filhos. Percebe-se, sem dúvida, o esforço dessa mãe para que as crianças fiquem na escola

para conviver em uma sociedade cada vez mais discriminadora pela posição social e pela

capacidade de cada um no mundo do consumo.

Considerações finais

O intuito desta pesquisa foi mostrar por meio de um trabalho acadêmico os

preconceitos e discriminação por quais uma família pobre pode vivenciar na escola. Esta

pesquisadora teve essas mesmas dificuldades durante sua infância. Meus pais não foram à

escola. Já adolescente, lembro-me que frequentavam uma escola na comunidade, que

ofereciam aulas a adultos, conseguindo apenas aprenderem a assinar seus nomes. Quando

criança morávamos em uma casa feita pelo meu pai – de barro e coberta com palha. Minha

mãe lavava roupa para complementar a renda familiar e minha irmã mais velha cuidava das

crianças menores. Íamos para escola sem faltar sequer um dia de aula, era lá que

complementávamos nossas refeições, mas, sobretudo, sempre houve em meus pais um desejo

que todos nós estudássemos para termos melhores condições de vida.

5 Programa do Governo do Distrito Federal em parceria como o Programa Mais Educação do Governo Federal

que visa à ampliação do tempo de permanência do estudante na escola é amparado no decreto nº 33.329, de

10/11/2011 que regulamenta a Lei Federal nº 4.601, de 14 de julho de 2011, instituindo o Plano pela Superação

da Extrema Pobreza – DF sem Miséria, que em seu art. 43. Diz: Para o atendimento das famílias pobres e

extremamente pobres, em territórios de vulnerabilidade social urbana e rural, deverá ser ampliada a rede de:

educação infantil; ensino fundamental; ensino médio; e educação de jovens e adultos - EJA. Parágrafo único.

Deverá ser progressivamente implantada a educação integral nas redes descritas.

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Recordar desses fatos sem ressentimento e sem tamponamentos possibilita-me

entender a lógica socializadora das famílias pobres, suas concepções sobre a educação e os

desafios que enfrentam nas escolas. A comunidade em que trabalho hoje como docente na

Educação Infantil retoma a minha infância em suas características sociais e econômicas.

Assim, diante de minha história de vida, da qual não me envergonho, busquei nas escavações

de minha memória a construção desse trabalho. Nas palavras de Almeida (2002):

[...] é possível pensar a memória educativa como a palavra contida na enunciação

mínima do professor, com poder também de construir uma verdade histórica, de

produzir uma nova relação com o vivido, construindo e (re) construindo sua

identidade, enfim, desencadeando um processo no qual o professor possa fazer as

pazes com a criança que está dentro dele, ou seja, o Ser infante no Ser professor

(ALMEIDA, 2002).

Com a análise dos dados observa-se que de um lado a família é apontada como

responsável do fracasso escolar de seus filhos, mas por outro lado o que se percebe é que

mesmo uma família muito carente, sem condições econômicas de dar aos filhos uma situação

ideal de sobrevivência, não desiste perante as dificuldades.

Outro importante resultado obtido com a pesquisa diz respeito à desmistificação

atribuída às famílias populares que por sua situação socioeconômica não se interessam pela

educação dos filhos que é comprovado com as palavras de Ana: É importante... [...] eu falo

para eles, eu sofri muito, mas não é porque eu sofri que vocês têm que sofrer também, vocês

estudam para ter um serviço bom. Se eu tivesse estudado ou feito um curso, eu teria uma vida

bem melhor da que tenho hoje. Patto (1990) traz contribuições muito importantes acerca de

como as famílias pobres foram alijadas do processo escolar dentro de um decurso histórico da

sociedade capitalista. Muitas foram as formas de exclusão das famílias pobres passando por

teorias racistas, teoria da carência cultural – com teses que culpam os estudantes e famílias

pela exclusão dos filhos do cenário educacional e isentam a escola – sem que a existência de

igualdade de oportunidades fosse questionada; além de interpretações equivocadas de teste

psicológicos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Inês Maria Marques Zanforlin Pires de. O Ser infante e o Ser professor na

memória educativa escolar. In: COLOQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 4., 2002, São Paulo.

Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo>. Acesso em:

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