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  • MARCELLO SALVAGGIO

    A Rosa e a Cruz

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  • A ROSA E A CRUZ

    Volume 1

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  • Voc no pode criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permisso do autor.

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  • Prefcio

    A inteno desta obra no , o que seria lugar-comum e reducionista, denegrir a Igreja Catlica, que como todas as instituies possui aspectos positivos e negativos, pessoas de f sincera e outras nem tanto, muito menos criticar a religiosidade genuna, e sim, alm de ser sobretudo uma fico, e portanto fruto da imaginao e da pesquisa do autor que vos fala, fazer uma reflexo sobre os demnios internos do ser humano, os nicos que podem realmente nos dobrar, sendo inclusive os que abrem as portas para os males externos. J conheci pessoas que tentaram tirar suas prprias vidas: em casos como esses, devemos cultivar o respeito e o amor por nosso semelhante que se encontrou em uma situao to difcil, no julgamentos e interpretaes arbitrrias que jamais podero nos proporcionar o que o outro sentiu, que s servem para alimentar o desespero alheio. O medo, a cobrana, a inveja, a ganncia e a hipocrisia (secular ou religiosa) so as verdadeiras criaturas das trevas que tentam obscurecer estas pginas, podendo se manifestar em qualquer um de ns e em qualquer sociedade ou organizao; o problema no est nas religies e nem nos sistemas polticos, mas nos seres humanos que insistem em no olhar para dentro e dar importncia aos demnios ao redor, mesmo quando no existem. Se h ameaas prximas e o perigo nos ronda, porque demos alguns passos adiante em uma terra na qual no devamos ter pisado; de qualquer modo, uma vez que entramos nela, s nos resta ir em frente, compreendendo que as sombras na floresta so simples sombras,

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  • transformando-se em monstros quando especulamos de onde elas vm, em verdade sombras de ns mesmos...

    PRIMEIRO ATO

    I Na superfcie

    A poeira vermelha e insalubre se espalhava pelo ar turvo e esttico. No horizonte um ocaso de expectativa, conquanto no houvesse nenhum espectador aparente; olhos ocultos fitavam o passo do cavaleiro, a face encoberta pelo bacinete de ao. Sobre o animal berne, o guerreiro reluzia em prata, com sua cota de malha finamente trabalhada e uma capa apresentando uma cruz sutil, de linhas vermelhas preenchidas pelo branco.- O senhor veio cortar a minha cabea?- Indagou a nica outra presena ali, uma menina plida com seus seis anos, vestido preto e rasgado, descala, o semblante assustado e os olhos azuis trmulos. A respirao que saa do elmo era tranqila, o andar calculado; o que assustaria a maioria, porm certamente sem poder ser usado contra crianas, eram as duas espadas cruzadas em suas costas, ao que tudo indicava montantes, que mesmo uma de cada vez seriam empunhadas com dificuldade por homens de grande fora. Idnticas, sendo as bainhas reluzentes, destacavam-se as empunhaduras num prateado mais escuro, em forma de drages retorcidos, que faziam um tremendo esforo para morder, sem sucesso, suas prprias caudas, em uma perseguio munida de dentes e desespero.

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  • - O senhor no pode me machucar.- A garotinha insistia diante do avano indiferente do cavaleiro, no saindo de seu caminho, em um corredor de casas de madeira e taipa simples daquele melanclico vilarejo do sul da Alscia.- Se quiser, pode comer carpa frita comigo e com os meus pais hoje. Ou o senhor no me entende? Nunca ouviu falar das carpas de Sundgau? Ontem mesmo tivemos a festa de Saint Nicolas. Por que o senhor no participou? Ganhei muitos biscoitos e pedaos de bolo e pain dpice. Sabe como se faz? A minha me pode te passar a receita depois! O cavaleiro acelerou de repente, desembainhando uma de suas espadas, cuja empunhadura emanou uma luz de prata, e o drago em metal ganhou movimento, por fim mordendo a cauda; a cabea da menina voou para longe com um nico golpe.- Isso no bom...O senhor quer que eu chame os meus pais?- A face falou separada do corpo, no cho, sobre a pocilga de sangue que se formara; do tronco estanque, imvel, brotou uma nova cabea, enquanto a primeira se desmanchava na forma de uma gosma da cor da pele e dos cabelos fundidos. Os novos olhos, contudo, apresentavam uma vermelhido quase negra nas veias, e foi com estes que fitou o guerreiro com intenso dio. O verde das rvores e da grama da regio, j opaco, ficou ainda mais coberto de poeira, apesar de no haver vento. As minsculas migalhas encarnadas pareciam brotar de forma espontnea. O cavaleiro avanou outra vez; porm, diferentemente do que ocorrera na primeira tentativa, a menina se moveu, esticando os dedos da mo direita, que agiram como lanas flexveis, as unhas se transformando em pontas metlicas, sendo vital o posicionamento correto

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  • para tirar proveito do visor perfurado em forma de cone, que facilitou o desvio do ataque frontal. Na seqncia, mais um golpe preciso e o brao da criatura com aparncia de criana foi cortado. Vieram os dedos da outra mo para atingir o cavalo, mas a esquiva e a fuga foram mais rpidas.- Por que voc no desiste?...- A voz da garotinha comeou a ficar mais bestial e inumana; seu sorriso no tinha dentes afiados, todavia emanava uma fome manaca por carne triturada, sua aura negra e quitinosa se tornando visvel para regenerar o brao decepado, enquanto o que cara sofria um processo anlogo ao da cabea. No entanto, o cavaleiro foi rpido demais: retirou sua segunda montante e em mais um avano saltou do cavalo, deixando o animal se afastar sozinho, e aplicou dois golpes verticais quase que simultneos na criatura, cortando de uma vez o brao inteiro e o que estava se reconstituindo, por fim perfurando-lhe o peito com uma lmina e rachando-lhe a cabea com a outra, agachado para ficar na altura adequada. Tudo numa velocidade sobre-humana.- Ele conseguiu!- Ouviu-se uma exclamao em alsaciano vinda de uma das casas; tratava-se da mesma lngua na qual o monstro em forma de menina se comunicara, este entretanto misturando-a um pouco ao francs.- Ser que no vai mais se regenerar?- Um homem de meia-idade saiu da taverna mais prxima.- No se preocupem.- Por fim o cavaleiro falou, com uma voz grave e ainda por cima abafada pelo capacete justo.- Uma vez que o corao e o crebro foram atingidos de forma simultnea ou num curto espao de tempo, esse tipo de demnio no pode mais voltar

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  • vida.- E tornou a embainhar suas espadas, das quais o sangue desapareceu. Pouco depois, todas as pessoas comearam a sair das casas...- Como podemos recompens-lo?- Aproximou-se o ancio do povoado.- Alm de tudo, sabe falar a nossa lngua. Quer dizer que se interessa por nossa cultura?- No confunda as coisas. Ns somos obrigados a saber os idiomas de todas as comunidades crists. No um interesse particular. um dom do Esprito Santo, que nos permite aprender qualquer lngua ou dialeto com facilidade.- Oh, sim, meu senhor! Mil desculpas. Mas o que devemos fazer agora?- Primeiro tirem esse corpo imundo desta calhe. Peo para que o enrolem e o mantenham assim at a meia-noite...E ento o queimem em frente igreja. Quando isso estiver terminado, o senhor venha me visitar na hospedaria com o pagamento que puderem me oferecer. No se esqueam de no serem tacanhos, pois a avareza um dos pecados mais custosos para que algum dia seja obtido o perdo divino.- Como s existiam uma igreja e uma hospedaria naquele vilarejo, era impossvel encontrar pontos de ambigidade.- Mil graas, nobre e reverencivel cavaleiro! O Senhor esteja sempre em sua presena.- Ele est no meio de ns...- E se dirigiu para recuperar o cavalo. Subiu no animal sem qualquer demonstrao de calor ou afeto e encaminhou-se para o estbulo mais prximo, onde o deixaria para descansar um pouco...Embora fosse mais um relaxamento mental: fisicamente estava perfeito. Aquele tpico devorador de crianas, que assumira a forma de sua ltima vtima, era fraco e dera pouco trabalho; a maior dificuldade estivera

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  • em identific-lo, pois se ocultava bem, mas venc-lo no se tratava de um problema para quem possua o sangue de Cristo correndo em suas veias.

    II Profundezas

    A hospedaria, iluminada por escassos candelabros, tinha oito quartos estreitos e sujos, distribudos por dois andares de madeira rangente, nos quais era comum ouvir a passagem de ratos, que, sorrateiros, acabavam vistos poucas vezes, ao contrrio das menos discretas baratas. Sigmund aguardava em uma cadeira em frente a uma mesa arranhada, velha, e prximo de uma cama de lenis desbotados e travesseiro manchado; no canto, uma latrina imunda. De braos cruzados, esmagava com um semblante indiferente cada inseto que passava perto de seus ps, desferindo uma rpida mirada lateral com seus olhos frios antes de consumar aquelas breves execues. Retirara seus trajes de batalha e vestia agora apenas uma tnica marrom de mangas compridas e uma cala de couro. Esperava pelo ancio quando algum bateu sua porta, da qual pouco desviava a face.- Pode entrar. Est aberta.- Sabia que ningum teria coragem de entrar sem autorizao...- Aqui estou, meu senhor...Vim para lhe trazer sua recompensa!- O velho avanou, sorridente.- Feche a porta.- Ah, sim! Sim, meu senhor...- Fechou a porta atrs de si, um pouco receoso, mas logo refletiu que no tinha razes para temer um cavaleiro santo; sua fachada fria talvez fosse apenas porque no se deixava levar pelo mundanismo das emoes.- Aqui est.- Veio com um odre velho, tremendo ao deposit-lo na mesa.

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  • - No se esquea que a recompensa no para mim. para Deus, que permitiu que eu viesse para purificar este vilarejo. Sem Ele, seus chamados no seriam ouvidos.- Ah sim, meu senhor! Claro! Mil perdes.- A arrecadao dos cruzados era dada em sua totalidade Igreja, sendo que esta provia posteriormente o necessrio para a subsistncia de seus guerreiros, que a cada ms retiravam o soldo para a manuteno de suas armaduras, para suas roupas pessoais e para se alimentar, o que no era muito neste ltimo caso, j que s precisavam de uma pequena refeio a cada sete dias. Mas ser que no ficam com um pouco pra eles?, o velho pensou, porm nunca teria coragem de verbalizar. Ele nem comeu nada desde que chegou.- S gostaria de lhe pedir um nico favor pessoal, que nada tem a ver com dinheiro.- Favor pessoal??- O ancio pareceu bastante surpreso.- Algum problema?- No, senhor...No.- Gaguejou.- Claro que no! Pode pedir o que quiser.- Que fique bem claro: isso dever ficar entre ns dois...E entre a terceira pessoa que ser envolvida. Caso abra a sua boca, voltarei a este povoado o quanto antes s para cortar a sua lngua e depois a sua garganta.- Reverendo!- Perplexo, o velho arregalou os olhos.- Mas o que de to terrvel um homem to santo como Vossa Excelncia poderia me pedir? Afinal no h nada que os olhos de Deus no vejam.- De qualquer modo, nunca se refira a isso que vou pedir a nenhum de meus irmos, nem cruzados e nem padres comuns.- Mas o que seria?

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  • - Quero que me traga uma mulher. Que seja viva e que tenha sido me. No darei mais detalhes.- Uma mulher? Mas os senhores...Como posso traz-la?- No julgue o que no pode ver. No tire concluses precipitadas.- Ah...Agora entendo! Ir fazer a generosidade de eliminar os maus espritos que s vezes assolam essas pobres mulheres!- Um raio de esperana reluziu no sorriso do idoso.- Mas no ser ento um favor feito por mim e sim mais um favor de sua excelncia prestado nossa comunidade!- Traga-a logo. Minha inteno ir embora ao nascer do sol. O ancio saiu da forma mais rpida que poderia. J no estou agentando mais..., Sigmund passou as mos pelo rosto enquanto apoiava os cotovelos mesa. Os meus olhos esto comeando a ficar secos..., era uma necessidade...E por isso considerava que no fosse um pecado. Pecar significa exceder-se...Perder o controle na exacerbao dos prazeres dos sentidos, o que no o meu caso; eu preciso! Caso contrrio terei sim sonhos pecaminosos e no conseguirei dormir pelo resto da noite, atormentado pelos demnios que matei e que comeam a se aproximar. No tenho medo, mas quero preservar a minha sanidade e a minha tranqilidade; toda vez que mato a mesma coisa..., a cada misso que cumpria, sentia mais do que uma nsia nas partes baixas; tratava-se de um volume que principiava a borbulhar e depois ardia, tendo que jog-lo para fora o quanto antes ou as sensaes de ardor e queimao se espalhavam por todo o corpo, chegando cabea e aos olhos; um frmito de angstia e prazer ansiado, que no conseguia aplacar de outra forma, visto que deixara de

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  • praticar o onanismo desde seus primeiros tempos como cruzado, e no apenas por consider-lo um pecado, um excesso dos sentidos, uma falta de auto-controle, e sim porque, nas ocasies em que tentara levar adiante um ato do tipo, as piores recordaes do passado haviam-lhe vindo mente e no pudera se abrandar, pelo contrrio: mesmo as imagens das pessoas se transformaram em demnios aterradores, queimando seus rgos genitais (chegara a verific-los depois, comprovando aliviado que estavam intactos) e interrompendo a ereo com dor. Quando estava com uma mulher, isso no ocorria. Mas por que uma viva e me?- Aqui est, meu senhor. Ela tambm manifestou o interesse em agradec-lo.- O velho a trouxe.- Obrigado, ancio. Pode se retirar.- O cavaleiro meneou a cabea de forma afirmativa, tentando a custo conter seu fogo interno, fulminando o pobre homem com o olhar para que este logo se retirasse. A mulher tinha por volta de quarenta anos, os cabelos speros parecidos com palha, grandes olhos apavorados, a pele lvida e o nariz chato, com uma roupa que eram farrapos de camponesa. Encarou o belo cruzado com imensa fascinao, ainda sem dizer nada.- Sim, meu senhor...E ns que agradecemos!- Amedrontado pela expresso glida, o idoso saiu tremendo um pouco, como que no devidamente agasalhado ao ser atingido por uma ventania ardida de inverno.- Muito bem. Agora estamos a ss. Sente-se.- O que deseja de mim, meu senhor? Posso fazer tudo o que for da sua vontade. Estou disposta a colaborar

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  • tambm caso algo precise ser feito em mim.- Sentou-se na outra cadeira daqueles parcos aposentos.- muito bom ouvir isso...- Sorria pela primeira desde que chegara ao povoado; ela na hora sentiu medo: havia algo naquele sorriso que no condizia com a beleza quase angelical do cruzado.- Tem quantos filhos? Algum menino?- Um rapaz e uma menina.- Confio nele. um homem santo, capaz de exterminar demnios!- Um casal...Muito bonito isso. Saiba que admiro profundamente a maternidade.- Assumiu uma expresso afvel.- Eu gostaria de ter tido uma irm.- Uma pena que no tenha tido.- Sequer pai tive. Meu nico pai Deus.- Admira-me sua f, meu senhor.- Ele se levantou...- Voc fique.- Fez um gesto para que ela no se erguesse e foi para suas costas...Apoiou as mos em seus ombros.- H muito tempo que no recebe os carinhos de um homem?- Comeou a massage-la.- Meu senhor?...- Olhou para trs assustada, dando de cara com um semblante malicioso. No teve foras para deixar de fit-lo, como se tivesse sido hipnotizada.- O seu marido partiu h quanto tempo?- Dois anos.- um bom tempo.- Passou a acariciar seus cabelos.- Tempo suficiente para que qualquer ser humano enlouquea.- O que est dizendo, reverendo???- Nada de mais. Assim como no h nada de mais em brincar com os nossos sentidos quando somos tementes a Deus.- Retirou as mos e comeou a tirar sua tnica.- Mas meu senhor...- Ela se negou a olhar para o corpo de um homem. Tampou o rosto com as mos.- Como

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  • podemos ser tementes a Deus se camos no pecado da carne?- Cairamos no pecado se a senhora ainda fosse casada.- Mas o senhor no deveria ser casto?- Apenas no posso cometer excessos. Sou um homem de carne e ossos. E como tal s vezes preciso de algum que aquea a minha pele.- De fato as mos dele so muito frias!, a mulher exclamou mentalmente; no tardou para no resistir mais e tirar devagar suas mos da frente dos olhos, virando-se para fitar com discrio aquele belo torso nu masculino, musculoso, limpo e sem plos.- Mas a Igreja no o probe? E as leis da Igreja no so as leis de Deus?- A Igreja representa Deus, mas no Deus; a alma de nossa Igreja a menos imperfeita que existe neste mundo...Mas ainda assim possui falhas, pois coordenada pelos homens.- Foi para a frente dela, que ficara com as mos unidas por alguns segundos para depois apoi-las em seus joelhos, tensa, um tanto curvada. Encarou-o com temor.- Existe um motivo bem preciso que nos obriga a ser castos, que nada tem a ver com a determinao de Deus, que apenas pretende que no sejamos escravos dos sentidos, que Ele nos deu para que fossem nossos servos.- E qual seria esse motivo?- Se os sacerdotes tivessem filhos, como ficariam as questes envolvendo heranas? Formalmente, ns cruzados tambm somos padres e residimos em terras que no so nossas e sim da Igreja.- Eu no entendo bem...- Sei que difcil. Mas no precisa entender nada.- Comeou a tirar a cala.

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  • - No, meu senhor...Por favor...Por que eu? No tenho nada de mais!- Voc me.- Assim que ele tirou as roupas de baixo, levou a mo direita ao queixo dela, espremeu-o e, sem se importar com os dentes cariados, em contraste com os seus brancos e brilhantes, beijou-a.- No gema.- Fitou-a com seriedade enquanto algumas lgrimas desciam; enxugou-as com seus prprios dedos e depois lambeu um por um, com seriedade. Quando o cruzado comeou a tocar seus seios, a mulher passou a ofegar, ainda que de forma discreta; de sbito, viu uma sombra assustadora nas costas do guerreiro: pertencia a uma criatura rubra e encurvada, de chifres que nasciam na fronte, percorriam o dorso e se espalhavam para a cauda; estava de cabea baixa. Contudo, de chofre a levantou, revelando um rosto abominvel de barbas vermelhas.- No grite!- O cruzado arregalou os olhos e fulminou-a com severidade quando ela ameaou soltar um berro, tapando-lhe a boca com sua pesada mo direita.- Se fizer isso, terei que cortar a sua garganta. No se esquea: nada do que aconteceu aqui aconteceu realmente...Nada! Nunca se esquea disso; ou terei que voltar algum dia s para mat-la.- As lgrimas se misturaram ao suor; dessa vez ele no deu importncia ao choro: pegou-a em seus braos e arremessou-a na cama, onde de pronto se atirou e comeou a despi-la de forma enrgica.- No tenha medo. No h nada de mais aqui.- A criatura cnica continuava nas costas de Sigmund. Perceptvel apenas para a pobre mulher, que fechou os olhos e continuou a v-la.- Senhor...Meu Senhor...

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  • - Fique quieta.- O cavaleiro no percebera que ela apelara a Deus e no a ele; a penetrao principiou j rpida. Por fim iria se aliviar. Como pode?...Um homem de Deus fazendo isso comigo?? E tendo um demnio s suas costas. Isso no pode estar acontecendo...E ele to belo! Isto tudo no deve passar da minha imaginao! Eu pequei, desejei...E acabei criando essa monstruosidade! um castigo, isso o que . Se est ocorrendo realmente, Deus est usando este homem como um instrumento para me punir pela minha perverso! No soube respeitar a memria do meu marido e estou sendo justamente castigada. Esse demnio que vejo meu e no dele...Est sendo retirado de mim; isso..., e desmaiou aps uma onda de prazer que percorreu seu corpo ressequido. Instantes depois, ao recuperar os sentidos, estava outra vez vestida, ainda na cama do quarto na hospedaria, Sigmund sentado prximo da mesa ao lado, j com sua armadura, apenas sem capacete. Foi isso ento. Tudo no passou de imaginao minha! Ou ser que foi um castigo divino pela minha luxria? Pode ser que uma coisa dependa da outra, invadida que fui pelas imagens dos demnios. O que quer que tenha sido, ele me ajudou, at se passando por um monstro ou fazendo com que o confundisse com um, e preciso agradecer., refletia confusamente medida que despertava e esfregava os olhos:- Obrigada por tudo, meu senhor. Serei sempre grata.- Saia.- Ele olhava para a porta.- Peo perdo por qualquer mal-entendido.- No me pea perdo. Saia e nunca conte a ningum o que ocorreu aqui.- No posso nem mesmo dizer que o senhor me ajudou?

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  • - Se pensa assim, de qualquer forma no necessrio. Iro querer saber detalhes. Diga que tivemos apenas uma simples entrevista.- Est bem, meu senhor.- Ela se levantou, cambaleante; estava toda dolorida.- Obrigada mais uma vez.- Quanto mais se aproximava da porta, os passos iam ficando mais firmes.- V.- E passou a olhar para o cho enquanto ela saa. Por que no salientei mais uma vez que se abrir a boca terei que mat-la?, ficou se perguntando quando ela partiu. E respirou fundo, cerrou os olhos e bateu a mo direita, fechada, no meio do peito, com fora; ficou ali, sem reabri-los e sem sair do lugar e nem mudar de posio at o amanhecer.

    SEGUNDO ATO

    I Na superfcie

    O galope era firme, mas sem pressa exagerada, pela rea de colinas da Toscana, mais precisamente pela regio do Monte Cetona, prximo de Siena. s vezes diminuam o ritmo ou at paravam um pouco. Iam por uma parte de predominncia de girassis, o dia raiava com uma beleza rara e mesmo assim Cavalcanti, em sua armadura azul-prateada e rebuscada repleta de adornos que lembravam meias-luas e smbolos astrolgicos, quase no falara desde que haviam desembarcado naquele territrio. O elmo exibia seus olhos negros, que passavam uma impresso de esmorecimento, ao passo que Miguel, ao seu lado, parecia querer aproveitar cada sopro do ar, sem o capacete, em uma armadura dourada

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  • com a insgnia de um anjo espadachim em seu peito. O vento suave fazia com que as capas nas costas dos dois esvoaassem discretamente.- No qualquer dia e em qualquer lugar que se pode respirar como aqui! Voc teve sorte de nascer nessa regio.- Ser mesmo?- Cavalcanti respondeu ao comentrio do amigo, por fim quebrando o silncio quase absoluto que tanto angustiara o outro.- A misso para a qual estamos nos dirigindo prova justamente o contrrio. Nem tudo maravilhoso como parece ser.- Mas Dite uma questo humana e como tal sujeita s falhas humanas. Falo desta natureza, criada por Deus, e que ainda nem o homem e nem os demnios conseguiram estragar.- Isso verdade.- O toscano respondeu sem grande entusiasmo.- No pensa em passar por Florena depois que a misso estiver terminada?- Estou aqui s para concluir este trabalho, assim como voc. No pretendo fazer mais nada aqui.- Que pena! Estava pensando em dar uma passada na sua cidade. Gostaria de conhec-la e verificar o porqu de ser to famosa por suas artes. Nunca tive tempo e, desta vez, como se tratar de um servio no to simples, Torquemada me garantiu que teria alguns dias de folga. Voc poderia me mostrar a cidade...- Torquemada no me disse nada.- Mas decerto a mesma regra se aplica a voc. Ele s teve preguia de dizer pra cada um e deixou que eu passasse o recado.- Pode ser mesmo, apesar dele no ser um homem de conceder descansos...- E voltaram a ficar em silncio.

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  • - Me desculpe falar isso, mas voc parece morto desde que chegamos aqui. Eu no ia dizer nada, s que...- Miguel tornou a interromper a falsa quietude, sem olhar mais para o companheiro, apenas para a frente, debaixo do cu azul-claro e com poucas nuvens.- No teve como!- Andar pela Toscana sempre me traz muitas recordaes. Algumas podem ser at boas, mas se tornam desagradveis quando me dou conta que um tempo que passou. E as ruins parecem mais vivas, pois condizem melhor com a minha situao atual.- Executar demnios no um trabalho dos mais agradveis, mas temos que pensar que se no fssemos ns o mundo estaria um verdadeiro caos.- O mundo j est um caos, pois no so aparies pontuais. Ocorrem a todo instante, e uma batalha que parece que nunca ter fim. Quantas pessoas inocentes e companheiros nossos ainda tero que morrer? Alm dos Possudos, ou se esqueceu do cavaleiro verde? Apesar de termos o sangue de Cristo correndo por nossas veias, no somos capazes de eliminar as pragas que assolam a humanidade. Nem mesmo o Cristo foi capaz, tanto que acabou crucificado. Se ele ir voltar, por quanto tempo ainda teremos que esperar por esse retorno?- Temos que ser pacientes, Cavalcanti. Jesus foi crucificado para mostrar a ns que Deus no indiferente s nossas dores...Alm de redimir os pecadores e nos levar a compreender ao menos uma centelha do que significa amor. A humanidade no tem mritos suficientes para ser salva, por isso que esta guerra ainda no teve fim. E ns provavelmente no veremos o trmino dela, e sim vrias geraes adiante. Talvez trs mil anos aps o nascimento do Salvador: os

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  • primeiros mil anos pertenceram ao Filho, os mil seguintes ao Pai e nossa poca culminar com a descida do Esprito Santo e o retorno do Filho, completando o ciclo.- Essa uma teoria de Torquemada.- Foi ele mesmo que me apresentou essa teoria. E no sei se concordo, s no acredito que veremos algo muito diferente. Deus testa a nossa perseverana.- E voc ao mesmo tempo permanece ctico que a humanidade possa mudar, assim como eu.- So as evidncias. Os demnios no so os nicos inimigos que enfrentamos. Os homens no demonstram ser merecedores de que no deveriam mais conviver com as criaturas das trevas. Quando lembro de gente como o conde Henrique...As coisas ficam feias dentro da minha cabea.- Compartilho dessa idia, embora s vezes a esperana, a f e a caridade faam com que aguarde algo mais do ser humano. Porm temos que nos dar conta que so virtudes que nem todos ainda despertaram, ou melhor, uma minoria despertou, e portanto nem adianta confiar que teremos um mundo mais fraterno. Meu irmo Cesare acredita que a natureza humana por si s suja, bestial, no muito diferente da dos demnios, com a nica distino que podemos ser tocados pela graa divina. Mas, ao contrrio de mim, que por dentro guardo uma fagulha de confiana, ele sempre teve a convico que pouqussimos se permitem ser tocados, e portanto no adianta tratar as pessoas como se fossem filhos e filhas de Deus...Afinal elas no sabem que so. por isso que ele governa Florena, enquanto eu me tornei um cruzado.

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  • - A mente dos polticos completamente diferente da nossa.- Mas em alguns aspectos eles esto corretos. Como voc sabe, no queria me tornar sacerdote, s que o meu pai temia que eu pudesse, mesmo sem interesse pela vida pblica, mais interessado em patrocinar as artes e eventualmente lutar pela defesa do povo, me tornar mais popular do que Cesare, que da mentalidade que um governante no precisa ser amado e sim temido, e por isso no pode ter rivais...Sequer hipotticos, porque se tornam as nascentes das rebelies, que estouram feito gua descontrolada. Meu pai temia o fratricdio e, conquanto eu no acredite que algum de ns dois fosse no futuro levantar a espada contra o outro, ele tinha as razes dele.- Mas voc no s se tornou um padre, como tambm um cruzado.- porque cheguei concluso que no poderia ficar passivo diante do que acontece em nosso mundo. E ao mesmo tempo no nasci para ser um poltico. No consigo pensar como Cesare, mesmo que nos momentos de pessimismo concorde com ele. Me tornei um cruzado para tentar aliviar a minha sensao de impotncia...Embora continue sendo um pouco impotente.- Pense que, se ruim com a nossa presena, seria pior na nossa ausncia.- Sei disso, caso contrrio teria desistido. Ainda que agora seja um caminho sem volta...Mas teria preferido morrer se percebesse que nosso trabalho intil. A cada vida salva, em muitos casos de crianas, me conveno que fao um bem maior atuando como cruzado do que faria como um mecenas da elite de Florena. Estaria

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  • beneficiando s alguns poucos, se bem que continuo a amar as artes, e, caso fosse amado pelo povo, poderia at ser colocado no poder no lugar do meu irmo; contudo, depois se aproveitariam das minhas boas intenes e, por ser amado e no temido, minha cabea logo rolaria. Na poltica, quem ama no respeita.- No s na poltica.- Miguel abriu um sorriso um pouco amargo.- verdade, mas na poltica algo mais acentuado.- Cavalcanti retirou seu elmo e replicou com outro ainda mais discreto.- Como meu irmo costuma dizer, os profetas armados venceram, enquanto os desarmados foram destrudos, e o homem que tenta ser bom est fadado runa no meio da maior parte dos homens, que no fazem o mnimo esforo para se tornarem melhores. Eu nunca me armaria contra quem prximo de mim ou contra pessoas que me deram algo...A ingratido algo que jamais compreenderei.- Sei muito bem como ser bom no meio dos que no so. Por isso, hoje em dia, embora no me arme contra os amigos, sou precavido diante da maioria. Meu silncio meu bem mais precioso.- Por isso entendo que o meu pai tenha feito o que fez, me afastando da poltica mesmo sem eu estar interessado nela. Queria o meu prprio bem.- Em condies normais, estamos desprotegidos. Sem o sangue de Cristo, seramos presas, gado para os demnios, como todos os outros e como eu prprio j fui. Alm de ns, s os usurios de magia podem lutar contra os monstros. Porm sob a condio de se tornarem quase iguais a eles.- J eu no sei se vejo a magia de uma forma to negativa. Tambm no pode ser um outro termo para os

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  • dons do Esprito Santo aos no-cristos de bom corao? Distinguindo magia de feitiaria, que o que homens como o conde Henrique praticam. Afinal, mesmo algumas pessoas que se encontram aparentemente fora da Igreja fazem o Bem.- Talvez...E por compaixo delas, Deus oferea alguns dons. Mas ainda assim no acho que haja muita diferena entre a magia chamada branca e o que voc define como feitiaria, que do meu ponto de vista continua sendo magia, ou seja, um caminho quase que reto para as trevas.- Miguel exibia um semblante descrente, pessimista.- Na aparncia, muitos magos, os que no submetem e nem so submetidos, podem lutar contra os demnios...Mas no porque se tornam aliados de Deus e sim para serem rivais dos demnios. Trata-se de uma disputa de poderes.- Nem todos. Voc no tira o conde Henrique da sua cabea.- Tambm pudera! Se voc tivesse passado o que eu passei...- Eu o entendo, mas acho que se equivoca ao generalizar.- J conheceu algum mago que tenha feito o Bem?- Uma vez, em Florena, na minha ltima passada por l, ouvi falar de uma bruxa, chamada Miriam, que dava de comer s crianas famintas e aos mendigos da cidade.- Miriam...Alm de tudo um nome hebreu.- Todos so iguais aos olhos de Deus, nunca se esquea disso.- Eu sei. No tenho problemas com os africanos, os indianos...Porm os judeus mataram Jesus e as bruxas de Jud, por exemplo, descendem deles.

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  • - Mas como voc disse antes, Jesus veio para demonstrar que Deus no indiferente s dores da humanidade. Se ele no sofresse, sua mensagem no chegaria a ns. Tanto os hebreus como Judas foram instrumentos, ou ele no teria beijado o suposto traidor e nem perdoado seus carrascos; Cristo veio para mostrar o valor do amor e do perdo, alm de demonstrar que no h indiferena divina.- Claro. Apesar de no sermos ainda dignos de sua segunda vinda, nos deixou seu clice e seu sangue para que possamos suportar o fardo enquanto esperamos. Mas de qualquer maneira essa Miriam deve ter um nariz enorme, uma lngua pegajosa e ser toda enrugada!- Zombeteou.- Pelo contrrio, dizem que jovem e atraente.- Cavalcanti continuou srio.- Deve usar um feitio para seduzir e capturar os tolos.- Miguel ficou um pouco irritado.- E ela pode parecer generosa apenas como uma fachada e se aproveitar da situao para que no a persigam e, assim que todos ficam distrados, usar os inocentes para feitiaria.- Eu no sei. Talvez o meu principal defeito seja esse, Miguel...A princpio, entre duvidar e acreditar, prefiro acreditar nas pessoas.- Isso fruto da experincia pessoal. A minha diz pra desconfiar. Chegaram ao entardecer a Dite, cidade fortificada nas colinas, de espessos e altos muros de pedra cinza, que no permitia a entrada de estrangeiros. Nos portes, um acampamento militar repleto de guardas para impedir que essa regra fosse quebrada. Tremulavam bandeiras das cores vermelha, laranja e amarela, com a insgnia

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  • em branco de uma mo com o indicador apontado para o alto e os outros dedos fechados.- Alto! Aonde pensam que vo!- Os dois cruzados foram interceptados por um grupo de cavaleiros.- A Igreja nos mandou para inspecionar a sua catedral a pedido de vocs mesmos.- Miguel apresentou a carta com a requisio e o carimbo e a assinatura do padre Torquemada, retirando-a da bolsa na lateral de seu cavalo.- Ah, so os senhores! Perdo, podem entrar...- E nos passos que se seguiram Cavalcanti observou aqueles homens e notou o medo de alguns, o receio de outros e algumas emoes corrodas carregadas de inveja ou admirao, ou s vezes ambas, em uma mescla ambgua de esperana e pavor. Por dentro, a cidade no lembrava em nada as belas paisagens que a antecediam, com um excesso de gente nas ruas, e as doenas proliferavam pela falta de higiene: moradores de rua com os membros inchados, leprosos, mutilados; esgotos expostos; gente que atirava dejetos e baldes contendo necessidades fisiolgicas pela janela; excesso de lixo e ratos; e todas as epidemias atribudas aos estrangeiros que um dia haviam passado para dentro dos muros, tendo sido estes expulsos ou, no caso dos que insistiram em permanecer clandestinamente, executados.- Que situao triste...Ser possvel que alguns ainda acreditem que a limpeza fsica advm do pecado da vaidade? H vrios papas que isso foi desmentido e nossos estudiosos comprovaram que por algum motivo, quanto mais sujo um ambiente, mais doenas se espalham.- Observou Cavalcanti.

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  • - As mentalidades demoram a mudar e as determinaes papais, por mais que sejam mensagens de Deus e cheguem Terra puras, no se espalham de imediato. No se esquea que a maioria das pessoas no se permite ser tocada...E a comunicao com alguns recantos sempre escassa, a Igreja no pode estar o tempo todo repetindo o que j foi salientado, e muitos ficam presos s suas pobres convices, acreditando que do assim o melhor de si mesmos.- De qualquer forma, vamos falar com o monsenhor Abbiati.- Referia-se quele que celebrava a ltima missa do dia no interior da catedral da cidade, um homem franco e bonacho, de cabelos brancos bem aparados, a pele corada e os olhos claros como se tinha a impresso que fosse sua aurola, que pacificava as almas dos fiis presentes, anestesiados por sua bela voz de tenor acompanhada do coro feminino da igreja, formado tanto por leigas como por freiras do convento mais prximo, e do som do rgo, executando um canto em latim com trechos do Sermo da Montanha. Sorria satisfeito enquanto cantava, certo de que a alegria coletiva poderia espantar qualquer demnio, embora muitos, pelo embotamento da dor interna e dos pensamentos atribulados, comeassem a sentir uma certa indolncia, j que nada mais lhes restava ao serem retiradas suas cargas, como se seus corpos comeassem a evaporar para depois desaparecer. Abbiati, por sua vez, quase no sentia seu peso corporal enquanto ministrava o culto, comeando as dores nos joelhos quando todos os fiis tinham sado do templo. Cogitava s vezes se o problema se devia apenas ao seu peso ou a outros que eram deixados no lugar...

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  • Usava uma batina preta com discretos bordados de cruzes e flores em roxo, tambm a cor da faixa que cingia seus rins, uma estola no mesmo estilo, e um barrete negro com frisos violetas; a toalha do altar apresentava um refinado contorno em renda, e sobre esta o clice prateado com o vinho e o cibrio com as hstias, fitado com uma certa avidez por um garotinho no to concentrado assim no ritual. Enquanto interiormente prevaleciam o rosa, o branco, o bege e o verde-claro, com destaque para os lances de vitrais de pombas, anjos e da Virgem Maria na parte superior da abside, o central alinhado diretamente com o eixo da nave, do lado de fora a catedral cinzenta se destacava pelos cumes gticos e pela aparncia um tanto intimidadora, algumas pontas mais acleas do que o normal, tanto que se chegassem a tocar o cu o machucariam; talvez fosse uma inteno desesperada de fazer descer o sangue de Cristo como uma torrente. No trio ficava uma fonte de batismo esculpida com elementos naturais, prevalecendo as representaes de folhas secas; havia trs capelas radiantes, cada qual com seu altar, de acesso exclusivo dos clrigos, antecedidas por um deambulatrio repleto de passagens estilizadas do Novo Testamento no piso e com um crucifixo de ouro ao fundo, circundado por rosceas e afrescos idlicos, que permitia a procisso dos fiis em torno do altar-mor; os cadeirais ofereciam assentos adornados com baixos-relevos de cenas dos evangelhos e seres simblicos (como quimeras e unicrnios), alm de espaldares de filigrana coroados por gabletes; nas duas naves laterais, algumas esculturas, em sua maioria danificadas, de santos e profetas; o teto em abbada de arestas quadripartida; o claustro mostrava um jardim de

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  • intenso verde e bem-cuidado, com uma preferncia por formas pontiagudas no corte das plantas; as arcadas se destacavam pelas colunas rebuscadas de bases redondas; os arcobotantes, associados aos contrafortes, contribuam para a reverberao espacial do edifcio; nas fachadas do transepto, rosceas intricadas, ligeiramente sobrepostas por balaustradas finas; borbulhavam dgua durante as chuvas as disformes grgulas, muito mais do que partes salientes para escoar as guas pluviais, tidas como guardis do templo mesmo com suas aparncias horripilantes mistas entre bodes, anes, morcegos e feras carniceiras; as arquivoltas percorriam os arcos de ogiva, ornadas por um emaranhado de esculturas figurativas relacionadas ao livro do Apocalipse, havendo no tmpano uma imagem de So Joo Evangelista escrevendo suas cartas. Miguel e Cavalcanti deixaram seus cavalos em um estbulo reservado nas proximidades, entraram em silncio e esperaram a missa se concluir para conversar com o monsenhor. Embora distncia, ele os viu e por pouco no se engasgou no meio do discurso que comeava a pronunciar, deduzindo que deviam ser os enviados da Santa S. Gradativamente at os mais moles foram endurecendo e os olhares sorrateiros acabavam atingindo os dois, afinal no era comum mesmo para os cavaleiros de Dite entrar em uma missa portando armas e armaduras. Como a populao sabia do pedido feito, alguns no disfararam mais seu medo e algumas famlias no demoraram a sair com suas crianas, temendo o aparecimento de algum demnio. Cavalcanti gostara do cheiro daquela igreja, que lhe lembrava perfume de almscar, s um pouco receoso,

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  • pois no tivera a inteno de estragar o ritual e de atrapalhar o padre, o que se dava conta que estava acontecendo, envergonhando-o; Miguel no parecia se importar: Eles deviam ficar atentos ao culto. Isso s prova o quanto a maioria s vai missa por obrigao; se estivessem realmente prestando ateno, nem teriam se dado conta da nossa presena. Pois que saiam, se so insinceros!- Reverendssimo monsenhor...Sou Miguel, cruzado a seu servio.- Inclinou-se para cumprimentar o clrigo aps o ltimo canto ter sido executado e os poucos fiis restantes terem sado. Olhares assustados partiram do coro de mulheres, que em pouco tempo tambm desapareceram, do mesmo modo que o organista. Dos que haviam se retirado da igreja quase nenhum os fitara nos rostos, preferindo passar de lado, repletos de temor, em certas ocasies reverente, e incertezas, alguns olhares trmulos de curiosidade porm ainda assim hesitantes e amedrontados, a no ser as crianas, na maioria das vezes admiradas.- Perdo se causamos algum distrbio, capelo de sua santidade. Percebi isso, mas no era a nossa inteno.- Cavalcanti se aproximou.- Sou Cavalcanti.- Cavalcanti? Qual deles? Por acaso seria Lorenzo, irmo de Cesare e filho de Guido??- Sou eu mesmo, monsenhor.- No precisa pedir desculpas, meu caro Lorenzo!- Acercou-se e abraou o cruzado.- Eu e seu pai nos conhecamos bastante bem. Estudamos sob os mesmos preceptores.- Eu me lembro disso. Meu pai me falava muito do monsenhor. Por isso fiquei feliz em saber que nos encontraramos pela primeira vez.

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  • - Isso desde que ficou adulto! Porque cheguei a v-lo quando era um beb! Guido teria orgulho ao encontr-lo investido e to bem-preparado.- Fico feliz que estejamos entre amigos! Isso facilita bastante as coisas!- Miguel sorriu.- Guido s vezes vinha se confessar comigo, isso nos tempos em que Dite no era to intolerante com a entrada de estrangeiros. Bons tempos aqueles!- Mas fiquei preocupado com sua requisio. Pelo visto os bons tempos se foram.- Lorenzo tornou a se manifestar.- De fato.- O monsenhor bufou e pela primeira vez seu semblante ficou turvo; afastou-se dos dois cavaleiros e se apoiou no altar.- Dizem que sou muito corajoso por continuar aqui. Mas no vou abandonar o bispo Abissini.- Onde ele est?- No segundo andar, onde temos alguns quartos prximos do rgo. Acha-se descansando; tem estado seriamente doente desde a primeira apario da criatura.- O que tem acontecido em Dite?- Miguel indagou.- Todas as noites tm ocorrido ataques, e uma vez at num final de tarde, no meio de uma festa de Pentecostes. Ao invs das lnguas de fogo do Esprito Santo, o monstro apareceu e subiu mesa de ao de graas que havamos preparado na praa em frente igreja. Pisoteou as colheitas, barbarizou nossas carnes, salivando sobre elas, e por fim atacou os pescoos de muitas pessoas, sugando seu sangue e depois arrastando algumas com ele. Todos os que no fugiram o viram escapar para dentro das catacumbas da catedral, mas ningum teve coragem de segui-lo, considerando que os cavaleiros que tentaram enfrent-lo foram massacrados

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  • por suas garras, que perfuram at o ao, e no conseguiram feri-lo. Imaginem o pnico, meus filhos. E de l para c, sempre depois que escurece, so encontrados corpos mutilados, com todo o sangue sugado ou a carne chupada dos ossos ou rasgada; talvez alguns assassinos e outros criminosos se aproveitem da situao para perpetrar seus delitos e permanecerem impunes, colocando toda a culpa no monstro. por isso que lhes peo para que exterminem esse demnio: a ao dele tambm estimula a ao dos monstros humanos, apavorando os justos e deixando a cidade entregue ao caos.- Mas qual seria a relao entre o demnio e a doena do bispo? Gostaria de compreender isso melhor.- Ele me confessou que ficou extremamente desgostoso com o fato da cidade estar to afundada no pecado que o surgimento de uma criatura das trevas acabou sendo inevitvel. Por isso, decidiu receber em seu corpo os pecados da urbe, agentando o quanto puder enquanto o monstro no for eliminado e no comearmos a mudar nossa postura. Temo, todavia, que ele no suporte, conquanto seja um homem beira da santidade.- Como se d o acesso s catacumbas?- H uma entrada movendo o altar de uma das capelas radiantes. Podem descer por l.- Peo ento que nos leve, monsenhor. Ns...- Contudo, Miguel foi detido por Cavalcanti, que colocou uma das mos em seu ombro direito.- Espere. Antes, poderamos ver o bispo por um momento? Chamaram algum mdico?- Chamamos, claro. Mas no lograram nenhum diagnstico claro. E ele prprio frisou que seu mal-estar

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  • e sua doena so espirituais. Est consciente. Pode conversar, inclusive.- Com a permisso do reverendssimo, gostaria de v-lo e conversar com ele. Talvez nos ajude a compreender a natureza dessa criatura e a localiz-la com mais preciso. Ao que tudo indica, trata-se de um habitante das profundezas: esse tipo de monstro gosta de se esconder em cavernas, tumbas e so extremamente geis e traioeiros, perigosos tanto pela fora como por sua astcia.- Eu poderia descer e ir investigando enquanto voc fala com o bispo.- Miguel sugeriu.- A conversa faz parte da investigao. Mas se quiser pode ir antes.- A resposta veio com uma certa demora. Ele est desconfiado de alguma coisa..., o cavaleiro dourado notou. E faz muito bem. Em nosso trabalho, s podemos confiar uns nos outros e no Cristo, em mais ningum; os demnios so espertos. Cavalcanti tem um plano em mente. Nem a permisso que ele me deu foi casual: me deixando ir, no despertar suspeitas e medos por parte do bispo ou do monsenhor, e mostra que confia na minha fora.- Ento me espere aqui, filho.- Abbiati no se alterou, dirigindo-se a Miguel.- Vou levar Lorenzo at o bispo e depois retornarei para conduzi-lo entrada das catacumbas.- Est bem.- O cruzado anuiu; e logo os outros dois estavam subindo as escadas.- O que pretende falar com o bispo, meu jovem?- O monsenhor questionou no caminho.- Quero que me d mais detalhes sobre os males que o afligem...E me mostrar disposto a colaborar com a redeno desta cidade. Queria falar tambm com o

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  • monsenhor justamente sobre isso. O que vi em Dite preocupante e emergencial: as ms condies de higiene permitem s doenas proliferar: a populao ainda no se deu conta como um grave pecado fazer pouco caso da prpria sade? A ignorncia est na raiz de certas formas de suicdio.- Eu e outros irmos temos feito o possvel, espalhado as recomendaes do papa e trazido durante os sermes mensagens de incentivo limpeza pblica e pessoal. O prefeito tambm tem colaborado, mas muitos esto ainda convencidos que deturpamos as mensagens da Santa S e que queremos induzir o povo de Deus ao pecado. Seria preciso que o prprio Pontfice aparecesse para convenc-los e ainda assim tenho minhas dvidas!- O monsenhor notou um certo pesar no rosto de Cavalcanti diante dessa resposta, enquanto Miguel, sozinho, fechara um pouco os olhos para sentir o ambiente ao seu redor. Caminhou para o meio da nave central, onde cruzou os braos e esvaziou a mente.- Oh, ento este o jovem cruzado Cavalcanti...- Deitado em uma cama macia, em um quarto cinzento, com sua mitra apoiada em um tosco criado mudo, Abissini levantou os braos dos lenis com dificuldade, franzindo sua testa e torcendo a face ao ser apresentado ao cavaleiro. Muito claro e enrugado, possua profundos olhos azuis e parecia irradiar simplicidade e cansao.- No se esforce em vo, Vossa Excelncia reverendssima.- Lorenzo se aproximou, ajoelhou-se ao lado da cama e beijou o anel no anular direito.- Eu que estou aqui para servi-lo.- Estou indo...- Abbiati anunciou que ia ao encontro de Miguel, que continuava no mesmo lugar, na mesma

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  • posio, quando de repente sentiu um calafrio a lhe percorrer a espinha. Abriu os olhos e enxergou uma sombra passando entre uma das naves laterais. Desembainhou sua espada de duas mos antes mantida nas costas, cuja empunhadura dourada lembrava as asas de um anjo e a bainha, de forma similar, continha em relevo uma representao do prncipe dos arcanjos. H alguma coisa aqui. Talvez no ser preciso descer s catacumbas..., ao se deparar com a postura alerta do guerreiro, o monsenhor parou e engoliu sua saliva; no conseguiu mais se mexer: Se ele est com a lmina pronta, o monstro deve estar por aqui! Como pode?? Ter sentido a presena do cruzado e vindo para desafi-lo?- No se mova, reverendo!- Foi o conselho dado distncia, em voz alta. Eu j estou imvel; e pode ficar certo que no vou sair do lugar., refletiu Abbiati.- O problema da falta de higiene srio, mas apenas um dos equvocos de Dite. O fato da cidade no aceitar estrangeiros abriu as portas para outro tipo de gente...Para os xenfobos radicais e paranicos, que acham que qualquer um pode ser um estrangeiro. Nem todos sabem, mas vm ocorrendo at execues secretas, promovidas por seitas fanticas que pregam pela pureza moral da cidade, e muitos colocam a culpa no monstro.- A voz do bispo estava rouca, mas j parecia menos cansada; Cavalcanti, alm de auscultar suas palavras, observava todos os gestos, os movimentos dos dedos, o modo de mexer os lbios e o piscar dos olhos.- Abbiati me acenou a respeito a disso. O que poderamos fazer contra essa onda de ignorncia?

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  • - Por enquanto s consigo reter em meu corpo a ira de Deus para que a cidade no seja destruda.- S isso? Vossa Excelncia j est fazendo demais. Por isso que viemos. Eu e Miguel pretendemos ajud-lo...No que for preciso; no apenas para eliminar o demnio. Temo que, ao exterminar um, surja outro.- Desconfio que seja assim mesmo, meu jovem e santo cavaleiro.- O velho Abissini sorriu.- Fico feliz que a Toscana ainda conte com almas como a sua. Temo porm que no resistirei muito.- No sou assim to santo, Excelncia. Quando desembarquei outra vez nesta ilha, mgoas antigas vieram tona, como que emergindo do mar que atravessei. No entanto, vinham de um mar bem mais profundo, das minhas guas interiores. Pensei apenas em matar o demnio e ir embora; mas ao ver a situao desta urbe, senti compaixo pelos irmos que a habitam.- Lorenzo...Abbiati j me falou de voc. Aproxime-se mais um pouco para que eu possa lhe dar um beijo na testa.- Ser uma honra receber tamanha beno. Em paralelo, Miguel tornou a embainhar sua espada. Foi to forte...Como pode ter sido s uma impresso?, olhara para todos os lados, tentara sentir a presena de algum, e nada. S via e sentia a si e ao trmulo monsenhor. O que est acontecendo? Mesmo se fosse um co ou um gato no desapareceria assim. Devo estar destreinado na percepo; bem que Raja s vezes me diz que no basta s saber manejar a espada. Cavalcanti se levantara e agora se inclinava para receber o beijo do bispo, que fazia tudo com grande esforo; contudo, num movimento rpido demais para ser visto por olhos humanos, a cabea de Abissini voou

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  • para longe. O cruzado j estava com suas adagas curvas e prateadas sujas de sangue.- Hahahaha! Muito esperto!- Uma massa de tentculos carnosos saiu de dentro do corpo do bispo para estrangular Lorenzo, que saltou para trs e ainda assim foi seguido por aqueles braos verminosos, que rastejaram em alta velocidade deixando para trs vsceras e restos de rgos; intil: toda a carne agressiva foi retalhada em poucos segundos.- Droga!- Ouvindo a risada e sentindo a energia espiritual hostil no quarto de Abissini, Miguel correu para cima bem quando o monsenhor dera alguns passos, comeando a se mover...O susto da disparada do cruzado, que fez o corao de Abbiati quase saltar pela boca, s no foi maior porque nenhuma sombra seguiu o cavaleiro dourado; agachou-se e levou as mos ao peito, ofegante. Senti como se ele fosse me agredir! Que grande covarde sou! Onde est a minha f?!, questionou-se.- Meu Deus...O que aconteceu aqui?- Foi a indagao do homem da espada dos anjos ao encontrar os aposentos do bispo banhados de sangue e os restos de uma criatura sombria.- No ele.- Cavalcanti murmurou, com os olhos dilatados.- Me explique o que aconteceu.- Manteve a calma, apesar da cena.- Por acaso o bispo era o demnio disfarado?- No. Habitantes das profundezas no podem assumir a aparncia humana.- Ento o bispo estava possudo por um?- Esse tipo de demnio tambm no pode fazer isso. Mas eles so suficientemente perigosos para gerar

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  • aberraes, pequenas crias que entram nos corpos humanos.- Me desculpe...Eu no me lembrava. Devia ter repassado certos estudos.- No se incomode. s vezes no temos tempo realmente...- Os olhos de Lorenzo comearam a voltar ao tamanho normal.- Eu que nunca paro de ler.- Mas voc desconfiou de alguma coisa desde o comeo, no ? Eu percebi...- Quando o monsenhor comeou a me falar do bispo, investiguei o esprito dele. Sua Excelncia era um bom homem, mas no um santo. Estava com muito medo, mas muito medo mesmo de morrer; pude sentir o pavor dentro de mim quando me foquei em perceber as condies de sua alma.- Como de costume, voc disfara muito bem.- Ele podia at acreditar que estava recebendo o castigo de Deus no lugar da cidade, mas na verdade sua doena se devia presena do parasita demonaco, que pode enganar qualquer mdico, permanecendo imperceptvel. O bispo no tinha mais salvao. Nem todas as pessoas podem ser possudas por esse tipo de criatura; a porta que ele abriu foi o medo extremo, isso desde que o demnio entrou nas catacumbas.- O monstro est l embaixo, nos esperando?- Est sim. E a gargalhada que reverberou foi a dele, no da cria; realmente forte. Embora no sejam nobres do Inferno, alguns habitantes das profundezas tm uma fora comparvel de um baro. So como espadachins de alto nvel que nasceram em famlias pobres.- Uma pena pelo bispo. Medo at ns que temos o sangue de Cristo em nossas veias podemos sentir,

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  • imagine as outras pessoas. No temos que conden-lo por querer viver.- Como voc acha que estou me sentindo? Preferi decapit-lo a permitir que uma aberrao explodisse sua cabea; ao menos morreu sob uma lmina crist. Ainda assim, desfechei o ltimo golpe contra a vida de um ser humano. Peo perdo, Vossa Excelncia.- Levantou a cabea e fechou os olhos.- Ele por ter sido pretensioso ao pensar que estava salvando a cidade...Ou talvez fosse uma crena sincera. No importa: quanto mais lutamos, mais cadveres dos que no mereciam morrer surgem pelo caminho. Ou as pessoas merecem pelos pecados alheios? Ento o que ns temos de melhor? Poder?- Tornou a abrir os olhos e abaixou a cabea.- muito triste e sinceramente no sei como responder. Mas no podemos ficar parados. Vamos ao menos tentar diminuir o nmero de inocentes mortos.- Tentar, diminuir... tudo o que fazemos. Eu queria que pudssemos fazer crescer. E que no fossem apenas tentativas, e sim xitos. Me desculpe, Miguel.- Comigo pode desabafar vontade. Mas vamos descer. O monsenhor deve estar no cho. Preguei sem querer um susto nele. No tinha outro jeito.- Recebeu um olhar rijo de Cavalcanti. Desceram as escadas e encontraram Abbiati ajoelhado no cho, com as plpebras bem cerradas e rezando. Passaram sem fazer estardalhao e ele ainda assim despertou:- Meus filhos...- Estava difcil encontrar coragem para perguntar.- O que aconteceu com Sua Excelncia, o bispo Abissini?- Ele sofreu um ataque e est morto.- Meu Deus! Ele podia ser menos direto..., Miguel refletiu diante da

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  • franqueza de seu amigo Lorenzo; Abbiati levou as mos boca e no conteve o choro.- Mas no foi o monstro principal, que est nas catacumbas.- Miguel complementou.- Quer dizer que h mais deles?!- Sim.- Respondeu Cavalcanti, e simplificou:- O demnio principal coordena os menores de l.- Eu...Vou lev-los.- Gaguejava.- O ideal que fique perto de ns, ou saia da catedral ao descermos. perigoso permanecer aqui se no ficar sob a nossa proteo direta.- Eu ficarei...Ao lado de vocs, meus filhos.- Ser que estou tendo um rompante de coragem? Ou seria medo de fazer o caminho para a sada sem eles ao meu lado? Fiquei sozinho enquanto Miguel subia...Mas continuo sendo um medroso. Perdo, bispo Abissini! O senhor sim se preocupava com esta pobre cidade de pecadores, sendo eu um desses pecadores., enquanto Abbiati se bombardeava, o cavaleiro dourado sentia agulhadas na cabea, algumas to fortes que o levaram a piscar os olhos com insistncia, o que foi notado por Cavalcanti, seguindo-se um sinal para que o amigo no se preocupasse, pois Lorenzo sabia que seu companheiro, embora no fosse muito de ler (e no propriamente por no gostar e sim porque dizia que, aps alguns minutos com o olhar no papel, sua testa comeava a latejar e as dores de cabea frontais seguiam por algumas horas, o que o desestimulava por completo em seus estudos) e nem possusse uma percepo espiritual ou emocional notvel, sendo comum nesse sentido entre os cruzados, tinha uma certa facilidade para captar pensamentos, mesmo que no os lesse sempre, compreendendo suas intenes, e quando estes eram ofensivos ou irritantes

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  • produziam um efeito negativo em seu crnio, como se o pressionassem, alm de queimar suas pupilas. Sentindo as emoes caticas do monsenhor, o florentino deduziu que os pensamentos problemticos provinham deste, no do demnio nas catacumbas, e a princpio ficou apreensivo porque o apavorado clrigo poderia atrapalhar na luta vindoura se continuasse por perto. No entanto, o sinal de Miguel fora para que confiasse e este no mais piscou os olhos at que chegaram ao local, onde Abbiati descruzou as mos em prece para deslocar o altar e revelar uma escadaria.- Tem certeza que pretende vir conosco?- Foi a questo de Lorenzo. Ele quer me ajudar. Mas no precisa; tenho que aprender a lidar com isso. Obrigado, Cavalcanti..., Miguel agradeceu interiormente, tentando segurar o sorriso ao olhar para a parede; deparou-se com um afresco de Santo Anto sendo tentado pelo Diabo, o que no ajudou muito.- Ah...- O monsenhor demorou a responder e das primeiras letras pronunciadas no saiu uma palavra articulada.- Eu vou...Estarei por perto rezando por vocs, filhos.- Ento vamos.- Cavalcanti deu as costas e foi o primeiro a descer. Ansioso para no ficar desprotegido atrs dos dois cavaleiros, Abbiati desceu na seqncia, com um candelabro aceso em mos, que pegou da capela; Miguel foi o ltimo, suas costas exibindo uma aparncia tranqila, sem pesos.

    II Profundezas

    Com o crescimento da populao do burgo nos tempos anteriores epidemia de peste e exploso de outras

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  • doenas, motivado pelos comrcios e feiras, tendo os cidados de Dite convivido com uma boa quantidade de estrangeiros especialmente para os servios que os habitantes originais no costumavam fazer, como limpar fossas, latrinas e outras tarefas consideradas degradantes (num determinado momento nem essas pessoas puderam mais dar conta da situao e com sua partida tudo s piorou), os despojos funerrios se acumularam a ponto dos cemitrios no oferecerem mais espaos; por isso foram escavados tneis, e descobertas cavernas nos subterrneos da catedral, proporcionando assim imensos ossurios, o que acabou se estendendo para alm da igreja, havendo nas paredes, repletas de musgos e mofo, placas para identificar debaixo de que rua o eventual visitante se encontrava.- Dizem que alguns profanos j desceram aqui para celebrar missas negras. Talvez isso tambm tenha contribudo para gerar aberraes.- Abbiati comentou com os cruzados, que tinham colocado seus capacetes na descida para aquele submundo.- possvel, monsenhor. Mas essas criaturas no respeitam nada nem ningum, de qualquer maneira. Sentindo alguma coisa, Cavalcanti?- Miguel inquiriu.- Por enquanto nada. Parece que ele tambm capaz de restringir seu esprito e assim disfarar sua presena. Por isso nossa ateno precisa ser redobrada. Vocs no sabem de nada! Pecadores como so, ou se tornam nossos servos ou sero apagados. Deus no nos elimina porque somos sinceros; porm ele se cansa dos hipcritas., de repente um pensamento estranho piscou na mente de Miguel, que se voltou para o companheiro:- Ele est prximo! Ouvi um pensamento do desgraado agora.- E sentiu como se suas entranhas se

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  • retorcessem; no estmago, um vazio, e no demorou para chegar uma sensao de fome...Algo que dificilmente ocorria com um cruzado. Imagens de carnes sangrando e de dentes afiados com as faces imersas nas sombras, apenas os maxilares visveis, passaram diante dos seus olhos.- E tive a impresso de ser um pensamento dirigido. Parece que ele nos estudou.- Continue perto de ns, monsenhor.- Cavalcanti aconselhou, enquanto desembainhava as adagas em sua cintura. Seus olhos pareciam imveis, fixos para o que poderia surgir adiante, mas sua mente se espalhava por todos os lados e direes possveis; escutou passos acelerados, de correria, e vozes desconexas.- Voc ouviu?- Dirigiu a questo para o cavaleiro dourado, que agora caminhava de costas, protegendo melhor assim Abbiati, que cerrara a boca, e a si mesmo.- Vozes embaralhadas...- Um dio sbito o atingiu; para a sua tristeza, que se seguiu ao sentimento aflito que tentou reprimir, no vinha de nenhum demnio, e sim de suas recordaes mais retorcidas. Seu corao se enrolava numa espiral bruta de carne e sangue e assim os batimentos ficavam difceis, duros, enroscados, quase sem expresso. Aprofundou a respirao e buscou esvaziar a mente, sem tanto sucesso. Reviu os rostos de velhos inimigos e, pior do que isso, os de antigos amigos. Talvez esse demnio esteja estimulando o que h de pior em mim...Que sei que ainda existe. Deus, me d sua proteo neste instante!, alguma coisa percorreu as trevas e numa rapidez sobre-humana deu a impresso de atravessar o abdmen do guerreiro, destroando a armadura naquela regio; ao espirrar do sangue, o monsenhor gritou e correu para perto de Cavalcanti, que no se mexeu mesmo diante da apario do demnio,

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  • com quase dois metros de altura, cabeleira vermelha suja e desgrenhada, olhos amarelos de veias saltadas, pele macilenta e cheia de rugas, vestido em trapos, narinas largas demais, dentes brancos em formato de facas pontudas e imensas garras da mesma cor. Berrava e gargalhava.- Lorenzo...No vai ajud-lo??- Abbiati inquiriu, apavorado.- No subestime Miguel, monsenhor.- At que voc forte, ou no teria prejudicado a minha armadura...- O cavaleiro falou sem dar mostras de dor, com uma expresso tranqila para a surpresa do monsenhor e da criatura.- Mas fora bruta no o suficiente pra me derrotar, monstro idiota.- A espada se moveu em uma velocidade aterradora, passando a impresso que se transformara em um facho de luz, e a cabea e o brao cravado na barriga foram separados na hora do resto do corpo, que despencou queimado.- Impressionante...- Abbiati enxugou o suor da testa.- Isso no nada.- Miguel se voltou para trs e sorriu. Na seqncia, com algum esforo e agora sim demonstrando dor, arrancou o brao, atacado pelas chamas, e o jogou para junto dos outros restos do demnio, que viraram cinzas. Uma luz dourada envolveu a regio que parecia seriamente machucada; em pouco tempo estava reconstituda, sem sequer uma cicatriz.- Um monstro forte, mas estpido. No se mostrou altura da sua espada do fogo do Esprito Santo. No era o que procuramos.- Cavalcanti deixou claro.- S estragou a minha armadura.- Por Jesus Cristo nosso Senhor...A catedral estava infestada de criaturas malignas!- O monsenhor fez um

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  • sinal da cruz, e refletiu: Por um momento pensei em fazer o sinal por eles tambm. Os cruzados esto imbudos de uma misso santa e corre em seus corpos o sangue de Cristo; mas com tamanhos poderes, penso se no devo tem-los. Sei que um pecado, que estou duvidando do Senhor, mesmo que parea algo tolo ou insignificante, ou nem tanto. Estou sendo ingrato; eles me protegem e com medo que retribuo? No, talvez eu sinta temor. Temor e respeito, como para com qualquer manifestao divina.- Para qualquer pessoa comum seria suicdio entrar aqui. Mas ns vamos solucionar isso.- Eu ainda estou esperando por vocs..., captou um pensamento carregado de escrnio.- Ele se comunicou comigo.- Disse a Cavalcanti aps um instante de suspense.- Est nos provocando.- Agora ele parou de esconder a energia espiritual. Posso senti-lo.- Replicou o florentino.- Ser que est to confiante assim de que pode nos derrotar?- No me interessa. Vamos, antes que o desgraado mude de idia e fuja.- E seguiram adiante guiados pela percepo de Lorenzo, com Abbiati um pouco arrependido por estar ali: Devia ter ido embora da igreja quando tive a oportunidade. Agora estou prestes a me encontrar com uma criatura dos abismos! Talvez no viva muito mais. E o ritmo deles...- Est tudo bem, monsenhor? Vejo que se encontra ofegante. Se quiser, podemos ir mais devagar.- Ainda por cima atrapalho os dois.- No, meu filho. Devem seguir no passo que julgam apropriado. Afinal so vocs que conduzem essa misso; estou aqui apenas para rezar.- De certa forma,

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  • ele est sendo corajoso; hoje no havia alternativas covardes..., Cavalcanti, que sentia o medo vindo do padre, sorriu com benevolncia. Contudo, pouco depois mudou radicalmente de postura, arregalou os olhos e gritou:- Abaixem-se!- Empurrou Abbiati para baixo, enquanto uma saraivada de flechas (ou garras atiradas? Qui ambas. Eram objetos pontiagudos) passou pelos trs. O monsenhor chegou a ver a imagem de si prprio com a cabea e a garganta perfuradas, caindo morto no cho das catacumbas.- Ele est s um pouco frente!- Miguel se levantou, emanando um grande halo dourado formado por crculos concntricos luminosos, bravios em dinamismo, que levou o padre a boquiabrir e a sentir um arrepio por todo o corpo, como se fosse um santo!, esquentou o ambiente frio e mido, iluminou os corredores e derretia os projteis que eram atirados.- Fique no cho, monsenhor.- Uma aura mais discreta, prateada, fazia o contorno do corpo de Cavalcanti e permitia que as unhas negras, sujas e afiadas, cassem e se encravassem no solo quando chegavam perto dele, do mesmo modo que as peas metlicas, rendidas inteis. Os dois guerreiros correram para a frente e em poucos segundos, entrando em um salo amplo repleto de ossos humanos, desmontaram com os golpes de suas armas os esqueletos arqueiros espalhados pelo lugar e foram mais a fundo para encontrar quem lanava as garras, sentado em um tmulo esverdeado: a criatura de pele vermelha fosca tinha olhos de abutre, chifres negros curvos que soltavam uma espcie de fumaa, boca de hiena, braos compridos e flexveis, pernas musculosas, uma corcunda disforme e, ao se levantar do lugar, revelou

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  • mesmo com o corpo torto uma altura considervel, chegando quase aos quatro metros. Suas unhas se destacavam e logo cresciam outra vez, to perigosas quanto lminas de ao da melhor qualidade.- Hoje estou com muita fome. Que bom que vieram duas presas gradas! De incio, espadadas e golpes de adagas no surtiram efeito, ricocheteando na pele dura; analogamente, as garras rivalizavam com o metal, assim como a velocidade do demnio parecia ser superior dos cavaleiros, aparando todos os ataques ao mesmo tempo. De sbito, aps uma seqncia alucinante de golpes, choques e esquivas, a dupla parou, prximos um do outro e distanciados do inimigo.- O que foi? J desistiram?? Eu no desisti! Cavalcanti deu uma olhada para Miguel e, quando o monstro se lanou ao ataque, o cavaleiro dourado assumiu a dianteira, saltou com uma rapidez que superou a do oponente e sua espada se transformou em uma labareda, penetrando no peito do adversrio e derrubando-o. O cruzado ficou de p sobre o demnio cado, que comeou a urrar de dor, o som fritante em sua carne aumentando medida que a lmina tornava a se solidificar, incandescente dentro de seu corpo.- Como v, ns tambm no tnhamos desistido.- Os olhos do cavaleiro da espada do fogo do Esprito Santo brilharam. Assim que o demnio ameaou vomitar, o que no era fortuito, pois geraria alguma criatura bizarra, Lorenzo agiu e com suas adagas cortou-lhe a garganta. A misso chegara ao fim.- Acabou. Como a maioria dos demnios, cometeu o pecado da presuno.- Miguel sentenciou.

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  • - Do qual ns tambm no estamos imunes.- E, enquanto seu companheiro ainda se regozijava com sua vitria, admirando o corpo estendido do monstro, Cavalcanti correu para acudir o monsenhor, de quem o outro cruzado at se esquecera. Nossa misso, mais do que matar demnios, salvar pessoas..., refletiu Lorenzo, ao passo que Miguel retirava seu elmo, que no gostava muito de usar. Mais um triunfo, pisando em cima das profundezas! Espero um dia no afundar!, riu consigo e de si prprio. Ser que tenho realmente motivos pra rir? O bispo est morto, e a cidade vai continuar a merda de sempre!, de repente, seu estado de nimo mudou da gua para o vinho; ou melhor, percebeu que seu riso e seu triunfalismo vinham de sua melancolia, no de alguma forma de felicidade. Na verdade vou estar constantemente pisando na areia movedia e meio que afundando, s que voltando tona, sempre. S eu...E gente como eu, como Cavalcanti. O resto, de maneira aleatria ou no, terminar por afundar. Um destino pequeno para os que so filhos de Deus!- Est terminado, monsenhor. O demnio est morto.- Lorenzo estendeu a mo para o padre, que continuava no cho, com a cabea baixa entre as mos, a testa apoiada no piso.- voc de verdade, meu filho?- S levantou os olhos quando sentiu que era seguro.- Sou eu. Bem-vindo novamente Criao de nosso Pai.- Oh, Lorenzo...- Erguido pelo cruzado, abraaram-se com ternura.- At que enfim acabou, fiquei com medo por vocs!

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  • - Tratava-se de um adversrio perigoso, mas j enfrentamos piores. Ele nos subestimou e ns no. Isso fez a diferena. Como cristos, no podemos duvidar nem do potencial dos demnios.- Muito menos. A maior fora do inimigo est em nossa prpria e frgil vaidade.- Agora s espero que no tenha sido em vo.- Entendo o que quer dizer. Refere-se morte do bispo Abissini?- A morte do bispo foi uma conseqncia.- Afastou-se.- Refiro-me s causas. Esta cidade precisa mudar. Urgentemente. Ou outras criaturas, piores, viro.- Compreendo. Acho que uma coisa pode ser feita logo.- O qu?- Vocs deveriam falar ao povo. Afinal vocs so os heris.- Abbiati sorriu e Cavalcanti suspirou; no gostava de falar em pblico e nem queria se tornar uma celebridade ou ser idolatrado como salvador.- Eles no vo ouvir o prefeito e nem a mim. Mas acredito que ouviro vocs.- Vou falar com o Miguel.- E deixar isso pra ele..., pensou, no disse.- cansativo viver assim. Os ratos morrem, mas continuam a proliferar.- O cavaleiro dourado falou em voz baixa, consigo mesmo; ainda no sara de cima do demnio.- Est confortvel a?- Lorenzo brincou, sem perder a seriedade aparente; Miguel se voltou e sorriu.- At que ele mais macio do que parecia.- Enfim desceu do corpo do monstro.- Vim para perguntar se estaria disposto a fazer algo que extrapola as nossas responsabilidades.

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  • - No foi voc que quando chegou aqui disse que s queria eliminar o demnio?- As circunstncias modificam as reflexes. No por acaso so reflexes; refletem e se curvam a ns. E talvez, apesar da Santa S salientar que no, Cristo ache que nosso trabalho no termina no instante em que pensamos que est acabado. Algum tempo depois, voltaram para perto do monsenhor, que mesmo com o demnio morto no tivera coragem de seguir Cavalcanti ali adentro.- Quando poderemos realizar o pagamento?- Inquiriu.- Depois que fizermos nosso discurso ao povo de Dite.- Miguel respondeu com singeleza e alegria, levando Abbiati a menear a cabea para os lados, sorrir e ao mesmo tempo, comovido, derramar algumas lgrimas, que tratou de enxugar com as mos. Lorenzo apoiou a mo direita em um de seus ombros e, agora os dois livres de capacetes, seguiram de volta superfcie, porm indo mais a fundo em si prprios, nas reflexes de subida, do que quando haviam descido.

    TERCEIRO ATO

    I Na superfcie

    Tarde de euforia em Sevilha. As ruas estavam bem mais agitadas do que de costume, com o principal mercado da cidade em polvorosa:- Comprem hoje! ltimo dia para a venda!- Bonecos por trs moedas de bronze, efgies de cinco a sete!

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  • Os comerciantes no paravam de gritar, enquanto as pessoas se adunavam s centenas em volta das tendas e barracas, desesperadas, algumas se empurrando, outras pulando umas sobre as outras; no se respeitavam nem os mais velhos, lanados com violncia de queixo no cho quando significavam alguma forma de concorrncia, os pisoteios no sendo raros. O auto da f fora anunciado com quatro semanas de antecedncia, comeando com a proclamao na praa principal por parte de um sacerdote inquisidor e continuando a divulgao nos dias seguintes por meio de panfletos e durante as missas. Como sempre costumava acontecer na iminncia de tamanho evento, foram afluindo cristos dos territrios vizinhos e mesmo peregrinos de nem to perto, aos quais de alguma forma chegara a notcia. Os bonecos de pano ou madeira e as efgies de argila, cera ou pedra representavam os condenados, vestidos com os mesmos trajes, e deviam ser jogados nas fogueiras pelos espectadores depois que estas j tivessem completado algum tempo acesas, aps a autorizao do inquisidor de posio mais elevada presente no local; do faturamento das vendas, a Igreja recebia a dcima parte. Sevilha j parecia respirar as chamas, com um pr do sol mais agressivo e vermelho do que de costume; o prprio astro-rei aparentava ser um olho carregado de dio e mergulhado num poo de sangue fervente, faltando o outro no rosto do cu, ao que tudo indicava incinerado pelas labaredas em volta. Os autos da f haviam sofrido algumas mudanas no decorrer dos sculos, se tornando cada vez mais espetaculares, grandiosos e lucrativos. Entrementes, poucos tinham acesso ao que os antecedia...

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  • - Porco imundo! Como ousa persistir na recusa em pronunciar o nome de Cristo! S posso dizer que est perdido!- Malcolm, o cruzado, vestindo uma bela tnica branca, dourada, azul e carmesim, com uma cruz envolvida por uma serpente com cabea de guia ao centro, sobre sua cota de malha e suas pernas encouraadas, chicoteava com toda a sua fora e fria nos olhos borbulhantes um homem grande e moreno, nu, pendurado por correntes ao teto, abrindo enormes sulcos em sua pele; como a lngua fora arrancada, obviamente no poderia pronunciar nenhum nome. Encontrava-se em uma das prises secretas do tribunal da Inquisio, na periferia da cidade, onde os rus eram mantidos incomunicveis.- Tudo o que fizemos, que fique bem claro, foi ad eruendam veritatem. Mas voc continua a renegar a f crist!- O lugar era mido, frio e l se achavam vrios acusados, alguns cujos delitos j haviam tido confirmao e os casos resolvidos pelo brao secular; um de cada vez, Malcolm os analisava ou punia. O carrasco ordinrio fora dispensado e ao seu lado estavam alguns outros indivduos: um mdico, sujeito pequeno e calvo, plido, de culos e tnica branca; o secretrio da Inquisio, um senhor de bigode e cabelos brancos, magro e um pouco trmulo, porm mesmo assim de caligrafia impecvel, colado ao ru (com a finalidade de escutar assim at seus suspiros, analisando o semblante quando este no tinha mais como falar), que registrava minuciosamente o que ocorria, trajado com uma casula negra e portando um pequeno barrete; e o padre vermelho Torquemada, de batina da cor do sangue mais escuro, um indivduo na faixa dos cinqenta anos, o rosto quadrado, magro e de feio petrificada.

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  • - Vossa Eminncia, j no acha que o bastante?- O mdico falou com o padre, visto que seria intil se dirigir ao cruzado, que parecia fora de si, os olhos quase saltando das rbitas.- Ainda muito pouco.- Torquemada, que recentemente fora nomeado Inquisidor Geral pelo papa, passando a merecer o tratamento de Eminncia, balanou a cabea em sinal de negao.- Este homem chegou a afirmar que os apstolos nunca foram agraciados pelo Esprito Santo.- Natural de Valladolid, residia agora em Roma, mas sempre comparecia em eventuais autos da f de grande porte que fossem organizados mundo cristo afora. O mdico no parava de engolir sua saliva, com a garganta ardendo; j testemunhara diversas torturas em tempos recentes: um trapo inserido at a garganta, e na seqncia se esvaziavam lentamente jarros dgua na cabea do imputado, reproduzindo o terror do afogamento, sendo ao fim o pano retirado com toda a fora; prensas de mos ou ps; uma mulher de meia-idade colocada nua sob um fino jato de gua gelada e deixada num cavalete nessa condio por um dia e meio; uma roda sob a qual havia brasas incandescentes, o pobre diabo amarrado com as costas na parte externa, e o giro se dava bem devagar; um sujeito preso de cabea para baixo em uma grande cadeira, provocando atrozes dores nas costas; outra cadeira, repleta de espiges metlicos, onde o mnimo movimento significava que o metal agudo perfuraria a carne nua, e mais uma terceira com um assento de ferro aquecido por uma fogueira embaixo; quase nenhum ru resistia sem confessar.

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  • - Vamos prxima!- E Malcolm cuspiu com desprezo no desgraado, dirigindo-se com seu azorrague para a vtima sucessiva. Sendo seguido pelos outros, encarou com severidade, os olhos crispados, uma jovem de aparncia cigana, longos cabelos castanhos cacheados e pupilas verdes e vvidas, os braos levantados e o vestido rasgado que sugeria a beleza das pernas, tendo os pulsos amarrados por cordas, porm os ps livres.- Uma acusada de bruxaria, Vossa Eminncia?- Perguntou a Torquemada; a expresso no rosto da moa era sria e altiva.- Isso mesmo.- Replicou o padre vermelho.- E essa fala; e muito bem por sinal.- Parece que hoje no est muito disposta. Pois eu lhe darei disposio!- Agitou com fria o ltego e a golpeou na bochecha, produzindo horrveis marcas.- Vamos, confesse! O que espera?! Que Satans venha salv-la?- E se eu dissesse que sim?- Conquanto fritada pela dor, respondeu com um cinismo orgulhoso; Torquemada franziu a fronte e abaixou um pouco a cabea, o mdico a meneou para os lados e o escriba anotou cada detalhe com avidez.- Vocs no sabem de nada.- Cale essa sua boca imunda, prostituta!- Malcolm viu no movimento mole e injurioso daqueles lbios a sinuosidade de duas serpentes lbricas; olhou para os ps nus, bastante delicados, de unhas bem-cortadas.- Sua beleza uma armadilha e sua vaidade prova que no passa de um demnio libidinoso sob as ordens de Lilith e seus scubos!- Nossos costumes no tm nada a ver com Lilith ou Sat. Vocs, imbecis e ignorantes, no entendem que amamos a natureza e a celebramos com alegria, no com culpa e pesar.- Torquemada se lembrou que haviam

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  • conseguido capturar um grupo de ciganos, inocentando os que se declararam cristos ou se converteram, mas os objetos de ouro e prata destes foram apreendidos a fim de arcar com as despesas do Tribunal para com os que persistiam no paganismo (a princpio, a Inquisio no perseguira os poucos assumidamente no catlicos que restavam no mundo, limitando-se aos que, pertencendo Igreja por terem sido batizados, tinham se apartado dela; contudo, o cenrio mudara quando o Santo Ofcio passara a acumular funes de converso).- Voc no se arrepende dos seus pecados, portanto...- Atingiu o pescoo com ainda mais fora; o mdico quase sentiu na prpria pele a dor da carne do colo rasgada. Se os cruzados tinham o sangue de Cristo em suas veias, como um deles existia sem manifestar o mnimo sinal de compaixo? Agora que Torquemada, um padre vermelho, se tornara o Inquisidor Geral, aqueles homens estariam com toda a certeza muito mais presentes nos processos contra os hereges.- Homens como voc so o pior da face da Terra. Covarde...- Ainda persiste em seu orgulho, bruxa!- As chicotadas que se seguiram foram terminando de rasgar o que restava da roupa da moa. E ele de qualquer maneira, embora no admitisse para si, a queria ver nua. Como no podia mais tocar nenhuma mulher, espanc-las era fonte de indizvel prazer, conquanto fugaz, e ficava furioso pela brevidade dos momentos de xtase. Quando torturava um homem herege, s sentia a ira tomar conta de sua cabea, que doa, o ardor nos olhos e o vermelho em sua face condizendo com seus cabelos, conseguindo ser mais lento e, ainda que irracional, dar mais golpes fortes do que golpes em quantidade; j com as mulheres

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  • sua mo no limitava a velocidade, seu rosto seguia rubro, no entanto a salivao aumentava, com freqncia deixando sua baba pingar no cho ou grudar na barba, no sentia dores, apenas espasmos pelo corpo que conseguia disfarar a custo, e bater com o instrumento de tortura era como deslizar seus dedos famintos de pele e paixo por um corpo feminino, s conseguindo diminuir o ritmo quando ejaculava, e ento seu comportamento voltava a se parecer, geralmente, com o que tinha em relao aos hereges do sexo masculino. Havia vezes, contudo, que uma ejaculao no bastava, precisando que algum o detivesse antes que a morte da vtima precedesse seu abrandamento sexual.- J chega! Se continuar assim, o senhor ir mat-la!- O mdico esbravejou desesperado, sem sucesso, quando a jovem cigana pareceu mole e sem foras, praticamente despida.- Basta, sir Malcolm.- Entrementes, o cruzado s obedeceu a voz calma de Torquemada, parando no ato, a princpio trmulo, e aos poucos voltando ao normal. Teve que se contentar com apenas um gozo.- A bruxa orgulhosa no queria se retratar.- Falou com uma certa ofegao.- Sei que no fez por mal, meu filho; mas no deve se exceder assim. Ela ter o que merece em breve, mas ns, homens de Deus, no podemos sujar nossas mos dessa maneira. Deixe que o brao secular cuide disso.- E continuaram por aquelas paredes e cho sujos e escuros; goteiras persistiam. Pararam defronte a uma porta de ferro.- Agora vocs dois fiquem aqui.- O padre vermelho se dirigiu ao mdico e ao escrivo.- Pois no um ser humano que est l dentro.- Os dois trocaram

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  • olhares apavorados. De fato, um demnio fora arrastado at ali havia pouco tempo por outro cruzado; qual a razo da criatura no estar morta e sim presa? O que levara o guerreiro a prend-la ali? Por acaso desconhecia a proibio de misturar demnios e hereges, pois poderiam entrar em conluio? Torquemada estava pronto; Malcolm se mostrava srio e no mais corado. Entraram e fecharam a porta; dentro a iluminao era ainda mais escassa, com uma lmpada a leo mais fraca do que em outras reas da priso. A primeira claridade a ser notada foi a de um olho dourado de pupila negra se abrindo.- Conserte a besteira que Charles cometeu.- Disse o padre vermelho; fora para aquilo que trouxera Malcolm, estimulando-o com o espancamento de hereges, algo que sabia que divertia o cruzado e, pelo passado deste, at representava um pouco mais do que mera diverso. O corpo negro e musculoso do monstro estava camuflado naquelas trevas, no tendo foras para se soltar das correntes que o prendiam pelas mos, estas mais claras, e nem para se livrar do sadismo do outro guerreiro: inmeras facas cravadas por sua carne, algumas serrilhadas, outras mais pontudas, e havia as terrivelmente afiadas. Malcolm desembainhou sua lmpida espada bastarda, de empunhadura simples, com apenas algumas inscries em galico e um drago em estilo celta desenhado na bainha; entretanto, esta voou longe e foi se encravar na porta, para o susto tanto do padre vermelho como do cruzado, e algum emergiu da escurido com a lmina pronta na garganta do cavaleiro ingls: era Charles, at aquele momento oculto nas

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  • sombras, que agachado e encolhido escondera sua cabea branca, em trajes negros colados.- Que brincadeira essa, Charles?!- Partiu a bronca do Inquisidor.- Malcolm, no reaja!- Isso mesmo, Eminncia. Diga a ele para ficar paradinho enquanto lhe corto a garganta, para assim o sangue jorrar fresco na minha...- Charles, repito para que no brinque com coisas srias!- Vossa Eminncia disse outra coisa antes; mas no importa! No tenho a inteno de matar voc, meu irmo.- O olhar de serpente albina gelou Malcolm, que de qualquer maneira no estava conseguindo se mexer.- S no interfiram na minha tarefa.- Reassumiu uma postura normal e afastou sua espada fina e afiada do pescoo do outro cruzado, que recuperou os movimentos, com a pele que ficara fria persistindo assim e vendo seu sangue como se escorresse azul em seu interior, o que lhe causou um medo oposto ao seu rubor impetuoso. Isso que j no simpatizava com o francs...- Voc capturou o ltimo demnio que vinha apavorando os arredores de Sevilha; a sua misso portanto est encerrada. Ns no torturamos as criaturas das trevas. So perigosas demais para serem mantidas vivas. Ordeno que o execute agora.- Esse monstro no est aqui para confessar nada, por isso no planejo meramente tortur-lo. Vou execut-lo, Eminncia; tudo no seu devido tempo. S quero antes testemunhar seu sofrimento e fazer com que sinta na carne a dor que causa aos filhos de Deus.- Voc sempre teve uma personalidade difcil, Charles. Ordeno a execuo AGORA.

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  • - AGORA repetiu o que tinha dito antes.- Eminncia, no pode permitir esse tipo de provocao.- Malcolm interveio.- Voc no se intrometa, com essa sua barba suja...- No trate assim seu companheiro e irmo.- Torquemada imps seu tom severo.- Ele lamentvel, Eminncia...- Girou o quadril e, assustando novamente os outros dois, lanou sua espada na garganta do demnio, que urrou bestialmente e o eco se fez ouvir por aquelas masmorras, aterrorizando torturadores e torturados... J um pouco afastado dali, a noite caa e Antenor aguardava o que estava por vir em frente catedral de Sevilha, mais precisamente perto de sua torre e campanrio, La Giralda, com sua base quadrada e 104 metros de altura; quando soassem os sinos, j pela madrugada, teria incio a procisso. Vestia uma camisa branca vincada, de mangas compridas, e cala e sapatos de couro, com os braos cruzados e reflexivo naquele momento paisana; na cintura somente uma espada curta de guarda circular. Sei que no poderia ter me encantado de tal maneira, Deus me perdoe. Ainda mais por uma pag! Se bem que nada para mim serviria de atenuante, j que meu dever me manter longe da volpia, de tudo o que carnal; nem crist, nem pag, apesar de ser mais grave o encanto por uma pag. Nunca vou me esquecer do modo como ela me olhou., vira, algumas semanas antes, distncia, uma bela cigana de olhos reluzentes e braos delgados e geis, que o cativaram e guiaram seu olhar; ela danava em volta de uma fogueira, na companhia de seu povo, e percebera que fora observada pelo estrangeiro a cavalo, que depois se afastara tanto para no cair em tentao

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  • como para no assustar aquela gente. Apesar de pagos e da m fama que carregavam, de ladres traioeiros, enquanto cantavam e danavam os ciganos pareciam pessoas puras e alegras, e que por isso mereciam a vida como qualquer outro filho de Deus. No os flagrara fazendo mal a ningum. Matei um demnio naquela mesma noite. E a imagem que vi refletida no sangue do monstro foi a do rosto dela, com os olhos que no paravam de me fixar; aquelas duas esmeraldas...Ter sido um ltimo artifcio do Inferno para me fazer cair em tentao? No daquela criatura, que j estava morta, mas do Abismo de onde proveio, buscando me atrair para l? No sei se me sinto feliz por ter recebido o olhar dela ou se devo nutrir algum