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Anais FLIPA | 8 A RELAÇÃO TOPOCÍDICA DO HOMEM COM O ESPAÇO NA OBRA: Os sertões de Euclides da Cunha Maria Cicera da Silva Pereira Graduada em licenciatura em Letras pela Faculdade Sete de Setembro FASETE. Paulo Afonso BA. [email protected] Wellington Neves Vieira Professor do curso de licenciatura em Letras da Faculdade Sete de Setembro FASETE. Paulo Afonso BA. [email protected] RESUMO O presente trabalho tem o objetivo de analisar a relação topocídica do homem no espaço habitado incutida na obra “Os sertões” do escritor Euclides da Cunha, sob a ótica da Ecocrítica e da Geografia Humanista. Essa relação do homem com espaço será observada a partir do termo Topocídio, que visa um estudo mais aprofundado sobre o comportamento humano, e como os mesmos agem em seu meio. A metodologia utilizada foi de caráter explicativo, pois foca numa análise dos personagens da obra euclidiana refletida na figura dos sertanejos. A relação do homem sertanejo, abordado a partir de fragmentos da obra de Euclides da Cunha, traz à tona uma relação conturbada do homem dentro do seu espaço. O homem no decorrer da obra euclidiana, tem aversão ao lugar, e, por fim, acomete a destruição. Ao final da pesquisa, foi averiguado que o homem é um ser dependente de seu espaço, mas o próprio acaba destruindo e junto dessa devastação, ele caba perdendo sua essência que é dependente dos laços que foram criados no espaço habitado. Palavras chaves: Os Sertões. Ecocrítica, Topocídio. Literatura THE RELATION BETWEEN MAN AND SPACE THROUGH TOPOCIDE” IN THE WORK: Os sertões by Euclides da Cunha ABSTRACT This paper aims to analyze the relation between man and space through the perspective of “topocide” (“topocídio” in Portuguese) present in the work Os Sertões by Brazilian author Euclides da Cunha, under the Ecocriticism and Humanist Geography concepts. The way man relates to space is analyzed through the term Topocide, which aims to further study about human behavior and how it acts on the environment. The methodology used was explicative, once that it focus on an analysis of the characters of Euclides’ work reflected on the image of country people. The relation of the country man, approached through fragments of Euclides da Cunha’s novel brings up a troubled connection with its space. The man, along the referred work, despites his space and, finally, ends up destroying it. At the end of the research, we observed that the human being depends on its space, but humans themselves end up destroying it, causing, through this devastation, the loss of an essence that depends on the bonds formed with the inhabited space.

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A RELAÇÃO TOPOCÍDICA DO HOMEM COM O ESPAÇO NA OBRA: Os sertões

de Euclides da Cunha

Maria Cicera da Silva Pereira Graduada em licenciatura em Letras pela Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo Afonso – BA.

[email protected]

Wellington Neves Vieira Professor do curso de licenciatura em Letras da Faculdade Sete de Setembro – FASETE. Paulo Afonso – BA.

[email protected]

RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a relação topocídica do homem

no espaço habitado incutida na obra “Os sertões” do escritor Euclides da Cunha,

sob a ótica da Ecocrítica e da Geografia Humanista. Essa relação do homem com

espaço será observada a partir do termo Topocídio, que visa um estudo mais

aprofundado sobre o comportamento humano, e como os mesmos agem em seu

meio. A metodologia utilizada foi de caráter explicativo, pois foca numa análise

dos personagens da obra euclidiana refletida na figura dos sertanejos. A relação

do homem sertanejo, abordado a partir de fragmentos da obra de Euclides da

Cunha, traz à tona uma relação conturbada do homem dentro do seu espaço. O

homem no decorrer da obra euclidiana, tem aversão ao lugar, e, por fim, acomete

a destruição. Ao final da pesquisa, foi averiguado que o homem é um ser

dependente de seu espaço, mas o próprio acaba destruindo e junto dessa

devastação, ele caba perdendo sua essência que é dependente dos laços que

foram criados no espaço habitado.

Palavras chaves: Os Sertões. Ecocrítica, Topocídio. Literatura

THE RELATION BETWEEN MAN AND SPACE THROUGH

“TOPOCIDE” IN THE WORK: Os sertões by Euclides da Cunha

ABSTRACT

This paper aims to analyze the relation between man and space through the

perspective of “topocide” (“topocídio” in Portuguese) present in the work Os

Sertões by Brazilian author Euclides da Cunha, under the Ecocriticism and

Humanist Geography concepts. The way man relates to space is analyzed

through the term Topocide, which aims to further study about human behavior

and how it acts on the environment. The methodology used was explicative, once

that it focus on an analysis of the characters of Euclides’ work reflected on the

image of country people. The relation of the country man, approached through

fragments of Euclides da Cunha’s novel brings up a troubled connection with its

space. The man, along the referred work, despites his space and, finally, ends up

destroying it. At the end of the research, we observed that the human being

depends on its space, but humans themselves end up destroying it, causing,

through this devastation, the loss of an essence that depends on the bonds formed

with the inhabited space.

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Keywords: Os Sertões, Ecocriticism, Topocide, Literature.

1 INTRODUÇÃO

Mesmo com os avanços acelerados das tecnologias a Literatura tem sido de grande valia para

questionamentos presentes na sociedade, sendo um meio que leva as pessoas a refletirem de

maneira mais coerente sob várias vertentes, que vão desde a reflexão do imaginário ao

criticismo.

Apesar dos avanços tecnológicos terem aparecidos de maneira acelerada a literatura não perdeu

seu papel diante da humanidade, e, entre as inúmeras vertentes que esse meio nos leva a refletir,

a relação do homem com o meio habitado, vem ganhando ênfase e uma postura singular no

século XXI.

Nos últimos anos, está temática sobre o homem e o habitat, tem ganhado um espaço peculiar

em meio à literatura, que nos presenteia com uma linguagem repleta de significados e nos faz

refletir sobre o nosso papel diante das nossas intervenções. Com o tempo a sociedade evolui, e

o meio literário evolui junto, e busca se adequar a sociedade moderna e cumprir seu papel

crítico, e faz com que a humanidade reflita sobre suas ações no meio ambiente. Essa linha de

pesquisa tem como foco averiguar como o espaço é destruído, e é de suma importância para a

sociedade se reiterar desta temática, pois, é a partir do reconhecimento do espaço habitado, que

podemos reconhecer nossa identidade, pois, sabe-se que a relação do homem no espaço

habitado é de pura dependência, e este “espaço tem uma relação totalmente elevada na vida do

homem.” (CAVALCANTE, 2010, p.27)

Devido os confrontos que envolvem homem-meio ambiente, surge o interesse por esta

investigação: homem e sua relação topocídica com o espaço, isso se iniciou a partir do contato

com a obra literária do escritor Euclides da Cunha em “Os Sertões”, o que motivou na

construção desse diálogo com o interesse para se estudar como se dá a relação de destruição do

homem no espaço habitado, pois, a obra Literária, foca nessa perspectiva, de maneira mais

aprofundada e diferenciada do que já havíamos tido.

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Nessa perspectiva de estudo destaca-se a linha teórica, Ecocrítica, que se encontra de maneira

integrada com a Literatura, uma área que vem ganhado destaque, com isso este trabalho vai

abordar sobre a temática, que segundo o pesquisador Glotfelty, estuda a “relação do ambiente

voltada para o âmbito da literatura, e se encontra totalmente centrada nos estudos literários

direcionados para a Terra” (1996, p. XIX), ou seja, esta é uma das denominações voltadas para

o âmbito da Ecocrítica.

O objetivo geral desse trabalho é analisar a relação topocídica do homem no espaço no livro

“Os sertões” de Euclides da Cunha, os objetivos específicos é conceituar a linha de pesquisa

Ecocrítica, caracterizar espaço e lugar e por último identificar a relação topocídica do homem

no espaço habitado baseado na obra “Os sertões” de Euclides da Cunha.

2 ECOCRÍTICA

Esse capítulo trata-se de explorar os conceitos da teoria Ecocrítica, para assim se poder

compreender com clareza o que esse tópico abordará. Para a percepção desse estudo, alguns

estudiosos da área serão introduzidos, e assim, ao final ficará entendido o intuito desse esbouço.

Um campo de pesquisa que ao longo do tempo, vem ganhando cada vez mais espaço no meio

Literário, teve seu surgimento no Reino Unido nos anos de 1978, anos mais tarde, o termo foi

citado por alguns estudiosos dos EUA1 pela ASLE (Association for the Study of Literature and

Environment – Associação do estudo da literatura e meio ambiente); entre os estudiosos que se

reuniram para pesquisar sobre a Ecocrítica, se destaca Willian Rueckert, que mencionou pela

primeira vez esse termo num artigo em 1978.

Entretanto, depois de ter passado um tempo despercebido, esse campo de pesquisa voltou a ser

comentado com mais ênfase no de 1989, novamente e por Glotfelty, que pediu autorização para

se referir ao campo de pesquisa, e a partir daí esta área ganhou um espaço crucial no meio

crítico, e vem sendo aceito em vários espaços que buscam um olhar analítico atrelado à

literatura, e assim, sendo mais valorizado e acessado por pessoas que se interessam por esse

campo de investigação.

1 Estados Unidos da América, país sede da ASLE.

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Dentre os vários conceitos voltados para essa área, na perspectiva que adentra sobre a relação

da literatura e natureza, Cherryl Glotfelty (1996, p, xix) diz que a Ecocrítica, é uma “teoria

literária que examina as relações existentes entre os escritores, os textos e o mundo”. É também,

“uma modalidade de análise confessadamente política, como sugere a comparação com

feminismo e com o marxismo”. Logo, “os ecocríticos costumam vincular explicitamente suas

análises culturais a um projeto moral e político “verde”. Nesse aspecto, ela se relaciona de perto

com desdobramentos de orientação ambientalista na filosofia e na teoria política.”

(GARRARD, 2006, p.14)

Então se percebe que essa área de pesquisa não visa somente às relações de textos literários

com o mundo, mas também parte para o viés político, “uma vez que busca contribuir para a

conscientização ecológica, contrariando os preceitos capitalistas cíclicos: produção,

estimulação midiática, e da indústria de consumo”. (ALMEIDA, 2014, p.26)

Outros estudiosos também se engajaram em conceituar este termo, tal qual Greg Garrard (apud

GLOTFELTY, 2006, p.14) que conceitua a Ecocrítica da seguinte maneira:

O que é ecocrítica então? Dito em termos simples, a ecocrítica é o estudo da relação entre a literatura

e o ambiente físico. Assim como a crítica feminista examina a língua e a literatura de um ponto de

vista consciente dos gêneros, e a crítica marxista traz para sua interpretação dos textos uma

consciência dos modos de produção e das classes econômicas, a ecocrítica adota uma abordagem

dos estudos literários centrados na Terra.

Por meio esta afirmação, percebe-se o quanto a área tem sido de suma importância para o meio

literário e as questões que estão entrelaçadas com temáticas voltadas para o meio no qual o

homem é agente, e busca de maneira sucinta, um objetivo para questões que se encontram

oclusas na natureza, e procura “analisar a relação entre a literatura e o meio ambiente com uma

interface específica que são as relações que se estabelecem entre o homem e o meio ambiente,

apontando a esfera e o contexto da escrita e sua recepção” (CARVALHO, 2017, p.126), e desta

maneira, por meio deste viés se busca compreender com mais ênfase o contato entre o homem

e seu comportamento realizado no ambiente vivenciado.

É a partir dessas concepções que se pode analisar fatos ocorridos na natureza, que se encontram

de certa maneira oclusos, e em parceria com a literatura, esta área de pesquisa tem um forte

papel, pois essa parceria, visa dá ênfase a natureza despercebida e até mesmo que se encontra

em destruição por ações humanas.

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Glotfelty (1996, xix), uma importante pesquisadora da área, em uma publicação seminal de

1996, denominada como The Ecocriticism Reader, aborda que:

A ecocrítica tem como sujeito as interligações existentes entre a natureza e a cultura, nomeadamente

os artefactos culturais da língua e literatura. Como postura crítica, temum pé na literatura e outro na

terra; como discurso teórico, negoceia entre o humano e o não-humano2. (Tradução nossa)

Posto isso, a Ecocrítica oferece para o meio de pesquisa uma lacuna muito importante,

entrelaçada com a literatura. Pois é a partir de seus estudos que a sociedade irá buscar

embasamento para se estudar a realidade imbricada com o humano e imaginário, e assim as

“discussões, sob a visão da Ecocrítica, está relacionada à mudança de paradigma em relação a

uma nova ética acerca da Natureza e do Meio Ambiente” (CARVALHO, 2017, p 125 à 126).

Já para Garrard (2006, p.15), “o ecocrítico almeja rastrear as ideias e as representações

ambientalistas onde quer que elas apareçam, enxergar com mais clareza um debate que parece

vir ocorrendo, amiúde parcialmente encoberto. Essa linha de pensamento, entende-se que

embora esse viés de pesquisa seja um assunto bem exposto, ele não é abordado com clareza

diante da sociedade, e nessa perspectiva, a Ecocrítica junta-se com a literatura, que é um meio

eficaz, para dar ênfase a esses debates denunciadores relacionados a natureza.

Referindo-se ainda ao termo da Ecocrítica, Ermelinda Ferreira (2010), traz uma importante

reflexão acerca desta temática quando ela afirma que:

A Ecocrítica, ao propor uma reflexão sobre o meio ambiente e a natureza no amago dos estudos

literários, parece cumprir duas tarefas: a de reconhecer a decisiva importância política do discurso

comumente dito “estético” (e portanto, “inócuo”) na atualidade; e a de alertar para a ameaça de

extinção que também paira sobre ele, em seu inegável antidogmatismo, assim como sobre as coisas

e os seres aos quais ele dá voz. (p.11)

Deste modo, nota-se que este termo, como já ressaltado, tem ganhado grande relevância, diante

das palavras de Ferreira, implica dizer que é de suma importância para o meio acadêmico, pois

juntamente com obras literárias, esta área de pesquisa nos fornece material significativo para

conscientizar o homem sobre o papel que está exercendo no meio habitado.

Um viés literário ainda pouco estudado e que tem causado alvoroço entre os pesquisadores,

entre as abordagens citadas acerca do termo, se destacam algumas características que se tornam

2 Original: takes as its subject the interconnections between nature and culture, specifically the cultural artifacts

of language and literature. As a critical stance, it has one foot in literature and the other on the land; as a

theoretical discourse, it negotiates between the human and the nonhuman.

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cruciais, uma delas é que a “ecocrítica tem o compromisso de incitar uma consciência ecológica

através da literatura”(MOREIRA e WANDERLEY, 2011, p.59) pois sabe-se que um leitor

crítico irá questionar, o leitor poderá se apropriar de conhecimentos obtidos através dos debates

oferecidos por essa área, e assim poderá contribuir para uma conscientização voltada para a

relação de espaço e lugar.

Desse modo fica compreendido o quanto é importante à análise Ecocrítica concentrada em

textos Literários, e assim compreendendo a relação existente do homem com o seu meio, fica

propício à busca por um equilíbrio e a consciência de se pensar do leitor em relação às questões

ambientais que estão presentes na sociedade.

Buscando um entendimento mais amplo, acerca desta área, Roland Walter (2010), enfatiza que

esse viés se estende em três vertentes abordadas da seguinte maneira:

a) no sentido de uma metodologia sociológica interdisciplinar que examina a relação entre

personagens e a natureza, enfocando a consciência ecológica com relação a questões ecológicas

locais e globais; b) no sentido de uma metodologia cultural-antropológica interdisciplinar que

problematiza a alienação e reificação do ser humano enquanto resultado da dominação da natureza

dentro do projeto civilizatório moderno; c) no sentido de uma metodologia ética interdisciplinar,

cujo objetivo é a revisão do sistema de valores culturais antropocêntricos para uma co-existência

planetária inter-relacionada. (p.20)

Diante do exposto, constata-se que o que gira em torno destas abordagens é a natureza que,

enquanto entidade, liga as matérias e formam a essência cultural do homem diante do espaço

no qual ele habita e foi construído por ele. Embasando este pensamento, Walter (2010, p.19),

nos fala em seus ensaios sobre a Ecocrítica que:

“[...] a compreensão da natureza enquanto entidade físico- material e como entidade social

ativamente envolvida na dinâmica das construções culturais. Em cada cultura, a paisagem/natureza

tem um papel fundamental na constituição do imaginário cultural de um povo: ela é tanto natural

quanto cultural.”

Vale ressaltar que é a partir das vivências ocorridas no espaço, que se pode construir um laço

de afetividade, e mediante essa construção, nasce à vinculação homem e seu lugar na sociedade,

tal ligação entre o homem e o que se encontra ao seu redor, resulta numa construção de

similaridade.

E para maior compreensão Walter (2010, p.19) ressalta que:

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[...] a ecocrítica deve ser enraizada numa episteme cultural especifica, ou seja, numa ordem de coisas

e saberes que forneça a tribos/grupos/comunidades/sociedades com as categorias de fundação, o

esquema classificatório do mesmo e do outro, os processos mitopoéticos de nomeação original, a

língua e a variedade de discursos mediante as quais os aspectos do dia-a-dia se traduzem de maneira

sensata e ordenada.

Compreende-se então, que essa área de pesquisa, busca uma compreensão acerca do meio

ecológico no qual o homem habita, de tal maneira, que favoreça a sociedade como um todo.

Isso implica dizer que, a Ecocrítica, enaltece a natureza, e nos instiga a acreditar que o espaço

no qual habitamos, “não é só um elemento decorativo”, mas tem um papel crucial, no qual nos

leva a uma construção pessoal e nos torna como elemento que constrói sua identidade pessoal

e que fica enraizada pelo modo de agir e de pensar, e tudo isso só é capaz a partir do contato

que o homem tem e constrói por intermédio de sua vivência no lugar no qual vive.

Garrard (2006, p.246), afirma que “a ecocrítica tem presumido que sua tarefa é superar o

antropocentrismo, assim como o feminismo procura superar o androcentrismo”. Em outras

palavras, percebe-se mais uma vez, o quão essa temática encontra-se intrinsicamente voltada

para a natureza, ela procura de algum modo, fazer com que tenhamos consciência de sua

importância, e voltemos nossa visão para este campo, que de maneira particularizada, se firma

com o meio literato, e diligencia soluções para problemáticas envolvendo o homem e a natureza.

Com isso, Garrard (2006, p. 246), nos instiga a acreditar que o “argumento é favorável e

sustente as afirmações morais sobre o valor do mundo natural, que por sua vez, afetará nossas

atitudes e nosso comportamento para com a natureza”.

Posto isso, pode-se observar que o papel da Ecocrítica enquanto meio de pesquisa, junto da

Literatura, proporciona material para se buscar resposta a respeito das questões que percorrem

e assolam a humanidade contemporânea, sobre assuntos voltados para o meio ambiente e que

se encontram de certa forma oclusos, e foi pensando nessa oclusão que a Ecocrítica se uni ao

viés literário para se chegar a um questionamento final e produtivo e que chame a atenção da

sociedade por meio dos textos que se encontram na literatura em todo o mundo.

No próximo item, será feita uma abordagem sobre as sentenças, espaço e lugar, para que

possamos compreender cada um diante de suas particularidades, fazendo assim um contraponto

exploratório através de pensamentos de alguns teóricos que tem uma visão voltada para a área

de pesquisa aqui mencionada.

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3 ESPAÇO E LUGAR

Para que se possa compreender a noção de espaço e lugar, este tópico, irá se aprofundar nas

diversas teorias de alguns pensadores críticos acerca de tais vocábulos, que serão substanciais

para o embasamento do trabalho elaborado.

Sabemos que a existência e sobrevivência do homem no espaço, é muito relevante nos estudos

da atualidade, a relação do homem com o meio é de todo modo dada pela técnica, “que são um

conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e ao

mesmo tempo, cria o espaço, [...] O espaço é a sociedade” (SANTOS, 2002, p.29), sociedade

essa que é constituída por um conjunto de pessoas que formam seus meios de vida.

À frente desse panorama, Santos (1996, p.68) salienta que o “espaço não pode ser estudado

como se os objetos materiais que formam a paisagem tivessem uma vida própria, podendo assim

explicar-se por si mesmos. Sem dúvida, as formas são importantes”. Partindo desse pressuposto

fica percebida a importância das coisas e seres existentes no espaço, para assim

compreendermos sua definição.

Diante de tal complexidade, não é difícil de encontrar inúmeros conceitos para esse termo, e

em meios a tantos estudiosos engajados na compreensão do que seria a definição exata de

espaço, Santos (2002, p.46), diz que é:

[...] algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana. O espaço seria o

conjunto indissociável de sistemas de objetos, naturais ou fabricados, e de sistemas de ações,

deliberadas ou não. A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando

o todo, tanto formal quanto substancialmente.

A partir do enxerto acima, o espaço mencionado seria aquele no qual ficam envolvidas todas as

coisas existentes, sejam elas materiais ou não. Ainda segundo Lefébvre, "o espaço é o locus da

reprodução das relações sociais de produção." (1976, p. 25). Espaço esse, no qual se produz e

se concebe as relações entre os humanos e as coisas materiais e também os laços afetivos que

são importantes para se estabelecer a construção identidade pessoal, nesse mesmo viés Soja

((1983, p.38) afirma que:

O espaço social e político tornou-se cada vez mais reconhecido como uma força material (e não

material, isto é, ideológico) influente, ordenando e reordenando as próprias relações sociais

produtivas. Longe de ser um reflexo passivo, incidental, um “espelho”, a espacialidade tornou-se

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ativa como uma estrutura concreta e repositório de contradições e conflitos, um campo de luta e

estratégia política. As relações sociais e espaciais, a divisão social e espacial do trabalho, a práxis

social e espacial estão deste modo interativamente engajadas e concatenadas, ao invés de reduzidas

a simples gênese-reflexo, causa inicial e efeito subsequente.

Definições variadas acerca da palavra espaço, cada uma com uma linha de entendimento

diferente, que nos possibilita uma linha variada de interpretações, conforme nos aponta Souza

(1997, p.86):

[...] o espaço é a base de sobrevivência, fonte de poder e, por via da conseqüência, alvo de cobiça e

desejo de apropriação e controle. A isso se deve adicionar a importância não apenas “instrumental”,

militar ou econômica (...) de um espaço, mas também a sua relevância cultural para um grupo.

São descrições de caráter social, e até mesmo políticos, espaços habitados e vividos por

diferentes classes sociais, religiões e culturas diferenciadas, que acabam gerando uma ideia de

que a dominação do espaço é de importante fonte para o poder exercido na vida e no cotidiano

das pessoas. Massey (2008, p. 185), diz que é preciso não especificar diretamente o local nem

o global, pois todos os espaços são carregados de conhecimentos históricos que possuem

influências históricas e externas, que irão servir na construção de cada indivíduo.

Na linha de pensamento de Relph (1976, p.8) "O espaço é amorfo e intangível e não uma

entidade que possa ser diretamente descrita e analisada”. Nesse sentido o autor informa que o

espaço, não pode ser analisado por uma vertente única, e que podemos caracterizá-lo de várias

maneiras. Nesse seguimento, vale ressaltar que o espaço não tem uma só caracterização, ele

muda conforme o tempo.

Buscando uma compreensão mais abrangente, do que seria lugar, o trabalho se firmará pelo

viés de pensamento de alguns teóricos que discutem sobre o assunto, visto que assim como as

infindas definições sobre espaço, as várias interpretações acerca de lugar também não são

diferentes. Para o percussor da Geografia Humanística, Tuan (1983, p.83), que leva em

consideração de que lugar faz parte das experiências humana, diz que o “espaço nos é

inteiramente familiar, e torna-se lugar”.

Levando em consideração outros conceitos, de qual seria a definição de lugar, Staniski,

Kundlatsch, Pirehowski (2014, p.6), que:

O lugar é onde estão as referências pessoais e o sistema de valores que direcionam as diferentes

formas de perceber e constituir a paisagem e o espaço geográfico. Trata-se na realidade de

espacialidades carregadas de laços afetivos com os quais desenvolvemos ao longo de nossas vidas

na convivência com o lugar e com os outros.

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Uma colocação admissível, pois a partir daí fica entendido que o lugar é construído mediante

os laços que são construídos pela sociedade, cada um constrói seu lugar de maneira

diferenciada, buscando laços afetivos que possam colaborar com a sensação de pertencimento,

sendo assim, Buttimer (1985, p. 178) afirma que, “cada pessoa está rodeada por camadas

concêntricas de espaço vivido, da sala para o lar, para a vizinhança, cidade, região e para a

nação.” Ou seja, cada indivíduo, busca viver à sua maneira, mas, por fim tem os mesmos

costumes dentro do espaço.

Averiguando o pensamento de Buttimer (1985, p.228) ele sugere que “o lugar é o somatório

das dimensões simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas”, ou seja, a partir da

definição de lugar, se pode ser estudada as formas de vida existente permeadas em determinado

local. A cerca disso, Leite (1988), afirma que:

[...] essa relação de afetividade que os indivíduos desenvolvem com o lugar só ocorre em virtude de

estes só se voltarem para ele munidos de interesses predeterminados, ou melhor, dotados de uma

intencionalidade. Como afirma Relph (1979), os lugares só adquirem identidade e significado

através da intenção humana e da relação existente entre aquelas intenções e os atributos objetivos

do lugar, ou seja, o cenário físico e as atividades ali desenvolvidas (p.10).

Se aprofundando nessa citação, a identidade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas de uma

determinada comunidade, de espaço ou lugar, só se dar por meios de suas ações e relações que

foram produzidas, a maneira como o homem se comporta no seu reduto é que vai servir de base

para sua percepção.

Para mais entendimento acerca de lugar, Bartoly (2011, p.73), ressalta que o “lugar é produzido

a partir da afetividade, da sensação de pertencimento, e do modo como nos adaptamos e nos

apropriamos das realidades globais que se introduzem no local, e que dão sentido à própria

distribuição objetiva das coisas e das pessoas nessa porção do espaço geográfico.”

Nesse seguimento, para podermos entender com objetividade, “o homem e toda sua

complexidade, suas ações e atitudes, assim como questões referentes ao cotidiano” os estudos

formulados pela Geografia Humanista de Tuan, irá nos dar base para “avaliar as pessoas e os

valores e atitudes acometidos diante de determinadas situações que ocorrem no cotidiano”.

(SANTOS, 1999, p.2), e isso só é possível a partir dessa construção que o homem formula no

decorrer de sua vivência.

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A Geografia Humanista, denominada mais que uma ciência, de acordo com Santos (p.2) “se

preocupa em buscar um maior sentimento do mundo humano, estudando as relações entre as

pessoas e a natureza, seus sentimentos e ideias sobre o espaço e lugar.” Nesse direcionamento,

se busca uma análise aprofundada da relação que envolve o homem e seu local, que o mesmo,

com o tempo, diante de sua exposição, deixará rastro para que se possa entender com amplitude

a construção do eu, que só será revelado, por meio de suas ações no local habitado.

Um termo abordado por Tuan é o Topocídio, que resulta na destruição total do espaço. Os

indivíduos que agem sobre o espaço acabam destruindo, e esse vínculo destruidor, muitas vezes

é acometido sem a percepção do agente.

O neologismo Topocídio, segundo Sturza (2008, p. 1), “é implantado suavemente sem que a

população o perceba, ou pode ocorrer de forma rápida, quando as pessoas têm o cotidiano e o

modo de vida interrompida”. Esse sentimento pode ser visto mediante vários aspectos, em

várias situações do cotidiano.

Em vista disso, fica entendido a partir das considerações vindas da Geografia Humanista, que

no lugar/espaço, existe “tanto o apego quanto o horror, no que tange aos trinômios seres

humanos-lugar-natureza”. (FERREIRA DA SILVA, ASEVEDO COSTA, BARBOSA DE

MOURA, 2014.p 254). Esses sentimentos são de mera importância, pois foi a partir deles junto

do estudo humanista, que se pode chegar a um entendimento final do que diz respeito ao apego

e também a desvalorização do lugar.

4 OS ESPAÇOS TOPOCÍDICOS EM “OS SERTÕES” DE EUCLIDES DA CUNHA

Neste último tópico, será abordada a partir de fragmentos da obra, a relação do Topocídio,

que resulta na destruição total ou deliberada do espaço. Situada na terceira parte da obra, no

qual Euclides descreveu a Guerra de Canudos, acontece o massacre que culminou na dizimação

de milhares de sertanejos, que juntos as tropas, no embate acabaram sendo mortos. Das quatros

expedições ocorridas, na última, o admirável conselheiro “morrera a 22 de setembro, de uma

disenteria, uma caminheira...”. (CUNHA, 2010, p. 500), episódio que narra à morte de

Conselheiro, o líder dos jagunços.

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Os jagunços e sertanejos que ainda restaram, mesmo após a morte de seu líder, deram

continuidade a sangrenta luta, e “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História,

resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo,

caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os últimos defensores, que todos morreram.”

(CUNHA, 2010, p. 507).

A destruição acometida e denominada pelo Topocídio, acarreta no desaparecimento do meio

ambiente, ou seja, tudo que se refere ao espaço no qual o homem vive. Com isso, acaba

destruindo os valores culturais do homem, que se encontram enraizados em seu espaço. Na

contemporaneidade, vários casos topocídicos foram fatores de destruição do espaço, entre eles,

se destaca o desastre ocorrido na cidade de Mariana (MG) no ano de 2015, que devido ao

rompimento desastroso de uma barragem, várias pessoas perderam suas moradias, a fauna e a

flora da região foram comprometidas.

Falar de Topocídio, a partir da obra euclidiana, traz à tona como o homem é destruidor de seu

próprio espaço. Em alguns trechos da obra, pode-se observar como o sentimento topocídico é

eminente, aqui, esse sentimento é visto pela ótica do visitante, no caso, o jornalista Euclides da

cunha, quando o próprio se depara com a vegetação e diz que ela é “agonizante, doente e

informe, exausta, num espasmo doloroso”. (CUNHA, 2010, p. 37). Então, percebe-se aí o

quanto é fatigante para o jornalista se deparar com um lugar no qual a sua primeira impressão,

causa horror, características do Topocídio.

Essa relação de horror ao espaço se povoa no decorrer da obra euclidiana. O escritor se utiliza

de vários adjetivos para caracterizar a paisagem de medo vista sob sua visão. O jornalista se

refere à flora como “agressiva”, “agonizante”, “sanguinolenta”, “tolhiça” entre outros adjetivos

peculiares tais como descrito na citação abaixo:

[...] sem variantes no aspecto entristecedor, a mesma natureza bárbara. Morros enterroados, formas

evanescentes de montanhas roídas pelos aguaceiros fortes e repentinos, [...] plainos desnudos e

chatos feitos llanos desmedidos; e, por toda a parte, mal reagindo à atrofia no fundo das baixadas

úmidas, uma vegetação agonizante e raquítica, espalhada num baralhamento de ramos retorcidos —

reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas[...] (CUNHA, 2010, p. 398)

Esbouçando-se sobre o termo topocídico, a parte da obra euclidiana que vai dá ênfase, é

justamente no episódio que narra a luta entre os sertanejos e os soldados republicanos. A luta,

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como já foi explicitada anteriormente, se deu a partir da resistência dos sertanejos por não

aceitarem ordens vindas dos republicanos.

A destruição do espaço baiano, acontecido na narrativa jornalística, se deu de maneira vagarosa,

o vilarejo povoado pelos seguidores de Conselheiro, segundo Euclides da Cunha, era composto

de “casas mal feitas e tijupares pobres, de aspecto deprimido e tristonho”. (2010, p.193), se

apropriando das palavras do escritor, e de suas impressões, se percebe o sentimento de antipatia

ao lugar.

Canudos, de acordo com o jornalista, era “compacta em roda da praça [...] se ampliava, isoladas,

distantes, como guaritas dispersas — sem que uma parede branca ou telhado encaliçado

quebrasse a monotonia daquele conjunto assombroso de cinco mil casebres” (CUNHA, 2010.

p.272). Nessa citação, fica esclarecido como era o arraial de Canudos antes da destruição, que

gerou o extermínio de tal espaço. Era um vilarejo simples, construído pelas próprias mãos dos

habitantes, fato que reforça ainda mais a afeição dos moradores para com seu lugar, sendo

moldado pelos próprios moradores, cada tijolo segue carregados de significados e símbolos.

No desenrolar da luta, o espaço retratado na obra, começa a ser destruído, “[...] às primeiras

casas marginais ao rio. Tomaram-nas e incendiaram-nas; enquanto os que as guarneciam

fugiam, adiante, em busca de outros abrigos” (CUNHA, 2010, p.278). Nessa linha de

pensamento, se encaixa a reflexão abordada por Tuan no que concerne em relação à paisagem

de medo. Na citação acima, fica esclarecido que no início do embate, a paisagem começa a ser

destruída, e isso reflete no modo de agir do homem que povoa seu espaço modificado, e leva o

homem a se refugiar em outro espaço em busca de um abrigo que lhe der segurança, e assim a

Ecocrítica se junto ao campo da Geografia Humanista para se aprofundar na atuação dos

sentimentos dos sujeitos que agem em um determinado espaço.

O caráter topocídico prevalece até o fim da obra euclidiana, “Não se via o arraial. Alguns

braseiros sem chamas, de madeiras ardendo sob o barro das paredes” (CUNHA, 2010, p.285).

Nesse fragmento da narrativa, as pequenas casas que faziam parte do cenário são destruídas

pelas chamas do fogo. Nessa conjuntura, parte dos valores culturais, costumes e até objetos

pessoais, carregados de traços simbólicos, foram destruídos juntos com os casebres.

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Essa destruição acontecida na obra traz à tona a percepção e as atitudes do homem acerca do

meio no qual ele se encontra posicionado, e culmina no viés de não lugar, e assim, “os homens

ao agredirem a natureza estão agredindo a si mesmo já que fazem parte dela” (CARVALHO,

2018, p.4). A destruição do arraial de Canudos acontece por dois fatores: o primeiro é a luta

dos sertanejos que queriam defender seu espaço, e travam uma guerra com os republicanos, e

nesse enclave, os sertanejos, sem perceberem, acabam devastando seu lugar, e junto dessa

devastação sua identidade e costumes, também se perdem.

Logo se percebe, que uma parte da aniquilação do espaço na obra “Os sertões” acontece como

uma forma de defesa por parte dos sertanejos, e por outro lado, ocorre o embate por parte dos

republicanos por interesses pessoais do governo, que tinham as atitudes de Conselheiro e dos

sertanejos, como atos de desordem, e isso gerariam problemas para os republicanos. E devido

a isso, o governo não mede esforços, e finda num ambiente degradado, devido aos seus

interesses voltados para o meio político. O arraial povoado pelo o homem sertanejo aos poucos:

[...] em vários trechos, ainda não descolmadas, mas vazias, porque as deixara o vaqueiro que a guerra

espavorira ou o fanático que indireitara para Canudos. Eram logo tumultuariamente invadidas, ao

tempo que as deixavam outros hóspedes surpreendidos: raposas ariscas e medrosas, saltando das

janelas e esvãos da cobertura — olhos em chamas e pelo arrepiado — e atufando-se, aos pinchos,

nas macegas; ou centenares de morcegos, esvoaçando desequilibradamente dos cômoros escuros,

tontos, rechiantes. (CUNHA, 2010, p. 398 a 399)

Com a destruição do espaço, não só homem é afetado, como pode ser observado no relato acima,

a devastação acometida gera um desequilíbrio total, sendo afetados os animais e natureza, além

do homem como já foi dito.

Mediante isso, é notório o quanto as relações do homem no seu espaço caminham entrelaçadas,

esse envolvimento do homem com o seu lugar é de suma importância para a construção do eu.

Espaço e lugar são indissociáveis, um não pode ser visto sem a complementação do outro, e

nesse rumo, o homem de certa maneira acaba se tornando parte indispensável para os

questionamentos da relação do próprio com o meio no qual cria laços.

A partir dos estudos feitos da relação entre homem e espaço perante a obra “Os sertões”, se

pode observar que é uma convivência conturbada, gerada pelo viés topocídico e acaba

assumindo um papel crítico diante da teoria investigativa vista como a Ecocrítica, pois, ela

busca resposta para as ações do homem no ambiente, tentando amenizar os impactos

fecundados na terra.

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A destruição retratada na obra euclidiana é acontecida de forma, que os próprios personagens,

os sertanejos, não a percebem. Embora o homem sertanejo, representado na obra euclidiana não

seja o principal agente da destruição, pode-se observar que a destruição ocorrida no Arraial de

Canudos, foi reproduzida a partir dos soldados republicanos e por interesses pessoais.

O espaço:

[...] sertão principiava a mostrar um facies melancólico de deserto. Sugadas dos sóis as árvores

dobravam-se murchas, despindo-se dia a dia das folhas e das flores; e, alastrando-se pelo solo, os

restolhos pardo-escuros das gramíneas murchas refletiam já a ação latente do incêndio surdo das

secas. (2010, p.396),

Perante isso, podemos observar que o homem de “Os sertões” acabou destruindo seu próprio

meio, e isso tentando defender, nessa obliquidade, se constata que as duas teorias humanista, se

entrelaçam nesse ponto, pois, o sentimento topocídico e o topofílico se cruzam, e há a

transmutação de um no outro.

Posto isso, os personagens de “Os sertões,” no caso os sertanejos, personagens presentes na

obra literária, assim como tantos outros homens presentes na história da humanidade, não se

preocuparam em poupar o espaço:

As granadas explodindo entre os restolhos secos do matagal incendiavam-nos; ouviam-se lá dentro,

de envolta com o crepitar de queimadas sem labaredas, extintas nos brilhos da manhã claríssima,

brados de cólera e de dor; e tontos de fumo, saltando dos esconderijos em chamas, rompentes à

ourela da caatinga. [...] A terra despertava triste. As aves tinham abandonado, espavoridas, aqueles

ares varridos, havia um mês, de balas. A manhã surgia rutilante e muda. Desvendava-se, a pouco e

pouco, a região silenciosa e deserta: cômoros despidos ou chapadas breves. (CUNHA, 2010, p. 292

a 378)

Os espaços que guardam em seu interim resquícios de memórias que são construídas ao longo

do tempo, pouco a pouco foram destruídos, e os laços de afetividade que são construídos

diretamente e indiretamente, ações e lembranças que são processados e constrói a cultura e

identidade de cada indivíduo de maneira diferente, são dizimados e concernem num caráter

topocídico.

A ação do homem sobre o espaço, gerou uma problemática na qual ocasionou o desprezo pelo

o que não é considerada obra humana, ou seja, tudo que se encontra relacionado ao meio

ambiente é palco de interferência elaborada pelo o homem. O arraial foi totalmente dizimado a

partir de uma guerra sangrenta que ocasionou na destruição do espaço, da natureza, dos animais

e tudo que havia ao seu redor, na obra de Cunha, o mesmo retrata no fim, que:

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Aqui, ali, largas nódoas negras na caatinga, rastros escurentos dos incêndios, em que repontavam

esteios e cumeeiras dos casebres combustos, tracejando por aqueles ermos, numa urdidura de ruínas,

o cenário terrivelmente estúpido da guerra. [...] O combate fora cruento e estéril. (CUNHA, 2010,

p.436 a 499)

Os sertanejos contra a sua vontade, acabaram destruindo o espaço tentando defendê-lo. E isso

resultou no desaparecimento de vários elementos que representavam o homem sertanejo. O

efeito topocídico “[...] tem como principal vítima, além de significativas parcelas da população,

o meio ambiente, com danos por vezes irreversíveis aos lugares, espaços ou paisagens”

(SILVA; OLIVEIRA; MASANO, 2011, p. 6). Sendo assim, é visto a partir da citação, que se

trata do homem sobre sua relação de destruição do espaço sobre o qual o mesmo necessita para

sua sobrevivência.

E assim, todo o espaço pertencente ao homem sertanejo, na obra euclidiana foi devastado,

fomentando numa extinção de seres e valores. O escritor Euclides da Cunha termina sua obra

resumindo a degradação do Arraial:

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo.

Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando

caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens

feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados. [...] Caiu o arraial a

5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

(2010, p.507)

É evidente que o caráter topocídico é presente no fim da obra euclidiana. No enxerto acima, é

notório o quanto o homem é destruidor, é visto que todo o arraial foi devastado, pessoas,

animais, o meio ambiente e tudo que existia acabou sendo assolado pelo o próprio homem. E

assim, o estudo humanista em consonância com a Ecocrítica assume um papel ativista, pois tem

a função de atuar contra as destruições voltadas para o espaço.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atuação do homem no seu espaço acaba gerando uma transformação que acarreta na sua

modificação, pois, como já explicitado nesse trabalho, o homem é um ser dependente do seu

meio. Essa destruição acarreta numa série de desastres, o meio ambiente é atingido, os animais

e até mesmo o próprio homem acaba se dizimando, porém, o próprio não consegue enxergar o

que se passa ao seu redor.

Por meio dessa análise, é possível perceber que o homem devido às inúmeras ações degradáveis

e impensáveis acerca do seu espaço, leva a entender que o homem tem em si a ideia do

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antropocentrismo, se coloca como o ser que é o centro do universo, levando a negar sua

dependência em relação ao meio e se colocando como um ser que tem direito de explorar seu

meio da maneira que lhe convir e sem pensar nas consequências que lhe possa acarretar.

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