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A retomada da luta popular

A OPINIÃO pública internacional fi-cou impressionada quando, em de-zembro do ano passado, o presiden-te dos Estados Unidos, Barack Oba-ma, saudou ao seu homólogo cuba-no, Raúl Castro, em Johannesbur-go, África do Sul. A imagem, repro-duzida por centenas de meios de co-municação em todo o mundo, acon-teceu durante o funeral de Nelson Mandela, no Estádio Soccer City. Abre-se um novo período na relação entre ambos países?

Após o cumprimento, diversos analistas políticos de todas as latitu-des deram seu parecer sobre o fugaz encontro. Falou-se insistentemen-te de um “novo tempo” para a re-lação entre os EUA e Cuba. A pala-vra reconciliação foi repetida inces-santemente em alguns multimeios informativos – inclusive, tentan-do atribui-lo ao “espírito” de Man-dela – mais como vocação futura do que como síntese do que acabava de acontecer.

É importante falar sobre as re-percussões do “mundo político” pa-ra não cair em análises simplistas e apressadas. O primeiro que tomou a palavra – somente horas após o fato- foi John Kerry, Secretário de Esta-dos dos EUA, afi rmando que “o pre-sidente esteve em um funeral inter-nacional e não escolheu quem esta-ria por lá”, dando a entender que o encontro havia sido espontâneo – e longe do interesse do próprio Oba-ma. A congressista republicana Ile-ana Ros-Lehtinen foi além e criticou a atitude do presidente norte-ameri-cano, ao afi rmar que o cumprimento foi um “golpe de propaganda” para o governo cubano.

Esse encontro mudará a política dos EUA ante Cuba?

Vários elementos prévios nos mos-tram certo ceticismo a respeito. Em primeiro lugar, a manutenção – e o aprofundamento – do bloqueio eco-nômico, comercial e fi nanceiro sofri-do pela Ilha desde 1962, cujas per-das são estimadas em mais de 1 bi-lhão de dólares durante esse tempo. “O bloqueio tem aumentado no setor fi nanceiro no Governo de Obama”, disse em outubro passado o chance-ler cubano Bruno Rodríguez, após assegurar ante a ONU que as tran-sações monetárias de Cuba eram vi-giadas pelo “enorme sistema de es-pionagem global” dos EUA – que já foi denunciado por diferentes países, entre eles o Brasil. É a própria ONU quem, há 22 anos initerruptamente,

denuncia o bloqueio, com um repú-dio massivo que em 2013 expressou-se através de 188 votos dentre 193 países votantes.

Em segundo lugar, o caso dos cin-co antiterroristas cubanos condena-dos nos EUA: Gerardo Hernández, Ramón Labañino, Antonio Guer-rero e Fernando González perma-necem encarcerados há mais de 15 anos por delitos nunca provados, en-quanto René González saiu da prisão em 2011, regressando a Cuba este ano após renunciar à cidadania esta-dunidense. Em reiteradas ocasiões, Cuba manifestou sua vontade de diálogo para encontrar uma solução “recíproca” ante esse caso e o do ci-dadão norte-americano Alan Gross, contratista da Usaid (Agência de De-senvolvimento Internacional dos EUA) que permanece preso há qua-tro anos na ilha, sob cargos de viola-ção das leis cubanas. No entanto, até o momento, essa vontade de diálogo

por parte do governo de Raúl Castro não foi “correspondida” por seu ho-mólogo estadunidense.

O terceiro ponto tem a ver com outra briga pelos Direitos Huma-nos: em 2009, antes de chegar à Ca-sa Branca, Barack Obama afi rmou que durante seu mandato fecharia a prisão de Guantánamo, onde vivem uma situação condenável sob todo ponto de vista: dos 164 presos encer-rados após sua criação, em 2002, so-mente três foram julgados de forma bastante irregular. Mais da metade –84 presos – já têm aprovada a trans-ferência a seus países de origem; po-rém, continuam vendo passar seus dias nesse centro de detenção/base militar pela inefi ciência da adminis-tração de Washington. Recentemen-te, após a denúncia de funcionários estadunidenses retirados, soube-se que durante os primeiros anos do centro de detenção, a CIA converteu alguns detidos em “agentes duplos”, sob a condição de poder retornar ve-lozmente a seus países em troca de prestar colaboração com os EUA na luta contra o “terrorismo”, em tro-ca de dinheiro e segurança para su-as famílias.

Para que exista um verdadeira mudança na política entre ambos os países, Obama deve repensar alguns pontos, considerando que a vonta-de de diálogo do governo cubano so-bre os mesmos já foi apresentada. Os Estados Unidos têm que pres-tar atenção a diversas vozes – so-ciais, políticas e de Direitos Huma-nos – da comunidade internacional que pede uma virada na política pa-ra com a Ilha, reclamando o fi m do bloqueio, a liberdade dos Cinco e o fechamento de Guantánamo. Defi ni-tivamente, não são necessários cum-primentos protocolares; mas, ações concretas. Sobre essas medidas, tão urgentes quanto necessárias, é que ambos os países poderão estabelecer uma nova relação.

Juan Manuel Karg é licenciado em Ciência Política Universidad de

Buenos Aires (UBA). Investigador Centro Cultural de la Cooperación.

Buenos Aires (Argentina)

Juan Manuel Karg crônica Luiz Ricardo Leitão

OS CONCEITOS de ascenso e des-censo da luta popular integram o vo-cabulário do pensamento político transformador, ajudando a compre-ender as características de cada mo-mento histórico. A década de 1990, com suas profundas alterações geo-políticas, gerando uma correlação de forças extremamente desfavorável para a classe trabalhadora, inaugu-rou um longo descenso, que diversos historiadores denominam de período da ofensiva neoliberal.

O ano de 2013 confi rma que reto-mamos um processo de ascenso da luta popular. O mecanismo clássi-co, embora não infalível de medir es-ses períodos é mensurar o número de greves. O levantamento efetuado pe-lo Departamento Intersindical de Es-tatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) é extremamente revelador. Desde meados dos anos de 1980, o Brasil teve três períodos de forte mo-bilização, também impulsionada pe-lo fi m da ditadura, em 1985. Entre 1986 e 1987, o número de paralisa-ções fi cou acima ou próximo de mil – era a fase dos primeiros planos eco-nômicos. Praticamente colado, veio o biênio 1989/1990, o fi m do gover-no José Sarney, marcado pela hipe-rinfl ação, e o início da gestão Fernan-do Collor, com alta do desemprego

e oposição à política econômica. As-sim, 1989 registrou o maior número de greves da série histórica (1.962), seguido justamente por 1990 (1.773).

A partir de 1995, coincidindo com a histórica greve nacional dos petro-leiros, o gráfi co despenca, interrom-pendo a queda somente em 2002 e iniciando a lenta recuperação a par-tir de 2004. A retomada do cresci-mento econômico e redução do de-semprego alimentam a capacida-de de luta e as greves, embora de pe-quena duração, premidas por uma blindagem jurídica, crescem até a recente retomada dos patamares da década de 1980.

Mas, isso ainda é pouco para iso-ladamente permitir afi rmar que re-tomamos o ascenso da luta popular. O elemento que torna possível es-sa afi rmação são as intensas mobili-zações de junho e julho do ano pas-sado, que marcam a entrada em cena de uma nova e jovem classe trabalha-dora formada principalmente nos úl-timos dez anos.

Milhões de pessoas foram às ruas protestar pela primeira vez, conquis-tando vitórias na redução das tari-fas, proporcionando elevação da au-toestima e uma experiência inigualá-vel de protagonismo popular. Desde então, multiplicam-se pequenas ma-

nifestações demonstrando que a luta volta a ganhar espaço das ruas.

Um período histórico de reascen-so da luta popular não signifi ca um crescimento constante das lutas. Ine-vitavelmente, haverão altos e baixos, mas a tendência de seguir crescendo e alterando a correlação de forças em favor da classe trabalhadora predo-minará. Eis o que provavelmente nos espera em 2014, após longos anos de resistência e difi culdades em manter as organizações populares.

É bem provável que, em algum momento ao longo de 2014, o mes-mo conjunto de circunstâncias que desencadeou as mobilizações de ju-nho passado volte a ocorrer. A data e o evento defl agrador são imprevi-síveis, mas a possibilidade é grande. Com o ano eleitoral, as forças políti-cas usarão toda a sua capacidade de infl uência para disputar as mobiliza-ções que virão.

Como as forças populares podem contribuir para transformar o senti-mento difuso de milhões de jovens que não se sentem representados pelo atual sistema político em con-quistas democráticas?

Como as forças populares enfren-tarão a disputa com as tentativas de manipulação pela grande mídia que presenciamos em 2013?

O atual sistema político não pos-sibilitou que nossa sociedade supe-rasse as principais características herdadas de sua condição colonial. Seus diferentes ciclos de desenvol-vimento sempre reproduziram a de-sigualdade social interna e a depen-dência externa.

Não é casual que as mobilizações em 2013 tenham expressado for-te sentimento de rejeição ao atual sistema político. Generalizou-se a percepção de que há uma “blinda-

gem” da política aos verdadeiros interesses do povo brasileiro. Nes-se contexto, os partidos políticos e os próprios políticos são vistos co-mo parte de uma mesma engrena-gem subordinada aos interesses das elites e a democracia represen-tativa se apresenta, aos olhos da juventude, como um mecanismo que impede a democracia efetiva. Mesmo as bandeiras de partidos de esquerda passam a ser vistas como símbolos da burocracia, apesar de seu histórico de lutas.

Como possibilitar que esse legí-timo sentimento se transforme na ampliação da democracianão e não seja apropriado pela direita ?

Estes são os grandes desafi os que nos esperam.

A possibilidade que se abre em 2014 é a construção do Plebiscito Popular sobre a Constituinte Exclu-siva e Soberana do Sistema Político. Na medida em que os principais mo-vimentos sociais do país apostam su-as energias numa comprovada ferra-menta pedagógica como o Plebiscito Popular, abre-se a possibilidade de construir uma bandeira política que responda ao anseio popular e possi-bilite enfrentar um sistema político que impede as mudanças estruturais que o Brasil necessita.

de 2 a 8 de janeiro de 20142editorial

Os bastiões do atraso

A possibilidade que se abre em 2014 é a construção do Plebiscito Popular sobre a Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político

O ano de 2013 contemplou uma intensa jornada de lutas contra os bastiões do atraso no país, porém ainda falta muito para vê-los derrotados

Os Estados Unidos têm que prestar atenção a diversas vozes –sociais, políticas e de Direitos Humanos – da comunidade internacional que pedem uma virada na política para com a Ilha, reclamando o fi m do bloqueio, a liberdade dos Cinco e o fechamento de Guantánamo

opinião

JÁ ESTAMOS EM 2014. Novas e velhas contradições nos esprei-tam, mas só a luta política nos dirá se será possível – ou não – su-perá-las. O ano de 2013 contemplou uma intensa jornada de lutas contra os bastiões do atraso no país, porém ainda falta muito para vê-los derrotados de vez ao sul do Equador.

Os adversários são tinhosos... Só o latifúndio e o agronegócio estão há mais de cinco séculos por aqui. Vieram nas caravelas de Cabral (ai, Jesus!), tornando-se o ícone mor do antigo regime colonial. E o que dizer das instituições políticas, sejam as altas cortes de Mendes & Barbosa, ou o Senado de Sarney, Calheiros & Cia., próceres da sociedade cartorial cujos velhos coronéis di-taram o ritmo de uma modernização que sequer conheceu a re-forma agrária?

Mas isso ainda não é tudo, Severino lavrador... Se não bastasse essa nefasta aliança entre as elites do campo e da cidade, o atraso se manifesta ainda mais cristalizado na estrutura do nosso futebol, abalada em 2013 por vários escândalos e contestada por movimen-tos como o Bom Senso FC. Pois é, se em junho passado a “Copa das Manifestações” sacudiu o país, imagine em 2014...

Sim, amigos, a festa já está marcada nos arraiais da Fifa e da CBF, mas será que as quadrilhas terão vida mansa na Copa? Não há como “pegar leve” com essa corja: o desfecho do Brasileirão 2013 ilustra quão levianos e daninhos são os cartolas que dirigem o “negócio da bola”. Episódios como a batalha de Joinville ou a tentativa de evitar o rebaixamento do Flu-Unimed no tapetão fa-lam por si só.

Sem dúvida, desde a era João Havelange a CBF tornou-se um tosco ‘gigolô’ da bola. Sua única missão é passar no caixa e reco-lher a grana – na prática, quem dirige o futebol na província é a TV (leia-se Rede Globo), que dita desde o formato dos torneios até o horário dos jogos. A tchurma de Zé das Medalhas, sucessor de Ri-cardo Teixeira (herdeiro de Havelange, ambos denunciados na Suíça por grave caso de corrupção na Fifa), só trata de vender a Se-leção para os árabes e manter a estrutura podre e corrompida que está matando a galinha dos ovos de ouro.

O caso da Lusa é emblemático: em plena era virtual, o “site” da CBF estava “desatualizado” e por isso não registrou a punição de Héverton, pivô do processo que resultaria na queda da equipe pau-lista e (mais uma) ‘ressurreição’ do Flu no tapetão. Quem estra-nha? A julgar pelo seu presidente, a CBF já anda desatualizada há 80 anos...

Não é pra menos: ex-governador biônico de São Paulo, fã do de-legado Fleury e cúmplice do Dops no assassinato de Herzog, Marin é a cristalização do atraso no planeta bola. E sua longevidade emol-dura um quadro de corrupção crescente do futebol, hoje domina-do por esquemas de lavagem de dinheiro, associações espúrias en-tre dirigentes, mafi osos e narcotrafi cantes (alô, Perrela!), isso sem falar no quadro de violência, em que as relações perigosas com cer-tas torcidas organizadas são apenas um índice do que a impunida-de pode provocar em nosso frágil tecido social.

Sim, amigos, este será um ano de lutas. O pé-de-obra ainda é fantástico e a Seleção pode até vencer a Copa – não duvidem. Mas a nova derrota para os africanos em Marrocos mostra que, a conti-nuar nesse ritmo, os “vexames” se tornarão rotina – e a vitória do Corinthians será uma exceção monumental ao “padrão” das nossas equipes, que estão para lá de Marrakesh. Axé, 2014!

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana,

é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Eduardo Sales de Lima, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (BeloHorizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille

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O cumprimento de Obama a Raúl Castro

Joana Mas/CC

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de 2 a 8 de janeiro de 2014

ráveis não estejam nas imediações da Sala São Paulo nos horários de concertos, ou em frente à Estação Pinacoteca e à Escola de Música Tom Jobim (em horário de funcio-namento e visitação), equipamentos construídos e manti-dos pelo Estado, e que criam desde já uma infraestrutura a ser aproveitada no futuro.

Mas é fundamental também que “a manada”, não abandone o bairro – pelo menos, por enquanto. Sua presença ainda é indispensável para fazer cair o pre-ço dos imóveis da região, que estão sendo comprados a preço de banana por construtoras e outros investido-res. Depois disto, eles deverão desaparecer (“sem deixar vestígios”, ou levados para outra região à qual se reser-ve o mesmo destino), como no modelo já utilizado em Paris há décadas, em bairros como Les Halles, e Marais – hoje dois sofi sticados centros, que reúnem shoppin-gs, restaurantes, bistrôs e equipamentos ligados às ar-tes e cultura.

Na região da nossa cracolândia, também no centro de São Paulo, que se estende até os Campos Elíseos onde fi ca a Favela do Moinho (algumas vezes devastada por “mis-teriosos” incêndios), grande parte dos terrenos e prédios já foram vendidos, sendo que a maioria avassaladora foi adquirida pela Porto Seguro (seguradora). Aliás, é públi-co o projeto da CPTM (Companhia Paulista de Transporte Metropolitano) de construir, no lugar da Favela do Moi-nho, uma estação ferroviária, que substitua a velha e his-tórica Luz, que já abriga em um dos seus prédios centrais, o Museu da Língua Portuguesa.

Ora drogas!E O ESCÂNDALO DOS 443 kg de cocaína apreendidos pela Polícia Federal do Espírito Santo, em 24 de novem-bro, num helicóptero da empresa Limeira Agropecuária, propriedade do deputado estadual mineiro Gustavo Per-rella (Solidariedade)?

A última notícia a respeito (isto, se pesquisarmos em blogs independentes) data de três de dezembro, quando o pai do deputado – senador Zezé Perrella (PDT), ocupou a tribuna para um discurso patético em defesa do fi lho. Eleito suplente de Itamar Franco por interferências e arti-culações do candidato às próximas eleições presidenciais, Aécio Neves (PSDB) – o senador Zezé assumiu a cadeira depois da morte do titular (Itamar).

A versão que permanece, diz que os responsáveis por todo o imbróglio são o piloto e o copiloto do helicóptero. Uma vez estabelecida mais esta “verdade”, a notícia desa-pareceu da grande mídia comercial.

É possível que (se os 443 kg de cocaína não foram “dis-cretamente” liberados), haja uma crise em muitos lares, bares e restaurantes dos “bairros nobres”, nas festas de fi m de ano. Enfi m, quantos papelotes, picos, carreiras, su-positórios etc. deixarão de ser consumidos?

Os “diferenciados”, porém, não serão atingidos pela “tragédia”. O crack será regularmente distribuído, nas barbas dos postos policiais, cujo trabalho tem sido – pelo menos em São Paulo – o de “pastorear a manada” de de-pendentes, para que circulem pelos pontos corretos nos horários adequados. Por exemplo: na grande cracolândia paulistana – na região da Luz, é fundamental que os mise-

instantâneo

Alipio Freire

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A REPERCUSSÃO prática da posição do Papa já semostrou muito efi caz, quando do seu contunden-te posicionamento contrário à intervenção dos Es-tados Unidos na Síria. A posição do Papa demo-veu uma decisão já praticamente tomada pelo pre-sidente Obama. E a partir daí, os acontecimentosna Síria vão convergindo para uma solução pacífi -ca do confl ito interno, mesmo com as muitas difi -culdades ainda a serem superadas pelo próprio po-vo da Síria.

Agora, a campanha é mais ampla, mais comple-xa, e mais duradoura. Desta vez, o Papa fez questãode agregar outros apoios, estratégicos e práticos, vi-sando inserir esta campanha contra a fome na pró-pria dinâmica da ação da Igreja.

A campanha foi sugerida pela Cáritas da Espa-nha, e foi logo encampada pela Cáritas Internacio-nal. É de salientar que o Presidente da Cáritas In-ternacional é o Cardeal Oscar Maradiaga, que é umdos membros do “Grupo dos Oito Cardeais”, nome-ados pelo Papa Francisco para o ajudarem no go-verno da Igreja.

Desta maneira, resulta evidente a importância es-tratégica desta campanha, lançada quando vai to-mando forma a nova postura da Igreja, simbolizadapela fi gura do Papa Francisco.

Para concretizar a proposta de uma Igreja “vol-tada para a sociedade”, solidária com suas grandescausas, nada melhor do que enfrentar este “escân-dalo público”, que é o fl agelo da fome no mundo, co-mo o próprio Papa o qualifi cou.

Com o lema: “Uma só família – Pão e Justiça pa-ra todas as pessoas”, a campanha é lançada agora,com a intenção de ir envolvendo a Igreja toda, pa-ra atrair também as adesões da esfera pública, so-bretudo no âmbito das Nações Unidas, onde o bra-sileiro José Graziano da Silva preside a FAO, a Or-ganização das Nações Unidas para a Alimentação ea Agricultura.

A campanha começa “em casa”, convocando as Cá-ritas de todos os países onde ela está organizada. Tem a intenção de se prolongar até o ano de 2015, quando com certeza já será possível avaliar suas repercussões práticas, para que a ação contra a fome se traduza em políticas públicas orgânicas e efi cazes nos países que atualmente mais padecem deste fl agelo, especialmen-te na África, e também na Ásia. Dependendo do crité-rio adotado, chega-se a cifras aproximadas, que quan-tifi cam as estatísticas da fome.

O fato é que, segundo as Nações Unidas, existe apro-ximadamente um bilhão de pessoas que padecem de desnutrição no mundo. Outra constatação persistente é que o problema não decorre da escassez de alimen-tos. Com a produção atual, seria possível garantir ali-mentação sufi ciente para o mundo inteiro.

O problema, portanto, não se limita à produção dealimentos, que continua sendo um desafi o. O maisdifícil é a adequada distribuição dos alimentos, quenão pode ser deixada à lógica mercantilista, onde oalimento vira mera mercadoria, e a própria fome setorna, inclusive, fator de especulação fi nanceira.

Esta, portanto, será uma campanha que vai me-xer com nossas convicções. E vai colocar em desta-que a importância do Brasil, não só pelo seu esplên-dido potencial de produtor de alimentos, mas tam-bém pelos efeitos benéfi cos de suas políticas sociais,embora ainda incipientes.

Vamos aguardar as instruções práticas da Cáritas Brasileira, para que esta campanha se insira de ma-neira articulada em nossas comunidades, e encontre uma generosa proposta por parte do povo brasileiro.

Dom Demétrio Valentini é bispo de Jales (SP) e foi presi-dente da Cáritas Brasileira até novembro de 2011.

Dom Demétrio Valentini

Fome no mundo

A Igreja acaba de lançar – em dezembro – uma campanha para a erradicação da fome no mundo. Esta campanha vem respaldada de apoios muito signifi cativos. Quem a encabeça é a Cáritas Internacional, mas quem a subscreve é o Papa Francisco

no calor da Revolução de 1930, que reduziu em 50% o va-lor da dívida brasileira, sem respaldo em documentação real. Mesmo para os mais sectários setores da esquerda, é possível que hoje soe injusto tratar Jango apenas como um populista.

A mídia do capital, que apoiou a derrubada de Jango, tenta agora reduzir o alcance do importante gesto do Se-nado. Escondem-no. Mesmo a Rede Globo, que recém- confessou erro por apoio editorial à ditadura, também di-minui a si mesma, ainda mais, por sua cobertura pálida do ato. O mínimo que deveria fazer – como concessioná-ria de serviço público de radiodifusão – é divulgar a ver-dadeira história do ex-presidente que tanto difamou. Que tal se exibisse, nacionalmente, os fi lmes Jango, de Silvio Tendler, Dossiê Jango, Jango em três atos, de Deraldo Goulart e O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares. Uma TV com mais história e verdade, ao invés da selvage-ria do MMA que faz escola nos estádios de futebol.

Jango e a atualidade O CONGRESSO DEVOLVEU simbolicamente o mandato ao ex-presidente João Goulart, derrubado por um golpe fascista organizado pelos EUA. Mesmo sem efeitos prá-ticos, a iniciativa dos senadores Pedro Simon e Randol-fe Rodrigues faz justiça com Jango porque contribui pa-ra reescrever a história do Brasil. Diante de Dilma Rous-seff, presente ao ato, o fi lho de Jango, João Vicente Gou-lart, acertou lembrando que o pai é ainda uma mensagem viva em defesa das reformas de base.

A nacionalização da economia, a reforma agrária, a eli-minação do analfabetismo (Jango havia nomeado Paulo Freire para esta tarefa ainda não realizada, em descum-primento Constituição de 1988), uma política externa an-ti-imperialista de cooperação com a China, Cuba, a ex-URSS, completamente confi rmada pela história, realçam a atualidade das reformas de base, propostas por Jango. Especialmente a continuidade das políticas de Vargas, co-mo, por exemplo, a auditoria da dívida externa realizada

João Brant

Geração de empregos será desafi o para América Latina em 2014

A perda de dinamismo da economia teve impacto negativo sobre o mercado de traba-lho na América Latina e no Caribe – grupo de países do qual o Brasil faz parte. De acor-do com o Panorama Laboral da América La-tina e do Caribe 2013 da Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), divulgado hoje (17), para manter e consolidar o crescimento dos últimos dez anos, será necessário criar 43,5 milhões de empregos na próxima dé-cada. “A região corre o risco de perder uma oportunidade de avançar na geração de mais e melhores empregos. Estamos em um mo-mento positivo, porém, desafi ador”, informa o documento. Segundo os dados da OIT, em 2013, houve um estancamento do progresso que caracterizou os anos anteriores. Apesar de, em 2013, o índice de desemprego urbano na região ter tido o menor percentual histó-rico (6,3%) não houve redução da informali-

dade, a produtividade cresceu a percentuais inferiores à média mundial e o desemprego entre jovens também está crescendo. Entre 2012 e 2013, a taxa de desemprego da popu-lação jovem aumentou de 14,2% para 14,5%. Se as economias da região crescerem, em média, 3,4% ao ano – percentual baseado nas projeções do Fundo Monetário Interna-cional (FMI) para o desempenho em 2014, a informalidade dos países da região cairia de 47,7% para 42,8%. De acordo com o FMI, em 2013, a América Latina e o Caribe cresceram 3,1% – 0,5 ponto percentual menos que a média mundial (3,6%). Caso a região não recupere o dinamismo econômico, a previ-são é a de que haja 14,8 milhões de pessoas sem emprego nesses países em 2014. Entre os que trabalham, pelo menos 130 milhões estão na informalidade. A OIT estima que três de cada dez trabalhadores latino-ameri-canos não tenham acesso à proteção social. Em 2013, o crescimento da média salarial

teve desaceleração e variou 1%, em contra-partida aos 2,6% de alta registrada no ano passado. O mesmo ocorreu com o aumento dos salários mínimos: em 2012 a variação foi 6,9%, já em 2013 o crescimento foi 2,6%. Em relação às taxas de desemprego, os países com os piores desempenhos neste ano foram a Jamaica (15,4%) e a Colômbia (11,1%). Os melhores, o Panamá (4,7%), o Equador (4,7%) e o Brasil (5,6%).

BC projeta infl ação de 5,6% em 2014

A infl ação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), deve fi car em 5,8%, em 2013. A estimativa consta no Relatório de Infl ação, divulgado trimes-tralmente pelo Banco Central (BC). Essa é a mesma estimativa divulgada em setembro. Para 2014, a estimativa para a infl ação pas-sou de 5,7% para 5,6%. Em 2015, a previsão é que a infl ação fi que em 5,4%.

fatos em focoda Redação

Pedro Nathan

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brasilde 2 a 8 de janeiro de 20146

Verena Glassda Bacia dos rios Purus e Juruá, (Acre)

UMA DAS PRINCIPAIS bandeiras da lu-ta de Chico Mendes, a consolidação do direito dos seringueiros do Acre a seus territórios, continua sendo uma ques-tão espinhosa 25 anos após a sua mor-te, completados no domingo (22). A falta de regularização fundiária de muitos se-ringais, ainda hoje áreas com alto nível de preservação ambiental, continua mo-tivando sérios confl itos entre fazendeiros e seringueiros, mas também abre cami-nho para projetos de manejo da fl oresta que nem sempre benefi ciam a população tradicional.

Problemas neste sentido têm sido rela-tados nos três primeiros projetos priva-dos de crédito de carbono no Acre, pro-postos no contexto do Sistema de Incen-tivos aos Serviços Ambientais (Sisa, apro-vado por lei em outubro do ano 2010) e que pretendem promover a preservação fl orestal e a venda de créditos de carbo-no através de iniciativas de REDD+ (Re-dução de Emissões provenientes de Des-matamento e Degradação Florestal). São eles os projetos Purus, Valparaiso e Rus-sas, que preveem restrições e até parali-sação das atividades tradicionais de cul-tivo agrícola de famílias de seringueiros e posseiros, para que emissões assim evi-tadas possam ser vendidas no mercado internacional de créditos de carbono.

O Projeto Purus, idealizado pelo ex-prefeito de Sena Madureira, Normando Sales, e pelo advogado Wanderley Ro-sa, foi apresentado ao Instituto de Mu-danças Climáticas (IMC) do Estado em junho de 2012. Abrange cerca de 34,7 mil hectares dos seringais Porto Central e Itatinga, localizados às margens do rio Purus entre os municípios de Sena Ma-dureira e Manoel Urbano, e onde vivem 18 comunidades de seringueiros, possei-ros e pescadores.

Apresentando-se como donos dos se-ringais, em 2009 Sales e Rosa começa-ram a procurar os moradores locais – muitos dos quais vivem na área há mais de 40 anos – para discutir o projeto, e no início de 2011 propuseram a 17 famílias que fi rmassem um acordo pelo qual dei-xarão de fazer o manejo tradicional de la-vouras (brocagem, a roçagem e queima de mato), caça, retirada de madeira, abertura de picadas e estradas, e qual-quer outra ação de interferência na vege-tação. Para monitorar o cumprimento do acordo, seria criado um sistema de fi sca-lização de infrações e providências quan-to à punição dos infratores.

Para viabilizar a parte econômica e técnica do projeto (que se encontra ain-da em fase de registro no IMC), foi acor-dado um investimento inicial com a em-presa CarbonCO, LLC, subsidiária da Carbonfund.org Foundation, localiza-da em Bethesda, Maryland, EUA. O in-ventário do carbono que deixaria de ser liberado sem que o manejo tradicio-nal dos seringueiros foi supervisionado pela empresa de consultoria TerraCar-bon, LLC, de Illinois/EUA. E a venda dos créditos de carbono resultantes se-rá feita pela The Carbon Neutral Com-pany, de Londres.

De acordo com os moradores dos se-ringais, desde o início o projeto causou desconfi ança entre a comunidade. Vá-rios movimentos sociais do Estado, crí-ticos às soluções de Economia Verde propostas para mitigar problemas am-bientais a partir da fi nanceirização dos bens naturais, e preocupados com pos-síveis violações de direitos, também questionaram a iniciativa, o que moti-vou uma visita da Relatoria do Direito

Humano ao Meio Ambiente da Platafor-ma DHESCA (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) ao Acre entre fi -nal de novembro e início de dezembro deste ano, para verifi cação de eventuais problemas.

Em depoimento aos pesquisadores da relatoria, João*, produtor de banana e morador do local há mais de 35 anos, relata: “um dia chegou aqui o Norman-do [Sales, dono do seringal Porto Cen-tral], e já começou ameaçando. Disse que aqui tudo era terra dele, mas ele nunca apresentou título do Incra. Eles chega-ram com um documento para a gente as-sinar, desse negócio de carbono, e disse que quem assinava podia fi car na terra, quem não assinava tinha que sair”. Em troca da assinatura, conta o seringueiro, Normando Sales prometeu que traria pa-ra a comunidade uma série de benfeito-rias, como escola, posto de saúde, casas novas, barco e energia solar.

O documento mencionado (assinado por João, mas não entregue ao fazendei-ro) reafi rma por diversas vezes que o as-sinante reconhece a propriedade das ter-ras em nome da empresa Moura e Rosa Investimentos Ltda, criada em 2009 por Normando Rodrigues Sales e Wanderley Cesário Rosa, seus diretores. Legalmen-te, a empresa e a área do Projeto Purus pertenceriam a Felipe Moura Sales (fi lho de Normando) e Paulo Silva Cesário Ro-sa (fi lho de Wanderley). “Essa é uma das questões que mais preocupa a comuni-dade”, explica João, que afi rma já ter da-do entrada no programa Terra Legal para tentar a regularização de seu lote.

Independente disso, explica a advoga-da Laura Schwarz, do Centro de Memó-ria das Lutas e Movimentos Sociais da Amazônia, que acompanha o caso, legal-mente as famílias teriam direito ao usu-capião da área em função do longo pe-ríodo de posse, mas ainda não existe ne-nhum o processo de regularização em andamento.

Futuro em chequeNo início de 2013, possivelmente por

pressões das famílias, um relatório de execução do projeto, elaborado pelo téc-nico da Carbon.Co, LLC, Brian McFar-land, aponta novas regras para o uso da terra. Além de reconhecer que “existem comunidades assentadas sobre o que eram originalmente terras de proprie-dade privada”, o documento afi rma que, “para resolver este confl ito ou disputa, Moura & Rosa irá reconhecer volunta-riamente qualquer área desmatada e sob uso produtivo de cada família que vive no Seringal Itatinga parcelas Seringal Porto e Central. A área mínima a ser intitulado de cada família será de 100 hectares, que é o tamanho mínimo que o Incra (Insti-tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) diz que uma família no Estado do Acre necessita para uma vida susten-tável. As comunidades que desmataram e colocaram em uso produtivo mais de cem hectares receberão toda a área que foi desmatada. Todas as comunidades – que se unirem voluntariamente o Projeto Purus ou não – serão chamadas à terra que eles têm colocado em uso produtivo. Este processo será facilitado por um gru-po independente, incluindo o Ministério Público do Acre”.

De acordo com a advogada Laura

Schwarz, no entanto, a questão não se resolve. Para justifi car o Projeto Purus, baseado na hipótese do “desmatamen-to evitado” para a geração de créditos de carbono, a empresa Moura & Rosa ale-gou que, como proprietária, poderia con-verter parte da fl oresta dos seringais em pastagem (prevendo o corte raso de 20% de sua extensão total para acomodar de 10 a 12 mil cabeças de gado), além de de-senvolver atividades madeireiras. Numa lógica inversa e perversa, explica a advo-gada, criminaliza-se então o manejo tra-dicional dos pequenos agricultores, im-pondo-lhes restrições que justifi quem a venda de carbono (apesar de o próprio governo do Acre ter reconhecido que o uso do fogo é essencial na agricultura familiar de pequeno porte, e sua proibi-ção poderia causar insegurança alimen-tar), e limita-se defi nitivamente o de-senvolvimento futuro da comunidade através da restrição da área disponível. “Além da agricultura, as famílias tam-bém usam as áreas fl orestadas para ca-çar, para o extrativismo, retirada de ma-deira para casas ou construção de cano-as. Isso passaria a ser proibido, bem co-mo o estabelecimento de atividades pro-dutivas das próximas gerações. Como fi -cariam os fi lhos dos posseiros se não pu-derem estabelecer futuramente seus pró-prios lotes produtivos, com casas e ro-ças?”, questiona.

Desmatamento incentivadoMuito similar ao Projeto Purus, os pro-

jetos de REDD+ nos seringais Valparai-so e Russas ainda não foram ofi cializados junto ao governo do Estado, mas já esta-beleceram uma série de restrições às su-as comunidades.

Localizados em áreas de mata fecha-da no rio Valparaiso, afl uente do Juruá no município de Cruzeiro do Sul, os dois projetos são gerenciados pelo ex-deputa-do federal e presidente do Partido da Re-pública (PR) no Acre, Ilderlei Souza Ro-drigues Cordeiro (dono da I.S.R.C. Inves-timentos e Assessoria LTDA) , em parce-ria com as empresas americanas Carbon-Co e Carbon Securities.

De acordo com os moradores das co-munidades Valparaiso, Terra Firme de Cima (localisadas na área do Projeto Val-paraiso) e Tres Bocas (na área do Projeto Russas), apesar de lidarem diretamen-te com Iderlei, o dono dos seringais se-ria o fazendeiro Manoel Batista Lopes, envolvido em sérios confl itos com os se-ringueiros na década de 1990. A situação dos trabalhadores, segundo relatório fei-to na época pelos procuradores do Tra-balho Victor Hugo Laitano e João Batis-ta Soares Filho era análoga à de escravos, conforme detalhado na pesquisa “Traba-lho compulsório, poder e transgressão no rio Valparaíso – Alto Juruá – Amazônia brasileira – 1980-90.

“Pelo que sabemos, o Iderlei arren-dou essas terras do Manoel pra fazer esse projeto de carbono. Ou comprou, não sa-

bemos direito”, explica José*, da comu-nidade Valparaiso. “Desde os anos 1980, estamos lutando pela titulação das ter-ras, queremos a criação de uma Reserva Extrativista (resex), mas eles vieram e fa-laram que resex não é um bom negócio pra nós. Já teve muito confl ito aqui por causa disso”.

Produtores de farinha de mandioca, principal fonte de renda das comunida-des, os seringueiros explicam que o pro-cesso de implantação do projeto de car-bono nunca foi explicado direito. “Cha-mavam uma família aqui, umas cinco ali, nunca todo mundo junto, e falaram que ia ter projeto quer a gente queira, quer não. Falaram que a gente vai ser proibi-do de brocar e botar fogo, e que em tro-ca iam dar de colher a geladeira. E cur-sos. Falaram que iam dar máquinas, mas aqui, pra chegar, só se for de helicóptero. Mas até agora não veio nada, só as placas (dos projetos). Eles inclusive tomaram a madeira que a gente tinha cortado pra nossa igrejinha, pra fazer as placas. Hoje temos placa do projeto, mas a igreja con-tinua sem paredes”, afi rma João.

Moradora da comunidade Terra Fir-me de Cima, dona Rosa*, 68 anos, con-fi rma que o desconhecimento dos deta-lhes do projeto é geral. “O Iderlei passou de casa em casa com um documento e fez a gente assinar, muitos nem sabem ler, ninguém sabe o que assinou. Disse que a gente nunca mais ia poder botar fo-go nas roças, mas que ele ia dar mucuna (semente de adubação verde) pra gente, que a gente ia produzir o dobro. Mas nin-guém nem sabe o que é mucuna. E das outras coisas que ele disse que ia dar, não deu nada”.

De acordo com outro morador, Iderlei teria dito que a proibição da brocagem e do fogo começaria em 2014. “Aí ele falou pra gente desmatar bastante esse ano, quem brocava dois hectares devia brocar quatro, mas que não era pra contar pra ninguém. E que ano que vem estaria tu-do proibido”.

Em Três Bocas, os moradores confi r-mam o incentivo “secreto” ao desmata-mento, mas acrescentam que houve tam-bém uma promessa de que as áreas de uso poderiam eventualmente ser titula-das para as famílias. “Mas a gente acha que quem titula terra é o governo. Se te-mos o direito à terra, não precisa ter pro-messa de fazendeiro dizendo que vai fa-zer, porque até agora tudo que prome-teu não cumpriu. Faz quase um ano que o Iderlei não aparece aqui”, afi rma um morador.

“Do ponto de vista dos direitos huma-nos, é preciso fazer uma avaliação apro-fundada sobre os riscos que os projetos de REDD impõem às comunidades, es-pecialmente devido às desigualdades econômicas e políticas que permeiam su-as ações. A segurança dos territórios pa-ra os posseiros e as comunidades tradi-cionais é a primeira condição para que seus direitos humanos econômicos, so-ciais, culturais e ambientais sejam ga-rantidos. Isso deve ser política básica pa-ra enfrentar as injustiças e riscos sociais e ambientais, e não devem estar submeti-das à lógica do mercado, que tem outros interesses e linguagens”, explica Cristia-ne. (Repórter Brasil)

*Os nomes são fi ctícios para preser-var a identidade dos comunitários.

Projetos de carbono no Acre ameaçam direito à terraAMAZÔNIA Famílias de seringais nos rio Purus e Valparaiso sofrem restrições no manejo tradicional de agricultura para que latifundiários vendam créditos de carbono

A falta de regularização fundiária de muitos seringais, ainda hoje áreas com alto nível de preservação ambiental, continua motivando sérios confl itos entre fazendeiros e seringueiros “O Iderlei passou de casa em casa

com um documento e fez a gente assinar, muitos nem sabem ler, ninguém sabe o que assinou”

Verena Glass

Moradores de Três Bocas: a preocupação é com a sobrevivência das próximas gerações

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brasil 7de 2 a 8 de janeiro de 2014

Pedro Rafael Ferreirade Brasília (DF)

NO AUGE das mobilizações populares de junho passado, quando a classe políti-ca, atônita, não sabia para onde ir, coube à presidenta Dilma Rousseff tentar res-ponder as milhões de vozes das ruas. Seu pronunciamento em cadeia de rádio e TV botou o dedo na ferida: “Proponho a con-vocação de uma Constituinte Exclusiva para debater e reformar o sistema políti-co”. Mais que isso, o povo deveria ratifi -car ou não, por meio de plebiscito, os ter-mos da reforma aprovada.

A iniciativa poderia ser o primeiro pas-so para reconstruir uma ponte que há muito tempo já não existe entre a popu-lação e seus representantes eleitos. A ex-pectativa, porém, não resistiu ao primei-ro choque de realidade. Menos de 24 ho-ras após o discurso de Dilma, as fi guras mais reacionárias da República, a come-çar pelo próprio vice-presidente, Michel Temer, e seu PMDB, além de segmentos conservadores do Judiciário, cujo porta-voz mais proeminente é o ministro Gil-mar Mendes, do Supremo Tribunal Fe-deral (STF), trataram de sepultar a pos-sibilidade de uma constituinte. Dilma, então, se calou.

Sociedade civil reage“O sistema político brasileiro está, tal-

vez, no seu momento histórico mais de-sacreditado”, aponta Rosângela Piove-zani, do Movimento de Mulheres Cam-ponesas (MMC). Essa constatação fi cou incontornável após a onda de mobiliza-ções. Diante desse quadro, dezenas de organizações políticas e movimentos so-ciais lançaram, em setembro, a campa-nha do plebiscito popular por uma cons-tituinte exclusiva e soberana do siste-ma político. O objetivo é muito claro: só uma nova assembleia constituinte exclu-sivamente dedicada a propor uma refor-ma política, será capaz de mudar a atual realidade.

“Está mais do que demonstrado que este Congresso Nacional não quer e nem tem condições de fazer uma mínima re-forma política. É um descompasso total com os anseios da sociedade. Só nos res-ta construir um outro processo”, avalia José Antônio Moroni, do Instituto de Es-tudos Socioeconômicos (Inesc).

E o plebiscito já está começando a to-mar forma. De acordo com Paola Estra-da, pelos 20 estados estão montando co-mitês e cada localidade (bairro, comuni-dade e região) poderá constituir um gru-po para mobilizar em prol da campanha. Cursos de formação, cartilhas, vídeos e debates serão realizados pelos próximos nove meses. A campanha também já tem site e página nas redes sociais (veja box).

Finalmente, de 1º a 7 de setembro des-te ano, a população poderá votar em mi-lhares de seções eleitorais populares es-palhadas pelo país. Responderão à se-guinte pergunta: “Você é a favor de uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político?”. Os votos coletados não terão validade jurídica, mas será um poderoso instrumento de pressão políti-ca contra governo e Congresso Nacional.

Exclusiva e soberanaPara que tenha capacidade de transfor-

mar o atual sistema político, uma assem-bleia constituinte tem que ser exclusiva, ou seja, seus representantes eleitos uni-camente com essa fi nalidade. Depois de aprovadas as mudanças, a assembleia se-ria dissolvida e seus representantes não poderiam concorrer em processos eleito-rais por um prazo pré-defi nido. Isso seria algo inédito no Brasil. Em 1988, o pró-prio Congresso Nacional eleito foi inves-tido como assembleia constituinte, sem qualquer desvinculação.

“A assembleia constituinte não pode ser o Congresso Nacional. Na constituin-te de 1988, foi dado poder ao congresso eleito pra elaborar nova constituição. De manhã, era Congresso Nacional e a tar-de se transformava em constituinte. Os parlamentares continuavam submetidos às pressões do Judiciário e do Executivo, perdendo a soberania que deveriam ter. Tanto que algumas amarras da ditadu-

Plebiscito vai consultar populaçãoREFORMA POLÍTICA Movimentos sociais e diversas organizações estão em campanha pela convocação de uma Constituinte exclusiva e soberana do sistema político brasileiro

ra foram mantidas”, explica Moroni, do Inesc. A anistia aos militares assassinos, a manutenção da estrutura agrária, o pa-gamento da dívida pública ao sistema fi -nanceiro e polícia militarizada foram al-gumas dessas amarras.

Outros plebiscitosNão é a primeira vez que movimentos

sociais e organizações políticas cons-

troem plebiscitos populares com es-te do sistema político. Quando os Es-tados Unidos e o então presidente Fer-nando Henrique Cardoso queriam que o Brasil integrasse a Área de Livre Comér-cio das Américas (Alca), essas mesmas entidades, contrárias à proposta – que tornaria o país um mero satélite comer-cial dos estadunidenses –, organizaram uma consulta à população. Foram cole-

tados mais de 10,2 milhões de votos em 46 mil urnas instaladas em todo o país. Um trabalho voluntário que envolveu157.837 pessoas. O resultado não deixoudúvida: 98,32% dos eleitores rejeitarama entrada do país na área de livre comér-cio. Meses mais tarde, o recém-empos-sado presidente Lula, em encontro dechefes de Estado de todo o continente americano, disse não ao próprio presi-dente George Bush sobre a Alca.

Outros importantes plebiscitos foramrealizados ao longo da década passada. Em 2000, houve consulta sobre o paga-mento da dívida externa e, em 2007, apopulação respondeu sobre a privatiza-ção da companhia Vale do Rio Doce.

Organizar um Plebiscito Popular pa-ra consultar a população sobre um te-ma fundamental é mais que um exer-cício da própria democracia. “É tam-bém uma forma de luta. Se a maioriados deputados e senadores se recusa aalterar o sistema político e não convocaum plebiscito, a população se organi-za e constrói o Plebiscito Popular. Umaforma de luta que todos podem partici-par”, afi rma um trecho da cartilha ela-borada pelos movimentos sociais en-volvidos no processo.

Plebisicito Popular por uma constituinte ex-clusiva e soberana do sistema político

Site: www.plebiscitoconstituinte.org.br

Rede social: facebook.com/plebiscitoconstituinte

E-mail: [email protected]

de Brasília (DF)

Uma Assembleia Constituinte para dis-cutir o sistema político terá que lidar com um desafi o crucial: como garantir a re-presentatividade nas instituições de po-der. A população jovem que foi às ruas em junho sabe muito bem disso.

“A juventude quer ver mudanças de verdade no Brasil, mas só se decepcio-na. A falta de representatividade dos po-

líticos, que não se comprometem com as mesmas questões que nós, está prejudi-cando a relação do jovem com a política”, avalia Victor Caíque, estudante do Cen-tro de Ensino nº 3 do Gama (DF) e dire-tor da União Brasileira de Estudantes Se-cundaristas (Ubes).

Não era para menos. O número to-tal de jovens entre 15 e 24 anos no país supera os 50 milhões, o que correspon-de a um quarto da população brasileira, conforme dados do censo 2010 do IB-GE. Signifi ca que os jovens são 40% do eleitorado brasileiro. Entretanto, menos de 3% dessa massa está representada no Congresso Nacional.

No caso das mulheres, a situação é alarmante. Mesmo sendo mais da meta-de da população, elas ocupam apenas 9% dos mandatos na Câmara dos Deputados e 12% no Senado. O Brasil da presidenta Dilma Rousseff está em 106º lugar entre 187 países no que se refere à igualdade de gênero na política.

“É claro que, num país de uma cultu-ra patriarcal, machista e com um capi-

talismo selvagem como o nosso, as mu-lheres não tem acesso ao poder político.Como o que determina uma eleição é o poder econômico e a mulher não detêm esse poder, a participação na política ée continuará sendo minoritária”, explicaRosângela Piovezani, do Movimento deMulheres Camponesas (MMC).

A proposta dos movimentos sociais,no caso de uma ampla reforma polí-tica, é garantir instrumentos que am-pliem a participação das mulheres. Lis-tas obrigatórias com paridade e alter-nância de sexo nas candidaturas podeser um destes mecanismos. É uma si-tuação que também se aplica aos ne-gros e aos indígenas.

Com 51% da população total do paísque declara negra, apenas 45 parla-mentares (8,5% da representatividade)se autodeclaram negros. Pior, em seteassembleias legislativas estaduais, nãohá um parlamentar sequer que se de-clara negro. No caso dos indígenas, nãose registra nenhum mandato legislativono Congresso Nacional. (PRF)

Democracia não representativaUm dos maiores entraves ao sistema político brasileiro é sua baixíssima diversidade social. Mulheres, jovens, negros e minorias são sub-representados

de Brasília (DF)

A baixa representatividade que sofre a maior parte da população brasileira con-trasta com o enorme poder político que as classes mais ricas detêm no Congres-so Nacional.

Para se ter uma ideia, dos 594 parla-mentares (513 deputados e 81 senado-res) eleitos em 2010, 273 são empresá-rios, 160 compõem a bancada ruralista, 66 são da bancada evangélica e apenas 91 parlamentares são considerados re-presentantes dos trabalhadores, a cha-mada bancada sindical. Os dados são do Diap (Departamento Intersindical de As-sessoria Parlamentar).

Essa confi guração está profundamen-te ligada ao sistema de fi nanciamen-to eleitoral de campanhas, baseado no capital privado. “É por isso que lança-mos a proposta de plebiscito para que a população convoque uma Assembleia

Constituinte Exclusiva. Fazer uma re-forma em um Congresso dominado pe-los grandes grupos econômicos não será em benefício do povo”, argumenta Ro-sângela Piovezani, do MMC.

Campanhas milionáriasEm 2008, as empresas doaram 86%

dos recursos totais das campanhas elei-torais no Brasil. Em 2010 e 2012, elas foram responsáveis por 91% e 95%, res-pectivamente. Com um gasto total gi-rando em torno de R$ 735 milhões, o “mercado das campanhas eleitorais” tem seu preço para quem quer “inves-tir”. A média geral do custo de uma can-didatura é R$ 4,4 milhões no Brasil.

Ou se é empresário, ou necessita-se fi -nanciamento empresarial ou apoio de banqueiros para conseguir chegar ao poder. “Cada vez mais os eleitos se apro-ximam dos seus fi nanciadores (donos das empresas) e se distanciam do povo, o que provoca uma justa indignação e desconfi ança na sociedade”, afi rma um trecho da cartilha que os movimentos sociais preparam sobre o plebiscito da constituinte do sistema político.

Um momento de expectativa sobre is-so se deu ao longo das últimas semanas no STF (Supremo Tribunal Federal). O julgamento de uma Ação Direta de In-constitucionalidade, proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), po-de defi nir a proibição da doação de re-cursos de campanha por empresários. A

votação foi interrompida quando já ha-via quatro votos a zero dos ministros a favor da proibição. O resultado parcialfoi criticado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Al-ves (PMDB-RN) e o líder ruralista Ro-naldo Caiado (DEM-GO). Ambos reivin-dicaram que o Congresso é que deve cui-dar dessas mudanças.

“Como esses setores não quiseramfazer as mudanças no Congresso e vi-ram o STF atuar, agora querem dispu-tar a reforma política, mas para man-ter seus privilégios, como fi nancia-mento privado e o voto distrital, queperpetuaria as oligarquias políticas re-gionais”, afi rma José Antonio Moroni,do Instituto de Estudos Socioeconômi-cos (Inesc).

Participação popular Com a representação completamente

dominada pelos donos do poder, o siste-ma político é incapaz de oferecer alterna-tivas para participação direta da popula-ção. Mesmo com previsão constitucional para a realização de referendos e plebis-citos ofi ciais, a convocação desses instru-mentos está nas mãos do governo e dos congressistas.

“Há uma lógica toda centrada na re-presentação. E o monopólio da represen-tação é exclusivo dos partidos políticos. É preciso um novo pacto social centrado na soberania popular”, defende Moroni, do Inesc. (PRF)

O mandato é do capitalO poder econômico comanda o sistema político e coloca a democracia à serviço de empresários, banqueiros e donos de terra

“O sistema político brasileiro está, talvez, no seu momento histórico mais desacreditado”

“Está mais do que demonstrado que este Congresso Nacional não

quer e nem tem condições de fazer uma mínima reforma política”

Rep

rodu

ção

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brasilde 2 a 8 de janeiro de 20148

Léa Maria Aarão Reisde Brasília (DF)

AO FIM DE UM PERÍODO em que se comemoraram dez anos de existência, no Brasil, da Política Nacional do Ido-so seguida da implantação do Estatuto do Idoso, em 2003, pelo presidente Lu-la, a Ministra Maria do Rosário Nunes faz um balanço das atividades da Secre-taria de Direitos Humanos da Presidên-cia da República.

Nesta entrevista, a Ministra Maria do Rosário lembra dois pontos importan-tes. O primeiro: “O mercado só vê o ser humano quando ele está na sua fase pro-dutiva e proporciona mais valia”. E o se-gundo: “Há dez anos, o Brasil começou a desenvolver políticas públicas capazes de dar conta da mudança no perfi l de-mográfi co. Enquanto isso, para efeito de comparação, a Europa conduziu es-ta transição em um período de cem anos. Nós vamos passar pelo mesmo em 30.”A seguir, a entrevista:

Há dez dias, o IBGE divulgou a ampliação, cada vez mais acelerada, da longevidade dos brasileiros e os anos a mais de vida que eles vêm ganhando. A qualidade de vida desta população também é maior hoje?Maria do Rosário – A expectativa de vida dos brasileiros e brasileiras se am-plia na medida em que cresce a quali-dade de vida desde a infância, desde o nascimento. Ou seja, para termos mais longevidade é preciso cuidar das pesso-as desde o início, ao longo de toda a sua existência, assegurando os seus direi-tos. Estamos enfrentando um período de transição.

Há dez anos, o Brasil começou a de-senvolver políticas públicas capazes de dar conta dessa mudança no perfi l de-mográfi co. Para efeito de comparação, a Europa conduziu essa passagem em um período de 100 anos. Já nós vamos passar por tudo isso em aproximada-mente 30 anos.

Os governos e a sociedade civil de-vem se preparar para esse inevitável en-velhecimento da população, que conta com 23,5 milhões de pessoas com mais de 65 anos no nosso país. Em 2050, a perspectiva é de que teremos mais ido-sos do que jovens com menos de 15 anos de idade. Para que tenhamos condições de bem atender a esse novo Brasil, esta-mos atuando com disposição, contando com o apoio da presidenta Dilma na es-pecialização dos serviços públicos. Te-mos pressa de agir na promoção, prote-ção e defesa dos direitos humanos das pessoas idosas, que consideramos fun-damentais para a democracia, constru-ção da cidadania e o desenvolvimento sustentável dos povos.

Houve aumento da expectativa de vida do brasileiro?

Os programas Minha Casa Minha Vi-da e Brasil sem Miséria incidem direta-mente na qualidade de vida da popula-ção idosa, já que a grande maioria aten-dida é de baixa renda. Como resultado concreto dos avanços conquistados pe-lo Brasil na promoção e proteção dos di-reitos dos idosos nesses últimos anos, o Atlas do Desenvolvimento Humano Bra-sil 2013 atribui à dimensão Longevidade a responsabilidade pela importante evo-lução do índice de desenvolvimento hu-mano apresentado pelos municípios bra-sileiros entre 1991 a 2010. Essa melhora se vê refl etida no aumento de 9,2 anos (ou 14,2%) na expectativa de vida ao nas-cer do brasileiro.

Quais as ações do SUS direcionadas aos mais idosos?

No que diz respeito à garantia do direi-to à saúde das pessoas idosas nós avan-çamos muito com a instalação dos Cen-tros de Referência em Assistência à Saú-de do Idoso, com o programa Farmá-cia Popular, que benefi cia 50 milhões de brasileiros, e o programa Remédio em

Casa. São ações de assistência farmacêu-tica voltadas às necessidades da popula-ção idosa em que são disponibilizados e/ou subsidiados medicamentos para o tra-tamento de doenças que afetam especial-mente esse grupo (como doença de Al-zheimer, diabetes e osteoporose).

E as ações relacionadas a violações dos direitos de idosos?

Para acolher a demanda das vítimas de violência, a Secretaria de Direitos Huma-nos criou,em 2011, o Módulo Idoso do Disque Direitos Humanos (Disque 100). Trata-se de um importante mecanis-mo para recebimento de denúncias re-lacionadas a violações de direitos contra idosos. Por sua vez, a inserção do referi-do Módulo também permite realizar um diagnóstico situacional sobre a violência contra a pessoa idosa no país a partir do mapeamento e classifi cação dos casos re-gistrados com a fi nalidade de proceder a diversos ajustes nas políticas e ações vol-tadas à defesa dos direitos dessa popula-ção e visando atender a realidade deste grupo.

Estas violações estão aumentando?

Somente no primeiro semestre deste ano, recebemos quase 23 mil denúncias de violação de direitos de pessoas ido-sas, número que é praticamente idênti-co ao do ano passado inteiro, sendo que a maioria se refere à negligência, violên-cia psicológica e abuso fi nanceiro. Para isso, estamos atuando no fortalecimen-to da rede de apoio ao setor. Nosso obje-tivo é que todas as áreas de Direitos Hu-manos tenham uma rede estruturada a exemplo do que já existe para as crianças e adolescentes.

No país, há apenas 1789 médicos titu-lados pela Sociedade Brasileira de Geria-tria e Gerontologia.

Com o programa Mais Médicos nós teremos profi ssionais capacitados para atender a população idosa? Os médicos cubanos estão especifi camente preparados por conta da formação clínica abrangente?

Sim. No programa Mais Médicos tere-mos profi ssionais capacitados para aten-der a população idosa, visto que a forma-ção deles é voltada à medicina comuni-tária e familiar. O Ministério da Saúde vem investindo na capacitação dos pro-fi ssionais de saúde com grande ênfase nos profi ssionais que atuam na atenção básica. A saúde da pessoa idosa está en-tre os temas que norteiam o planejamen-to das ações dos médicos atuando no sis-tema público, orientados para o olhar in-

tegral sobre a condição de saúde das pes-soas de mais idade.

Aliás, este trabalho do Mais Médicos é importantíssimo, já que está proporcio-nando uma mudança cultural na nossa sociedade. Digo isso porque a medicina deixa de ser vista de modo mercantilista para ser observada como um serviço es-sencial para os seres humanos. Além da chegada de profi ssionais de fora, o gover-no da presidenta Dilma está atuando na ampliação da oferta de cursos de Medici-na e no fortalecimento da formação com foco no trabalho comunitário e na espe-cialização para áreas como a geriatria.

Como o governo está trabalhando na revisão da chamada carteira de saúde do idoso?

O governo também trabalha na revi-são da caderneta de saúde da pessoa ido-sa que terá grande importância na quali-fi cação do processo de trabalho das equi-pes médicas porque foca na identifi cação da situação de saúde das pessoas idosas a partir da avaliação funcional, o que per-mitirá identifi car as reais necessidades deste grupo populacional, orientando as ações de cuidado necessárias.

Como fazer cumprir o Estatuto do Idoso? Assim como o Estatuto das Cidades ele é desrespeitado a todo instante embora seja motivo de admiração em outros países. Há um problema de fi scalização no seu cumprimento. Os Conselhos Estaduais e Municipais não deveriam supervisionar os estados e municípios que não cumprem este dispositivo legal há dez anos baixado pelo Presidente Lula? Ou então: qual o órgão que deveria proceder a esta fi scalização?

Quanto à garantia de direitos e a sua fi scalização, como afi rmei anteriormen-te, o maior desafi o tem sido a constru-ção de uma rede de proteção possibili-tando a aproximação e o trabalho co-ordenado entre os órgãos em defesa da pessoa idosa. Este desafi o é de toda a so-ciedade brasileira e um dever decorren-te da solidariedade que deve existir en-tre as gerações.

Temos nos empenhado para que os conselhos de direitos, os gestores das

políticas de direitos e Ministério Públi-co atuem de forma integrada. Além do Conselho Nacional dos Direitos do Ido-so (CNDI), já temos conselhos em 27 es-tados e 51,5% dos municípios brasilei-ros. Eles contribuem signifi cativamente com o debate de políticas públicas para essa população. A Comissão Permanen-te de Direitos Humanos do Conselho Na-cional de Procuradores Gerais traçou co-mo meta nacional o acompanhamento da criação e do funcionamento das Insti-tuições de Longa Permanência e das de-mais unidades de atendimento a esse se-guimento social. Temos grandes parcei-ros que já atuam, porém precisamos am-pliar essa rede.

Nunca é demais lembrar: todos podem e devem discar 100 para denunciar si-tuações de violência contra pessoas ido-sas e/ou desrespeito ao Estatuto. A nossa meta é universalizar uma política essen-cial norteada pelo Estatuto do Idoso. Pa-ra isso, contamos com o apoio do Judi-ciário, do Ministério Público, do Legisla-tivo e, especialmente, da sociedade para garantirmos a todo brasileiro e toda bra-sileira um envelhecimento com qualida-de de vida e respeito aos seus direitos.

Quais as ações efetivas, concretas, para fazer cumprir o decreto da presidenta Dilma relativo ao envelhecimento ativo?

O decreto do Compromisso foi assina-do há pouco mais de 60 dias. Os 17 mi-nistérios já foram chamados pela Secre-taria de Direitos Humanos e se compro-meteram a atuar de forma efetiva ela-borando um plano de ações. Precisa-mos avançar na garantia da emancipa-ção e protagonismo da população ido-sa de forma articulada intra e interse-torialmente para assegurar atenção in-tegral às pessoas idosas e suas famílias. Paralelamente, conseguimos colocar emprática o Fundo Nacional do Idoso, queneste ano tem o primeiro aporte mais amplo de recursos.

É meta do governo da presidenta Dil-ma, por meio de um pacto entre os agen-tes públicos, garantir um envelhecimen-to ativo para todos, assegurando autono-mia, respeito e cuidado. Neste sentido, se coloca a expansão dos cursos de cuidado-res de idosos por meio do Pronatec, em 21 campi da rede federal.

As delegacias policiais estão preparadas para atender desmandos e infrações por parte das próprias famílias e dos demais relativos aos direitos dos idosos? Tortura, maus tratos físicos e emocionais, exploração fi nanceira, roubos, exploração no trabalho, por exemplo? Quais as penalidades?

Em maio deste ano convocamos todos os delegados/as promotores/as e defen-sores que atuam nas 80 delegacias espe-cializadas na atenção à pessoa idosa pa-ra um encontro nacional de capacitação e qualifi cação do fl uxo do Disque Direi-tos Humanos – Disque 100. Esse servi-ço é de fundamental importância no so-corro e acolhimento às vitimas de violên-cia. Novamente: adquire importância re-levante a ampliação da rede de atendi-mento e a participação da sociedade co-mo um todo em prol da promoção e ga-rantia de direitos.

Não é o caso pensar em uma campanha nacional, maciça, no sentido de promover a educação da população mais jovem no respeito aos idosos, no país?

O Brasil propôs aos países do Mercosul a elaboração de uma campanha conjunta para a promoção da solidariedade e co-operação intergeracional e de maior vi-sibilidade do envelhecer. Estamos cons-truindo, juntos, esse processo. Também propusemos ao Senado Federal a inclu-são da temática do envelhecimento que se inicia com a educação infantil no Pla-no Nacional de Educação. Por meio das nossas diversas ações, buscamos cons-truir uma cultura de direitos humanos, reforçando as responsabilidades do Es-tado e desenvolvendo a valorização de todas as fases da vida, conscientizando a população sobre a importância de valori-zar todas estas fases.

O mercado somente vê o ser humano quando ele está na sua fase produtiva, enquanto proporciona mais valia. Por is-so, as crianças e os idosos acabam fi can-do à margem, sendo percebidos como um “peso” para a sociedade. O nosso go-verno trabalha para que aconteça o con-trário – que todas as pessoas, em todas as fases da sua vida, sejam percebidas como fundamentais na construção de um país e de um mundo melhor, tendo assegura-dos os direitos inerentes à condição hu-mana. Por isso, é importantíssima a op-ção que o Brasil fez, desde o governo Lu-la, de enfrentar e resistir à onda neolibe-ral e manter a sua previdência e a seguri-dade social públicas como ações irrenun-ciáveis do Estado. (Carta Maior)

“O mercado só vê o ser humano em sua fase produtiva”ENTREVISTA Segundo a Ministra dos Direitos Humanos, construção da cidadania com inclusão de direitos dos idosos desafi a e resiste à onda neoliberal

“Essa melhora se vê refl etida no aumento de 9,2 anos (ou 14,2%) na expectativa de vida ao nascer do brasileiro”

“Somente no primeiro semestre deste ano recebemos quase 23 mil denúncias de violação de direitos de pessoas idosas”

A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário

Maioria das denúncias de violação de direitos dos idosos se refere à negligência, violência psicológica e abuso fi nanceiro

Marcello Casal Jr./ABr

José Cruz/A

Br

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de 2 a 8 de janeiro de 2014 9brasil

Daniele Silveirade São Paulo (SP)

NA LUTA permanente contra o racismo, ao longo de 2013, os movimentos sociais estiveram nas ruas para denunciar o ge-nocídio da população negra. Ao mesmo tempo, a constatação de que a Lei 10.639 ainda não foi implementada é um dos sintomas da falta de comprometimen-to dos governantes com essa parcela da população, formada por mais de 100 mi-lhões de pessoas, segundo o IBGE.

Resultado da pressão popular, desde 2003, essa lei tornou obrigatório o en-sino da história e cultura afro-brasilei-ra nos estabelecimentos de ensino fun-damental e de ensino médio, públicos e particulares. A legislação alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que cinco anos depois foi modifi cada pe-la Lei nº 11.645/08, incluindo a temáti-ca indígena.

Neste ano, a Lei nº 10.639 completou uma década, e o que se percebe são pou-cas iniciativas de aplicação da norma, to-cadas por educadores geralmente negros já engajados no debate. A situação é con-fi rmada no depoimento da professora da rede pública Adriana Moreira.

“O que eu tenho que fazer é levar a pau-ta para sala de aula, pensar nos valores civilizatórios afro-brasileiros e como es-ses valores podem organizar o meu tra-balho dentro da sala de aula, metodolo-gia, enfi m. Mas normalmente é um ou dois professores. Não tem uma disposi-ção do coletivo de professores ou mesmo da gestão da escola em implementar a lei e tornar esse um conteúdo estruturador do currículo e do projeto político, peda-gógico, da escola.”

A educadora ainda avalia que a difi cul-dade de aplicação da lei também está re-lacionada à própria formação dos profes-sores, pois cursos superiores de Licen-ciatura e Pedagogia ainda resistem em incorporar disciplinas sobre o tema em seus currículos. Como ressalta Dennis de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP), em um artigo de balan-ço dos dez anos da lei: “Observa-se essa difi culdade em maior grau nas grandes universidades, como a USP. Revela-se aí o caráter eurocêntrico e racista hegemô-nico no pensamento acadêmico”.

Adriana também questiona a falta de ferramentas que possam ajudar a fi scali-zar a implementação efetiva da lei, como o próprio Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

“Para além disso, a Lei nº 10.639 não é um critério para avaliação do Ideb. Então, quer dizer, o Estado brasileiro pensa uma legislação, ela não dispõe re-cursos específi cos para trabalhar com a temática e não prevê avaliação do pro-cesso. Porque o Ideb precisava ter um componente. A implementação da Lei 10.639 poderia vir a ser um dos critérios de avaliação das unidades escolares, e que infelizmente a gente ainda não viu isso”, sugere.

O Ideb é calculado com base em taxas de aprovação e desempenho dos estu-dantes na Prova Brasil.

Teimosia paulista

Também na área da educação, a im-plantação das políticas de ações afi rma-tivas está entre as principais pautas do movimento negro. Em agosto deste ano, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei de Cotas Sociais, que destina 50% das vagas em universidades e escolas técni-cas federais para estudantes oriundos de escolas públicas.

Dentro dessa cota haverá a distribui-ção entre negros, pardos e indígenas. A divisão será feita proporcionalmente à composição da população em cada esta-do, tendo como apoio as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografi a e Esta-tística (IBGE). Na contramão da demo-cratização do acesso ao ensino superior,

muitas universidades estaduais ainda oferecem grande resistência para a ado-ção de cotas, sobretudo em São Paulo. Para o professor de História e integrante da UNEafro Brasil Douglas Belchior es-sa postura é consequência de um proje-to político.

“É um projeto do governo do estado e do governador [Geraldo] Alckmin do PS-DB que são contra as cotas e a presen-ça de pobres e negros nas universidades. Eles continuam fazendo da universidade essa ilha de exclusão.”

A contraproposta de inclusão apresen-tada pelo governo de São Paulo no fi nal de 2012 foi amplamente questionada pe-lo movimento negro. Alckmin defendia o Programa de Inclusão por Mérito (PI-MESP), que criaria um curso intermedi-ário entre o ensino médio e o ensino su-

dos casos em que há suposto confron-to com policiais.

O programa Juventude Viva, lança-do pelo governo federal em setembro de 2012, para fazer o enfrentamento da violência contra a juventude negra no país ainda não deu respostas aos mo-vimentos.

Débora, que teve seu fi lho morto na Baixada Santista por policiais durante os chamados Crimes de Maio de 2006, tem receio de que o projeto seja usado apenas como uma política “oportunis-ta”. Para o enfrentamento, de fato, do genocídio da população negra na perife-ria, ela destaca a necessidade da imple-mentação de medidas que dêem condi-ções de vida a essa população.

“Nós somos sequestrados na parte da educação e o caminho para um Bra-sil sem violência começa pela Educação. Os nossos governantes nos aterrorizam

não dando educação para os nossos fi -lhos. Não há educação de qualidade para as pessoas poderem discutir e terem co-nhecimento dos seus direitos; só os de-veres. E uma moradia digna, sem a qual vários são jogados para dentro das peri-ferias. É o caminho de todos nós com fal-ta de uma moradia digna e uma saúde de qualidade. E não deixar para trás a segu-rança, que, para nós, é insegurança com a qual ele [o Estado] nos oferece.”

Nos chamados Crimes de Maio de 2006, forças de segurança executaram mais de 500 pessoas no intervalo de oi-to dias (12 a 20 de maio). As ações, am-plamente questionadas, ocorreram após atentados a viaturas, bancos, delegacias e órgãos públicos promovidos pelo Primei-ro Comando da Capital (PCC).

A maioria dos casos foi registrada co-mo resistência seguida de morte, mas inúmeros relatos denunciam ações de grupos de extermínio formados por po-liciais. Relatórios produzidos por orga-nizações de defesa dos Direitos Huma-nos apontam sinais de execução, como tiros na cabeça e vítimas baleadas pe-las costas.

Para 2014, Débora adianta que a luta contra o racismo e em defesa da popu-lação negra continua. “Queremos avan-çar, não queremos ser blindadas, não queremos ser perseguidas. Não admiti-mos mais esse extermínio velado no nos-so país produzido por quem deveria nos dar proteção. Acreditamos que em 2014 os nossos políticos não passarão. A gente quer a Reforma Política porque esses que estão aí não oferecem uma perspectiva de vida nem para os nossos fi lhos, nem para toda a sociedade.” (DS)

Ensino da cultura afro-brasileira nasescolas depende de “boa vontade”EDUCAÇÃO Lei que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira completa 10 anos, mas aplicação da norma se restringe a educadores geralmente negros já engajados no debate

As vítimas de homicídios no Brasil apresentam um perfi l em comum. Segundo dados do Ministério da

Saúde,

53%são jovens. Desses, mais de

75%são negros.

de São Paulo (SP)

Enquanto as pautas relacionadas às ações afi rmativas caminham a passos lentos, a violência contra jovens negros continua em alta e com respostas tími-das do Estado.

A reivindicação pela desmilitarização da polícia ganhou força nas ações do mo-vimento negro este ano e está entre as principais exigências das organizações que atuam na periferia.

As vítimas de homicídios no Brasil apresentam um perfi l em comum. Se-gundo dados do Ministério da Saúde, 53% são jovens. Desses, mais de 75% são negros.

A situação é confi rmada pelo Mapa da Violência 2012. O estudo indica que en-tre 2001 e 2010 o número de vítimas brancas, de 15 a 24 anos, caiu 27,5%, en-quanto o índice de negros assassinados aumentou 23,4%. Anualmente morrem 139% mais negros do que brancos na fai-xa dos 15 a 24 anos.

Débora Maria, coordenadora do movi-mento Mães de Maio, que organiza fami-liares de jovens mortos por policiais, de-nuncia a falta de políticas públicas para a juventude negra e pobre. Em vez de di-reitos sociais, ela aponta o fortalecimen-to da violência por parte do Estado.

“A gente vê que entra ano e saí ano e existe uma camufl agem, mas uma polí-tica verdadeiramente de enfrentamento [à violência], a perspectiva de vida pa-ra juventude está difícil. A política que o nosso governo oferece para a juventu-de é encarceramento em massa e exter-mínio por parte das instituições dos po-liciais. Então, o que a gente vê é um nú-mero crescente por parte do extermínio e sem uma punição severa aos algozes dos nossos fi lhos.”

Estimativas indicam que apenas 3% dos casos em que há morte em confronto com a polícia são investigados no país.

“Autos de resistência”O fi m dos “autos de resistência” é

apresentado como reivindicação para-lela à desmilitarização. Os movimentos pressionam o Congresso Nacional pela aprovação do Projeto de Lei (PL) 4471/12, que acaba com esse tipo de ocorrên-cia e torna obrigatória a investigação

Denúncia do genocídio revelou face mais violenta do racismoAnualmente morrem 139% mais negros do que brancos na faixa dos 15 a 24 anos

perior, chamado de “college”. Fato é que no decorrer dos anos, as universidades paulistas adotaram políticas próprias de inclusão. A USP e a Unicamp concedem aos estudantes de escolas públicas – con-templando pretos, pardos e indígenas – um bônus que é acrescido na nota fi nal. A Unesp implantou cotas, mas a medida foi considerada tímida pelos movimen-tos por ser gradual. A universidade atin-girá a meta de reservar metade das vagas somente em 2018.

Diante da resistência por parte das rei-torias, em junho deste ano a Frente Pró-Cotas Raciais de São Paulo apresentou na Assembleia Legislativa um modelo de Projeto de Lei que prevê nas instituições de ensino superior mantidas pelo estado (USP, Unesp, Unicamp e Fatec) a reserva de 55% das vagas para cotas.

De acordo com a proposta, 25% seriam ocupadas por negros e indígenas, 5% por pessoas com defi ciência e outros 25% por estudantes formados na rede pública. A metade das vagas destinadas para a es-cola pública estaria condicionada a uma renda per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio.

Nas ruas

Em paralelo, nas ruas, movimentos so-ciais realizam a campanha estadual de coleta de assinaturas para o Projeto de Lei de Iniciativa Popular de Cotas Ra-ciais e Sociais para as Universidades Pú-blicas de São Paulo.

Contrariando o histórico do governo de São Paulo na adoção de políticas afi r-mativas, Alckmin anunciou no começo de dezembro um projeto de lei prevendo cota racial no serviço público estadual. A proposta reserva 35% das vagas na admi-nistração direta e indireta para negros, pardos e indígenas.

Douglas avalia que a iniciativa é re-sultado da conjuntura política atual e da pressão popular que o movimento tem feito nos últimos anos.

“Agora ele tem um governo do PT mui-to próximo a ele, que é a experiência do Haddad na prefeitura. E o PT tem como característica avançar um pouco mais que o PSDB em algumas políticas de re-paração especialmente nessas questões relacionadas à questão racial. E isso for-ça ele ainda mais em um ano pré-eleito-ral a ter uma resposta mais rápida. En-tão, não é por acaso que logo em seguida que a Dilma anuncia, o Alckmin vem se-guida para fazer esse anúncio.”

No início de novembro, a presiden-ta Dilma Rousseff encaminhou ao Con-gresso Nacional projeto de lei que reser-va 20% das vagas do serviço público pa-ra negros. A proposta foi anunciada du-rante a abertura da 3ª Conferência Na-cional de Promoção da Igualdade Racial (III Conapir).

No início de novembro, a presidenta Dilma Rousseff encaminhou ao Congresso Nacional projeto de lei que reserva 20% das vagas do serviço público para negros

Estado ainda não foi capaz de conter violência contra jovens negros

Marcha da Consciência Negra realizada em novembro, no centro de São Paulo

Reinaldo Canato/Folhapress

Cau Guebo/Folhapress

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brasilde 2 a 8 de janeiro de 201410

Leonardo Ferreira,de São Paulo (SP)

MACHISMO, violência doméstica, as-sédio sexual, racismo. Estes foram al-guns dos históricos estigmas vividos pe-las brasileiras, também no decorrer de 2013. Não obstante, temas como o papel e a participação da mulher na política; a descriminalização do aborto; o combate à lesbofobia; e a autonomia sobre o cor-po marcaram a agenda de lutas.

No ano em que a Lei Maria da Penha completou sete anos de vigência, che-gou-se à conclusão de que muitos desa-fi os ainda precisam ser vencidos. Des-de que entrou em vigor a lei mais rigo-rosa para punição da violência domésti-ca, quase 700 mil procedimentos judi-ciais contra agressores foram registra-dos no país.

Para Sônia Coelho, Integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), a Maria da Penha é uma lei inte-gral. No entanto, ela lamenta que ape-sar de teoricamente criar mecanismos para proteger as mulheres, a legislação ainda esbarra nas questões práticas.

“A Lei Maria da Penha é uma lei in-tegral, é uma lei que prevê tanto puni-ção como a prevenção e a proteção das mulheres em relação à violência. O que ocorre no Brasil é que ainda falta prin-cipalmente que os estados e municí-pios tenham vontade política para im-plementar essa lei. Então, possam cons-truir os equipamentos necessários para a implantação da lei, possam construir e articular políticas públicas para o aten-dimento às mulheres.”, destaca Sônia.

MortalidadeAinda de acordo com Sônia, a falta de

investimentos em infraestrutura e de vontade política dos governos são en-traves para efetivar a lei no país.

“O que a gente tem identifi cado exa-tamente que falta mais é empenho dos governos. A lei precisa sair do papel pa-ra a prática e para a vida. Faltam dele-gacias, não têm os juizados especiais que deveria atender, os centros de re-ferência, casas-abrigo. Isso faz com que a gente tenha uma lentidão muito gran-de da Justiça. Tudo isso são elementos que fazem com que a lei não funcione e a gente por outro lado tem hoje as mu-lheres mais encorajadas para denun-ciar”, completa.

A violência letal é outro aspecto que preocupa. Entre 2000 e 2010, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no país. Cerca de 40% perderam a vida em su-as próprias casas, muitas vitimadas pe-los companheiros ou ex-companheiros. O Brasil é o 7º país com maior taxa de homicídio feminino em um grupo de 87 nações. Para Sônia, os números in-dicam que o próximo ano exigirá uma postura mais fi rme.

“Então, foi um ano de pontos positi-vos para as mulheres, mas tem muitos problemas principalmente em relação à violência. A gente no Brasil ainda é um dos países com maior índice de violên-cia. É o 7º no mundo em assassinatos de mulheres e sem contar que a gente vê hoje novas formas de violência contra a mulher como, por exemplo, a violência hoje via internet que as mulheres mui-tas vezes fi cam expostas por seus namo-rados, ex-namorados, companheiros. Ou seja, a violência nos meios de trans-porte, assédio sexual e violência”.

Trabalho e políticaUmas das conquistas para as mulhe-

res em 2013 foi a lei que equipara os di-reitos trabalhistas das empregadas do-mésticas com as demais categorias, co-mo pontua Sônia.

“Foi uma conquista a lei que iguala as trabalhadoras domésticas ao restan-te da classe trabalhadora. Se a gente for olhar no Brasil, 17% das mulheres que trabalham fora hoje ainda são emprega-das domésticas que são as que ganham menos, que têm menos direitos, terem acesso a mais direitos”, avalia.

Sônia chama atenção para a necessi-dade de uma mudança na mentalidade. Ela reconhece a importância da garan-

tia de direitos para o trabalho domésti-co, mas também defende que as ativida-des no lar sejam compartilhadas com os parceiros. “Nós precisamos tanto de po-líticas públicas para socializar esse tra-balho doméstico, como ele precisa ser compartilhado em casa. Então, preci-samos ter campanhas governamentais que discutam essa questão do trabalho para que ele possa ser dividido também em casa e as mulheres não se sintam tão sobrecarregadas e tão cansadas”.

EncontroEm agosto de 2013, cerca de 1,6 mil

mulheres, de 48 países, realizaram um encontro internacional em São Paulo. Entre as pautas discutidas no encontro “Feminismo em Marcha para Mudar o Mundo” estiveram reivindicações his-tóricas ligadas às demandas das mulhe-res, como o combate ao machismo, ao racismo e à lesbofobia. Ocuparam tam-bém no centro do debate temas como a autonomia sobre o corpo e auto-organi-zação das mulheres; a descriminaliza-ção do aborto; e o desemprego no cená-rio de crise internacional.

No documento fi nal do encontro, as mulheres destacam, entre outras defe-sas, o direito ao aborto legal, seguro e público, além de exigirem a aplicação plena da Lei Maria da Penha.

Somando-se a essa lei, em 2013 foi aprovado no Senado uma outra que in-clui a violência doméstica na Lei de Cri-mes de Tortura (Lei nº 9.455/1997), re-sultado da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-lher (CPMI).

O projeto incluiu na chamada “Lei da

Mais um ano de violência doméstica, assédio sexual e racismo

MULHERES Apesar de leis e outros instrumentos institucionais, 2013 demonstrou que governos não se empenharam por avanço concretos em relação à questão de gênero

tortura” a submissão de alguém à si-tuação de violência doméstica e fami-liar, com emprego de violência ou graveameaça, assim como intenso sofrimen-to físico ou mental.

Também foi aprovado o acompanha-mento psicológico e cirurgias plásticasàs mulheres vítimas de violência; be-nefício temporário da Previdência So-cial; e a exigência de rapidez na análi-se do pedido de prisão preventiva paraos agressores.

Outro instrumento para atuar nocombate à violência de gênero e promo-ver a autonomia das mulheres foi lan-çado pelo governo federal. Trata-se do“Programa Mulher: Viver sem Violên-cia”, que busca construir um espaço on-de abrigará todos os órgãos que possamamparar a mulher vítima de agressão.Sua implantação articulará vários po-deres e esferas públicas para diminuir ademora de fornecer ajuda à mulher víti-ma de violência, além de envolver seto-res como serviços de segurança, justiça,saúde, assistência social, acolhimento,abrigo e orientação para trabalho, em-prego e renda.

Ainda este ano, foi sancionado pelapresidenta Dilma Rousseff a lei que ga-rante atendimento integral a vítimas deviolência sexual. Segundo dados do Mi-nistério da Saúde, de 2009 a 2012, oscasos de estupros notifi cados cresceram157%. Somente entre janeiro e junho de2012, ao menos 5.312 pessoas sofreramalgum tipo de violência sexual.

A presidenta Dilma também manteveainda este ano texto o trecho que pre-vê o fornecimento de atendimento pa-ra prevenção de gravidez, como a distri-buição da pílula do dia seguinte, pontomuito questionado por lideranças reli-giosas e amplamente defendido por or-ganizações feministas.

Reforma A defesa da reforma política para ga-

rantir espaço às mulheres deve ser umadas pautas em destaque no ano de 2014,segundo informa Sônia. “São aspectosque a gente aponta que precisa mudarda participação política também, ape-sar da gente ter uma mulher presiden-ta, mas do ponto de vista da participa-ção política na nossa sociedade preci-sa haver mudanças bastante importan-tes porque as mulheres ainda não es-tão nos espaços, nos grandes espaçosde decisão. Nós estamos inclusive co-mo movimento de mulheres como Mar-cha Mundial de Mulheres apontandoque para o próximo ano nós temos quetrabalhar com prioridade na questão dareforma política, não só reforma eleito-ral, mas uma reforma política”.

O que ocorre no Brasil é que ainda falta principalmente os estados e municípios tenham vontade política para implementar essa lei

Faltam delegacias, não têm os juizados especiais que deveria atender, os centros de referência, casas-abrigo

“Nós precisamos tanto de políticas públicas para socializar esse trabalho doméstico, como ele precisa ser compartilhado em casa”

No documento fi nal do encontro, as mulheres destacam, entre outras defesas, o direito ao aborto legal, seguro e público, além de exigirem a aplicação plena da Lei Maria da Penha

Em agosto de 2013, cerca de 1,6 mil mulheres, de 48 países, realizaram um encontro internacional em São Paulo

Feminismo em Marcha para Mudar o Mundo

Fotos: Rafael Stedile

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cultura de 2 a 8 de janeiro de 2014 11

Horizontais –1.Nome dado ao Brasil, pelos indígenas, antes da invasão de Cabral, que signifi ca “terra das palmeiras”. 2.A resistível ascensão de Arturo (?), peça de Bertolt Brecht - Vestimenta “excludente” do carnaval de Salvador que identifi ca o folião para que seja protegido da “pipoca” por um cordão – Domínio na internet que identifi ca a Alemanha. 3.Sigla para Brasil que aparece nos uniformes dos atletas nas Olimpíadas – Carro famoso no Brasil principalmente nos anos de 1970 – País sul-americano que concedeu asilo político ao fundador do Wikileaks. 4.Termo que é duplicado no nome de um pássaro que fi cou famoso na voz de Carmen Miranda – Proprietária. 5.Capital do Canadá – Nele, a temperatura média do mês mais quente é inferior a 10ºC. 6.”Muito”, em alemão – “Pedra”, em tupi. 7. Nome que indica a introdução de líquido no ânus para lavagem – Nome dado ao “centavo” da libra esterlina – “Combustível”, em inglês. 8.Fazer o bebê dormir – Profi ssional humilhado pelo apresentador Bóris Casoy que foi a personagem principal da parti-cipação brasileira na festa de encerramento das Olimpíadas. 9. “Maré”, em inglês – Marca de sal de frutas – Povo do sul da África, vivendo em territórios correspondentes à África do Sul, Lesoto, Su-azilândia, Zimbábue e Moçambique. 10. “Nome”, em inglês – Comitê Olímpico Brasileiro. 11.País de Mandela – Cobertura para a cabeça usada no banho.

Verticais – 1.”Forno”, em inglês. 2.São Paulo de (?), nome original da cidade por causa dos peixes secos resultantes das vazantes dos seus rios. 3.Adolescente. 4.Pelado – Peixe que também dá nome a uma cor. 5.Lady (?), ex-mulher do princípe Charles – Aviso de Recebimento. 6.”Avó”, em alemão. 7.”Descanse em paz”, em inglês – Cambahyba é o nome de uma (?) no estado do Rio de Janeiro em que se descobriu que militantes de esquerda foram incinerados durante a ditadura. 8.Registro de uma reunião – Uma das maneiras de falar “pai”, em inglês. 9.Sétimo maior país da África situado na África Ocidental sem saída para o mar – O endereço de um computador numa rede – Tendência adolescente que mistura moda e música emotiva. 10.Da gordura de sua fruta, rica em vitamina E, pode ser feito até sabão – Sigla de Espírito Santo. 11. Uma fruta, em inglês, que também empresta o nome a uma cor. 12.Poesia própria para canto – Alojamento de cachorro. 13.(?) Guarani, uma das maiores reservas de água potável do mundo. 14.Sigla para Centro de Treinamento. 15.Pequeno cubo que tem em cada face determinado número de pontos, desde um até seis - “Zoológico”, em inglês. 16.O contrário de “tarde” - Abutre brasileiro que come carniça. 17. “Ligado”, em inglês. 18.Quebradiço – Cor “preta”, em tupi.

Horizontais – 1.Pindorama. 2.Ui – Abadá – de. 3.BRA – Opala – Equador. 4.Tico – Dona. 5.Ottawa – Ártico. 6.Viel – Ita. 7.Enema – Pence – Fuel. 8.Ninar – Gari. 9.Tide – Eno – Zulu. 10.Name – COB. 11.África do Sul – Touca.

Verticais – 1.Oven. 2.Piratininga. 3.Teen. 4.Nu – Salmão. 5.Di – AR. 6.Oma. 7.RIP – Usina. 8.Ata – Dad. 9.Mali – IP – Emo. 10.Abacate – ES. 11.Orange. 12.Ode – Canil.13.Aquífero. 14.CT. 15.Dado – Zoo. 16.Cedo – Urubu. 17.On. 18.Frágil – Una.

PALAVRAS CRUZADAS

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Adailtom Alves Teixeira

O CRÍTICO TERRY EAGLETON, em seu livro A função da crítica (1991), afi rma que a crítica moderna nasceu de uma luta contra o Estado absolutis-ta, entre os séculos 17 e 18, quando a classe burguesa criou a esfera pública, um espaço de discussão situado entre o Estado e a sociedade civil. Essa mes-ma crítica foi se transformando ao lon-go dos séculos e hoje teria perdido sua relevância social, já que se incorporou à indústria cultural.

Eagleton aponta, ainda, a tarefa do crítico na atualidade: colocar-se con-tra a classe dominante, dirigindo-se a uma contraesfera pública, mas que, no entanto, não existe. E aqui temos um problema que merece ser debatido. A ausência de uma contraesfera pública, vem ocorrendo porque a classe traba-lhadora, os movimentos sociais orga-nizados, os partidos de esquerda ain-da não foram capazes ou não entende-ram a importância da disputa da subje-tividade do trabalhador. Pois, para dis-putá-la, faz-se necessário a criação de instituições ou mecanismos de educa-ção, de cultura e de comunicação para a classe trabalhadora. Se existem exce-ções nessas áreas, estas parecem ape-nas confi rmar a regra: a ausência de uma contraesfera aos valores hegemô-nicos. Se a luta da classe trabalhadora for apenas (o que não é pouco) econô-mica e política, esquecendo a luta sim-bólica, pouco mudará dos valores, há-bitos e gostos dos trabalhadores.

Um exemplo simples, ingênuo até: imagine um grupo de trabalhadores que ainda não construíram sua iden-tidade de classe e que lhes sobra como lazer, cultura, diversão e informação a tv brasileira. E não é justamente esse o mecanismo que tem formado, nos últi-mos 50 anos, o gosto cultural do traba-lhador brasileiro, inclusive dos mais

Disputa do imaginário do trabalhador

OPINIÃO Os movimentos sociais organizados, os partidos de esquerda ainda não foram capazes ou não entenderam a importância da disputa da subjetividade do trabalhador

engajados? Em certo tom de brinca-deira, poderíamos afi rmar que ele pró-prio se disputa entre o gosto burguês,o consumismo, o individualismo, umaintensa fragmentação e a necessidadede juntar-se em grupo para superar es-sas “dúvidas”. Não disputar a subjeti-vidade do trabalhador ou não apontarpara outras possibilidades culturais écontinuar relegando à indústria cultu-ra essa tarefa.

Não é exagero afi rmar que parte dasderrotas da classe trabalhadora vemocorrendo devido a falta de atenção pa-ra com a disputa da subjetividade damesma. Ou seja, sem a formação deuma contraesfera pública muitas daslutas fi cam difíceis, pois onde se pode-riam popularizar as ideias mais com-plexas da luta? Para Raymond Williansessa ausência teria sido um dos moti-vos do desmonte da organização dostrabalhadores na Inglaterra. Afi rmaTerry Eagleton: “a verdadeira popula-rização política envolve mais que a pro-dução de obras que tornem a teoria so-cialista inteligível a um público de mas-sa, por mais importante que seja esseprojeto; um tal público leitor não de-ve ser amorfo, mas institucionalizadoe capaz de receber e interpretar essasobras num contexto coletivo, além derefl etir sobre suas consequências emtermos de ação política.” Sem esse es-paço público de discussão, o que sobraaos intelectuais de esquerda – comoocorreu com Raymond Willians na In-glaterra, ainda de acordo com Eagleton– é menos a ideia de homens de letras emais a ideia de “sábios isolados e dissi-dentes”. Ainda assim, a esses “sábios”,mesmo na irrelevância social da críticana atualidade, sobra a discussão da in-teração das relações sociais, das insti-tuições culturais e das formas de subje-tividade, bem como continuarem a in-sistir que todo movimento social de es-querda pense e crie formas e maneirasde disputar o imaginário do trabalha-dor no campo da arte, da educação e dacomunicação.

Por fi m, se existem as exceções espa-lhadas por aí, como fazer para juntartodas de maneira a potencializar essetrabalho? É nossa tarefa pensar e arti-cular esse projeto. Por outro lado, cadapartido e cada movimento social de es-querda não deve subestimar a força daarte e da cultura na luta da classe tra-balhadora.

Adailtom Alves Teixeira é graduado em História e Mestre em Artes;

ator e diretor teatral.

Cada partido e cada movimento social de esquerda não deve subestimar a força da arte e da cultura na luta da classe trabalhadora

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internacionalde 2 a 8 de janeiro de 201414

“A ANP está comprometida com Israel”ENTREVISTA Companheira de líder da resistência palestina preso revela que polícia palestina se comporta como guarda do exército israelense

José Coutinho Júniorenviado especial à Palestina

“TENHO QUE TRABALHAR, cuidar da família e lutar pela libertação do meu marido”. Assim Abla Sa’dat defi ne sua luta. Abla é esposa de Ahmad Sa’adat, líder do partido marxista palestino Frente Popular pela Libertação da Pa-lestina, segundo homem mais infl uen-te na Organização Para a Libertação da Palestina (OLP), entidade que reúne os diversos partidos palestinos que bus-cam uma solução para a questão pales-tina e a principal liderança da esquerda palestina atualmente.

Por sua infl uência, Ahmad sempre foi perseguido pelo exército de Israel, vi-vendo como um fugitivo durante anos. Em 2002, já vivendo na clandestinida-de, foi convocado pelo então presidente do governo da Autoridade Nacional da Palestina (ANP), Yasser Arafat. Ao che-gar no local da reunião, foi emboscado e preso pelo governo. Os salários dos funcionários da Autoridade Palestina vêm da ONU, mas são entregues para Israel, que então repassa para o gover-no. Arafat alegou que Israel exigia sua prisão, senão reteria os salários.

Sa’adat fi cou em uma prisão palesti-na em Jericó até 2006, quando tropas israelenses invadiram o local, o captu-raram e o levaram para uma prisão is-raelense. Desde então, está preso em Israel, sem saber se será solto algum dia. Abla é uma das principais vozes na luta pela liberação dos presos polí-ticos palestinos, realizando campanhas internacionais de solidariedade e de-nunciando os abusos das autoridades Israelenses. Confi ra entrevista de Abla Sa’dat:

Brasil de Fato – Abla, onde o Ahmad está hoje, e como está a saúde dele?Abla Sa’dat – Ele está preso na região do norte de Israel, ocupada em 1948. O Ahmad fi cou isolado numa cela individu-al de 2009 a 2012, sem conexão e conta-to com as pessoas. Ele só saiu de lá por-que os prisioneiros fi zeram uma greve de fome para tirar 23 presos da solitária e acabar com a política de isolamento.

Ele está bem de saúde. Se cuida fa-zendo exercícios físicos e parou de fu-mar. Se ele fi car doente e tiver de ir a uma clínica militar, voltará pior do que foi. Ele sofre com alergias, então mu-dam ele de celas constantemente de propósito para que ele pegue alergias e fi que doente.

Que motivos Israel alega para ter realizado a prisão e mantê-lo cativo?

Ahmed está preso por ser o líder da Frente Popular, essa é a única queixa, não há uma condenação concreta contra ele. Inclusive, a alegação do juiz para iso-lá-lo foi a de que “essa pessoa pode fazer os palestinos se voltarem contra Israel só com o olhar”.

As prisões são ilegais, pois os presos políticos lutam pela liberdade de uma terra ocupada. Mesmo as leis israelenses não justifi cam a prisão de Ahmad. É uma questão puramente política e ideológica. Realizamos de 17 a 24 de outubro deste ano uma campanha internacional de so-lidariedade, na qual organizações e pes-soas solidárias enviaram cartas a ele e às autoridades israelenses, para pressionar por sua libertação.

Depois que Ahamad foi preso, como é sua vida, seu dia a dia?

Nos casamos em 1983 e vivi em paz com ele até 1985 apenas. Nos anos se-guintes, ou ele estava na cadeia ou fo-ragido. Temos duas fi lhas e dois fi -lhos, que eu criei praticamente sozi-nha. Quando ele foi preso em 1987, fui presa também.

Tínhamos um fi lho de nove meses na época. Em 2003, fui presa novamente, quando ia para o Fórum Social Mundial em Porto Alegre – fi quei na prisão por quatro meses. Nesses períodos, nossa fa-mília viveu sem pai e mãe. É uma vida

muito difícil. Tenho que trabalhar, cui-dar da família e lutar pela libertação do meu marido. Mas como mulher palesti-na, é minha função com todo o povo.

Qual é a posição da ANP em relação à prisão de Ahmad?

Quem realizou a prisão foi a ANP [Au-toridade Nacional Palestina], em Ra-mallah. Ahmad fi cou três anos em Jeri-có, até o exército israelense invadir a pri-são e o levar para Israel. O discurso do governo é de que se deve libertar os pre-sos, mas na verdade eles estão compro-metidos com Israel.

No começo de outubro, o exército isra-elense invadiu o campo de refugiados de Geni e prendeu cinco ativistas da Jihad islâmica. A polícia palestina não faz na-da contra o exército, são guardas de Is-rael, que ajudam a prender os militantes que discordam e se opõem às políticas do governo, como os do Hamas, da Jihad e a esquerda palestina.

Como é o processo de visitas na prisão?

A humilhação começa antes de fa-zer a visita. De toda a nossa família,só eu e meu fi lho mais velho podemosvisitá-lo, porque nós temos um cartãode identidade de Jerusalém. Os presosque são do norte são levados para ca-deias do sul e vice-versa, para difi cultaras visitas dos familiares. Temos que irjunto com a Cruz Vermelha, senão nãoentramos.

Quando chegamos, fi camos do lado de fora da prisão, não tem lugar para sen-tar. Preenchemos ali uma lista com os nomes de quem vamos visitar. Quando entramos, passamos por um detector demetais e uma revista corporal.

Não podemos levar comida ou mes-mo cigarros conosco; existe uma loja naprisão, e se quisermos dar essas coisas aos presos, temos de comprar lá a pre-ços muito altos, e se algum preso qui-ser assinar um dos três jornais de Je-rusalém para se manter informado, de-ve pagar 800 dólares pela assinatura de um jornal que não custa nem um dólar.E os jornais geralmente chegam atrasa-dos; os assinantes recebem todas as edi-ções no fi nal do mês.

É permitido levar livros, mas todossão lidos para checar se existe materialsubversivo antes de ser entregues. Co-mo Ahmad gosta dos livros perigosos,eles costumam fi car retidos. Geralmen-te levo uns seis livros comigo e distribuo entre os outros visitantes. Caso os ou-tros presos consigam receber, eles pas-sam para o Ahmad. Só podemos levar roupas novas para eles duas vezes aoano, quando as estações mudam.

Na hora da visita, 11 pessoas entramjuntas na sala. Lá dentro, existe um vi-dro que separa o visitante do prisionei-ro, a conversa é gravada, e depois de 45minutos, a janela fecha e o telefone édesligado. Muitas vezes não dá nem pa-ra se despedir.

“O discurso do governo é de que se deve libertar os presos, mas na verdade eles estão comprometidos com Israel”

“Lá dentro, existe um vidro que separa o visitante do prisioneiro,

a conversa é gravada, e depois de 45 minutos, a janela fecha e o

telefone é desligado”

do enviado especial à Palestina

“Eu e meu amigo Osama estávamos in-do a um parque em Birqin quando dois jipes militares israelenses apareceram. Os soldados nos agarraram, colocaram cada um de nós em um carro diferente e nos agrediram. Quando chegamos no check point de Al Jalame, nos forçaram a tirar nossas roupas. Ficamos só de cue-cas, algemados e vendados. Fomos força-dos a andar descalços no chão quente e fomos interrogados. Eu vi o interrogador bater no Osama com um porrete de me-tal, que depois foi usado para bater em mim. Ele também deu tapas na cara do meu amigo. Fiquei muito assustado”.

“O interrogador nos acusou de ter uma mala carregada de explosivos, nos agre-diu fi sicamente e queria uma confi ssão. Ele me bateu pelo menos 20 vezes nas costas, e eu fi quei com muito medo de-le. Assinei os papéis sem saber o que es-tava escrito lá. Lá pelas 22h30 da noite, devolveram nossas roupas e fomos trans-feridos para a prisão de Megiddo, dentro de Israel. Meu nome é Ahmad, tenho 13 anos de idade e fui preso pelo exército is-raelense em 23 de maio de 2013”.

A prisão e agressão de crianças palesti-nas pelo exército de Israel é mais comum do que se imagina. Dados da Organiza-

ção Internacional de Defesa das Crianças (DCI) apontam que atualmente 179 me-nores de idade estão presos nas cadeias israelenses.

Relatos de diversas crianças que já pas-saram pela prisão, coletados pelo DCI, ilustram a forma como o exército de Is-rael age para prender menores de idade. Mais de 60% das crianças que estão na cadeia foram presas à noite, entre meia-noite e cinco da manhã. As tropas isra-elenses invadem as casas e separam as crianças dos pais.

Ao identifi car a criança, a algemam, ve-dam os olhos e jogam no jipe. O exército não informa nem a ela ou à família o mo-tivo da prisão ou para onde vai ser leva-da. Durante a viagem, a criança fi ca no chão do jipe, entre as pernas dos solda-dos, sendo exposta à violência física, hu-milhação e intimidação.

Depois, ela é levada ao centro de de-tenção e interrogação, dentro das colô-nias israelenses. O objetivo é extrair con-fi ssões, mesmo que elas sejam forjadas, e para isso o exército se utiliza da tortu-ra. Além de agressões físicas, os militares estão se utilizando muito da tortura psi-cológica.

“O exército israelense descobriu que a tortura psicológica é mais efi ciente para extrair confi ssões do que a física. Duran-te o interrogatório, a atmosfera é cons-truída para pressionar por todos os la-dos, pois nesse período o único canal de informação é o interrogador israelense. O que ele contar, a criança tende a acre-ditar por não receber informação de ou-tras fontes. Se o interrogador disser que, caso a criança não assine, ‘vamos demo-lir sua casa’, ela acredita, mesmo sendo

mentira. O isolamento serve para colocar a pessoa numa incubadora com um canal de informação único por onde essa pres-são se exerce”, afi rma Ayed Abu Qtaish, do DCI.

A tortura psicológica faz com que a maioria das crianças presas assine as confi ssões que o exército israelense pede. Estas confi ssões, por sua vez, são usadas como prova principal no julgamento.

Os advogados de defesa podem con-testar a validade das confi ssões, mas is-so não impede o andamento do julga-mento: uma corte separada é criada pa-ra julgar isso. Essa situação faz com que, muitas vezes, os advogados sejam obri-gados a barganhar para diminuir a pena da criança.

“O advogado e a promotoria acabam concordando em diminuir a pena que seria dada, contanto que a criança fi que um período menor na prisão e a família pague uma fi ança. Quando os advogados pensam no interesse da criança, prefe-rem fazer o acordo do que desafi ar o sis-tema”, lamenta Ayed Abu Qtaish.

Dois pesos, duas medidasO sistema penal de Israel trata os me-

nores israelenses e palestinos de for-mas completamente distintas. De início, os menores israelenses são julgados em uma instância civil, enquanto os palesti-nos são julgados por uma corte militar.

Na corte civil, segundo as leis israe-lenses, as crianças não podem ser presas ou interrogadas até fazer 14 anos; já as crianças palestinas podem ser presas pe-lo Tribunal Militar a partir dos 12 anos.

A Corte civil busca outras alternativas além da prisão, que é considerada a úl-

tima opção. Por sua vez, no sistema mi-litar, a prisão é o primeiro passo. Apesar de Israel ser signatário do Tratado In-ternacional do Direito das Crianças, ale-ga que as leis internacionais não se apli-cam no território ocupado e às crianças palestinas.

Por pressão da comunidade interna-cional, nos últimos três anos Israel fez al-gumas alterações no seu sistema jurídi-co e na forma como julga os menores pa-lestinos. No entanto, essas mudanças na prática não alteraram a situação.

Uma dessas mudanças foi a implanta-ção de uma Corte juvenil que, na práti-ca, funciona da mesma forma que a cor-te militar normal. Segundo Ayed Abu Qtaish, “quem ouve o termo ‘Corte ju-venil’ pensa numa Corte que respeite os direitos das crianças, que pense nos in-teresses delas em primeiro lugar. Mas a mesma estrutura, leis e os mesmos juízes da corte normal estão presentes na Cor-te juvenil. A única diferença é que invés de trazer as crianças e adultos na mesma corte, só as crianças se apresentam”.

Outra mudança foi aumentar a maiori-dade penal dos palestinos de 16 para 18 anos (a maioridade penal israelense já era 18 anos), mas os palestinos não ob-tiveram nenhum direito ou garantia com essa alteração. No entanto, essas medi-das foram o sufi ciente para a comunida-de internacional aliviar a pressão.

“É uma clara discriminação. O sis-tema israelense é feito para contro-lar e oprimir, numa tentativa de proi-bir a resistência do povo palestino. Elesquerem que as pessoas apanhem e es-perem o próximo tapa”, diz Ayed AbuQtaish. (JCJ)

Tortura psicológica ganha força contra criançasDesprotegidas, crianças palestinas sofrem como adultos violência da ocupação

Fotos: Brigada Gassan Kanafani

Abla Sa’dat, esposa de Ahmad Sa’adat

Cartaz pede a libertação de líder do partido marxista Frente Popular pela Libertação da Palestina

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internacional de 2 a 8 de janeiro de 2014 15

José Coutinho Júniorenviado especial à Palestina

NA ESTRADA que corta o Vale do Jor-dão, após passar por Jericó, a paisagem se altera rapidamente. O terreno árido e sem vida vai se tornando mais e mais verde, com grandes plantações de pal-meiras, estufas de diversas culturas e métodos avançados de irrigação do so-lo seco.

Essas são as diversas colônias criadas pelo Estado de Israel nos territórios pa-lestinos, localizadas próximas às bases de treinamento do exército. Após expul-sar os camponeses palestinos de suas ter-ras, os israelenses seguem para esses es-paços, onde recebem armas, treinamen-to militar e dinheiro para produzir.

Rodeada por essas colônias e bloquea-da por uma base militar está a vila cam-ponesa palestina de Jiffl ek. Sua área to-tal era de 3,7 mil hectares, mas 2 mil já foram confi scadas por Israel. A popula-ção formada por 500 famílias, é compos-ta por camponeses locais e refugiados.

A localidade conta apenas com uma es-cola, que leciona até o ensino médio. Só 5% da população chega à universidade, por conta da demanda de pessoas para trabalhar no campo e pela distância en-tre a cidade e a vila.

Seis check points no Vale do Jordão cercam a vila, isolando-a do resto da Cisjordânia. A produção dos campone-ses, majoritariamente de pepino, chá de café e dátiles, um fruto doce extraído das palmeiras, é em grande parte proibida de ser comercializada no restante da Cisjor-dânia pelo exército de Israel. Os campo-neses conseguem vender apenas para Tamum, cidade ao norte do território, e nos mercados locais.

Os camponeses palestinos também não têm acesso a fertilizantes e pestici-das para produzir. Utilizados amplamen-te nas colônias israelenses, o exército re-tém os produtos dos palestinos alegando “questões de segurança”.

Além disso, Israel tem controle total das fronteiras da vila, decidindo quais produtos em Jiffl ek serão exportados e importados. O Ministério da agricultura da Autoridade Nacional Palestina (ANP) exerce um papel mínimo, não realizan-do ações concretas em apoio aos cam-poneses.

Dessa forma, os camponeses de Ji-ffl ek precisam de auxílio para produzir. Em parceria com a União dos Comitês de Trabalhadores Agrícolas da Palestina (UAWC), eles realizaram a plantação de palmeiras na vila, além de diversos pro-jetos de irrigação, construção de creches e de estufas.

Organizações internacionais também colaboraram com a construção de estu-fas, doação de insumos e com um novo projeto para a produção de pesticidas or-gânicos, tanto para não depender mais do controle de Israel como para produzir alimentos mais saudáveis.

A vila se organiza nos comitês agrários, decidindo o destino político e econômi-co da vila de forma coletiva. Em 2009, foi criada uma cooperativa agrária com o objetivo de desenvolver a produção e buscar formas de comercializá-la.

“Existência é resistência”A relação entre a vila e as colônias isra-

elenses é de tensão. Conforme conta Sa-meer Matar, membro da UWAC, “nasce-mos na ocupação. Sempre fomos uma fa-mília de agricultores e vivemos uma con-dição agrária cada vez pior que vai con-tinuar até a ocupação acabar. Tudo é controlado pela ocupação, os campone-ses são ameaçados diariamente na épo-ca da colheita por conta da base militar e das colônias. É uma estratégia israelen-se para expulsar os palestinos da região do Jordão”.

Exemplo dessa estratégia é o contro-le das fontes de água. 78% das reser-vas aquíferas da região estão sob domí-nio de Israel. Dos 32 poços existentes só 18 podem ser usados pelos palestinos pa-ra agricultura. Os outros estão quebra-dos, mas os camponeses não conseguem permissão do exército para consertá-los. Os israelenses, além de tomar os poços

já existentes, ao criar um novo, têm per-missão para cavar mais de 5 mil metros, enquanto que os palestinos, quando con-seguem a permissão, podem cavar ape-nas mil metros.

Como Jiffi lek está localizada em uma área C, que está sob domínio comple-to de Israel, novas pessoas não podem construir casas. Dessa forma, quem vai para lá cultivar não consegue se esta-belecer.

Há também o “fantasma” das prisões arbitrárias. Sameer foi preso por nove anos. Hussein Eide, camponês de Jiffi -lek e representante dos comitês agrá-rios da UAWC, por cinco. Ele conta que uma de suas duas fi lhas é surda-muda, pois quando era pequena, o exército entrou em sua casa na madrugada para realizar uma operação e a violência foi tão grande que ela nunca se recuperou do trauma.

Quando questionaram sobre a causa de suas prisões, a alegação feita pelo exérci-to foi de que eles “resistiam à ocupação”. “Resistir, no nosso caso, signifi ca seguir existindo na nossa terra. Israel alega que realizamos atividades contra a segurança israelense e que fomos presos por ques-tões de segurança. É a queixa que todos ouvem”, diz Sameer.

Apesar de todas as difi culdades, os camponeses se recusam a abandonar sua vila. Hussein, apontando para o so-lo onde pisa, explica: “Essa é a nossa terra, vamos resistir aqui. Somos cam-poneses palestinos, e mesmo se não ti-vermos mais nada para comer ou não pudermos cultivar o nosso solo, vamos resistir. Trabalhamos mais de 12 horas por dia na terra”.

AzeiteUm dos maiores símbolos dos campo-

neses palestinos são os pés de oliveiras e a colheita de azeitonas. Segundo os agri-cultores, o azeite produzido por eles é o mais puro do mundo. As oliveiras estão adaptadas ao clima seco, são de fácil cul-tivo, não precisando ser regadas e nem exigindo grandes cuidados.

Elas também têm um ciclo de vi-da grande, podendo chegar a até 2 mil anos de idade. Algumas oliveiras são patrimônios familiares. Por isso, o cul-tivo e a colheita das azeitonas está di-retamente ligado às origens e tradições do povo.

Os camponeses palestinos, ao contrá-rio de agricultores em outros países, não moram no mesmo lote onde trabalham no campo. Eles geralmente vivem em vilas próximas. Por conta disso, o mu-ro que Israel está construindo está divi-dindo os camponeses de suas terras em diversas vilas. Muitos têm de passar por check points para poder colher e o exér-cito israelense estipula um período du-rante o ano para que seja realizada a co-lheita.

Frequentemente, militares e colonos israelenses impedem os camponeses de colher ou cortam e queimam as árvo-res. No ano passado, segundo dados da UAWC, mais de 7,5 mil oliveiras, muitas com mais de 100 anos de idade, foram queimadas ou cortadas por Israel.

A vila de Derestia tem mais de 1500 anos de idade e uma forte tradição cam-ponesa. Além da produção de azeitonas, os agricultores criam ovelhas, gado bovi-no e produzem frutas cítricas. Em outu-bro, eles se preparam para iniciar mais

uma colheita de azeitonas. Por conta da proximidade de Derestia com a maior co-lônia israelense, Ariel, de 40 mil habitan-tes, as hostilidades dos colonos e presen-ça do exército na hora da colheita é algo que pode acontecer.

Por isso, os camponeses são ajuda-dos por grupos de solidariedade inter-nacionais, que além de participar no trabalho manual, ajudam a proteger os palestinos.

AliAli é um agricultor de 43 anos. Tem

em sua propriedade 100 pés de olivei-ra grandes, mais 400 pequenos. Geral-mente trabalha sozinho ou com a ajuda de um amigo, conseguindo colher de du-as a quatro árvores por dia.

Ele espera produzir cerca de mil litros de azeite este ano – em 2012, foram so-

Comitês por segurança alimentar A União dos Comitês de Trabalhadores Agrícolas da Palestina (UAWC)

foi criada em 1986, em resposta à vulnerável circunstância sociopolítica dos camponeses, resultante do confi sco de terras e água no início da década de 1980 por Israel.

Ramifi cação do partido de esquerda marxista Frente Popular pela Liberta-ção da Palestina (FPLP), a UAWC tem como objetivos conscientizar os cam-poneses de seu papel social e fornecer ferramentas para que eles possam se organizar e produzir.

A UAWC visa a segurança alimentar para a sociedade palestina, sabendo que isso só pode ser alcançado se os palestinos viverem em uma democracia livre, sendo soberanos dos recursos naturais, de sua terra. Por isso, a luta no campo é contra a ocupação israelense também.

Entre os projetos dos comitês estão o desenvolvimento de terra que per-deram fertilidade; assistência técnica; um banco de sementes, que realiza processos de melhoria genética e distribuição gratuitas destas sementes aos camponeses; a construção de cisternas; organização das mulheres em coo-perativas; propaganda e comercialização do azeite palestino; e projetos de emergência, como o fornecimento de rações a pastores beduínos que perde-ram suas terras. (JCJ)

mente 100 litros. A sua situação é bemdiferente da maioria dos outros campo-neses, que preveem um ano ruim – a co-lheita da azeitona sempre tem um ano bom seguido por um ano ruim. Ali ven-de o azeite em Ramallah e Belém a 10dólares por litro. Ele também trabalhacomo policial em Ramallah, por isso su-as difi culdades para colher tudo a tem-po aumentam.

A colheita de azeitona não é um dos serviços mais exaustivos, com exceção do sol escaldante. Após colocar uma lo-na no pé das árvores, é preciso tirar todas as azeitonas de todos os galhos, utilizan-do para isso uma pequena pá ou as pró-prias mãos. Para alcançar os galhos mais altos, é necessário subir numa escada. Só se avança para a próxima árvore depois de colher todas as azeitonas. Após a co-lheita, as azeitonas vão para uma agroin-dústria dentro de Derestia, onde se ex-trai, produz e embala o azeite para ser comercializado.

Naquele dia, o exército não interviu na colheita. Ali disse que este ano a colheita está relativamente tranquila. “O exérci-to ou os colonos ainda não fi zeram nada dentro das propriedades. O que aconte-ceu de mais grave foi perseguirem alguns camponeses que passavam pela estrada para tentar realizar a colheita”, comple-tava Ali.

Cultivando a resistência na terraESPECIAL Cercados por difi culdades, camponeses palestinos lutam para manter tradição do cultivo de oliveiras

A vila se organiza nos comitês agrários, decidindo o destino político e econômico da vila de forma coletiva

“Os camponeses são ameaçados diariamente na época da colheita por conta da base militar e das colônias. É uma estratégia israelense para expulsar os palestinos da região do Jordão”

Fotos: Brigada Gassan Kanafani

Banco de sementes, um dos projetos desenvolvido pelos comitês

O agricultor Ali trabalha na colheita de azeitonas

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américa latinade 2 a 8 de janeiro de 201416

Bernardo Londoy/CC

Elaine Tavares

AO SE COMPLETAREM nove meses da morte de Hugo Chávez, o panorama que se vislumbra na América Latina é desa-nimador.

A Venezuela “cria cuervos”, agarrada com a elite fi nanceira do país que põe a economia no chão. O Equador se rende às mineradoras e aos ditames do Banco Mundial. O Brasil, que nunca chegou a trilhar os caminhos do socialismo, cada vez mais mergulha no pragmatismo do negócio. Países da América Central que estavam inclinados a uma parceria com a Venezuela também se desviam. A Bo-lívia, apesar de forte infl uência indíge-na, igualmente vai se rendendo às gran-des empresas privadas, que formam um perigoso poder no país. O Uruguai, que tem sido a estrela da vez, avança em re-formas que muito pouco mudam a estru-tura do sistema de governo. Ao que pare-ce, a era das transformações está encer-rada e o caminho para o socialismo, que era uma promessa do líder venezuelano, está, por hora, interrompido.

Como era de se esperar, o desapareci-mento de Chávez foi também o desapa-recimento do motor teórico do proces-so “revolucionário” que começou com a chegada desse militar incomum ao po-der em 1998.

Quando Chávez chegou à presidência da Venezuela o mundo estava então do-minado pelo pensamento neoliberal. Pa-recia não haver saída desse labirinto de pensamento único. Na América Latina, apenas Cuba seguia resistindo, e o pre-sidente venezuelano entrou no cenário com um discurso duro contra o imperia-lismo e o capital.

No princípio foi tratado como um ana-cronismo, uma falha na matrix que lo-go seria extirpada. Mas, no tecido so-cial completamente roto da Venezuela a proposta de Chávez cresceu, tomou cor-po e se encarnou na maioria da popula-ção desde sempre empobrecida.

Ele prometia uma revolução bolivaria-na, amarrada ao ideário do famoso con-terrâneo que liderou as grandes guerras de independência da parte norte e leste da América Latina: Bolívar. E o que é o bolivarianismo? Um sistema de gover-no que tem como plataforma a educação gratuita para todos, soberania, fi m do co-lonialismo político, econômico e cultu-ral, unidade dos países latino-america-nos, fi m da dependência.

Veias da AméricaE foi esse sendero que o governo de

Chávez foi abrindo por entre as veias da América Latina. Seu discurso forte, seu carisma e, fundamentalmente suas ações, guinaram a Venezuela à esquer-da e, com ela, começaram a girar tam-bém outros países.

O Equador, depois de fortes rebeliões indígenas, foi buscando um caminho so-berano. A Bolívia, igualmente derrubou presidentes, ardeu em rebelião e apontou novos horizontes, inauditos.

Veio uma nova Constituição na Vene-zuela, participativa, desde baixo. Outro duro golpe no pensamento neoliberal, no modelo ocidental, burguês. Institucio-naliza-se o poder popular, coisa inédita nestes confi ns. Anunciam-se revoluções bolivarianas, cidadãs, culturais. O impe-rialismo atacou, deu golpe, mas foi der-rotado pela massa que já não estava mais excluída da participação.

Chávez voltou fortalecido, passou por novas eleições, sempre vencendo. Dia a dia ele falava com seu povo, lia livros, editava outros tantos, orientava estu-dos. Não era um bravateiro sem estofo. Sabia o que dizia e o que estava fazendo. Não era ainda o socialismo. No máximo, um capitalismo de Estado, mas prometia avançar para além. E caminhava.

Na esteira das mudanças venezuela-nas a Bolívia também mudou. Elegeu Evo Morales, das fi leiras indígenas e sin-dicais, construiu de forma participativa e popular uma nova Constituição, criou um Estado Plurinacional, avançou na participação, fez assomar a cultura origi-nária, maioria no país.

O Equador seguiu o mesmo diapasão. Nova Constituição, outorgou direitos à natureza, Estado pluricultural. Abriu es-paço para novos pensares, mais além do socialismo: o sumak kausay, uma forma de organizar a vida embasada em concei-tos autóctones, dos povos antigos, coisa completamente nova para quem acredi-tava que o modelo europeu era o único possível.

A América Latina entrou no novo milê-nio ardendo em novidade e transforma-ção. Quando alguém fraquejava, lá vinha o Chávez com sua voz de trovão, puxan-do o timão mais à esquerda. E mesmo quando ele mesmo claudicava, ou cedia ao “possível”, buscava nos autores revo-lucionários, nos heróis do passado, a ins-piração para reavaliar e avançar.

E, assim, esses três países em especial (Venezuela, Bolívia e Equador) começa-ram a realizar algumas mudanças que fi nalmente mexiam nas estruturas. Ou-tros, como o Brasil, a Argentina, a Ni-carágua, Honduras, Paraguai, Uruguai, principiaram a realizar reformas e a am-parar pelo menos alguns pontos do boli-varianismo, como a ideia de soberania e união latino-americana.

Quando, no mês de março de 2013, o câncer venceu o comandante, as coisas já não andavam bem. Na Venezuela era possível observar a subida da infl ação e a opção do governo por uma aliança com o setor fi nanceiro. O país não conseguia avançar no caminho do desenvolvimento endógeno, atropelado que fora ano após ano por golpes, contragolpes e ações de-sestabilizadoras da direita. Apesar de to-dos os esforços empreendidos, o rentis-mo petroleiro ainda era o carro chefe da economia do país. A produção – de comi-da e de outros produtos de uso corrente – não deslanchou. Continuava mais van-tajoso ao empresariado nacional seguir com a importação, especulando com o dólar, criando um perigoso mercado pa-ralelo para a moeda estadunidense.

NeodesenvolvimentismoNa Bolívia, Evo Morales passou a apos-

tar na lógica do neodesenvolvimentismo, puxada pelo Brasil. Projetos grandiosos com construtoras estrangeiras (brasilei-ras) e o crescente confl ito com as comu-nidades indígenas. No Equador, Rafa-el Correa foi mordido pela mosca azul e abraçou-se às mineradoras e as grandes empresas do petróleo. Tem mantido fogo cerrado contra os povos indígenas, acu-sando-os de barrar o progresso do país e entrou de cabeça na mesma onda do “de-senvolvimento” a qualquer custo. O mo-delo é o mesmo do Brasil. Reforma sem vestígios de revolução.

A morte de Chávez de certa forma libe-rou os aliados para uma virada de timão, mais ao estilo do Brasil. Aquilo que Lula não conseguiu, já que era frequentemen-te ofuscado por Chávez, Dilma logrou. Não tanto pela ação dela, mas porque agora os mandatários vizinhos estavam mais livres para fugir da rota socialista. Daí que se confi gura inegável o papel de liderança que o presidente venezuelano exercia em todo o continente. Tanto que as proposta de uma aliança com o Caribe e a construção da Unasur foram constitu-ídas a partir de suas investidas. A união

das repúblicas latino-americanas era um Sul determinado por ele e, num período de crise na região europeia assim como nos Estados Unidos, foi e continua sendo uma alternativa muito conveniente para os países da América Latina.

Mas, apesar de essas propostas segui-rem vivas e atuantes, é fato que perde-ram força política. Os encontros continu-am, as instituições também, mas não há uma liderança capaz de articular as ações econômicas com o debate teórico. A úl-tima reunião da Aliança Bolivariana pa-ra os Povos de Nossa América (Alba) foi um bom exemplo. Realizada em Caracas no último dia 17 de dezembro, não mere-ceu sequer uma nota nos jornais. Falta a grandiloquência de um projeto totalizan-te de combate ao capitalismo.

O professor Nildo Ouriques, do Insti-tuto de Estudos Latino-Americanos, ana-lisa a Venezuela hoje, sob o comando de Nicolás Maduro, e não tem dúvidas de que o processo revolucionário, por ago-ra, se esgotou. “O fato de o partido do go-verno ter ganhado as eleições municipais agora em dezembro não diz muito. Nos pequenos municípios a política do par-tido está consolidada. Mas, nos grandes, não. Daí que a direita avança por aí. Ma-duro não tem a força de Chávez para mu-dar o rumo dos acontecimentos e talvez nem mesmo Chávez pudesse fazê-lo. Po-de até ser que o bolivarianismo siga no poder por algum tempo – e é bom que si-ga - mas não haverá mais mudanças ra-dicais e o povo fi cará cada vez mais fora do poder de decisão.”

Crias do CapitalSegundo Nildo, a infl ação galopante

que tem assolado o país e a criação de um mercado paralelo do dólar enfraque-cem a economia e a tendência é de que, a seguir essa política, a situação econômi-ca se agrave ainda mais. O empresariado local não tem interesse na produção, es-tá lucrando de forma astronômica com o dólar. E, sem produção, o país segue de-pendente. É um círculo vicioso e sem saída. A menos que houvesse uma virada de curso. Mas isso não se vislumbra.

Nos demais países, a falta de um dis-curso forte acerca do caminho para o so-cialismo ou qualquer outra forma dife-rente de organizar a vida, coloca todo mundo – em maior ou menor grau – na posição de “humanizar” o capitalismo.

No Brasil, algumas políticas públicas asseguram renda aos mais pobres, o pro-grama Mais Médicos surge como um im-portante paliativo de saúde para os fun-dões do país. Mas, por outro lado, o agro-negócio está cada vez mais abraçado ao governo, deitando e rolando no ataque aos indígenas e aos que pretendem co-locar qualquer freio a nova expansão da monocultura. Vive-se uma investida an-ti-indígena só comparada a caminhada para o Norte no início do século XX. No Uruguai, apesar de passos importantes como o ataque ao narcotráfi co e a busca por uma democratização da mídia, Muji-

ca permite a ação nefasta das papeleiras e de outras grandes crias do Capital. Na Bolívia, na última quarta-feira (18.12), chegou-se ao extremo de reprimir, com gás e força policial, uma manifestação de crianças, que marchavam por um código do menor. No Equador, Correa está ren-dido às petroleiras.

Na verdade, toda a proposta de sobera-nia e anticolonialismo contida no boliva-rianismo parece se esvair. Os mandatá-rios ditos “progressistas” não conseguem sair da roda da dependência. Preferem o acordo com o capital especulativo e com as megaempresas transnacionais, pa-ra tentar algum respiro do que chamam “desenvolvimento”. Aplicam políticas compensatórias que até são importan-tes, a considerar a extrema pobreza que vivem as maiorias, mas que não parecem capazes de romper com o ciclo de uma quase perpétua subserviência.

O máximo que conseguem é o que já apontava Gunder Frank: o desenvolvi-mento do subdesenvolvimento, o que permite algumas ilhas de riqueza, um certo incremento no consumo através da liberação de crédito, mas praticamente nenhuma mudança estrutural.

Para os protagonistas de lutas impor-tantes contra o Capital, como é o caso dos bolivianos que viveram as guerras da água e do gás, esses governos, mascara-dos de esquerda, acabam prestando um desserviço à luta anticapitalista. “Eles domesticam o movimento social, segu-ram os movimentos de luta, cooptam li-deranças, disseminam uma mensagem falsa sobre as possibilidades de melho-rias dentro do sistema. Assim, retroce-demos décadas. É uma tragédia”, afi rma Oscar Olivera, uma das mais importan-tes lideranças da Guerra da Água, em Co-chabamba,

Nos dias de hoje, sem a presença vigo-rosa de um Fidel, ou a trovejante ousadia de Chávez, o que parece avançar é a aco-modação ao velho modelo de dependên-cia e de cooperação com o Capital. Mas, ainda assim, a falta de uma alternativa também abre caminho para a constru-ção de outro ciclo, talvez um pachaku-ti (o mundo de patas para cima, uma vi-ração), como dizem os povos andinos. Algum novo giro, uma nova tendência, uma surpresa, como foi Chávez e seu so-nho bolivariano.

No fi nal dos anos 1990, essa novidade veio de onde ninguém esperava. Agora, enquanto o mundo mergulha no frisson das novas tecnologias, da inserção inter-nética, no reino das sensações, talvez, em algum lugar não sabido, completamente inaudito, esteja brotando o que virá. As lutas não acabam, seguem seu caminho. Os movimentos continuam protagoni-zando resistência e, afi nal, os povos sem-pre aprendem quando vivenciam experi-ências alvissareiras, como as que afl ora-ram na última década. Algo novo há de aparecer.

Assim, seguimos!...

Elaine Tavares jornalista.

América Latina, o fi m de um cicloANÁLISE Nos dias de hoje, sem a presença vigorosa de um Fidel, ou a trovejante ousadia de Chávez, o que parece avançar é a acomodação ao velho modelo de dependência e de cooperação com o Capital

No Brasil, o agronegócio está cada vez mais abraçado ao governo, deitando e rolando no ataque aos indígenas e aos que pretendem colocar qualquer freio a nova expansão da monocultura

Os mandatários ditos “progressistas” não conseguem sair da roda da dependência. Preferem o acordo com o capital especulativo e com as megaempresas transnacionais, para tentar algum respiro do que chamam “desenvolvimento”

O máximo que conseguem é o que já apontava Gunder

Frank: o desenvolvimento do subdesenvolvimento, o que permite

algumas ilhas de riqueza

Ausência de Chávez permitiu o avanço do neodesenvolvimentismo na América Latina