A Retórica Do Silêncio

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    Villavicencio, C. M. A Retrica do silncio. Per Musi, Belo Horizonte, n.24, 2011, p.101-109.

    Recebido em: 15/10/2010 - Aprovado em: 12/02/2011

    A Retrica do silncio

    Cesar Marino Villavicencio [email protected]

    Resumo: A teoria da retrica na msica barroca revela-se, de modo geral, interpretativa e heterognea, no havendo uma linha de pensamento fixa. Essa heterogeneidade torna-se evidente quando se analisa a utilizao dos silncios como figuras retricas. Para definir as intencionalidades dos silncios necessrio considerar os afetos que os cercam. Assim, por haver diversos afetos inerentes, h ainda mais deliberaes subjetivas na anlise dos silncios. Sugerindo uma viso retrica plural, prope-se diversos tipos de categorizao bem como a coexistncia de interpretaes. Para apresentar os desdobramentos dos objetivos estticos da meraviglia, que focam o escopo pragmtico de deslumbrar inesperadamente criando percepes chocantes de admirao, busca-se um equilbrio entre a teoria e a prtica atravs de exemplificaes musicais. A retrica vista como a energia inerente na emoo e no pensamento, transmitida por meio de um sistema de signos, entre os quais a msica, com o objetivo de influenciar terceiros em suas decises e aes.Palavras-chave: retrica; msica; silncios; pausas, Barroco.

    The Rhetoric of Silence

    Abstract: There is a lack of a single doctrine for the use of rhetoric in baroque music. The rhetorical theory has inter-pretative and heterogeneous qualities. Musical silences are among the rhetorical figures of the baroque. To frame the intentionalities of silences it is necessary to consider the affects that surround them. This means that to describe silences we are even more subjected to a variety of interpretations. In favor of a pluralistic view of rhetoric, embracing a diversity of categorizations is suggested. In order to reveal some of the aesthetic objectives of the meraviglia, which are focused on provoking a shocking sense of wonderment through creating experiences that astonish with delight, musical examples of the pathetic use of silences are presented. Rhetoric is viewed as the energy inherent in emotion and thought, trans-mitted through a system of signs, including music, to others with the objective of influencing their decisions and actions.Keywords: rhetoric; music; silences; rests; Baroque.

    1 IntroduoO uso dos silncios na msica, como meio para impressio-nar o pblico, se apresenta no decorrer de toda a histria. Este artigo concentra-se em oferecer uma viso ampla e exemplificada dos diferentes mbitos nos quais elemen-tos musicais como pausas, cesuras e articulaes foram usados por compositores de diferentes perodos da hist-ria da msica, com a finalidade de provocar com nfase determinados estados de esprito. Lidando inicialmente com a teoria retrica musical do perodo barroco, este artigo visa discernir sobre a aplicao prtica das figu-ras aposiopesis, abruptio, suspiratio, ellipsis, synecdoche, pausa, tmesis, homoioptoton e homoioteleuton. Neste mbito, expe-se a complexidade do silncio na msica do perodo barroco, onde a meravilglia, norteada pelo uso da retrica na aplicao de funes estruturais e enfti-cas, visa provocar afetos por meio de uma extensa gama

    PER MUSI Revista Acadmica de Msica n.24, 184 p., jul. - dez., 2011

    de meios musicais como: andamento, dinmica, articu-lao e fraseado. Os silncios apresentam uma caracte-rstica especial porque o efeito pattico por eles exposto combina vrios desses meios musicais simultaneamente.

    Apesar das caractersticas circunstanciais e subjetivas da recepo musical dos silncios na msica, cabe fa-zermos algumas tentativas de categorizao a fim de elaborarmos variadas hipteses que revelem ultima-mente o campo plural e o carter interpretativo das pausas. Acredito que dentro deste pluralismo possa-se fecundar a criao de uma linha flexvel de aproxima-o, fundamental para o desenvolvimento de uma rea de pensamento como a da retrica. Creio que devemos pensar na hiptese de nos afastarmos da ideia de que na comunicao, inerente em atividades musicais, possa-se

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    atingir um equilbrio tcito entre os princpios retricos de delectare, movere, docere (deleitar, mover os afetos e ensinar) atravs de uma aproximao mecnica e cal-culada, pois a criao e percepo musical recaem em vrios aspectos no mbito varivel do individual. 1 Essa diversidade, no lugar de ser vista como um problema para a elaborao de linhas de pensamento, deve ser acolhida como uma caracterstica sui generis que patro-cina a elaborao de teorias dentro da riqueza natural da convivncia harmnica entre diferentes pareceres.

    Baseado na minha pesquisa de doutorado, que sugere o uso da retrica como ferramenta analtica na improvisa-o contempornea, este artigo foca-se na aplicao da retrica para compreender o uso dos silncios na msica de diversos perodos da histria. Retrica, nesse sentido, se desvincula de qualquer estilo musical e passa a servir como ferramenta para o melhor entendimento de proces-sos estticos, ticos e cognitivos que, embora subjetivos, sirvam para sugerir algumas caractersticas vinculadas comunicao por meio de sons.

    Pelos exemplos musicais dados, este trabalho visa enfa-tizar a necessidade de equilibrar o discernimento terico com exemplos da prtica musical, combinao esta que creio primordial para a obteno de uma viso ampla do uso da retrica na msica2, uma viso que, se desvincu-lando de qualquer estilo, envolva aspectos relacionados harmonia, tempo, fraseado, articulao, dinmica, ritmo, acentuao, expresso, contraste e gestos.

    2 A Categorizao das figuras de silncioExistem diversas opinies sobre categorizao dos si-lncios. BARTEL (1997, p.32), no Musica Poetica, prope uma diviso entre figuras de interrupo (abruptio, ellipsis, tmesis) e figuras de silncio (aposiopesis, homoioptoton, homoioteleuton, suspiratio). Tambm encontramos diver-gncias na descrio destas figuras entre os estudiosos do perodo barroco. Kircher, por exemplo, refere-se ao abrup-tio como aposiopesis (BARTEL, 1997, p.167), assim como Walther subdivide a aposiopesis em duas subcategorias denominadas de homoioptoton e homoioteleuton (BARTEL, 1997, p.205-206). De fato, para discernir sobre o signifi-cado dos silncios precisamos primeiramente interpretar o afeto pertinente. O afeto do silncio definido pela in-teno que o antecede assim como pela inteno que o segue.3 Retornando diviso sugerida por Bartel, na qual se prope uma categorizao em figuras de interrupo e silncio, nos confrontamos com a problemtica de situar as figuras divergentes como a pausa e o suspiratio na mes-ma categoria. No lugar de ter contedo intrnseco, a pausa essencialmente o silncio que circunda o contedo. Por outro lado, o suspiratio a uma figura ligada ao pthos, que apresenta musicalmente a representao emocional do suspiro por meio do uso de pausas. Uma outra possvel maneira de classificar as pausas retricas poderia ser em: pausas coletivas e aquelas usadas individualmente. Porm, ao fazermos isto, estaramos situando novamente figu-ras com diferentes objetivos dentro da mesma categoria, como por exemplo, a aposiopesis ligada a pthos e a pausa sem conotao afetiva.

    Abruptio Uma pausa sbita na msica que cria um afeto inesperado.

    Aposiopesis A pausa geral com afeto.

    Suspiratio Pausa que corresponde a um suspiro.

    Ex.1 Figuras de silncio relacionadas com pthos.

    Pausa A pausa no final, que conclui em descanso .

    Aposiopesis A pausa geral sem afeto.

    Tmesis A fragmentao estrutural de uma sequncia musical por meio de pausas.

    Ex.2 Figuras de silncio relacionadas sem relao com pthos.

    Homoioteleuton Pausas geradas aps uma clara inteno de final. Finale silentium.

    Homoioptoton Pausas geradas sem a inteno de uma finalizao. E.g. Aposiopesis

    Homoioarche4 Pausa geral que precede os primeiros sons de um movimento, seo, etc.

    Ex.3 Figuras de silncio relacionadas com sua funo afetivo-estrutural.

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    Aps examinar e organizar as pausas e seus objetivos, este artigo sugere ainda uma outra diviso em trs grupos: pri-meiro, silncios ligados ao mbito afetivo da emoo (p-thos) (Ex.1), segundo, silncios sem afeto inerente (Ex.2) e, terceiro, pela sua funo afetivo-estrutural (Ex.3).

    Porm, aps essa nova tentativa de classificar os siln-cios, ficou evidente que pelo fato dos silncios revelarem sua funo dentro da msica somente pelo que os ante-cede e aquilo que os prossegue, qualquer discernimento sobre suas caractersticas deve levar em conta os diferen-tes elementos que compem o discurso sonoro em cada circunstncia.

    3 Reviso e exemplificaoA seguir apresentam-se uma lista de figuras relacionadas ao silncio e diversas exemplificaes.

    a) AbruptioAbruptio definido por Virgilio como o corte no meio do discurso (SIMPSON, 1968, p.75). Abruptio foi introduzido por Kircher, que usa este termo no lugar de aposiopesis. O termo abruptio no se encontra nas obras de Ccero e Quintiliano, razo pela qual parece ter sido inventado para seu uso especfico na msica.

    Um exemplo da figura abruptio est na ria Es ist voll-bracht da Paixo Segundo So Joo, de Johan Sebastian Bach (Ex. 4). Nesse caso em particular, podemos encon-trar o abruptio ligado s figuras de exclamatio pela for-a ascendente com a qual expressada a palavra Kampf (luta) , de anabasis , assim como da figura de memo-ria, pois logo depois da pausa ouvimos a recapitulao do tema. possvel tambm a presena do interrogatio, ideia, alis que a base da meraviglia pois do ponto de vista fenomenolgico implica na provocao de curiosi-dade (CHERCHI, 2005, p.63-65).

    O final do exclamatio provoca esta curiosidade, interro-gatio, que logo preenchida pelo uso mnmico do tema inicial da ria.

    Outro exemplo de abruptio pode se evidenciar no primei-ro movimento, spiritoso, da Sonata IV, para flauta doce, do compositor italiano Francesco Mancini (Ex.5). No compasso trinta e dois, percebemos uma pausa repentina que acontece aps um acorde de suspenso em Mi maior. Segue, aps o abruptio, um acrscimo dramtico na in-teno trazido pelo acorde diminuto que se resolve finalmente em L menor no comeo do Largo. Neste caso, poderamos pensar que o abruptio faz com que a pausa

    Ex.4 Aria Es ist Volbracht da Johannes Passion, BWV 245 de J. S. BACH (Leipzig, Bach Gesellschaft).

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    crie um sentimento de expectativa. Poderamos especu-lar que se a linha meldica da flauta tivesse chegado ao abruptio ascendentemente, estaramos lidando com um interrogatio. De qualquer forma, Mancini evidencia uma sensao de vazio e decide preencher esta espera aumen-tando o dramatismo ao dar sequncia sonata apresen-tando um acorde diminuto. O aumento na inteno do afeto acrescenta o carter dramtico da pausa, que neste caso trata-se de um abruptio.

    b) AposiopesisAposiopesis, ou reticentia, indica uma interrupo cole-tiva. Uma pausa geral relacionada ou no com pthos. A aposiopesis afetiva seria um corte sbito em todas as par-tes da composio no meio do discurso, usualmente para dar a entender ter sido rendido pela emoo (BURTON, 2010). Hipoteticamente, poderamos pensar tambm na possibilidade de uma aposiopesis ser uma pausa geral sem contedo afetivo.

    Bartel afirma que a aposiopesis encontrada regularmen-te em composies cujos textos se relacionam com a morte ou a eternidade... expressando o eterno ou a insustenta-bilidade. Ele continua dizendo que [A aposiopesis] pode estar relacionada com a figura de interrogatio expressan-do o silncio que prossegue a pergunta (BARTEL, 1997, p.203-204). Walther e Turingus consideram a aposiopesis

    como uma pausa geral de duas categorias: homoioptoton (pausa sem cadncia precedente) e homoioteleuton (pausa que se segue aps uma cadncia) (Walther e Thuringus ci-tados por BARTEL, 1997, p.205-206).

    No Concerto Grosso em R maior Op.6 no. 5 de Georg F. Handel (Ex. 6), podemos encontrar uma aposiopesis de suspenso. A pausa somente retarda a chegada da cadn-cia esperada, encaminhando o ouvinte suavemente em direo tnica final.

    Outros dois exemplos de aposiopesis provm de grava-es de udio realizadas durante um curso de improvisa-o contempornea que ministrei na Universidade de Ne-vada Las Vegas, nos EUA (VILLAVICENCIO, s.d.). O primeiro exemplo perfila com clareza o uso coletivo do silncio para provocar uma mudana de inteno na msica. No segundo exemplo, a pausa acontece durante um momen-to de grande atividade e fortes dinmicas, no produzin-do uma mudana de inteno, mas fazendo parte dela.

    c) Suspiratio ou stenasmus Bartel indica que [Suspiratio ] a expresso musical de um suspiro por meio de uma pausa (BARTEL, 1997, p.393). Tambm Kircher afirma que por meio do [suspi-ratio] expressamos afetos relacionados aos lamentos ou suspiros usando pausas de colcheias ou semi-colcheias,

    Ex.5 Sonata IV para flauta doce e baixo contnuo de F. MANCINI (Amadeus Verlag, 1999).

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    Ex.6 Concerto Grosso Op. 6 No. 5 de G. F. HANDEL (Brenreiter, 1985).

    as quais so por sua vez denominadas de suspiria (BAR-TEL, 1997, p.393-394). Suspiratio ou Stenasmus so ti-das com figuras relacionadas com pthos, pois introdu-zem silncios em uma linha musical com o objetivo de perfilar estados emocionais relacionados com tristeza, mgoa, angstia, etc.

    No primeiro movimento, Triste, da Sonata III em F me-nor (Ex.7), para flauta doce, ou fagote, e baixo contnuo, Georg Ph. Telemann apresenta uma srie de suspiratii que pela sua constante recorrncia adquire um carter estru-tural. Qui poderamos tambm pensar que as pausas nesta introduo transparecem o uso do tempo qualita-tivo, conhecido em retrica como kairos. A performan-ce estritamente regular, ligada ao chronos (isto , sem pequenas cesuras nos compassos 2,3,5,6,7) desta intro-duo, comprometeria provavelmente a clareza perspi-cuitas na comunicao dos afetos relacionados com a indicao do afeto apontado por Telemann: Triste.

    Podemos achar um outro exemplo de suspiratio no quar-to movimento da Sinfonia No.5, de Gustav Mahler (Ex.8). Se prestarmos ateno na linha dos primeiros violinos,

    logo no levare para o terceiro compasso, encontramos uma linha ascendente em crescendo D-Re-Mi com a indicao de molto ritenutto. No primeiro tempo do compasso trs, toca-se novamente a nota Mi e retoma-se o pianssimo original a tempo. Tudo parece indicar um momento musical ad hoc para a realizao de um suspi-ratio. De fato, Mahler faz uso recorrente de cesuras () nos prximos compassos (3,4,6,7), que tambm poderiam ser interpretadas como a figura em questo.

    d) PausaKircher acredita que Pausis o mesmo que o silncio. A pausa usada apropriadamente quando uma pessoa, no lugar de muitas, permitida a falar.

    Tambm Janovka, Walther, Thuringus e Printz descrevem a pausa como um silncio (BARTEL, 1997, p.643-365). A viso deste artigo foca-se na pausa como uma figura sem relao com pthos. A pausa aponta para o uso de silncios que permitem, por exemplo, respirar, esperar dando espao para os outros interpretarem ou separar frases. A pausa permite a estruturao do contedo no lugar de criar contedo em si.

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    Ex.8 - Adagietto da Sinfonia No. 5. de G. MAHLER (Lepzig, C. F. Peters, 1904).

    Ex.7 Sonata III em F menor, TWV 41:f1 de G. P. TELEMANN (Editio Musica Budapest, 1995)

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    Villavicencio, C. M. A Retrica do silncio. Per Musi, Belo Horizonte, n.24, 2011, p.101-109.

    Ex.9 LOrfeo Favola in Musica de C. MONTEVERDI (Editor: Philip Legge).

    Ex.10 Messe H-moll, BWV 232 de J. S. BACH (s.d.).

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    e) TmesisBartel nos diz que Ambas as tmesis retricas significam uma fragmentao, refletindo o significado literal da pa-lavra; um corte ou uma inciso (BARTEL, 1997, p.412). Poderamos pensar na tmesis como cesuras sem contedo afetivo prprio como no caso do suspiratio.

    f) HomoioteleutonQuintiliano expe que essa pausa ocorre quando oraes terminam de maneira parecida, usando as mesmas slabas ao final de cada uma (QUINTILIANO, 1920, 77).

    Walther, por sua vez, defende que homoeoteleuton um silncio geral... que acontece no meio de uma composio depois de uma cadncia finalis (BARTEL, 1997, p.297-298). Visando um entendimento mais amplo da figura homoioteleuton, prope-se seu significado como o de uma pausa geral que acontece aps uma passagem cuja descontinuao foi engendrada com claras intenes de chegar a um fim.

    g) HomoioptotonWalther afirma que homoeoptoton um silncio no meio de uma composio... sem um fim ou cadncia pre-cedente (BARTEL, 1997, p.297-298). Homoioptoton seria ento uma pausa que ocorre no meio do discurso musical, sem a inteno inerente prpria de uma finalizao.

    h) HomoioarcheDurante minha pesquisa de doutorado, que prope uma viso da improvisao contempornea atravs de um prisma retrico, percebi a falta de uma categoria que abrangesse o silncio inicial de uma improvisao. Na im-provisao contempornea, o processo interativo de cria-o coletiva se inicia a partir do primeiro silncio, que quando toma lugar a negociao dos primeiros inventios, assim como o decorum da sesso. Por essa razo, achei providencial criar um termo que acompanhe as figuras de homoioteleuton e homoioptoton. Homoioarche essa nova figura que aponta para as energias presentes nos silncios que precedem os primeiros sons de uma perfor-mance, de um movimento ou mesmo de uma transio.Se tomarmos como exemplo o LOrfeo, Favola in Musi-

    ca, de Claudio Monteverdi, podemos perceber a funo estrutural e afetiva da pausa que precede o incio do la-mento do Orfeu, logo aps ele receber a notcia da morte de Euridice (Ex.9). Seria possvel tambm considerar esta pausa uma homoioarche, pois esta acontece de maneira a transparecer como Orfeu paulatinamente vai se dando conta da tragdia que o envolve. Assim, em silncio, ele d incio a seu lamento, enquanto a Messagiera relata o drama acontecido.

    Johann Sebastian Bach nos proporciona outro exemplo (Ex.10). Na missa em Si menor, na pausa no final do Kirie (exordium), a pausa tem efeito de suspenso, pois o acor-de anterior o da dominante. Tambm poderamos achar nessa pausa uma conotao de homoiarche, pelo fato do silncio preparar a entrada para o distributio.

    ConclusoAs analogias apresentadas fogem de qualquer preten-so em estabelecer bases fixas para a anlise da msica por meio das figuras de retrica. De fato, penso que tal aproximao no somente prejudicaria o surgimento do debate e, consequentemente, o enriquecimento da rea, mas tambm tornaria infrutfero o esforo de buscar in-formao dentro de uma caracterstica nata dos tratados escritos nos sculos XVII e XVIII: a heterogeneidade. Essas divergncias, no lugar de abismar-nos pela sua disparida-de, devem-nos informar a respeito da inerente flexibilida-de da aplicao da retrica na msica. Creio que a busca por uma teoria para a aplicao da retrica na msica deve nutrir-se das divergncias que encontramos entre os autores daquele perodo, pois dessa natureza plural que surge a riqueza de sua epistemologia. Concluindo com uma interrogao, devemos qui levar em considerao que ao abordarmos a meraviglia e seu objetivo de provo-car reaes anmicas no pblico, seja muito importante um discernimento de cunho tico que leve em conside-rao o vir bonus, dicendi peritus, de QUINTILIANO (1920, p.9), que prope como essencial para formar um orador perfeito que ele seja um homem bom, possuidor no so-mente de talentos excepcionais de discursador, mas de todas as qualidades de carter tambm.

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    RefernciasBACH, Johan Sebastian. Messe H-moll, BWV 232. (Leipzig, Bach Gesellschaft). Dover Publications, New York, s.d.______. Johannes Passion, BWV 245. Leipzig, Bach Gesellschaft.BARTEL, Dietrich. Musica Poetica; Musical-Rhetorical Figures in German Baroque Music. Lincoln, Nebraska, University of

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    BURMEISTER, Joachim. Musical Poetics (1606). Londres, Yale University Press, 1993. Traduo: Benito V. Rivera. Editor: Claude V. Palisca.

    BURTON, Gideon.Silva. Rhetoricae. http://humanities.byu.edu/rhetoric/silva.htm. (Acesso 9/07/2009).CAGE, John. Silence. Middletown, Connecticut. Wesleyan University Press, 1939.CHERCHI, Paolo. Marino and the meraviglia. In:, Massimo Ciavolella e Patrick Coleman. Culture and authority in the ba-

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    QUINTILIANO, Marcus Fabius. Institutio Oratoria. Harvard University Press, 1920. Traduo: H. E. Butler.SIMPSON, D. P. Cassells Latin Dictionary. New York, 1968.TELEMANN, Georg Philipp. Sonata III em F menor, TWV 41:f1. Editio Musica Budapest, 1995.VILLAVICENCIO, Cesar. The Discourse of Free Improvisation; A Rhetorical Perspective on Free Improvised Music. PhD Thesis. Norwich, 2008. http://cevill.com/phdcesar______. Curso de improvisao contempornea. http://cevill.com/UNLV06Apo1.mp3, http://cevill.com/UNLV06Apo2.

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    Notas1 Jasmin Cameron, indagando-se sobre o uso da retrica na msica barroca, expe: Quo mecnico e calculado era esse processo composicional?

    [] parece realmente que a incluso de ferramentas retricas era to congnito que a pressuposta dependncia de regras do processo composi-cional, de nenhuma maneira interferiu na inspirao espontnea e na musicalidade desses processos (CAMERON, 2005, p.71; traduo do autor).

    2 Peter Williams acredita que desconsiderar que os tericos na verdade informavam sobre faits accomplis pode criar confuso no caso das Figu-renlehren (WILLIAMS, 1979, p.476; traduo do autor).

    3 O silncio sem molduras carece de inteno definida e se encaixaria mais na linha de pensamento de John Cage, que abriga o indeterminado como objeto de observao artstica.

    4 Criei este termo para ilustrar o silncio existente antes do comeo da msica. Aquele momento significativo que acumula energia, de forte relao como o princpio do tempo qualitativo kairos, que se perfila antes das intenes flurem por meio dos sons.

    Cesar Villavicencio (http://cevill.com) pesquisador e intrprete da msica dos sculos XVII, XVIII, msica contempor-nea e improvisador, possui doutorado em Msica University of East Anglia (2008), Inglaterra com a tese The Discourse of Free Improvisation. Realiza pesquisa de ps-doutorado no Departamento de Msica da ECA/USP (FAPESP). Trabalha na pesquisa e performance com meios eletrnicos interativos e na aplicao de tecnologia na criao de novos instru-mentos. Como pesquisador tem orientado projetos e apresentado trabalhos no Conservatrio Real de Haia, Holanda, na Universidade da California em San Diego, Universidade da California em Santa Barbara, Universidade de Nevada em Las Vegas, Estados Unidos, na USP, UNESP, UNIRIO, UFPB e UNICAMP. Possui graduao em Msica pela Universidade So Judas Tadeu (1990), mestrado em Flauta doce - Conservatrio Real de Haia, Holanda (1998). Seus principais campos de interesse so: flauta doce, improvisao, msica antiga, msica contempornea, msica eletroacstica e a criao de um currculo que abranja todas essas reas no ensino da flauta-doce.