A Revolução não-Euclidiana - XXI Semana de Física da ...

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CADERNO DE FÍSICA DA UEFS 09 (01 E 02): 37-52, 2011 37 A REVOLUÇÃO NÃO-EUCLIDIANA por IMRE TOTH (1921-2010) Para o matemático de hoje as geometrias não euclidianas tornaram-se um objeto ortodoxo e relativamente banal. Mas, até o começo do séc. XX, muitos matemáticos reputados e muitos filósofos deram prova de uma resistência tenaz. * Com o recuo, alguns historiadores chegaram a crer que só os espíritos incompetentes e limitados tinham podido opor uma tal recusa às ideias de Gauss, Bolyai e de Lobatchevski. Imre Toth mostra que não foi nada disso. É que as verdadeiras dificuldades, finalmente, não foram de ordem estritamente lógico-matemática; precisaria sobretudo reconhecer, graças a um passo filosófico árduo, que as novas geometrias tinham a mesma "verdade", o mesmo "direito à existência" que a geometria clássica. * Esta foto (à esquerda), tirada de um manuscrito latino do séc. VI referente a agrimensura, é certamente a cópia de um documento muito mais antigo e epresenta sem dúvida Euclides. Os Elementos que este nos deixou datam do fim do séc. IV ou do início do séc. III a.C. Eles constituem uma síntese dos conhecimentos matemáticos da época. É a Euclides que devemos a introdução de um axioma que não figurou em seus predecessores e que é conhecido sob o nome de "postulado euclidiano das paralelas". A história desse axioma e de suas transformações constitui um longo e importante capítulo da história da matemática. (Herzog August-Bibliothek, Wolfenbüttel) Falamos, a propósito da geometria não euclidiana, de uma revolução científica, e isto é sem dúvida correto, mesmo se a significação do termo “revolução” precise ser esclarecido. Mas se atribuímos à aparição da nova geometria a um ato de descoberta, isso é certamente falso.

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A REVOLUÇÃO NÃO-EUCLIDIANA

por IMRE TOTH (1921-2010)

Para o matemático de hoje as geometrias não euclidianas tornaram-se um objeto ortodoxo e relativamente banal. Mas, até o começo do séc. XX, muitos matemáticos reputados e muitos filósofos deram prova de uma resistência tenaz.

* Com o recuo, alguns historiadores chegaram a crer que só os espíritos incompetentes e limitados tinham podido opor uma tal recusa às ideias de Gauss, Bolyai e de Lobatchevski. Imre Toth mostra que não foi nada disso. É que as verdadeiras dificuldades, finalmente, não foram de ordem estritamente lógico-matemática; precisaria sobretudo reconhecer, graças a um passo filosófico árduo, que as novas geometrias tinham a mesma "verdade", o mesmo "direito à existência" que a geometria clássica.

* Esta foto (à esquerda), tirada de um manuscrito latino do séc. VI referente a agrimensura, é certamente a cópia de um documento muito mais antigo e epresenta sem dúvida Euclides. Os Elementos que este nos deixou datam do fim do séc. IV ou do início do séc. III a.C. Eles constituem uma síntese dos conhecimentos matemáticos da época. É a Euclides que devemos a introdução de um axioma que não figurou em seus predecessores e que é conhecido sob o nome de "postulado euclidiano das paralelas". A história desse axioma e de suas transformações constitui um longo e importante capítulo da história da matemática. (Herzog August-Bibliothek, Wolfenbüttel)

Falamos, a propósito da geometria não euclidiana, de uma revolução científica, e isto é sem

dúvida correto, mesmo se a significação do termo “revolução” precise ser esclarecido. Mas se

atribuímos à aparição da nova geometria a um ato de descoberta, isso é certamente falso.

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UM MUNDO CONHECIDO, MAS SEM EXISTÊNCIA RECONHECIDA

Visto que não existia em nenhuma parte, antes de 1824, um anti-mundo geométrico encoberto,

não esperando senão a chegada de seu Cristovão Colombo, para ser descoberto. Portanto, depois de

1825, eis que ele estava subitamente aí e que ele existia no sentido em que nós dizemos que o universo

espacial associado à geometria euclidiana existe. Me parece então que a palavra criação convirá

melhor para designar o ato histórico da constituição da nova geometria, sob o duplo aspecto de sistema

de axiomas verdadeiros e de universo de objetos geométricos reais ( o sentido atribuído aqui à palavra

criação será precisado mais adiante).

É somente depois de ter sido assim criada que a geometria não euclidiana (ou GNE) pôde

tornar-se objeto de uma descoberta propriamente dita. Mas se a criação foi o resultado de um ato,

instantâneo, sua descoberta não teve lugar senão quarenta e cinco anos após sua criação, entre 1870 e

1880. Tem nesse momento, a revolução encapsulada na teoria desde que sua criação eclodiu. No caso

normal (por exemplo descoberta de um inseto, de um continente, de uma estrela), a descoberta consiste

no reconhecimento da existência do objeto em questão. A identificação de sua estrutura e o exame

detalhado de suas propriedades vêm em seguida. Porém a descoberta no caso da GNE, se identifica

com o processo que tem assumido sua recepção e sua integração no edifício da ciência matemática.

Ora, esse processo de reconhecimento precisou de muito tempo. Muitos geômetras tinham já

demonstrado teoremas não euclidianos e por conseguinte tomado conhecimento da estrutura e

propriedade do futuro espaço não euclidiano. Mas, embora conhecida, a GNE não era reconhecida.

Filósofos e matemáticos consideravam que o espaço não euclidiano era uma pura impossibilidade e não

concordavam nem na verdade nem na realidade da GNE. Nesse sentido, podemos dizer que o

conhecimento do espaço não euclidiano precedeu sua existência.

A GEOMETRIA NÃO EUCLIDIANA NÃO FOI REFUTADA SÓ POR IGNORANTES

Segundo a tradição anedótica, aqueles que se recusaram a aceitar a GNE no fim do séc. XIX

apareceram sobretudo como filósofos ignorantes em matemática, ou bem como matemáticos

esclerosados, incapazes de seguir o trabalho da geração jovem. Historicamente, esta explicação não é

exata.

Certamente se encontrava entre os adversários da GNE verdadeiros ignorantes. Era o caso do

filósofo materialista e revolucionário russo N. G. Tchernychevski, que, em 1878, não via na GNE mais

que as elucubrações selvagens de um ignorante, um galimatias estúpido, um contra-senso idiota, um

saber de imbecil. Era também o caso do filósofo idealista alemão Lotze, para o qual a GNE não era

mais que um paradoxo fútil, uma caricatura da ciência, um jogo lógico gratuito (1879). Porém se

examinarmos o conjunto dos trabalhos publicados contra a GNE, percebemos que seus adversários em

sua maioria, tinham os meios técnicos de compreender a nova teoria.

Assim J. Belboeuf, professor da universidade de Liège, membro da Academia de Bruxelas, é

provavelmente o primeiro a ter notado desde 1859 a nova geometria, a tê-la examinado com muita

seriedade a tentar chamar sobre ela a atenção pública.

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O problema das paralelas foi estudado pelos gregos, depois pelos árabes (Alhazen, Omar Khayyam, Nasreddin). Ele foi introduzido no pensamento ocidental da Idade Média por Lévi ben Gershom (1288-1344) que se chama também Léon de Bagnols. Este eminente representante do pensamento judeu medieval se ocupou de filosofia e de teologia, mas também e medicina, de astronomia e de matemática. Seu estudo de Euclides se situou entre outros em uma tradição teológica remontando a Maimônidas e a são Thomás de Aquino, que tinham levantado a questão: a estrutura euclidiana imposta por Deus ao nosso mundo devia ser considerada como uma necessidade limitando a liberdade divina? Essas preocupações filosófico-teológicas desempenharam também um papel na revivescência do interesse que conhecerá o problema das paralelas no fim do século XVIII, sobretudo na Alemanha.

Ele portanto rejeitou a GNE; sua atitude permaneceu a mesma trinta anos mais tarde, quando ele

publica seu último livro (da Hermann, em Paris, em 1897), em uma época onde a maioria era já

favorável à GNE. Podemos fazer notas análogas a respeito de Pierre Issaly, hoje completamente

esquecido. Na Inglaterra, o c´∂elebre lógico Augustus de Morgan considerava a geometria clássica

como a very English subject e os heréticos dessa ortodoxia como se situando no extremo de toda

heresia. “Eu digo, dizia em 1869 o matemático inglês J. J. Sylvester, que há pessoas que consideram

Euclides como uma vanguarda da constituição britânica”. Ch. L. Dodgson, muito pouco conhecido

como professor de matemática na universidade de Cambridge e como autor de um trabalho sobre

Euclid and his modern rivals (1879), mais célebre sob o nome de Lewis Carroll, refutava

obstinadamente não somente a GNE mas toda e qualquer menor reforma da geometria euclidiana. É

surpreendente ver quanto ao autor de Alice e da Caça ao Snark pode faltar a sensibilidade igual da

poesia “absurda” própria ao espaço geométrico.

Mesmo entre os filósofos, os adversários os mais ativos não podiam ser acusados de ignorância

matemática. Assim o epistemólogo americano J. B. Stallo (1823-1900) publicará em 1881 um livro

sobre os Conceitos e teorias da física moderna que foi o objeto de numerosos relatórios que se

dividiram entre o elogio e a crítica. Esse trabalho, que foi traduzido em francês, em alemão e em várias

outras línguas, teve efeitos consideráveis. Stallo se propunha purificar a ciência de todo elemento

metafísico. Com a teoria dos átomos, a GNE tornou-se seu alvo principal. Ele a rechaçou lhe dando o

nome pejorativo de geometria transcendental; esta foi segundo ele um produto metafísico nocivo.

Portanto a competência teórica e a vasta informação de Stallo são indiscutíveis. Na França, é Charles

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Renouvier quem se propôs de expurgar a ciência de elucubrações metafísicas da GNE. Paul Tannery,

em 1876, menciona seu nome como aquele de um filósofo capaz de julgar a questão do ponto de vista

técnico, mas que permanece francamente hostil à nova geometria.

DÜHRING E “AS PARTES DEGENERADAS DO CÉREBRO DE GAUSS”...

Na mesma época (1874-1895) Otto Schmitz-Dumont publicou na Alemanha uma seerie de

trabalhos muito bem documentados onde propunha, ele também, eliminar a GNE das matemáticas em

nome do verdadeiro espírito cioentífico. Mas são os ataques fulminantes de Eugen Dühring contra a

GNE, seus fundadores e seus propagadores, que atrairam a atenção pública. Embora possamos dizer

sem exageros que Dühring foi um dos personagens o mais execrável do cenário alemão, devemos

reconhecer que ele possuia uma séria cultura matemática. Seu ateismo militante, sua crítica impetuosa

da filosofia idealista (ele se dava por um adepto de Auguste Comte) e sua filosofdia social e política

(ele se considerava como um socialista não marxista) tiveram uma ressonância muito viva no público

alemão.

Uma de suas descobertas (que ele repartia com outros) consistiu em encontrar na biologia uma

base científioca para a justificação do anti-semitismo. Em lugar de batizar os israelitas, ele pensou que

era preciso eliminá-los biologicamente. Em nome de seu ideal positivista e materialista, ele proclama

também a guerra santa contra a GNE. Eis aqui algumas de suas apreciações: insanidade demencial,

semi-poesia e total absurdo, produto da alucinação matemática, teoremas e figuras místicas e

delirantes nascidas de um pensamento doentio... Ele falou também das partes degeneradas do cérebro

de Gauss como do fator material responsável pela elaboração da GNE. Tais propostas naturalmente

causaram escândalo em certos meios universitários; mas, ao mesmo tempo, elas lhe deram uma grande

popularidade entre os estudantes e os trabalhadores. É exatamente a recepção favorável às idéias de

Dühring pelos socialistas alemães que determinou Engels a escrever um Anti-Dühring no qual ele

criticou o estilo macanicista (isto é, não dialético) do materialismo dühriniano.

Mas, posto que ele consagrou uma parte considerável de seu livro aos problemas do

conhecimento matemático, Engels não encontrava nenhuma palavra a favor da revolução não-

euclidiana.

Dühring goza de uma certa consideração mesmo nos meios científicos: Georg Cantor, o

fundador da teoria dos conjuntos, o menciona como o mais importante representante do positivismo na

Alemanha e discute seus conceitos com uma grande atenção. Um de seus famosos livros de escândalo,

Robert Meier, o Galileu do séc. XIX, não contém praticamente senão insultos grosseiros contra Gauss,

Helmholtz, Joule, a GNE, os judeus, os matemáticos e físicos alemães.1 De maneira mais estritamente

acadêmica, seu trabalho foi continuado na Alemanha por Hugo Dingler, professor na Escola

politécnica de Munique e de Darmstadt, bem conhecido também por seu engajamento a favor do

nacional-socialismo. Dingler pedia a eliminação da teoria da relatividade e da GNE, que ele

considerava como construções anti-científicas, e ainda em um livro publicado pouco antes de sua

1 Esse livro foi recentemenmte reeditado (1972) em razão de sua “viva atualidade”, pela Wissenchaftliche Buchgesellschsft, um dos editores científicos mais prestigiados da Alemanha Federal.

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morte, em 1955, em Munique2. Segundo ele, a geometria deve ser fundada sobre a prática manual,

essa que é certamente impossível no caso da GNE; a geometria euclidiana é portanto praticamente a

única geometria possível.

AS LUTAS DE LOBATCHEVSKI E DE BOLYAI

Na Rússia, é Ostrogradski, considerado pela historiografia soviética corrente não somente como

um dos maiores matemáticos do séc. XIX mas também como um sábio progressista, materialista e ateu,

que se torna acusador público da geometria de Lobatchevski. Nomeado em 1828, aos 27 anos, para a

Academia de São Petersburgo, tornou-se mais tarde inspetor geral do ensino de matemática na Rússia

sob Nicolau I, Ostrogradski tornou-se a autoridade matemática suprema de seu país. Em 1832 e 1842,

em dois relatórios oficiais (em francês) apresentados à Academia de Ciência, ele julga os trabalhos de

Lobatchevski como incompreensíveis e marcados de ERROS; segundo ele, eles não merecem a

atenção da Academia. Em 1834, isto é, entre esses dois relatórios, Ostrogradski publicou uma ata

menos acadêmica no jornal le Fils de la Patrie (os Filhos da Pátria), não assinado mas redigido por um

dos jornalistas reacionários mais notórios época, S. O. Bouratchek: Geometria imaginária? Por que

com efeito não se imaginar que o preto é branco, o quadrado redondo e a soma dos ângulos do

triângulo menor que dois retos? Pergunta-se porque se escreve e sobretudo se publica tais

fantasmagorias. O verdadeiro alvo do sr. Lobatchevski foi certamente jogar uma farsa aos

matemáticos. E por que então o título “os Fundamentos da geometria”, e não “a Sátira da geometria”

ou “a caricatura da geometria”?

Embora menos violento, não menos desfavorável foi a atitude para com Lobatchevski de um

outro grande matemático russo contemporâneo, V. I. Buniakovski, célebre probabilista e teórico dos

números, vice-presidente da Academia de ciência. É preciso enfim mencionar que, na imprensa

especialisada alemã, tinham sido também publicados dois relatos irônicos e malevolentes para com a

habilidade de Lobatchevski (para a maior consternação de Gauss).

Lobatchevski, entretanto, não esteve privado de toda sustentação. Mencionamos por exemplo

seu colega Kotelnikov, professor de mecânica na universidade de Kagan, um matemático menor que se

fez notar como um dos primeiros propagadores da filosofia de Hegel na Rússia; e também Butlerov,

um dos químicos mais notáveis da Europa, conhecido além disso (como o astrofísico alemão Zollner e

o experimentador inglês Crookes) pelo seu ataque ao espiritismo.

Mas se, no caso de Lobatchevski, se pode invocar o fato que seus adversários (Ostrogradski,

Buniakovski) não eram geômetras peritos nos fundamentos da geometria, o mesmo argumento não é

mais aplicável para Jean Bolyai. Ele jamais foi criticado ou atacado em público, mas ele teve de

afrontar em sua vida cotidiana, desde suas primeiras tentativas e praticamente até o fim de sua vida, o

adversário mais sério, o mais competente, portanto o mais perigoso: seu próprio pai. Wolfgang Bolyai,

o pai de Jean, não só foi um matemático de primeira classe, mas, ao lado de Gauss, foi certamente o

melhor perito no problema das paralelas, o problema maior da época que diz respeito aos fundamentos

da geometria. Em 1876, ano durante o qual a atividade nesse domínio foi particularmente intensa, ele

2 Esse livro foi também reeditado na Alemanha Federal pela Suhrkamp.

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produziu sozinho oito tentativas de solução, quer dizer, o mesmo que todos os outros autores reunidos

durante o mesmo ano. Entre as soluções propostas se encontravam algumas que eram particularmente

interessantes e refinadas. Mas o que distinguia Wolfgang Bolyai de todos seus predecessores, era seu

impecável espírito autocrítico; ele sempre descobria os erros escondidos em seus próprios raciocínios.

Na época em que seu filho e meteu a atacar o problema das paralelas, ele já estava persuadido do

fracasso de todas as tentativas de solução. Portanto, lendo em 1825 a primeira forma elaborada da

Ciência absoluta do espaço, ele achou graça de sua grande cultura matemática pois seu filho tinha

produzido um trabaljo pouco comum.

Ele insiste para que seja imediatamente publicado. Os exemplares apareceram graças a ele, em

junho de 1831, antes mesmo que fosse impresso seu próprio livro (1832) nos suplementos do qual o

trabalho de seu filho devia inicialmente tomar lugar. É ele enfim quem envia um desses primeiros

exemplares ao seu amigo Gauss com uma carta de recomendação. De diversas maneiras, ele ajudara a

conhecer os trabalhos de seu filho. Mas nem seu amor por seu filho nem sua veneração por Gauss não

puderam fazê-lo saltar a barreira. Ele jamais aceitou a GNE, e permaneceu, até o fim de sua vida

(1856), ao mesmo tempo o único suporte moral e o adversário irreconciliável de seu filho, o que

envenenou a existência dos dois homens.

AS RESERVAS DE CAYLEY E A INTOLERÂNCIA DE FREGE

Estranho é também o caso do grande matemático inglês Arthur Cayley. Ele é certamente o

primeiro, entre os matemáticos sem contato pessoal com os fundadores da GNE, a publicar (1865) um

trabalho inspirado pelos resultados de Lobatchevski. Sua contribuição não é particularmente essencial,

mas é o primeiro trabalho técnico consagrado à GNE onde a nova geometria é considerada com a

mesma seriedade e a mesma objetividade que qualquer outra teoria matemática estabelecida; o autor,

visivelmente, não põe em dúvida que os desenvolvimentos de Lobatchevski sejam corretos. Ele

considera entretanto a GNE como estranha e incompreensível, e não pode aceitá-la. Quanto às

fórmulas de Lobatchevski, Cayley declara francamente que não as compreende; mas acrescenta que

será muito interessante encontrar uma interpretação real.

G. Saccheri (1667-1733)

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Uma tal interpretação “real” (isto é, euclidiana) foi com efeito dada um pouco mais tarde por

Felix Klein (1871), notadamente em ajuda de uma configuração descoberta e estudada muito antes

(1859 pelo mesmo Cayley (modelo Cayley-Klein. Embora reconhecendo o valor do resultado de Klein,

Cayley continua a enunciar reservas. Ele não concede ao sistema senão o estatuto confuso e

problemático de quasi-geometria. No sentido estrito, a denominação de geometria é reservada só ao

sistema euclidiano (1883). Mas, em 1889, ele é mais explícito. De acordo com um matemático inglês

conhecido na época, R. Ball, ele considera que o que se chama GNE não é senão um discurso no qual

os termos geométricos usuais são utilizados em um sentido diferente daquele que se lhe atribuiu

ordinariamente. O mesmo termo (por exemplo a palavra distância) serve assim, segundo Cayley para

exprimir duas noções inteiramente diferentes. Mas Cayley não aceita senão a existência real do modelo

e se recusa a considerar o objeto não-euclidiano ele mesmo (que o modelo traduz e representa no

espaço euclidiano).

Um dos adversários mais intolerantes da GNE foi o matemático e célebre lógico Gottlob Frege.

Seu caso é bastante desconcertante. Porque sua crítica, sempre veemente, apaixonada, dramática, às

vezes mesmo grosseira e injuriosa (sobretudo a dirigida a Hilbert) se situa no início do séc. XX; até o

fim de sua vida (1925), ele conctinuou a rejeitar a GNE com intransigência implacável: atreve-se

qualificar de astrologia os “Elementos” de Euclides, este trabalho gozando de uma autoridade

incontestada há mais de dois mil anos? Mas, se não se ousa, então é a GNE que deve ser classificada

entre as pseudo-ciências (astrologia, alquimia). Embora o combate conduzido por Frege contra a GNE

e contra seus adeptos tenha sido aberto e público, embora seus artigos tenham sido reeditados e que

novos documentos iníditos aí tenham sido ajuntados, a reprovação de Frege ao encontro da GNE é

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geralmente ignorada; não se menciona sua querela senão de uma maneira vaga e alusiva.3 Se salva

assim a imagem hagiográfica do fundador da lógica moderna e do grande inovador no domínio dos

fundamentos da matemática.

Saccheri, Lambert, Taurinus, Reid e alguns outros conceberam a possibilidade de construir geometrias anti-euclidianas. Mas não são propriamente falando precursores de Gauss, Bolyai e Lobatchevski; com efeito, eles não deram o passo decisivo que consistia em conceder a todas essas geometrias ao mesmo tempo o mesmo estatuto de “verdade” da geometria euclidiana.

“Eu tenho medo da gritaria dos ignorantes”, escrevia Gauss a Bessel, em 1829, para justificar

sua recusa de publicar seus resultados concernentes à GNE. Mas essa fórmula se justificada como ela

aparece à primeira vista, não deve ser aceita tal e qual. Porque os “ignorantes” não estiveram sozinhos

em causa. De fato, entre os gritos dados pelos adversários da GNE, os mais estridentes vieram dos

teóricos mais competentes.

A GEOMETRIA ANTI-EUCLIDIANA: UM SISTEMA COHERENTE MAS CONSIDERADO COMO FALSO.

A história da ciência mostra que a resistência dos peritos às teorias heterodoxas não é um

fenómeno raro. Mas o que distingue radicalmente a história da GNE é que esta última foi rejeitada

antes mesmo de ter vindo ao mundo.

A GNE propriamente dita deve sua aparição aos esforços independentes de Gauss, de Jean

Bolyai e de Lobatchevski. Que pertencendo a três gerações sucessivas todos três chegaram a uma

forma acabada de suas ideias e de seus sistemas quase simultaneamente, por volta de 1825 (Gauss em

1824, Bolyai em 1825, Lobatchevski em 1826)4. Mas já Saccheri, em 1733, Lambert em 1766 e F. A.

Taurinus em 1825 26 tendo enunciado e demonstrado proposições que correspondiam em expressão -

3 Na Alemanha, os autores (Lorenzen, Mittelstrass, Thiel e sobretudo Kambartel) se propondo a reedificação radical de toda a ciência matemática com o auxílio do conceito de prática operacionalista tomaram recentemente a defesa pública não somente de Dingler, mas de Frege contra Hilbert. 4 Gauss jamais publicou seus resultados. Lobatchevski publicou seu primeiro trabalho em cinco etapas entre fevereiro de 1829 e agosto de 1830. A Ciência absoluta de Bolyai foi impressa em Junho de 1831 sob a forma de uma brochura independente: em 1832, sua exposição foi republicada como um Suplemento do manual de seu pai.

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verbal deles a teoremas da GNE. Para os distinguir dos teoremas da GNE propriamente dita, eu os

designo por enquanto pelo termo de proposições anti-euclidianas.

A leitura do livro de Taurinus nos reserva uma surpresa: lá se encontra o sistema anti-euclidiano

sob a sua forma acabada. Taurinus expôs toda a trigonometria do plano não euclidiano (na qual a soma

dos ângulos do triângulo é inferior a dois ângulos retos), assim como um resultado particularmente

notável: a existência de uma infinidade de tais sistemas (oposto à unicidade da geometria euclidiana),

cada um sendo caracterizado por uma constante numérica (chamada, na terminologia atual, curvatura

do espaço). A notar também que, entre os autores citados, Saccheri é o único que persistiu em crer na

não consistência lógica do sistema anti-euclidiano e que esperou poder encontrar um dia a contradição

que, segundo ele, estaria escondida. Erro. Mas erro que não era partilhado, provavelmente, por

Lambert, e certamente não mais por Taurinus. Este último (assim como todos os outros autores anti-

euclidianos: Reid, Schweikart e Wachter) estava já firmemente convencido da consistência do sistema

anti-euclidiano. Portanto, todos os três atribuíram às proposições anti-euclidianas o valor lógico da

falsidade e rejeitaram categoricamente a possibilidade de uma GNE propriamente dita. Seja como for,

a GNE está já paradoxalmente presente, sob a forma do sistema anti-euclidiano, mas renegada e

deixada em um estranho estado de ontologia negativa. A situação era de resto embaraçante pois que,

ainda que renegada, o novo sistema se recusava de abandonar a cena.

Mas todos os autores que precederam Gauss, Bolyai e Lobatchevski não rejeitaram a geometria

anti-euclidiana. O filosofo escocês Thomas Reid imaginou vegetais dotados de inteligência humana,

dispondo das únicas informações que lhes fornecessem seus olhos, e mostrou que a geometria natural

desses “Idoméniens” seria um sistema anti-euclidiano: os grandes círculos do globo celeste seriam

para eles retas (retas dotadas naturalmente de uma extensão finita e fechadas sobre si mesmas) e a

soma dos ângulos do triângulo seria superior a dois ângulos retos (uma tal geometria não euclidiana

se chama elíptica). Para nós, seres humanos móveis que a providência divina proveu do senso comum,

a GE permanece o único sistema verdadeiro; mas os “Idoméniens”, que aplicam a palavra reta às

linhas que na realidade não são retas, concederiam para a própria geometria deles, a mesma evidência,

a mesma veracidade necessária que nós atribuímos à de Euclides5. Mas isso que escapou a Reid foi

realizado no caso da geometria hiperbólica (onde a soma dos ângulos do triângulo é superior a dois

retos) por um aluno de Gauss, Wachter. Este último reconheceu não somente a consistência do sistema

anti-euclidiano hiperbólico, mas ele foi verdadeiramente o primeiro a admitir (1816) a verdade dessas

proposições, e isto no caso onde a palavra reta designa linhas retas do espaço e não linhas

correspondendo às retas do espaço não euclidiano sobre um modelo euclidiano. Mas Wachter pensa

sério rechaçar, em revanche, a geometria de Euclides como falsa. Mais tarde, aliás, ele mudará de

opinião crendo ter demonstrado a não consistência do sistema anti-euclidiano.

A LUCIDEZ DE ARISTÓTELES

5 Desde 1834, Ampere deu atenção à geometria dos Idoméniens. O nome de Reid caiu praticamente no esquecimento até em 1972, data na qual a monografia excelente de Norman Daniels ressuscitou sua figura e seu trabalho.

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Aristóteles, [en l’occcurrence] na ocasião, merece uma atenção particular. Com efeito, a análise

de seu trabalho nos revela um fato que foi muito tempo ignorado, a saber, que a fonte histórica do

encaminhamento que foi ter na criação da GNE deve ser buscada muito provavelmente no grupo dos

geômetras que o rodearam, ele e seu amigo Eudoxo. Segundo o testemunho de seu trabalho, a

demonstração de um dos lemas fundamentais da geometria euclidiana era viciado por um raciocínio

circulas, sem dúvida porque se tentava efetuar pelo único meio proposições da geometria absoluta de

Bolyai, sem se dar conta que se tinha já tacitamente admitido no raciocínio uma proposição auxiliar

cuja verdade depende da verdade do lema euclidiano que era preciso demonstrar. Criticando os autores

desta tentativa, Aristóteles deixa transparecer a idéia que, para escapar a esse círculo vicioso, é preciso

conscientemente adotar como verdade, sem nenhuma demonstração, um dos lemas euclidianos

figurando no raciocínio. A construção correta da geometria exige portanto que uma de suas

proposições consideradas até então como um teorema da geometria absoluta de Bolyai seja

reconhecida como um princípio ou, para tomar um termo moderno, como um axioma.

Introduzindo seu postulado (o postulado das paralelas) para fundar a geometria euclidiana,

Euclides não fez senão responder a essa exigência. O problema das paralelas precedeu assim pelo

menos meio século o postulado euclidiano das paralelas. Não é portanto verdade que o caráter

complicado e a falta de evidência intuitiva do postulado euclidiano tenha provocado a aparição do

problema das paralelas (como o afirma a história tradicionalmente); já que a introdução mesma do

postulado não é senão uma consequência da primeira tentativa para dar uma solução ao problema das

paralelas e que a solução de Euclides era correta. Numerosas passagens do corpus aristotélico nos

mostram também que os geómetras gregos tinham já empreendido tentativas para demonstrar uma das

proposições fundamentais da geometria euclidiana por redução ao absurdo das proposições anti-

euclidianas. Foi um fracasso. Os gregos com efeito conseguiram demonstrar que a hipótese referindo

uma soma de ângulos passando dois ângulos retos conduzia no quadro do sistema absoluto de Bolyai

ao absurdo de um par de retas paralelas que se cortam. A possibilidade de uma das geometrias anti-

euclidianas possíveis estava assim eliminada. Infelizmente, a outra variante anti-euclidiana (soma dos

ângulos do triângulo inferior a dois ângulos retos) não pode ser eliminada da mesma maneira; e assim a

hipótese geral de um sistema anti-euclidiano, inabalado, tornou-se uma provocação aberta.

Os geómetras gregos tinham já, segundo toda probabilidade, descoberto que na hipótese anti-

euclidiana a relação da diagonal com o lado do quadrado tomava também valores racionais. De uma

maneira ou de outra, Aristóteles tinha já percebido que essa situação aberta não podia ser atribuída a

uma incapacidade acidental, mas que a hipótese anti-euclidiana era realmente irrefutável; a alternativa

(triângulo euclidiano ou anti-euclidiano?) é portanto indecidível por meio do raciocínio lógico (isto é,

no quadro da geometria absoluta). Aristóteles menciona dezesseis vezes a proposição anti-euclidiana

referente à soma dos ângulos do triângulo, mas jamais ele a qualifica explicitamente de absurda, de

impossível ou de falsa. Ele menciona cincoenta e duas vezes a proposição euclidiana correspondente

mas jamais ele a apresenta como uma verdade necessária cujo contrário seria impossível, até absurdo,

mas somente como um enunciado geral (admissível para o conjunto de todos os triângulos). Melhor

ainda, ele considerava a demonstração conhecida dessa proposição como uma quase-demonstração,

visto que, na sua opinião a soma dos ângulos constitui a essência do triângulo e a ele pertencem sem

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termo médio; uma tal propriedade é indemonstrável e deve ser admitida como princípio (axioma). Mas

ele fala da soma dos ângulos do triângulo como de uma quantidade que pode ser tanto igual, superior

ou inferior a dois ângulos retos (180º).

TRIÂNGULO EUCLIDIANO OU TRIÂNGULO NÃO EUCLIDIANO? PARA ARISTÓTELES, A ALTERNATIVA PERMANECE ABERTA

Nos Segundos analíticos, Aristóteles lança a questão: qual das duas proposições opostas

referentes à soma dos ângulos do triângulo é verdadeira, ou qual das duas constitui a razão de ser do

triângulo, a proposição euclidiana ou aquela anti-euclidiana? A questão permanece sem resposta.

Aristóteles é muito circunspecto e toma o cuidado de tratar as duas proposições antagónicas como

possuindo os mesmos direitos do ponto de vista da possibilidade lógica delas. Ele certamente jamais

aceitou a veracidade das proposições anti-euclidianas citadas, mas ele não concede uma preferência à

proposição euclidiana.

A análise consagrada por Aristóteles (Ética a Eudemo, Grande moral) em esclarecimento do

conceito de liberdade se mistura na discussão paralela do exemplo matemático: geometria euclidiana,

geometria anti-euclidiana. Os textos seguem fortemente a ideia que ele encarou o domínio da

geometria sob o aspecto de uma profunda analogia estrutural com o domínio da ética. Ele acentua de

resto que recorre à analogia geométrica justamente para por em evidência a essência da ideia de

liberdade (livre arbítrio) graças a esse paralelo. A ação ético-política (efetuada sem coação exterior) é

precedida por uma decisão inicial do ser humano. No ponto de partida de sua diligência, ele se vê posto

diante de uma alternativa: uma via vai conduzir ao bem, a outra cravará no mal. Nenhum raciocínio

demonstrativo pode basear a escolha. Essa decisão, primeira e livre, é o princípio da ação ética, como o

axioma é o princípio posto no início lógico de uma teoria geométrica.

A liberdade, no domínio ético corresponde à indemonstrabilidade ou indecidibilidade lógica do

axioma geométrico. E o caráter ético da decisão inicial do princípio de ação ética (o bem ou o mal) se

transmitira a toda ação, que resulta com

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John Bolyai (1802-1860) tinha apenas 20 anos quando começou a desenvolver uma geometria independente do "décimo axioma" de

Euclides sobre as paralelas. É em 1832 que seus trabalhos são publicados em apêndice a um trabalho de seu pai, Wolfgang Bolyai. Da tiragem

separada foram difundidos desde o mês de junho de 1831. A página do título em frente anuncia que trata-se de "a ciência absolutamente verdadeira

do espaço" e indica que, se se adota um axioma oposto àquele do postulado das paralelas de Euclides, se pode realizar a quadratura do círculo.

Em Tirgu-Mures, a cidade onde habitaram os Bolyai, os romenos edificaram há alguns anos uma dupla estátua: Bolyai o pai, assentado

considera com olho crítico e espantado Bolyai o filho que o põe em apuros, mergulhado em uma poderosa meditação não-euclidiana. Esta

dramatização, concebida no estilo do "realismo socialista", exprime à sua maneira uma verdade histórica; porque efetivamente Wolfgang Bolyai,

um dos melhores especialistas de seu tempo sobre o problema das paralelas, jamais aceitou a nova geometria engendrada entre outros por seu

próprio filho.

necessidade, como o caráter geométrico euclidiano ou anti-euclidiano do axioma é transmitido aos

teoremas que resultam pela necessidade lógica. As proposições geométricas citadas como axiomas

opostos, paralelamente à oposição ética do bem ou do mal, são: a soma dos ângulos do triângulo é igual

a dois retos, a soma dos ângulos do triângulo não é igual a dois retos. Que se poderá falar da liberdade

de escolher entre as teorias geométricas opostas? O contexto o sugere, mas Aristóteles se abstém de

toda declaração explícita sobre esse ponto. A situação devia o embaraçar, pois que ele termina a

passagem com a exclamação: Para esse momento não se pode dizer nada de mais, mas é também

impossível passar a questão sob silêncio.

Seja como for, essas passagens implicam tacitamente que Aristóteles considerou a alternativa

triângulo euclidiano – triângulo anti-euclidiano como uma oposição axiomática indecidível para uma

inferência demonstrativa e que, face a essa impossibilidade, ele buscou talvez um critério ético para

justificar a escolha de um e a recusa de outro6. Em todo caso, é espantoso que Aristóteles não viu

6 Aristóteles e numerosos outros autores depois dele aceitaram a consistência do sistema anti-euclidiano sem demonstração. A primeira demonstração de consistência relativa dos sistemas euclidiano e não euclidiano foi dada

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qualquer razão de excluir a priori a possibilidade de um triângulo anti-euclidiano sob pretexto que ele

seria falso, nocivo e dependente de uma geometria degenerada; ele se contenta de sugerir que a

alternativa permanece aberta. Mas essa idéia não se implantou e não representou nenhum papel

histórico sensível no abalo do geocentrismo euclidiano. Aristóteles, posto que se situa na origem do

movimento histórico, adotou sem dificuldade, do ponto de vista do progresso lógico, a posição que se

encontra no termo da evolução. Por sua imparcialidade e pela maturidade filosófica de suas ideias, ele

ultrapassou todos seus antecessores.

UM PASSO CHAVE: ADMITIR A PLURALIDADE DOS MUNDOS GEOMÉTRICOS.

Esse exame sumario da pré-história da GNE nos mostra que as principais ideias que, segundo a

literatura corrente, marcam o advento da GNE propriamente dita (consistência do sistema anti-

euclidiano, indecidibilidade da alternativa: geometria euclidiana ou anti-euclidiana) foram admitidas

muito cedo. A possibilidade de um sistema anti-euclidiano foi tomada em consideração muito antes de

Gauss, Bolyai e Lobatchevski. É porque, na literatura histórica corrente, Saccheri, Lambert, Taurinus,

Wachter e Reid são frequentemente considerados como os verdadeiros precursores, às vezes mesmo

como verdadeiros inventores desconhecidos de uma GNE somente mais pobre em teoremas que aquela

de Gauss, Bolyai e Lobatchevski. A questão se põe portanto: é justificado atribuir o estabelecimento da

GNE propriamente dita somente à tríade Gauss, Bolyai e Lobatchevski? Ou ainda: existe um resultado

essencial para o estabelecimento teórico da GNE propriamente dita que seja uma contribuição

exclusiva de Gauss, Bolyai e Lobatchevski e que não se encontre em nenhum de seus predecessores,

feita sob formas fragmentárias, alusivas ou conjecturais?

A resposta é afirmativa: uma tal ideia existe, e ela se refere à possibilidade de aceitar os dois

sistemas de proposições opostos como simultaneamente verdadeiros, atribuindo aos dois mundos

geométricos que lhes correspondem o mesmo valor ontológico, a mesma realidade; e tudo isso falando

do mesmo objeto e conservando a mesma interpretação semântica dos termos fundamentais como

linha reta, distância, comprimento de um segmento de reta, congruência, etc. Nos dois sistemas de

axiomas. Esta idéia, completamente nova, é o trabalho exclusivo de Gauss, Bolyai e Lobatchevski.

Antes deles, toda a gente via as duas geometrias opostas como constituindo os dois termos de uma

estrita alternativa: tratam dos mesmos objetos (pontos, retas, triângulos círculos, etc.) e o sentido dos

termos fundamentais permanecendo invariável, uma e somente uma das duas geometrias pode ser

aceita, e a outra deve ser rejeitada. Enfim, é a idéia da pluralidade dos mundos geométricos oposta à

concepção de unicidade que distingue Gauss, Bolyai e Lobatchevski de todos seus predecessores e que

justifica que se lhes atribui de modo exclusivo a GNE no sentido próprio. Para distinguir entre a GNE

propriamente dita e os outros sistemas opostos ao de Euclides, eu designei esses últimos por um termo

utilizado ligeiramente com o mesmo fim por Gauss e Wolfgang Bolyai, o de geometria anti-euclidiana.

Desse ponto de vista é claro que os predecessores de Gauss, Bolyai e Lobatchevski não são

predecessores da GNE, mas dos representantes mais ou menos evoluídos da geometria anti-euclidiana.

em 1868 por Beltrami. Gauss aceitou a idéia sem qualquer tentativa de a demonstrar. Bolyai e Lobatchevski sentiram a necessidade de uma demonstração; mas suas tentativas não envolveram um resultado satisfatório.

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Porque a GNE não é a soma de uma acumulação quantitativa das contribuições deles, e sua

aparição não pode ser atribuída a uma certa perfeição técnica, de novos conceitos, métodos e

procedimentos técnicos desenvolvidos no interior da ciência matemática. Absolutamente todos os

resultados técnicos, matemáticos e metamatemáticos, podem ser obtidos também no quadro de uma

filosofia da unicidade geométrica. Historicamente, o sistema anti-euclidiano foi desenvolvido nesse

momento que se o supunha falso. A demonstração de sua consistência relativa pode ser efetuada se não

importa qual dos dois sistemas é considerado como falso (e mesmo, na geometria absoluta de Bolyai,

se os dois postulados das paralelas, o euclidiano e o não euclidiano, são considerados como nem

verdadeiro nem falso). Procedendo assim, se obterá esse resultado espantoso: a inconsistência do

sistema considerado como falso, como fictício, acarreta a inconsistência dos sistema considerado como

verdadeiro, como real. Geometria não euclidiana e geometria anti-euclidiana se opõem assim à causa

de sua filosofia imanente, a da pluralidade contra a da unicidade, e não se pode qualificar uma delas de

verdadeira e a outra de falsa. Recusar a filosofia da pluralidade não constitui uma falta de raciocínio

lógico e certamente não é um erro matemático devido à ignorância somente.

O combate daqueles que rejeitaram a GNE não era a expressão de uma certa politica científica:

em nome de sua ideologia, eles consideraram seu dever intervir no desenvolvimento da ciência.

Retrospectivamente, se pode admitir que seu êxito teria como consequência bloquear parcialmente o

progresso científico.

FECUNDIDADE DA NEGAÇÃO

O caráter anti-intuitivo da GNE chocou os espíritos do séc. XIX por causa da concepção

dominante de uma geometria concebida como ciência do espaço físico ou como manifestação de uma

intuição espacial a priori, pura e necessária. É certamente a razão pela qual os partidários da GNE

tiveram todos a opinião que a revolução da GNE consistia na eliminação definitiva do argumento

baseado na evidência intuitiva. Mas isso não é senão um aspecto menor da GNE, e que aliás se

reencontra no caso da topologia e mesmo da análise clássica.

Se se quer guardar a ressonância política do termo revolução aplicado à história da ciência, é

sobre a filosofia da pluralidade que é preciso insistir: ela foi a única responsável pela subversão

realmente revolucionária. Em outros termos, essa revolução foi engendrada por uma mudança radical

de ponto de vista. Esse aspecto é muitas vezes desconhecido, mas não escapou à atenção dos

adversários mais ardentes da GNE. Dühring, Renouvier e sobretudo Frege compreenderam muito bem

que o ponto capital (e para eles o mais inaceitável) da GNE era justamente a filosofia da pluralidade

que a veicula. Não se pode servir a dois mestres ao mesmo tempo; não se pode servir ao mesmo tempo

ao verdadeiro e ao falso. Se a GNE é verdadeira, então a GNE é falsa; e se a GNE é verdadeira, é a

GNE que deve ser falsa. Assim argumentava Frege.

Ele não errou em rejeitar a filosofia da pluralidade; é em todo caso muito difícil de a ela aderir.

Com efeito, a trajetória que conduz ao estabelecimento da GNE é talvez ainda mais bizarra que as

proposições estapafúrdias que ele engendra. Historicamente, a geometria anti-euclidiana precedeu a

geometria não euclidiana propriamente dita. O único sistema “verdadeiro” e “real” era a geometria

euclidiana; uma primeira proposição anti-euclidiana foi obtida pela negação formal do axioma das

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paralelas de Euclides ou de um dos teoremas fundamentais que daí derivam. Inserida no texto

euclidiano a palavra não inverte o sentido de uma proposição lhe dando automaticamente o valor de

falsidade. O sistema anti-euclidiano resulta dessa primeira proposição pelo meio mecânico de

inferência lógica. É propriamente um subsistema do sistema de proposições euclidianas; as proposições

compondo sua rede são todas teoremas euclidianos cuja falsidade (na geometria euclidiana) é

demonstrável. O mundo que se tentou daí associar é ontologicamente oposto àquele do espaço

euclidiano, não somente como irreal, mas como impossível e conscientemente fictício. A aparição da

GNE é devido a uma segunda negação: o discurso guarda sua expressão verbal anti-euclidiana ao

mesmo tempo que sua semântica inicial, ele muda somente seu signo lógico. Essa segunda negação

substitui o valor de falso por aquele de verdadeiro. Um novo sistema verdadeiro, um novo mundo

geométrico real assim se constituiu. Mas a GNE deixou inabalado o sistema ao qual ela é

irreconciliavelmente oposta; melhor, é somente pela geometria não-euclidiana que a geometria

euclidiana pode ser confirmada como sistema autônomo. Como Tristão e Isolda, as duas geometrias

não podem nem viver nem morrer senão juntas.

O RESULTADO DE UMA LIVRE CRIAÇÃO

Foi um verdadeiro ato de criação que fez surgir a GNE, mas a palavra que a fez surgir foi a

palavra não. A negação é criadora. Pela partícula "não" se realiza a conjunção histórica dos dois

sistemas. Para a GNE corresponde uma estrutura evolutiva não-euclidiana na qual, sob sua forma anti-

euclidiana, o não-ser precede o ser, o contra vem antes do pró. Ela postula o impossível sob a forma de

um discurso mentiroso e o transforma em realidade e em verdade.

Frege, o adversário mais temível da GNE, bem viu esse ponto essencial. Ele rejeitou a GNE (e

também a teoria dos números reais de Cantor e Dedekind) pela mesma razão; elas são construídas as

duas sobre um ato de criação, atribuindo a objetos cuja impossibilidade de existência é demonstrável

em um sistema previamente dado. A fonte direta de sua oposição é seu anti-criacionismo irredutível,

consequência de sua ontologia platônica. Muito logicamente, ele não podia senão rejeitar a pluralidade

dos mundos geométricos. Porque a “filosofia da pluralidade”, de fato, não é senão uma maneira

eufêmica de designar “uma filosofia da criação”.

PARA SABER MAIS

R. Bonola.Non-Euclidean Geometry, Dover, 1955.

H. Delong, A Profile of Mathematical Logic (chap. 2: Non-Euclidean Geometry), Addison-Wesley,

1970.

D, Gans, An Introduction to Non-Euclidean Geometry, Academic Press, 1973.

L. Roth, "Geometry and the Scientific Imagination", Rendiconti di Matematica, 1-17, 1970.

W. H. Brock, "Geometry and the Universities: Euclid and His Modern Rivals, 1860-1901", Hystory of

Education, 21-35, 1975.

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N. Daniels, "Thonas Reid's Discovery", Journal of the Philosophy of Science, 219-234, 1972.

F. Gonseth, la Géométrie et le problème de l'espace, Editions du Griffon Neuchâtel, 1958.

I. Toth, Die nicht-euklidische Geometrie in der Phae omenologie des Geistes, Heiderholf, 1972.

H. Poincaré, la Science et l'hypothèse, 1903: Derniers pensées, 1913, Flammarion.

TRADUÇÕES DAS LEGENDAS E OUTRAS NOTAS QUE APARECEM NO ARTIGO ORIGINAL:

*

[Nota na ilustração do início do texto] Eis como se apresentam os cinco postulados de Euclides

em um manuscrito grego do séc. XIV conservado na Biblioteca Nacional. O postulado mais famoso é

seguramente o quinto: "Se uma reta cortando duas retas faz os ângulos interiores do mesmo lado

menores que dois ângulos retos, as duas retas prolongadas ao infinito se encontrarão do lado onde os

ângulos são menores que dois retos".

(Cliché J. L. Charmet)

*

Pág. 144: Imre Toth ensinou nas universidades de Bucareste, de Frankfurt e Bochum.

Atualmente ele é professor na Universidade de Ratisbonne (RFA). Suas pesquisas dirigem-se

essencialmente sobre as matemáticas gregas e sobre os problemas filosóficos ligados aos fundamentos

da matemática.

Wilson Pereira de Jesus

tradutor