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A representação da cozinha sertaneja no urbano de Fortaleza Mirtes Rose Menezes da Conceição 1 Resumo: O presente trabalho é resultado de breves reflexões advindas de experiências empíricas e consequentemente da observação participante que possui suas primícias metodológicas na etnogeografia. Reflexões estas que surgiram de análises e contribuições para a tese de doutoramento (em andamento). Para estas reflexões e observações (participantes), onde foi evocada uma multiplicidade de saberes (geográficos, sociológicos, antropológicos e históricos e até psicológicos) para que atingissem a proposta de revelar um resultado eficiente aos objetivos da temática. A priori, foi analisado um restaurante (Maria Chica), seu cardápio, a ambientação e toda a representação que transpõe o imaginário do consumidor ao ambiente sertanejo, incluindo reprodução de residências vernaculares e a disposição dos pratos em vasto “buffet” (contendo, inclusive doces), além de objetos de outrora e cachaças. Nas nossas análises, estão dispostas as categorias território, região, representação, cozinha regional, memória, imaginário e identidade. A importância do tema é explicada quando observamos que a forma como os sujeitos se alimentam e que esta diz muito sobre os sistemas culturais, onde estes estão inseridos, dessa forma, a cozinha nos cria um elo, principalmente quando transforma a natureza em alimentos, ou seja, pelo modo de fazer (preparar) em cultura, o que depende dos modos de vida. Pode-se afirmar ou negar quem somos e até mesmo atenuar as distinções que nos separaria de outrem, gerando assim uma determinada singularidade. O restaurante em questão fica em uma área de estratégia locacional, vários estabelecimentos de ensino superior, escritórios e uma diversificada malha de empreendimentos são encontrados nas adjacências, vale ressaltar que muitos estudantes, assim como muitos trabalhadores são oriundos da região sertaneja e guardam consigo as suas memórias. Em uma tentativa de amenizar essa saudade e na perspectiva de objetificá-la e atribuindo lhe valor comercial, o estabelecimento apropria-se de um cenário e de sabores específicos, ressignificando e comercializando seus simulacros, evocando as memórias individuais e coletivas, sendo essas mergulhadas de sentidos, cheiros, sabores e até mesmo silêncios. Nessa perspectiva, compreendemos que os alimentos e o conjunto destes (cozinha regional) no nosso caso, sertaneja, guardam consigo, apesar da dinâmica que condiz às práticas e as relações sociais, a posição de patrimônio cultural, sendo responsável muitas vezes pela perpetuação, acumulação e reprodução de um legado gustativo a apropriação e na contemporaneidade a gourmertização e reprodução quase que teatral tanto de ambientes como das lembranças dos sujeitos/consumidores, como é o caso do Maria Chica na cidade de Fortaleza. Consideramos, ainda que o presente trabalho seja uma tentativa de ampliar as discussões acerca das representações do território sertanejo e todo o arcabouço cultural que o envolve e o caracteriza, portanto, se fazendo assim necessárias análises deste tipo na ciência geográfica, a fim de trazer-lhe outras perspectivas e contribuições. Palavras-chaves: representação, cozinha sertaneja, Fortaleza. Abstract: The present work is the result of brief reflections from empirical experiments and consequently of participant observation that has its methodological first fruits in ethnogeography. These reflections arose from analyzes and contributions to the doctoral thesis (in progress). For these reflections and observations (participants), where a multiplicity of knowledge (geographic, sociological, anthropological and historical and even psychological) was evoked to reach the proposal of revealing an efficient result to the objectives of the subject. A priori, was analyzed a restaurant (Maria Chica), its menu, the setting and all the representation that transposes the consumer's imagination to the sertanejo environment, including reproduction of vernacular residences and the arrangement of the dishes in vast 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. [email protected].

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A representação da cozinha sertaneja no urbano de Fortaleza

Mirtes Rose Menezes da Conceição1

Resumo: O presente trabalho é resultado de breves reflexões advindas de experiências empíricas e consequentemente da observação participante que possui suas primícias metodológicas na etnogeografia. Reflexões estas que surgiram de análises e contribuições para a tese de doutoramento (em andamento). Para estas reflexões e observações (participantes), onde foi evocada uma multiplicidade de saberes (geográficos, sociológicos, antropológicos e históricos e até psicológicos) para que atingissem a proposta de revelar um resultado eficiente aos objetivos da temática. A priori, foi analisado um restaurante (Maria Chica), seu cardápio, a ambientação e toda a representação que transpõe o imaginário do consumidor ao ambiente sertanejo, incluindo reprodução de residências vernaculares e a disposição dos pratos em vasto “buffet” (contendo, inclusive doces), além de objetos de outrora e cachaças. Nas nossas análises, estão dispostas as categorias território, região, representação, cozinha regional, memória, imaginário e identidade. A importância do tema é explicada quando observamos que a forma como os sujeitos se alimentam e que esta diz muito sobre os sistemas culturais, onde estes estão inseridos, dessa forma, a cozinha nos cria um elo, principalmente quando transforma a natureza em alimentos, ou seja, pelo modo de fazer (preparar) em cultura, o que depende dos modos de vida. Pode-se afirmar ou negar quem somos e até mesmo atenuar as distinções que nos separaria de outrem, gerando assim uma determinada singularidade. O restaurante em questão fica em uma área de estratégia locacional, vários estabelecimentos de ensino superior, escritórios e uma diversificada malha de empreendimentos são encontrados nas adjacências, vale ressaltar que muitos estudantes, assim como muitos trabalhadores são oriundos da região sertaneja e guardam consigo as suas memórias. Em uma tentativa de amenizar essa saudade e na perspectiva de objetificá-la e atribuindo lhe valor comercial, o estabelecimento apropria-se de um cenário e de sabores específicos, ressignificando e comercializando seus simulacros, evocando as memórias individuais e coletivas, sendo essas mergulhadas de sentidos, cheiros, sabores e até mesmo silêncios. Nessa perspectiva, compreendemos que os alimentos e o conjunto destes (cozinha regional) no nosso caso, sertaneja, guardam consigo, apesar da dinâmica que condiz às práticas e as relações sociais, a posição de patrimônio cultural, sendo responsável muitas vezes pela perpetuação, acumulação e reprodução de um legado gustativo a apropriação e na contemporaneidade a gourmertização e reprodução quase que teatral tanto de ambientes como das lembranças dos sujeitos/consumidores, como é o caso do Maria Chica na cidade de Fortaleza. Consideramos, ainda que o presente trabalho seja uma tentativa de ampliar as discussões acerca das representações do território sertanejo e todo o arcabouço cultural que o envolve e o caracteriza, portanto, se fazendo assim necessárias análises deste tipo na ciência geográfica, a fim de trazer-lhe outras perspectivas e contribuições.

Palavras-chaves: representação, cozinha sertaneja, Fortaleza.

Abstract: The present work is the result of brief reflections from empirical experiments and consequently of participant observation that has its methodological first fruits in ethnogeography. These reflections arose from analyzes and contributions to the doctoral thesis (in progress). For these reflections and observations (participants), where a multiplicity of knowledge (geographic, sociological, anthropological and historical and even psychological) was evoked to reach the proposal of revealing an efficient result to the objectives of the subject. A priori, was analyzed a restaurant (Maria Chica), its menu, the setting and all the representation that transposes the consumer's imagination to the sertanejo environment, including reproduction of vernacular residences and the arrangement of the dishes in vast

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. [email protected].

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"buffet" (including, sweets), as well as objects from yesteryear and cachaças. In our analyzes, the categories are territory, region, representation, regional cuisine, memory, imagery and identity. The importance of the theme is explained when we observe that the way the subjects feed themselves and that it says a lot about the cultural systems where they are inserted, in this way, the kitchen creates us a link, especially when it transforms nature into food, or by the way of doing (preparing) in culture, which depends on the ways of life. One can affirm or deny who we are and even attenuate the distinctions that would separate us from others, thus generating a particular singularity. The restaurant in question is located in a strategic location area, several higher education establishments, offices and a diversified network of enterprises are found in the environs, it is worth mentioning that many students, as well as many workers come from the country side and keep their memoirs. In an attempt to soften this nostalgia and in the perspective of objectifying it and attributing it commercial value, the establishment appropriates a scenario and specific flavors, resignifying and commercializing its simulacra, evoking the individual and collective memories, these being immersed in senses, smells, tastes and even silences. In this perspective, we understand that the food and the group of these (regional cuisine) in our case, sertaneja, retain, despite the dynamics that corresponds to practices and social relations, the position of cultural patrimony, being often responsible for the perpetuation, accumulation and reproduction of a taste legacy to appropriation and contemporaneously the gourmerization and almost theatrical reproduction of environments as well as the memories of subjects / consumers, as is the case of Maria Chica in the city of Fortaleza. Although the present work is an attempt to broaden the discussions about the representations of the country's territory and the whole cultural framework that surrounds it and characterizes it, thus making such analyzes necessary in geographic science, other perspectives and contributions.

Keywords: representation, sertaneja kitchen, Fortaleza.

Introdução

As ideias desse trabalho nascem como um dos afluentes de uma tese

em construção. A partir de reflexões e observações (participantes), onde foi

evocada uma multiplicidade de saberes (geográficos, sociológicos,

antropológicos e históricos e até psicológicos) para que atingissem a proposta

de revelar um resultado eficiente aos objetivos da temática. A priori, foi

analisado um restaurante (Maria Chica), seu cardápio, a ambientação e toda a

representação que transpõe o imaginário do consumidor ao ambiente

sertanejo, incluindo reprodução de residências vernaculares e a disposição dos

pratos em vasto “buffet” (contendo, inclusive doces), além de objetos de outrora

e cachaças.

A relevância do tema é explicada quando observamos que a forma como

os sujeitos se alimentam e que esta diz muito sobre os sistemas culturais, onde

estes estão inseridos, dessa forma, a cozinha nos cria um elo, principalmente

quando transforma a natureza em alimentos, ou seja, pelo modo de fazer

(preparar) em cultura, o que depende dos modos de vida. Pode-se afirmar ou

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negar quem somos e até mesmo atenuar as distinções que nos separaria de

outrem, gerando assim uma determinada singularidade.

Para este trabalho, a investigação está respaldada na exibição e

apropriação, além da reprodução de bens simbólica (modos de fazer, modos

de vida) como produto de consumo (mercadoria) através de simulacros.

Compreendendo que a criação cenográfica do lugar, inclusive, com objetos

antigos ligados a uma ruralidade que se expressa como elo entre o consumidor

e o sertão, faz parte da criação de uma atmosfera indutiva que através da

imaginação e da memória conduz que já viveu tal experiência a retornar e

quem nunca assim o fez passe mesmo que de forma efêmera a dada situação.

Iniciaremos nossas reflexões pelos aportes teóricos, presentes nesse

trabalho. Primeiro pelas representações sociais, posteriormente pelas

categorias de analise sobre região, sertão e finalmente questões ligadas à

culinária regional.

Representação

Surgidas na década de 1960, a Teoria das Representações Sociais,

encontrou nas reflexões de Emile Durkheim seu espaço fundante, mas sua

ampla divulgação apoiou-se nas ideias de Serge Moscovici e Denise Jodelet na

década de 1980. Pelo cunho interdisciplinar que compõe tais representações,

são utilizadas em diversos campos científicos e consequentemente em

diversas pesquisas, não ficando restritas ao campo das ciências sociais como a

Sociologia ou a Psicologia Social. Nas palavras de Jodelet:

"as representações sociais são fenômenos complexos sempre ativos e agindo na vida social. Em sua riqueza fenomênica assinalam-se elementos diversos, os quais são às vezes estudados de maneira isolada: elementos informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões, imagens etc.. Mas esses elementos são sempre organizados como uma espécie de saber que diz alguma coisa sobre o estado da realidade. E é esta totalidade significante que, relacionada à ação, encontra-se no centro da investigação científica". (1993, p. 34).

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Em si tratando de estudos que têm como objeto processos que levam a

construção de identidades ou buscam suscitar essas identidades, as

representações são importantes, pois de acordo com Woodward (2011, p.17-

18) estas, "incluem as práticas de significação e os sistemas simbólicos por

meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como

sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que

damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos".

Na interpretação e palavras de Rosa Cabecinhas:

"os sistemas de interpretação, as representações sociais regulam a nossa relação com os outros e orientam nosso comportamento. As representações intervêm ainda em processos tão variados como a difusão e assimilação de conhecimento, a construção de identidades pessoais e sociais". (2004, p. 216)

Para Jodelet, que não existe representação precisa de um sentido e que

sem um objeto, este seria imprescindível para que a representação exista.

"De fato, representar ou se representar corresponde a um ato de pensamento pelo qual o sujeito relaciona-se com um objeto. Este pode ser tanto uma pessoa, uma coisa, um evento material, psíquico ou social, um fenômeno natural, uma ideia, uma teoria etc.; pode ser tanto real quanto imaginário ou mítico, mas sempre requerer um objeto. Não há representação sem objeto". (1993, p. 35).

Embora, o saibamos que é um simulacro do “espaço tradicional”

construído para ser consumido, percebemos que as representações se

enquadram no objeto de estudo deste trabalho – o restaurante - pois existe

uma relação entre os seus produtos e a exposição de disposição dos objetos e

os seu público consumidor, estes elaboram as suas representações de acordo

com o que viram e/ou com as suas experiências que são retomas a partir da

memória. Neste momento o consumidor pode se identificar (ambientar) ou

"ignorar". O fato acontece, de acordo com a autora, por quê:

De um lado, a representação mental, como a representação pictórica, teatral ou política, dá uma visão desse objeto, toma-lhe o lugar, está em seu lugar; ela o torna presente quando aquele está distante ou ausente. A representação é, pois, a representante mental do objeto que reconstitui simbolicamente. De outro lado, como conteúdo

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concreto do ato de pensar, a representação carrega a marca do sujeito e de sua atividade. Este último aspecto remete ao caráter construtivo, criativo, autônomo da representação que comporta uma parte de reconstrução, de interpretação do objeto e de expressão do sujeito. (1993, p. 35).

Dentro dessa perspectiva, "torna-se evidente que "representar" ou uma

"representação" implica a acção de mostrar ou tornar algo que não está

presente, seja por palavras faladas ou escritas, por acções, por imagens, seja

mentalmente ou simbolicamente" (Rechena, 2011, p. 217). É pela cenografia

que o restaurante representa e demonstra um passado perpassando a cenas

cotidianas, inseridas em contextos históricos e sociais e que contribuem para

suscitar, reviver e até mesmo construir novas interpretações. Segundo

Pesavento, "representações (...) são dotadas de força integradora e coesiva,

bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por

meio das representações que constroem sobre a realidade" (2005, p. 39).

Diante do que já foi mencionado, questionamos: todos os consumidores

idealizam a mesma representação? Desde que surgiu a ideia, todos os

envolvidos tiveram as mesmas representações?

Região

Vamos dar início a uma breve discussão da categoria região pelo então

geógrafo francês Marcel Roncayolo, este contribuiu com o intenso

levantamento sobre as definições associadas ao conceito utilizadas pela

ciência geográfica. Dentre elas está a concepção de região enquanto espaço

físico, como produto das relações econômicas, como produto de processos

mentais e como espaço de grupos étnicos. O autor esclarece que cada uma

dessas definições, bem como a tentativa de compreender a região é

insuficiente, além de criticar o uso do termo em qualquer realidade, o que tem

causado aplicações de formato fixo e que segundo ele: "a região não é mais do

que uma noção histórica modelada pelas situações, os debates, os conflitos

que caracterizam um período e um lugar" (1986, p. 187). E continua chamando

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a atenção para se entender a região enquanto problemática social e um

produto das ações humanas efetuadas nas relações sociais.

Para Paulo Cesar da Costa Gomes (1995), diante das ideias do senso

comum, falar em região é relacioná-la a dois princípios: o de localização e o de

extensão. Esclarece ainda que outro sentido pode lhe ser empregado - o de

unidade administrativa e que neste caso, "a divisão regional é o meio pelo qual

se exerce frequentemente a hierarquia e o controle na administração dos

Estados" (p. 53). Ainda alerta o autor que para a Geografia o conceito tem suas

complexidades e que para diferenciá-lo do senso comum o geógrafo deverá

adjetivá-lo. O autor dá continuidade as suas reflexões fazendo um pequeno

apanhado sobre a sistematização da ciência geográfica e consequentemente o

uso do conceito região.

Dando sequência ao pensamento de Gomes em adjetivar o termo, ele

traz o conceito de região natural, onde esclarece que nesta ideia o "ambiente

tem certo domínio sobre a orientação do desenvolvimento da sociedade" (p.

55). Em seguida, esclarece que, de acordo com a perspectiva "possibilista", o

meio ambiente não corresponderia à totalidade da complexidade das relações

existentes na região e introduz o segundo adjetivo, onde aparece à noção de

região geográfica ou região-paisagem e esta por sua vez seria a "unidade

superior que sintetiza a ação transformadora do homem sobre um determinado

ambiente" (p. 56).

Por fim, o autor coloca "as regiões são o resultado de uma divisão do

espaço que é em princípio submetido essencialmente sempre às mesmas

variáveis, definindo-se, pois, através desta divisão um sistema espacial

classificatório, uniforme e hierárquico" (p. 70). Diante do exposto e na tentativa

reflexiva de elucidar ainda mais o conceito, iremos fazer breve explanação

sobre o sertão.

Sertão

A proposta apresentada nesse trabalho traz uma discussão em torno da

culinária dita sertaneja, como um traço das relações culturais e como elemento

que fortalece a ligação entre os sujeitos e os laços de pertencimento com a

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região semiárida e, consequentemente, com o 'território' do sertão que pode

ser encontrado (muitas vezes) como um significado correlato ou como um

apêndice a essa região.

Se há uma categoria que habita o imaginário social no Brasil, certamente

esta é o "sertão". Dos limites imaginativos e representativos, de norte a sul do

país, e até na delimitação e demarcação de tempos históricos. Desde a

chegada europeia (leia-se dos portugueses) esse termo já se fazia conhecido,

mas para um nordestino sertanejo, sem essa região seus referenciais estariam

perdidos, impossibilitando seu autoconhecimento ou seu reconhecimento frente

a outros no exercício da alteridade. Mas, afinal, o que é o Sertão?

Se existe uma categoria presente no imaginário social brasileiro é o

Sertão. Presente na história desde os relatos dos viajantes no século XV.

Nessa ótica, revela Fadel Antônio David Filho (2011, p. 86):

"Já naquele tempo, o termo "sertão" tanto servia para designar uma 'região', uma 'área' indefinida, um 'lugar' ou um 'território' qualquer, localizado longe do litoral no interior ainda despovoado (entenda-se colonizado) ou mesmo desconhecido, não importando se ali houvesse ou não um deserto ou uma paisagem semi-árida".

Esse ideário imaginativo é alimentado com as obras de escritores que se

debruçaram a literatura regional tendo o sertão e seu substrato humano

enquanto protagonistas dos seus romances, assim ficam as contribuições de

Euclides da Cunha, em 1902, com o livro Os Sertões. As descrições de Cunha,

acerca do semiárido brasileiro, precisamente no Nordeste, imprimiram um

processo de identificação com o termo. Nas palavras de Cunha:

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, reverzando-se ou entrelaçando-se, repontando durante a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça -

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dispondo-se em cenários em que ressalta, predominente, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

Vários apontamentos no rementem a citar a literatura brasileira, bem

como a literatura popular representada pelos cordéis onde o tema aparece de

forma recorrente e em uma breve análise, ousamos dizer que nas suas

diversas formas, contribuiu a literatura para essa construção narrativa de um

sertão cercado de mitos, símbolos e personagens que ficaram impressos no

imaginário brasileiro.

Outra questão que deve ser levada em consideração quando se trata do

termo sertão é o seu uso. Em boa parte do território brasileiro (com exceção da

Amazônia) o termo é utilizado como referência a um lugar mais afastado.

Assim teremos sertões no sul do Brasil, bem como no centro-oeste, no sudeste

e não só no nordeste, sendo este último o mais conhecido por conta de uma

construção social e dos processos de identificação. Assim na colocação de

Antônio Filho (2011):

"No Nordeste brasileiro, o Sertão corresponde à região de semiárido que suporta o maior contingente populacional do mundo. E apresenta um nítido contraste com o Agreste e a Zona da Mata. O sertanejo mais típico desta região é o vaqueiro, herdeiro de uma tradição que remonta o início do período colonial e da lendária Casa da Torre de Garcia D'Ávila, no século XVI". (FILHO, 2011, p. 86).

Cozinha Regional

As cozinhas regionais podem ser caracterizadas por alguns pratos que

se configuram (ou ganharam status) de representantes, atuando como

símbolos (local, regional, nacional). De imediato, o imaginário se remete a uma

geografia dos gostos, dos aromas e dos sabores que se revela pela valorização

desse traço simbólico. Mediante ao exposto, Sophie Bessis (1995:10) assim

afirma:

Dize-me o que comes e te direi qual deus adoras, sob qual latitude vives, de qual cultura nascestes e em qual grupo social te incluis. A leitura da cozinha é uma fabulosa viagem na consciência que as sociedades têm delas mesmas, na visão que elas têm de sua identidade.

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A partir das diferenciações culturais, há o surgimento de cozinhas

distintas, pois as maneiras estabelecidas para transformar a natureza em

alimento dependem dos modos de vida. A cozinha é um conjunto de elementos

que combinados tornam-se referência e deflagram a identidade de um grupo

que traz consigo um significado particular e diferenciado em relação a outras

cozinhas. No entanto, não se pode cristalizar ou solidificar as noções culturais,

pois cultura é um sistema de valores e hábitos que se transforma ao longo do

tempo e do espaço. Assim, nos fala Woodward (2011):

A cozinha estabelece uma identidade entre nós - como seres humanos (isto é, nossa cultura) - e nossa comida. A cozinha é o meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura. A cozinha é também uma linguagem por meio da qual “falamos” sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo. (WOODWARD, 2011, p. 43).

No Brasil por conta da extensão territorial e da composição cultural

existe uma diversidade cultural de ingredientes que consequentemente resulta

em pratos variados, mas que ao mesmo tempo guardam em si suas

singularidades e assim são denominados de pratos típicos e/ou regionais.

Assim como acontece em outros países, cada região é marcada no imaginário

pelos seus sabores perpetuados ao longo da história e que são vistos como

tradicionais, genuínos, autênticos e verdadeiros representantes dessa cozinha,

compondo uma “memória do paladar”.

A representação da cozinha regional

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Figura 1: Restaurante Maria Chica: entrada

Fonte: www.somosvos.com.br

Para as observações da representação da cozinha regional no urbano

de Fortaleza, usamos como objeto o restaurante Maria Chica (Figura 1). O

restaurante em questão fica em uma área de estratégia locacional, vários

estabelecimentos de ensino superior, escritórios e uma diversificada malha de

empreendimentos são encontrados nas adjacências, vale ressaltar que muitos

estudantes, assim como muitos trabalhadores são oriundos da região sertaneja

e guardam consigo as suas memórias.

Em uma tentativa de amenizar essa saudade e na perspectiva de

objetificá-la e atribuindo lhe valor comercial, o estabelecimento apropria-se de

um cenário e de sabores específicos, ressignificando e comercializando seus

simulacros, evocando as memórias individuais e coletivas, sendo essas

mergulhadas de sentidos, cheiros, sabores e até mesmo silêncios.

Desde o variado cardápio com pratos denominados regionais (baião de

dois, panelada, buchada, carne do sol, sarapatel – Figura 2) a decoração

rústica do restaurante, a atmosfera desenvolvida é para simular as cozinhas

das casas vernaculares em um tempo de outrora. Há uma mistura no ambiente

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de elementos com uma carga histórica (sino de boi) e elementos com uma

composição contemporânea (balanças digitais).

Figura 2: Pratos Típicos da cozinha regional

Fonte: www.somosvos.com.br

Para melhor elucidar as nossas reflexões, depois de uma vasta

pesquisa, exporemos textos de duas vertentes. Um com cunho de marketing e

outro com a opinião de uma cliente, extraído de um site que classifica lugares

para turistas. Assim, caracterizam o restaurante de acordo com a sua

representação no site somosvos.com.br em uma reportagem que trata da

cozinha regional “lugares para forrar o bucho com as comidas da terra”:

Diante da bateria de panelas, do bule de ágata que mantém o café quentinho no fogão esmaltado e da comida com gosto de culinária ancestral, muita gente viaja no tempo. O

restaurante é todo decorado para relembrar o sertão cearense; até os garçons e garçonetes se vestem de cangaceiros. O lugar remete muitas memórias que são desencadeadas pelos

objetos reunidos e o forró pé de serra que toca nos rádios de madeira.

De segunda a sexta, cerca de 60 pratos são oferecidos no self-service: panelada, sarrabulho, buchada, sarapatel, galinha caipira, carneiro, escondidinho, carne de sol e o baião de dois,

dentre outros, são os clássicos que não ficam de fora. Nos sábados e domingos, o número de iguarias chega a 100, incluindo capotes guisados e outras carnes menos comuns de se achar

nos demais restaurantes da cidade.

Da mesma maneira, os clientes (consumidores) avaliam a representação

do restaurante e a sua simulação do sertão nordestino com a reprodução, não

só da culinária, mas uma reprodução cenográfica de um sertão que povoa o

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imaginário social brasileiro e as memórias dos que se identificam como

sertanejos, e/ou possuem alguma ligação com este território sertanejo. Para a

consumidora (figura 3):

“O restaurante Maria Chica nos convida a uma viagem pelo interior nordestino, remontando cenários típicos das casas de taipa, da bodegas e mercearias, dos alpendres que

reuniam as famílias e vizinhança. São muitos detalhes simples e curiosos, que chamam a atenção de cearenses e turistas. Tudo é cuidadosamente pensado, até mesmo a música ambiente, onde não é difícil ouvir o velho Luiz Gonzaga, o rei do baião. É um clima muito

gostoso regado a uma culinária sem igual. Os pratos são saborosos e o atendimento nota 10! É um pedacinho do sertão em plena cidade grande que não se pode deixar de conhecer”.

(Questiana, via Tripadvisor em 27 de dezembro de 2013)

Figura 3: Bugega dona Chica

Fonte: www.somosvos.com.br

Considerações Finais

Diante do que foi exposto, compreendemos que os alimentos e o

conjunto destes (cozinha regional) no nosso caso, sertaneja, guardam consigo,

apesar da dinâmica que condiz às práticas e as relações sociais, a posição de

patrimônio cultural, sendo responsável muitas vezes pela perpetuação,

acumulação e reprodução de um legado gustativo a apropriação e na

contemporaneidade a gourmertização e reprodução quase que teatral tanto de

ambientes como das lembranças dos sujeitos/consumidores, como é o caso do

Maria Chica na cidade de Fortaleza.

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Consideramos, ainda que o presente trabalho seja uma tentativa de

ampliar as discussões acerca das representações do território sertanejo e todo

o arcabouço cultural que o envolve e o caracteriza, portanto, se fazendo assim

necessárias análises deste tipo na ciência geográfica, a fim de trazer-lhe outras

perspectivas e contribuições.

Referências Bibliográficas

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