A rota do açúcar na Madeira Alberto Vieira/Francisco Clode 1996 ...

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A rota do açúcar na Madeira Alberto Vieira/Francisco Clode 1996 Funchal Madeira [email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/ CINCO SÉCULOS DE AÇÚCAR NA MADEIRA

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A rota do açúcar na Madeira

Alberto Vieira/Francisco Clode

1996

Funchal Madeira [email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/

CINCO SÉCULOS DE AÇÚCAR NA MADEIRA

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Alberto Vieira

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1. OS DONOS DA TERRA. Concomitamente com a abordagem da questão do ciclo produtivo e comercial do produto surgem questões atinentes que procuramos dar o merecido relevo. São elas a evolução da propriedade da terra e da água, a escravatura. O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo aturado, assente nas fontes documentais que atestem o sistema de relações estabelecido na posse e produção da parca superfície arável.

A historiografia preocupa-se, única e exclusivamente, com as condições jurídicas que regularam a distribuição das terras e depois a degradação do sistema com o alheamento do proprietário da parcela arroteável e a sua fixação no meio urbano. Esta última situação contribuiu para a definição do conhecido contrato de colonia. Não interessava conhecer quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade condicionou esta política de doação e distribuição de terras, qual a evolução desta estrutura e as suas cambiantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável.

O equacionar da problemática em estudo não poderá desligar-se, como é óbvio, da evolução do sistema de propriedade. O povoamento insular mereceu, desde muito cedo a atenção da historiografia nacional que aponta o carácter peculiar deste processo evidenciado pela sua concretização num solo inexplorado com carácter experimental. A ilha da Madeira, porque virgem , apresentava as condições necessárias para o primeiro ensaio de colonização europeia fora do continente. E daí partiram os processos, as técnicas e os produtos para as restantes ilhas do Atlântico e Brasil.

DAR E DOMINAR A TERRA. O sistema de propriedade ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e, depois, pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso as situações são idênticas, variando apenas a forma da sua expressão consoante o processo de povoamento e as peculiaridades de cada ilha. Todas estas doações eram feitas de acordo com normas estabelecidas pela coroa e seguiam o modelo já definido para o repovoamento da Península. Para além da condição social do contemplado, das indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo e para erguer benfeitorias, estabelecia-se também o prazo para as arrotear. Assim, dos dez anos iniciais passa-se para cinco a partir de 1433, o que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que anotavam a dificuldade no seu arroteamento. Outra condição imprescindível para quem quer que seja adquirisse o estatuto de povoador com posse de terras estava na obrigatoriedade de residência até cinco anos, o estabelecer casa e, para os solteiros, o necessário casamento. Estas condições revelam que o principal intuito desta distribuição de terras era fomentar o povoamento das ilhas.

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A partir de 1433, com a doação do senhorio das ilhas ao infante D. Henrique, o poder de distribuir terras é-lhe atribuído, mas "sem prejuyzo de forma do foro per nos dado aas ditas ylhas em parte nem em todo nem em alheamento do dito foro", o que comprova mais uma vez que a primeira iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao Monarca. O infante, fazendo uso destas prerrogativas, delegou tais poderes nos capitães. Sabe-se por informações indirectas que o foral henriquino confirma as ordenações régias e estipulava que as terras deverão ser distribuídas apenas por um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse e a possibilidade de nova concessão. Confrontadas estas condições com as do monarca, notam-se alterações significativas no regime de concessão de terras. Assim, desapareceu a diferenciação social dos agraciados e o período para as tornar aráveis é reduzido. A pressão do movimento demográfico, aliada à rarefacção de terras para distribuir, condicionou esta mudança.

Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a legitimação da sua posse geraram vários conflitos, que implicaram a intervenção legislativa do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461, os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, dizendo que estas eram "bravas e fragosas e de muytos arvoredos". Contudo, o infante D. Fernando não abdicou do foral henriquino e apenas concedeu a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise circunstanciada de cada caso pelo almoxarife. Passados cinco anos, os mesmos contestaram de novo contra o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as esmontar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira. Perante tal reclamação, o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar e, por isso, D. Manuel repreende-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. E, finalmente, em 1485, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da Ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria, a única ressalva eram as terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos.

As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20 entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascigo de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existência dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações régias e senhoriais, conduziram a uma diminuição desta área de pascílgo, de

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usufruto. Saliente-se que o próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o capitão do Funchal distribui-se terras na serra para currais e cultura de cereais e das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto.

O PODER DA ÁGUA. A tudo isto há que referir, ainda, que as ilhas Canárias onde se implantou a cultura dos canaviais apresentavam um eco sistema distinto do madeirense. Assim na Madeira os cronistas, excepção feita ao Porto Santo, não se cansam de enunciar duas riquezas fundamentais para fazer medrar os canaviais e a industria subsequente. A ilha é abundante em água e lenhas pelo que a cana de açúcar tem condições para ser promissora. Em face disto as doações de terra não fazem expressa referencia à repartição da água. Esta, no primeiro momento dá e sobra os problemas com a sua falta, e a necessidade de regulamentar o seu uso e posse, surgem num segundo momento. Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura a safra do açúcar é necessário não esquecer a forma da sua distribuição e posse.

Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar o curso das ribeiras fazendo com que as suas movessem engenhos, moinhos e irrigar os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram quilómetros de canais para a sua condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas. O sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas tarefas, como sejam, o moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da ilha ao mesmo tempo que dificultava a condução da água favorecia este aproveitamento, pela força motriz atribuída pelos declives acentuados.

Aguas e nascentes foram consideradas, nos primeiros documentos emanados para a ilha, como domínio público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João Gonçalves Zarco onde considerava nesta situação as "fontes, tornos e olhos daugua... prayas e costas do mar, rios e ribeyras". Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha, pois desde o começo surgiram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva deste bem comum. Em 1461 coloca-se a primeira dificuldade nesta repartição das águas, no que o Duque responde que, o almoxarife mais dois homens ajuramentados, repartam "as auguas a cada hum pera seus açuquares e logares segumdo cada hum mereçeer". Mesmo assim, continuaram as demandas sobre as águas pelo que em 1466 o duque decidiu mandar à ilha, Dinis Anes de Sá, seu ouvidor, com intuito de resolver esta e outras questões.

Com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água que perduraram até ao século XIX. Por cartas de 7 e 8 de Maio ficou estabelecido, de uma vez por

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todas que as águas eram património comum, sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da câmara, entre todos os proprietários, pois que "sem as agoas as terras se não podiam aproveitar". A partir daqui ficou estabelecido a água como propriedade pública, sendo o seu usufruto para aqueles que possuissem terras e delas necessitassem. Todavia, desde finais do século quinze, a água passou a ser negociada, a exemplo do que sucedia com a terra. É com o regimento de D. Sebastião, em 1562, que se procede a uma alteração no sistema primitivo. As águas podem ser vendidas ou arrendadas, o que permitiu que aumentasse o fosso entre a propriedade da terra e da água.

Nos diversos contratos de meias, arrendamento e de colonia, em que os canaviais jogam um papel fundamental, a água esta sempre presente. Naquelas referentes ao Convento de Santa Clara esta instituição assume o compromisso de atribuir água necessária.

A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado nos seus exímios construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as Canárias e, depois, na América. Esta perícia e engenho dos madeirenses está evidenciada na reclamação de Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses "que cortavam as serras pera fazerem levadas, com que se regam as cannas de açúcar", para desviar o curso do rio Nilo.

O plano de levadas da ilha não ficou concluído no século XVII foi apenas adiado pela afirmação da vinha, uma cultura de sequeiro, e, por isso mesmo, quando a cana retornou à ilha, no século XIX, de novo se pôs a questão das levadas para irrigar os canaviais e mover os engenhos. A água adquire de novo uma dimensão económica importante, levando as autoridades a nova intervenção no sentido da sua regulamentação e do traçar de novas levadas para alargar a área de regadio e, por consequência, dos canaviais. É de salientar que o regime jurídico das águas, estabelecido em 1493 por D. João II, perdurou até 1867, altura em que foi aprovado um novo Código Civil. A partir de então água e terra são duas realidades distintas, vindo a agravar a situação, por ser favorável à especulação, situação que foi atacada por leis de 1914 e 1931. Seis anos após o governo avançou com uma política específica da água que chegou à Madeira em 1939. A criação da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira(1943)foi o ponto de partida para esta mudança na política da água e das áreas de regadio na ilha.

FORMAS DE EXPLORAÇÃO E domínio. A evolução do movimento demográfico acompanhado da valorização das zonas aráveis com as culturas de exportação conduziram a profundas alterações na distribuição e posse das terras. Os mercados interno e externo condicionaram um maior aproveitamento do solo

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arroteável, tornando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura fundiária à nova situação. O aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e provocou alterações na sua posse por meio de transacções por compra, aforamento e arrendamento.

O primeiro grupo de colonos é eminentemente nacional, pois só num segundo momento surgem os estrangeiros. Esta situação contraste com as Canárias, onde o estrangeiro está comprometido com a conquista e início da ocupação das ilhas. João Esmeraldo é um exemplo entre muitos os estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI, fixaram morada nas principais áreas de canaviais da vertente meridional. Todos eles, atraídos pelo comércio do açúcar, acabaram investindo os seus proventos em canaviais, engenhos e levadas. João Pedro de Freitas DRUMOND, Documentos Históricos e Geographicos sobre a ilha da Madeira, ms. da Biblioteca Municipal do Funchal, fls. 15vº-17vº.Veja-se Maria do Carmo Jasmins PEREIRA. O açúcar na ilha da Madeira (século XVI), Lisboa 164, pp. 57-58.

. Estes estrangeiros, bem relacionados com a alta finança europeia e com os principais centros do comércio europeu, cativaram rapidamente a tenção da aristocracia e burguesia insulares com quem se relacionaram por meio de laços de parentesco. O casamento com o apetecido dote foi muitas vezes a forma de alargarem os seus domínios e de firmarem a sua posição na sociedade insular . Veja-se João de SOUSA, "Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco Amador", in "Cidade Campo", supl. do Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6.

.

A conjuntura deprecionária da economia açucareira madeirense, da primeira metade do século XVI, conduziu a profundas alterações na estrutura fundiária, contribuindo para a concentração dos canaviais nos grandes proprietários. Os de poucos recursos financeiros vêm-se obrigados a abandonar os canaviais, a substitui-los pelos vinhedos ou então a penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. Esta situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente nas comarcas da Calheta e Ribeira Brava. Note-se que esta tendência acentuara-se já na transição do século XV para o XVI. A mutação da posse dos canaviais no período de 1494 a 1537 poderá ser aferida pela variância do nome dos proprietários. Entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI verifica-se a manutenção de 32 nomes(11%), enquanto no período de 1509 e 1537 apenas se mantiveram dezanove(6%). Estes números poderão significar que a mutação é mais evidente no período de crise que na fase ascendente, por outro lado indicam a maior

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incidência nas Partes do Fundo, pois que no Funchal permanecem dezassete nomes, isto é, 53% do total de nomes em causa.

Outro aspecto de particular significado nesta conjuntura deprecionária é o estabelecimento de contratos de arrendamento e, depois de colonia, que conduzem ao afastamento do real proprietário da terra e dos canaviais. A sua relação só existirá à beira do estendal para receber o açúcar. Exemplo disso é o contrato de arrendamento de meias de terras em Câmara de Lobos, estabelecido entre o convento de Santa Clara e Francisco Martins em 1558.

Se é certo que o estimo de 1494 confirma a tendência para a afirmação da pequena e média propriedade no Funchal e Câmara de Lobos e, em parte, da grande propriedade nas Partes do Fundo, também é certo que os dados em estudo para os anos de 1509 a 1537 atestam a afirmação da grande propriedade nas Partes do Fundo e da média no Funchal e Câmara de Lobos (comarca do Funchal).

A grande propriedade quase inexistente em 1494 com grande destaque na primeira metade do século XVI, nomeadamente nos primeiros decénios. Em 1494 apenas surgem proprietários com mais de 1000 arrobas nas Partes do Fundo e em número reduzido(22%) na zona e 10% no global da capitania). No século XVI estes surgem na capitania do Funchal em número superior com 18% na capitania e 14% no global. Na capitania de Machico esta é quase inexistente uma vez que apenas há notícia de um proprietário com mais de 1000 arrobas. A posição da capitania do Funchal deve-se fundamentalmente aos proprietários sediados nas comarcas da Calheta(35%) e Ribeira Brava(42%). Em 1494, na capitania do Funchal surgem apenas 12 proprietários(5%) com uma produção superior a 1500 arrobas e, no período subsequente (1509-1537) vinte e quatro(8%). Os últimos são na sua maioria, oriundos da Ribeira Brava e Calheta.

Para 1494 os valores mais elevados são de James Timor (2270 arrobas) e João de França (2500). No período imediato, do século XVI, duplicam, como sucede com Pedro Gonçalves de Bairros da Ribeira Brava que, em 1509, produziu 5 376 arrobas de açúcar, isto é 28% da comarca e 8% da capitania. Com uma produção superior a 2000 arrobas temos, no período de 1509 a 1537 quinze proprietários maioritariamente oriundos da Calheta e Ribeira Brava, com um valor global de 37% da capitania, enquanto em 1494 eram apenas três, produzindo 9%. Perante esta evidência será legítimo afirmar que na Madeira dominou o sistema de pequena e média propriedade com a cultura do açúcar? Se a conclusão se torna legítima para finais do século XV o mesmo já não poderá dizer-se para a primeira metade do seguinte. Estamos perante a principal modificação na estrutura açucareira neste lapso de tempo de 43 anos.

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Segundo Virgina Rau e Jorge de Macedo, "a produção do açúcar beneficiava camadas amplas da população, encontrando-se entre os produtores, além do pequeno e médio lavrador, sapateiros, carpinteiros, barbeiros, mercadores, cirurgiões, moleiros, ao lado de fidalgos funcionários, concelhios e outros, participando por migalhas nos benefícios desta rica produção, [...]. Toda esta miuçalha de pequenos produtores se aproveitava de um organismo montado na ilha, para tornar rentável a sua pequeníssima produção". Vitorino Magalhães Godinho, por seu turno, reforça esta caracterização da realidade social madeirense apontando a tendência para a concentração dos canaviais num número reduzido de insulares.

A situação da primeira metade do século XVI apresenta-se diferente pois que o número limitado de proprietários reforça a ideia da concentração dos canaviais nos grupos sociais privilegiados da sociedade insular: aristocracia, mercadores, artesãos e funcionários locais e régios. Em ambos os momentos este grupo de proprietários representava apenas 1% da população da ilha. Esta tendência concentracionista acentua-se na passagem do século XV para o XVI, uma vez que houve a redução do número de proprietários nas comarcas circunscritas às Partes do Fundo. Aliás, aqui é notória a manutenção dos proprietários, sendo reduzido a mutação por compra e venda, dote ou aforamento. A imutabilidade da propriedade deve-se fundamentalmente à sua vinculação. Assim, entre 1509-1537, 18% dos canaviais das comarcas das Partes do Fundo estavam vinculados, enquanto no Funchal são só 17%. Estas terras representam 38% da produção da capitania do Funchal.

A caracterização da realidade social da estrutura fundiária açucareira é igualmente diversa, sendo definida pela forte participação dos estrangeiros, mercadores e funcionários. O grupo de estrangeiros que surgia já em 1494 com uma forte participação no sector produtivo açucareiro com 17% reforçará a sua posição, na primeira metade do século XVI, atingindo 20%. Esta situação é reforçada pelo testemunho de Gaspar Frutuoso. A sua relativa participação em 1494 explica-se pela política xenófoba dos mercadores do reino e ilhas e pela ambiguidade da acção da coroa e do senhorio. Até 1498 altura em que o monarca autoriza a permanência dos estrangeiros na ilha, a situação mantinha-se muito precária e os seus interesses molestados pela oposição da burguesia insular e nacional. Deste modo, a estabilidade e privilégios concedidos aos mesmos contribuíram para a sua rápida fixação na ilha, justificando-se de modo preciso a sua forte participação no sector produtivo na primeira metade do século XVI.

Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será de supor a fixação do estrangeiro no burgo e arredores. Assim temos 43% deste grupo na comarca do Funchal e arredores. Na sua maioria são grandes proprietários, uma vez que mais de 50% detêm canaviais com produção superior a 1000 arrobas. A

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sua acção alargou-se depois, a algumas comarcas periféricas com forte incidência na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, onde assumem uma posição importante na produção e destacando-se como os principais proprietários, dispondo de extensos canaviais, engenho e numerosos escravos. No Funchal, é certo, temos grandes proprietários, como Simão Acciaioly, Benoco Amador e João de Bettencourt mas, em contraste, a sua posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na Ribeira Brava e Ponta de Sol que estes apresentam a percentagem mais elevada da produção. Em síntese podemos afirmar que o estrangeiro avizinhado não se preocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e transporte dos produtos, que os atraíram, mantiveram-se como a actividade principal. Este raramente surge na condição de proprietário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador-prestamista.

A classe mercantil atraída pela opulência do açúcar fixa-se nas principais comarcas de produção e comércio do ouro branco. O Funchal, como principal centro de tráfego açucareiro, apresentará condições propícias à sua residência. Note-se que cerca de 60% tinham os seus canaviais nesta comarca. De igual modo sendo a capitania do Funchal definida pela melhor área de canaviais, eles preferem-na às terras de Machico, onde apenas atingem 13% do total. Não obstante, a sua fraca representação numérica na última capitania surgem com 35% do açúcar enquanto no Funchal ficam-se pelos 20%.

O mercador nacional ou estrangeiro não se dedicava em exclusivo ao comércio, pois repartia a sua actividade por uma multiplicidade de produtos de importação e exportação e alargava-a outros sectores, como o administrativo e produtivo. Assim, estes são em simultâneo proprietários e funcionários concelhios ou régios, com uma forte presença na exploração dos canaviais onde representavam, na primeira metade do século XVI, 24% do total dos proprietários, comparticipando com 30% da produção.

A estrutura administrativa das duas capitanias subordinava-se à febre açucareira, sendo definida pelo almoxarifado e provedoria da fazenda. A própria administração local ajustou-se a esta ambiência, sendo a vereação a tribuna de debate das principais questões ligadas ao produto. Ao mercador ou proprietário interessava deter uma posição nesta complexa estrutura administrativa de forma a fazer valer os seus reais interesses nas ordenanças ou posturas municipais, que regulamentavam a safra e comércio do açúcar. Não será por acaso que muitos dos principais proprietários são nas duas capitanias como oficiais régios ou concelhios. Destes registam-se pelo menos trinta e três, na sua maioria da capitania do Funchal, com uma produção de 21%. Sendo a vereação o local de debate e deliberação das principais questões ligadas à safra e comércio açucareiro lógico será admitir a sua participação com assiduidade nas mesmas, como

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oficiais eleitos ou homens-bons. Note-se que neste grupo 61% são homens-bons. Os elementos mais influentes da classe possidente madeirense incluíam-se em qualquer destes grupos. O usufruto da dupla situação social conduziu à sua afirmação no grupo de proprietários de canaviais. Assim 30% dos funcionários e 19% dos mercadores situam-se no grupo com uma produção superior a 1000 arrobas.

A conjugação dos vínculos ou legados pios, do duplo estatuto social com as alianças matrimoniais ou extra matrimoniais poderá ser apontada como o principal mecanismo de reforço da grande propriedade na economia açucareira. Esta é uma conjuntura premente no momento de crise da primeira metade do século XVI. Note-se que a intervenção da infanta D. Catarina foi no sentido da manutenção dos canaviais através da regulamentação das heranças. Assim, em 1559 foi eleito um procurador para tratar da herança dos canaviais que levou à decisão em 1562 de apostar no regime de morgado para os canaviais.

No século XVII a estrutura fundiária é distinta. Assim, dominam os pequenos proprietários de canaviais, o que demonstra ser esta uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras pela sua necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho da diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense de então. Para 1600 temos 109 proprietários com 3656 arrobas, o que equivale a uma média de 33,54 arrobas. Esta Situação demonstra que a segunda metade do século XVI foi pautada pelo paulatino abandono dos canaviais e a sua substituição pela vinha.

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2.DOS CANAVIAIS AO ENGENHO. A cana-de-açúcar na sua primeira experiência além Europa demonstrou as possibilidades de rápido desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Gaspar Frutuoso testemunha isso mesmo ao referir que "esta planta multiplicou de maneira na terra, que he o assucar della o melhor que agora se sabe no mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa parte dos moradores da terra". Tal evidência catalizou as atenções do capital estrangeiro e nacional que apostou no seu crescimento e promoção, pois só assim se poderá compreender o rápido arranque da mesma. Esta que, nos primórdios da ocupação do solo insular, se apresentava como uma cultura subsidiária, passou de imediato a cultura e produto dominante, situação que manteve por pouco tempo.

OS CANAVIAIS NOS SÉCS. XV E XVI. A cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha, onde surgem duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alíseos, onde os canaviais atingem 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a sua cultura além dos 200 m numa produção idêntica à primeira área. Deste modo a capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar, ocupando a quase totalidade do espaço da vertente meridional. À de Machico restava apenas uma ínfima parcela área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para a cultura.

Esta diferenciação das duas capitanias torna-se mais visível quando analisamos os dados da produção. Assim, em 1494, do açúcar produzido na ilha apenas 20% é proveniente da capitania de Machico e o sobrante da capitania do Funchal. Em 1520 a primeira atinge 25% e a segunda os 75%. Fernando Jasmins Pereira, numa análise comparada da produção das duas capitanias entre 1498 e 1537, discorda da relação até então estabelecida (3:1) pois, de acordo com a sua análise, a razão situa-se em 4:1 para os primeiros decénios do século XVI, descendo entre 1521-1524 para 3:1 e recuperando na segunda metade do decénio para 4:1.

Na capitania do Funchal os canaviais distribuíam-se de modo irregular, de acordo com as condições mesológicas da área. Assim, em 1494 a maior safra situava-se nas partes de fundo, englobando as comarcas da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta com 64%, enquanto o Funchal e Câmara de Lobos tinham apenas 16%. Em 1520, não obstante uma ligeira alteração, a diferença mantém-se, pois a primeira surge com 50%, e a segunda apresenta 25%, valor idêntico ao

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total da capitania de Machico, com 25%. Uma análise em separado das diversas comarcas da capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância da do Funchal em 33%, seguindo-se a da Calheta com 27%. As da Ribeira Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária com 20% cada.

Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura da cana-de-açúcar e comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tornar, por algum tempo, no produto dominante da economia madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico aceleraram este processo expansionista. Assim em meados do século XV os canaviais são motivo de deslumbramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que os açúcares "deram muita prova", enquanto o segundo dá conta dos "vales todos cheios de açúcar de que aspergiam muito pelo mundo". A sua detenção só foi possível na congregação de vários factores endógenos com outros exógenos. Tudo isto explica o rápido movimento ascendente bem como o percurso inverso, pois ao atingir-se o zénite não houve um lapso de estabilidade.

A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situava na ordem dos 240% e no período subsequente até 1493 em 1430%, isto é uma média anual de 13% no primeiro caso e de 68% no segundo. No período seguinte após o colapso de 1497-1499 a recuperação é rápida de tal modo que em 1500-1501 o aumento é de 110% e entre 1502-1503 de 205%. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá marcar o máximo, atingindo em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Note-se que apenas em 4 anos atinge-se valor inferior ao do início do século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes, baixando a produção na capitania de Funchal, entre 1516-1537, em 60%. Na capitania de Machico a quebra é lenta, sendo sinónimo do depauperamento do solo e da crescente desafeição do mesmo à cultura. Mas, a partir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de modo que a produção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior ao registado em 1470. Na década de 30 consumava-se em pleno a crise da economia açucareira e o ilhéu viu-se aos poucos na necessidade de abandonar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos. Mesmo assim Giulio Landi, que na década de trinta visitou a ilha, refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza dedicam-se "apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores proventos".

A historiografia tem apresentado múltiplas explicações para esta crise, assentes fundamentalmente na actuação de factores externos. No entanto, Fernando Jasmins Pereira com o seu estudo sobre Açúcar Madeirense contraria essa opinião definindo a crise açucareira madeirense como resultado das condições

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ecológicas e sócio-económicas da ilha, sendo primordial o primeiro factor: "...a decadência da produção madeirense é, primordialmente, motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente a capacidade produtiva". Deste modo a crise da economia açucareira madeirense não é apenas resultado da concorrência do açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas, acima de tudo, deriva da conjugação de vários factores de ordem interna: a carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as alterações climáticas. A concorrência do açúcar das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas vieram agravar a situação de queda do açúcar madeirense. A tudo isto acresce em finais do século os efeitos do bicho que atacou os canaviais, como é testemunhado para os anos de 1593 e 1602. Deste modo o último quartel do século foi o momento de viragem para culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A documentação testemunha esta mudança.

OS CANAVIAIS NO SÉC. XVII. No decurso do século XVII os canaviais das ilhas perderam paulatinamente importância. Apenas na Madeira é notada uma curta época de reafirmação, quando se apaga a concorrência do brasileiro. A conjuntura do século dezassete foi favorável ao retorno da cultura. Algumas terras de vinha ou searas cederam lugar às socas de cana. Mas estas pouco ultrapassaram, num primeiro momento, a valoração da área agrícola circunvizinha do Funchal. Assim o comprova o livro do quinto do ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um grupo maioritariamente desta área. Este é quase o único quanto à produção de açúcar na ilha no século dezassete, pois só teremos novas informações a partir de 1689, com a arrecadação do oitavo.

No ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. Aqui a média propriedade cede lugar à pequena e mesmo de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas.

Até 1640 o movimento descendente havia-se agravado com a presença, cada vez mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. Mas a partir daqui com a ocupação holandesa das terras a cultura renasceu na ilha para responder à sua solicitação na Europa e pela necessidade resultante das indústrias de conserva e casquinha. Em 1643 o número de engenhos existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais. A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642,

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pretendia promover de novo o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos, com a isenção do quinto por cinco anos ou a metade por dez anos7.ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657, empréstimo ao capitão Pero de Betencourt Henriques; ibidem, nº.966, fl8vº, 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250.. Esta situação favoreceu a cultura, afirmando Diogo Fernandes Branco em 10 de Fevereiro de 1649 que as canas estavam "fermozas", prevendo-se uma grande colheita. Em Outubro goraram-se as suas expectativas, pois o açúcar lavrado era de má qualidade. O progresso continuou no ano imediato, sendo testemunho disso a construção de dois novos engenhos. Esta foi no entanto uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da sua concorrência. Ainda, em 1658 procurou-se apoiar os canaviais ao reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável.

A estes incentivos acresce-se o facto de os direitos do quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que neste último ano se recomendou maior atenção nisso. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688, a coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para 1/8 da colheita, sendo a medida, mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura. A produção de açúcar torna-se conhecida através dos tributos que recaem directamente sobre o produto. Tivemos o quarto e, depois, o quinto que oneravam todos os lavradores de cana de acordo com os valores de produção estabelecidos à saída do estendal para os canaviais.

Por todo o século XVIII a aposta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais. Mesmo assim estes tiveram continuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de canaviais e sabe-se que o engenho dos Socorridos manteve-se em funcionamento por todo o século XVIII.

OS CANAVIAIS NOS SÉCULOS XIX E XX- O REGRESSO E NOVA ESPERANÇA. A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso à Madeira, como solução para reabilitar a economia que se encontrava profundamente debilitada com a crise do comércio e produção do vinho. Todavia a situação, que se manteve até à actualidade, não veio atribuir ao produto a mesma pujança económica de outrora. Outro facto evidente da centúria oitocentista foi a presença de inúmeros madeirenses em Demerara como mão-de-obra substitutiva dos escravos, cuja situação, entretanto, havia mudado. A última década do século dezanove e as duas primeiras da presente centúria

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podem ser consideradas de horas amargas para todos os madeirenses. Parte disso é resultado do processo porque passou o açúcar. A generalização do seu consumo provocou um redobrado empenho na sua reimplantação entre nós.

No início, as dificuldades do tradicional mercado americano, envolto em guerras pró-independência, e ainda não refeito do impacto do abolicionismo, propiciaram a afirmação da cultura nos primeiros espaços, ou a aposta nas alternativas, como a beterraba, que na ilha nunca resultou. Todavia, num segundo momento a concorrência tornou-se feroz. Entre nós a do açúcar de beterraba açoriano ou de cana de Angola e Moçambique foi bastante evidente e levou ao estabelecimento de medidas restritivas da circulação do melaço e do açúcar, ou de favorecimento da indústria local. Elas enquadram-se na política europeia definida pelo convénio de alguns países produtores assinado a 5 de Março de 1903. Esta última situação conduz, por vezes, ao monopólio. Como, na realidade, sucedeu entre nós.

A toda esta complexa conjuntura junta-se a dificuldade extrema no recrutamento de mão-de-obra barata - o escravo era então coisa do passado - o que levava a um investimento desusado na tecnologia. A intenção era clara: substituir-se ao homem, baratear e facilitar a rapidez do processo de laboração. Umas das grandes questões em debate neste segundo momento do açúcar prende-se com as dificuldades em concorrer com outras áreas produtoras, onde os custos eram reduzidos a metade e a qualidade da sacarose da cana também superior.

Esta conquista de inovação tecnológica era custosa e só foi conseguida à custa de medidas proteccionistas. Sucedeu assim em todo o lado. Entre nós foi a questão Hinton. Este foi sem dúvida o problema que mais apaixonou a opinião pública, nas vésperas e durante a República; publicaram-se inúmeros folhetos, os jornais encheram-se de opiniões contra e a favor. Cesário Nunes documenta esta situação de forma lapilar: "Em Portugal nenhuma questão económica atingiu tão alta preponderância e trouxe e tão grandes embaraços legislativos às entidades governativas como o problema sacarino da Madeira. "Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração da Companhia Fabril do Açúcar Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de fabrico de açúcar sita à Ribeira de S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. O cónego Feliciano João Teixeira, sócio deste empreendimento no discurso de inauguração afirma ser este um "grandioso monumento, que abre uma época verdadeiramente nova e grande na História da industria fabril madeirense". Mas isto era apenas o princípio de um conflito industrial, onde emperou a lei do mais forte. Tal como o afirmava em 1879, no momento encerramento de fábrica José Marciliano da Silveira " a fábrica de São João foi cimentada com o veneno da

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maldade; era o seu fim dar cabo de todas as que existiam..." acabou por cavar o fosso da sua ruína.

Tudo começou com o plágio por parte da família Hinton, da invenção do Visconde Canavial. Este havia patenteado em 1875 um invento que consistia em lançar água sobre o bagaço, o que propiciava um maior aproveitamento do suco da cana. Constava da patente o uso exclusivo pela fábrica de S. João, mas o engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o lesado moveu em 1884 uma acção civil contra o contrafactor. Mas a família Hinton estava fadada para singrar na industria açucareira e conseguir uma posição de monopólio. Segurada na influência das autoridades diplomáticas britânicas, da intervenção pessoal junto da coroa e, depois, das hostes republicanas, conseguiu atingir os seus objectivos. A visita de El Rei D. Carlos à ilha em 1901 poderá ser entendida como um momento crucial dessa actuação.

As medidas que favoreciam a entrada de melaço estabelecidas pela lei de 1895, associado ao decreto de 1903, um regulamento anexo a este decreto determinava a forma de matricula das fábricas. As condições eram de tal modo lesivas que só duas - Hinton e José Júlio Lemos - o conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha ficaram numa situação periclitante. Entretanto a lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao estabelecer a referida matrícula por 15 anos. Entretanto, caía a monarquia e sucedeu a República, que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas de novo as influências moveram-se a família Hinton conseguiu pelo decreto de 11 de Março de 1911 assegurar o monopólio do fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das colónias.

Os anos seguintes foram de plena afirmação deste monopólio e de luta sem tréguas às fábricas de aguardente. Note-se que o consumo excessivo da aguardente era o inimigo número um da saúde pública, sendo a Madeira, por essa situação, definida como a ilha da aguardente. As leis de 1927, 1928, 1934, 1937 actuam no sentido do controlo da produção e comércio de aguardente, conduzindo inexoravelmente a um paulatino abandono da cultura. Dos 1800 ha de 1915, que produziam 55.000 toneladas, passou-se aos 1420 do ano de 1952. Depois foi o que se viu até que em 1985 agonizou em definitivo o império do açúcar do Hinton, construído com pés de barro, sustentado pelos favores políticos, vegetando à custa da exploração dos lavradores de cana.

A área de cultura de cana sacarina foi-se reduzindo inexoravelmente a pequenos nichos de socalcos na vertente sul. Todavia a partir de meados do século XIX a mesma foi paulatinamente conquistando terreno a norte e a sul. Assim J. Mason refere que a mesma se fazia de modo extensivo, ocupando metade da terra arável. Opinião distinta tem R. White que diz ser ainda pouco cultivada e apenas

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usada para o fabrico de mel. Na verdade, a cultura era ainda uma auspiciosa esperança para os madeirenses. Nicolau Ornelas e Vasconcellos, que fora trabalhador de cana em Demerara, diz-nos: "... olha-se para a cultura da cana de assucar como um grande produto agrícola que offerece grandes vantagens, que podem em certo modo adoçar o mal geral, o aspecto aterrador de nossas finanças..." Passados dez anos a cana continua a ser uma aposta forte, mas tardava o momento da sua plena pujança de acordo com Eduardo Grande a cana ocupava apenas 357 ha (2%), isto é uma magra fatia do solo arável. A aposta nas décadas de cinquenta e sessenta estava a afirmação desta nova cultura, capaz de reabilitar a economia da ilha

Neste segundo momento de afirmação dos canaviais podemos estabelecer dois momentos distintos: O primeiro decorre de 1852 a 1884, culminando com o ataque do bicho da cana, em 1885 e 1890, que levou à sua quase total destruição. Para atalhar esta dificuldade importaram-se novos tipos de cana: a cana bourbon introduzida de Caiena(1847) e Cabo Verde, também atacada pelo bicho, foi substituída por outras castas da Mauricia, yuba do Natal(1897) e POJ de Angola(1938). Para isso foi criada uma estação experimental(em 1888) e estabeleceu-se um conjunto de medidas proteccionistas em 1895. Esta aposta definiu o segundo momento. A alteração significativa deste panorama só sucedeu na viragem do século, quando a cana atingiu cerca de 1000 ha, valor que continua a subir para as 6500ha em 1939. A partir daqui foi a quebra resultante das medidas restritivas ao fabrico e consumo de aguardente. Na década de quarenta do nosso século a cana ocupava ainda 34% da área cultivada, mas este era já um momento de quebra acentuada da sua área de cultivo, que na vertente sul foi paulatinamente substituída pela bananeira. Deste modo em 1952 fala-se apenas 1420ha, enquanto mais próximo de nós, em 1986, só existem 119,9ha.

Esta evolução dados canaviais, com maior incidência na vertente meridional, área tradicional do seu cultivo, significa um maior volume de produção que empurra a evolução do número de engenhos. Foi no período de 1910 a 1930 que se atingiu os valores mais elevados, que aproximaram a ilha dos tempos aúreos do século XV, apenas em termos de produção e nunca de riqueza. Todavia, a partir desta data sucedem-se medidas limitativas da expansão da área dos canaviais, que conduzem inevitavelmente à sua desvalorização na economia rural e que em certa medida favorecem a expansão da banana, cultura, predominantemente da vertente sul, deixando a agricultura do norte num estado de total abandono, o que abriu as portas a uma desenfreada emigração. Tenha-se em atenção que "a agricultura, toda a economia da Madeira, a própria administração publica, ficariam mais do que nunca na dependência das fabricas de açúcar e alcool".

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Facto inédito foi a tentativa de implantação da cultura no Porto Santo. Primeiro foi a frustrada introdução do sorgo, depois a cana, documentada a partir de 1883. A sua produção era diminuta, sendo as canas exportadas para o Funchal ou espremidas num engenho movido por bois. Ainda, deverá atender-se ao facto de se ter experimentado outras formas de produção de açúcar na Madeira, nomeadamente a beterraba, que não teve êxito.

A par disso é de realçar também a insistência das gentes do norte, representadas através dos municípios de S. Vicente e Santana, em pretenderem furar as limitações impostas pelas autoridades para a área de produção de cana, que não acautelavam esta vertente devido o baixo teor de sacarose, levando a Junta Geral em 1955 a contrariar as ordens do Ministério do Interior, ao implantar dois campos experimentais em S. Vicente e Santana. Esta situação é resultado do facto de a cana ser um complemento importante da pecuária e um dos poucos meios de assegurar a subsistência dos lavradores, tendo em conta a total desvalorização da vinha.

CANAVIAIS e Plantação. As áreas de cultivo dos canaviais continuam a manter a tradição histórica. A vertente sul, o espaço da antiga capitania do Funchal, dominam. Para o ano de 1865 temos indicação dos valores de produção por conselho. O facto mais significativo é do concelho de Santana, cuja produção incide no Faial e alastra depois a S. Jorge e Arco de S. Jorge. A Calheta, que no século XVI havia sido a principal área de produção, perde esse lugar em favor do Funchal, Câmara de Lobos e Ponta do Sol. Passados noventa anos a situação altera-se. O Funchal continua a ser a principal área, seguido à distância de Santa Cruz. O Norte perde a sua importância, assumindo-se a cana como uma opção de cultivo da vertente sul. Na actualidade, a fazer fé nos dados referentes às áreas de cultivo temos de novo a afirmação da Calheta como bastião dos canaviais, seguido de perto por Ponta do Sol, Machico e Ribeira Brava.

Note-se que as áreas de produção de açúcar, nos dois momentos da sua afirmação, são diversas. Enquanto nos séculos XV e XVI esta era uma cultura, predominantemente, da vertente sul, dominando o espaço da capitania do Funchal(75%), na presente centúria assistiu-se a uma expansão da cultura em toda a ilha e à consequente definição de novas áreas:

1520 1950 1956-66

% % %

CALHETA 20 7 13

FUNCHAL 25 53 34

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PONTA DO SOL 15 14 18

R. BRAVA 15 4 15

MACHICO 25 29 20

No primeiro momento o Funchal, representava apenas 25%, em 1520, enquanto em 1950 sobe para 53%. Esta subida surge como resultado da perda de importância da área agrícola entre a Ribeira Brava e a Calheta: estas que produziram 64% do açúcar da capitania do Funchal em 1494, surgem em 1520 com 67% da capitania e 50% do total da ilha, para em 1950 não ultrapassarem os 25%. Apenas a área circunscrita à capitania de Machico manteve níveis parecidos, não obstante o alastramento da cultura na costa norte.

Os dados referentes à produção dão conta que se atingiu níveis mais elevados na primeira metade da presente centúria: expandiu-se a área da cana, que em 1939 abrangia os 6500 ha. Todavia esta expansão da cultura não propiciou o mesmo progresso económico propiciado nos séculos XV e XVI. As condições de rentabilidade económica eram outras, como distinto era o principal destinatário. Aqui ao contrário do que sucedeu há cinco séculos atrás a produção tinha como objectivo assegurar as necessidades da ilha e não o comércio com o exterior: as limitações estabelecidas na década de trinta à expansão da cultura conduziram a que baixassem os níveis de produção, levando à necessária importação, desde a década de quarenta. Se estabelecermos um confronto entre a população e o número de toneladas de açúcar arrecadados veremos que na primeira (séculos XV e XVI) a capitação era muito mais elevada.

O AÇÚCAR E A POPULAÇÃO MADEIRENSE

Anos População Produção

toneladas média ha

1449 16000 1135 53 kg

1510 16000 1585 60

1584 25000 473 19

1900 150600 503 3,4

1920 17000 2153 12,6

1930 211601 3149 11,6

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1940 249771 4334 17,4

1950 266300 3500

1963 268100 3872 14,4

Ilhas e canaviais no atlântico. Vimos em muitos estudos falar da Madeira como modelo institucional, social e económico, mas poucos ou nenhuns são aqueles que nos revelam os dados fundamentadores desta afirmação. Por outro lado coloca-se, ainda a economia açucareira da ilha ao mesmo nível dos demais arquipélagos atlânticos e mediterrânicos, esquecendo-se da complexidade que esse espaço encerra. Foi no sentido de desfazer esta infundamentada e anacrónica perspectivação da Historiografia que decidimos fazer uma análise comparativa, ainda que sumária, das ilhas produtoras de açúcar no espaço atlântico. Para isso contámos com quatro itens que corpo rizam e definem essa realidade: a superfície, a produção de açúcar, o número de escravos e de engenhos-açúcar. Apenas a partir destes aspectos é possível estabelecer uma precária comparação, faltando para outros domínios importantes dados que permitiam essa aproximação; como é o caso da expressão do regime fundiário.

Mas a implantação dos canaviais não deriva apenas da disponibilidade de uma reserva florestal e de água para a laboração dos engenhos. A isso deverá juntar-se, necessariamente, as condições oferecidas pelo clima e orografia. Neste contexto as ilhas da América Central e do Golfo da Guiné estarão em melhores condições que a Madeira ou as Canárias. Deste modo em ambos os arquipélagos a orografia estabeleceu um travão à afirmação da cultura extensiva dos canaviais. De acordo com estas condições a produção madeirense dos séculos XV e XVI nunca ultrapassou as 1584,7 toneladas, atingidas em 1510. apenas no presente século, com a expansão dos canaviais, de novo a toda a ilha, se conseguiu suplantar este valor, tendo-se atingido em 1916 as 4943,6 toneladas. Este incremento da produção açucareira foi travado nos anos imediatos por meio dos decretos de 1934-1935 e 1937 regulamentadores da área de produção. Em S. Tomé os canaviais tiveram melhores condições para se afirmarem e suplantarem a produção madeirense: na primeira metade do século dezasseis a ilha, com uma extenso de 857 m2, ( mais que a Madeira - 728) produzia o dobro, cifrando-se este valor, na primeira metade do século XVI, em 4950 toneladas o clima, o solo fazem com que a produção de açúcar em S. Tomé cedo suplantasse a madeirense: aí as canas cresciam três vezes mais que na Madeira e colhem-se duas culturas.

O conjunto das 21 ilhas produtoras de açúcar no esforço atlântico oferece um total de 271.993 m2, dos quais oferece apenas uma ínfima parcela foi dedicada à agricultura. Note-se que, para além da disponibilidade do espaço agrícola adequado a esta cultura, tornava-se necessário a disponibilidade de uma reserva

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silvícola, sem a qual os engenhos não podiam laborar. O caso da Madeira é paradigmático: aqui a superfície cultivada pouco ultrapassa um terço da área da ilha, sendo o restante espaço constituído pela reserva silvícola. não é possível saber mos a área ocupada pelos canaviais nos séculos XV e XVI mas para a segunda fase de afirmação da cultura dispomos de dados concretos sobre isso tendo em conta o volume da cana produzida:

ANO ÁREA ANO ÁREA

Ha Ha

1815 357 1918 1500

1906 1100 1939 1500

1911 1100 1952 1420

1915 1800

para estas duas áreas poderemos enunciar que no século quinze, mais propriamente em 1497 as 1098,6 toneladas deveriam resultar de uma área de 686 hectares de canavial, enquanto em 1510 com a produção de 1584,7 toneladas, os canaviais deveriam ocupar cerca de 990,4 hectares.

A situação das ilhas do outro lado do oceano é também diferente da madeirense, condições semelhantes às encontradas e, S. Tomé fizeram com que os canaviais se afirmassem aí, a partir do século dezassete. Deste conjunto de ilhas apenas um reduzido número (S. Cristóvão, Nevis, Antigua, Montserrat) se assemelha à Madeira, em termos orográficos. Aí deparámo-nos com ilhas de superfície menor que a Madeira (Antigua, Barbados, Nevis, St. Vicent, Trinidad) mas com uma produção açucareira superior. Facto evidente sucede com as ilhas de Trinidad, Antigua e Barbados, que dispondo de uma reduzida superfície conseguem produzir mais açúcar que a Madeira: a ilha de Trinidad com apenas 301 m2 produziu entre 1850 e 1940 uma média anual de 57862 toneladas de açúcar, enquanto a Madeira se ficou pelas 1659 toneladas. Note-se ainda que as ilhas de Montserrat e Nevis, com uma superfície total quase igual à da área ocupada pelos canaviais na madeira, conseguem atingir valores de produção semelhantes.

Diversa é também a estrutura fundiária que serviu de base a esta cultura. enquanto na Madeira a orografia e o sistema de posse da terra definiram a plena afirmação da pequena e média propriedade, em S. Tomé ou nas Antilhas estávamos perante a grande propriedade, activada pela grande força de trabalho escrava: em Barbados, entre 1650 e 1834, 84% dos proprietários de canaviais era

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detentor de mais de cinquenta escravos, enquanto na Madeira apenas 2% era possuidor de mais de 10 escravos.

Por outro lado a área dos canaviais assumida por cada proprietário era também elevada, pois 64% destes possuíam canaviais cuja extensão ia de 40 a 121 hectares, situação que estava muito aquém da assumida pelos produtores madeirenses. Na Madeira apenas um produtor se aproxima desse valor (Pedro Gonçalves com uma área de 36,9 hectares)), sendo os demais com valores inferiores: os lavradores com mais de 22 toneladas de produção e com mais de 14 hectares de terreno representam em 1494 apenas 1,3% e 5% para o período de 1509 a 1537.

PROPRIETÁRIOS LOCALIDADE ANO PRODUÇÄO ÁREA

ARROBAS Ha

Joäo Esmeraldo P. Sol 1494 1370 9,3

P. Sol 1526 3277,5 22,5

Joäo de França 1494 2500 17,1

Pedro Gonçalves Bairros R. Brava 1509 5376 36,9

Diogo Afonso de Aguiar Calheta 1509 3960,5 27,2

Benoco Amador Funchal 1509 2565,5 17,6

João Mendes de Brito R. Brava 1517 3339 22,9

João Betencor R. Brava 1517 2455 16,8

Gonçalo Fernandes Calheta 1534 33707,5 25,4

Dona Joana d'Eça Calheta 1534 3595 24,7

João Betencor R. Brava 1536 2455 16,8

João Martins P. Sol 1537 2528 17,3

Neste quadro reunimos os proprietários de canaviais com maior produção de açúcar, para o período de 1494 a 1537. A partir daqui poder-se-á constatar que a dimensão dos canaviais madeirenses era muito reduzida quando comparada com os das Antilhas. O caso de Barbados (cuja superfície é menor que a da

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Madeira) é significativo: a produção de atingiu aí o máximo de 74606 arrobas em 1890.

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3. O Engenho. A moenda e o consequente processo de transformação da garapa em açúcar, mel, álcool ou aguardente projectaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das inovações técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências. A madeira e o metal são a matéria-prima que dá forma a capacidade inventiva dos senhores de canaviais e engenhos.

o ENGENHO NA ÉPOCA PREINDUSTRIAL. Na moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira, o primeiro que temos conhecimento foi patenteado em 1452 por Diogo de Teive. Este processo resultou apenas nas áreas onde era possível dispor da força motriz da água fez-se uso da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras. Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos deste engenho. Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um com o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: "Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nos debaixo de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes todo o suco".

Uma das questões que mais tem gerado polémica prende-se com a evolução da tecnologia do fabrico do açúcar, concretamente a passagem do trapiche ao engenho de cilindros. O primitivo Trapettum era já usado na Roma antiga para triturar azeitonas e sumagre, sendo, segundo Plínio, inventado por Aristreu, Deus dos Pastores. Mas este tornou-se um meio pouco eficaz nas grandes plantações, tendo-lhe sucedido o engenho de eixo e cilindros. É aqui que as opiniões divergem. Existe uma versão que aponta esta evolução como uma descoberta mediterrânica: Noel Derr e F. O. Von Lippmann atribuíram a descoberta a Pietro Speciale, prefeito da Sicília; a Historiografia castelhana encara isso como um invento de Gonzalo de Veloza, vizinho da ilha de La Palma, que teria apresentado o seu invento em 1515 na ilha de S. Domingos; David Ferreira Gouveia apresenta esta evolução como resultado do invento do madeirense Diogo de Teive, patenteado em 1452. Outros apontam para a sua origem chinesa. O engenho de três eixos surge mais tarde no Brasil sendo considerado também uma invenção portuguesa, inegavelmente ligada aos madeirenses aí radicados.

Note-se que a primeira referência aos eixos para o engenho datam já do último quartel do século XV. Note-se que em 1477 Álvaro Lopes tem autorização do capitão do Funchal para que "faça hum enjenho de fazer açúcar que seja de moo ou d'alçapremas, ou doutra arte...o qual enjenho será d'augoa com sua casa e casa de caldeiras...". Depois, em 1485, D. Manuel isentava da dizima "quaesquer

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teyxos que forem necesarios para eyxos esteos cassas latadas dos enjenhos e tapumes...". Em 1505 Valentim Fernandes refere que o pau branco era usado no fabrico de "eixos e prafusos pera os enjenhos de açúcar". A isto associa-se o inventário do engenho de António Teixeira, no Porto da Cruz em que são referidos como aprestos: rodas eixos, prensas, fornalhas espeques (...).

A palavra trapiche entrou depois no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de engenhos de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal, como em Arucas, existe uma localidade com este nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. Para São Tomé o Piloto Anónimo refere o uso dos "braços dos negros e ainda mesmo cavalos". Deste último sistema temos notícia da sua utilização apenas nos primórdios da cultura da cana-de-açúcar na Madeira, sendo pouco provável a sua continuação após a experiência do engenho de água de Diogo de Teive, tendo em conta a disponibilidade de cursos de água e do possível aproveitamento por meio da sua canalização através das levadas. Já o mesmo não sucede nas Canárias, onde as datas diferenciam os engenhos de água dos de besta. As condições geo-hidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores. Aliás, nesta ilha estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto a primeira desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho.

Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significava que a existência de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de um engenho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços de outrem. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais. Por outro lado temos casos de alienação destes complexos a outrem, sem qualquer relação com os canaviais. Assim sucedeu em 1546 o convento de Santa Clara arrendou o engenho dos Socorridos, que fora de Rui Dias Aguiar, a Manuel Damil.

Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram nas ilhas. As informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a Madeira em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro documento de 1493 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se ainda que Edmund von Lippermann refere existirem no Funchal 150 engenhos no início do século XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a produção dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso refere-nos 34 engenhos, sendo nove na capitania de

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Machico e os restantes na do Funchal. A sua localização geográfica permite aferir das áreas de maior incidência da cultura no século XVI.

[MAPA]

No século dezassete o número de engenhos era reduzido. Assim, em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em laboração. Esta aposta na cultura levou ao necessário o estabelecimento de alguns incentivos à sua reparação, como sucedeu em 1649. Nesta década fala-se apenas de quatro engenhos, destes dois foram construídos em 1650. Daí derivaram, enormes dificuldades em conseguir moer a cana por falta de engenhos suficientes. No Funchal o de André de Betancor há três anos que não funcionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em que se encontrava. Ademais, do abandono dos engenhos registava-se o das levadas como sucedia com a do Pico do Cardo e Castelejo em S. Martinho que há trinta anos não era tirada. Para repor a cultura a coroa preparou um plano de recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção do pagamento do quinto por cinco anos. Estes concentravam-se no Funchal e Câmara de Lobos, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores das partes da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava.

O aumento da cana para a moenda e a inexistência nos engenhos tradicionais levou a uma situação de ruptura na sua laboração. Perante isto colocou-se a necessidade de modernização do parque industrial, uma custosa que, por isso mesmo, teve algumas dificuldades em ser concretizada. As iniciativas de modernização, como sucedeu com a Companhia Fabril do açúcar(1868), foram o principal empenho dos industriais madeirenses.

O ENGENHO NA ÉPOCA DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL . Os séculos XIX e XX marcam o momento da grande inovação tecnológica dos engenhos e da forma de fabrico do açúcar. A revolução industrial foi provocada pela abolição da escravatura e pela crise que atingiu o mercado internacional do açúcar a partir de 1880.

O uso de máquina a vapor teve lugar em Jamaica em 1768 mas foi só a partir de meados do século XIX que a mesma se generalizou. Esta inovação técnica é favorecida pela concentração destas estruturas industriais, resultado de uma política governamental que tem na década de vinte da presente centúria a sua máxima expressão. No Brasil deu origem aos chamados engenhos centrais, enquanto na Madeira foi o princípio da total afirmação do engenho Hinton.

Durante o século XVIII e até princípios da centúria seguinte existiu apenas um engenho em funcionamento à Ribeira dos Socorridos. A partir da década de cinquenta o panorama é distinto e a cana volta de novo a ocupar um lugar de

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destaque, ocupando 1/2 da superfície cultivada em 1850. Deste modo aumenta o número de engenhos, sendo referenciado em 1851 quatro fábricas de refinação de açúcar, quatro engenhos de moer cana e três fábricas de aguardente. Em Câmara de Lobos a cultura teve grande incremento uma vez que são referenciados três novos engenhos em 1854. Esta situação alastrou a toda a ilha e levou a promoção de novos engenhos ou à reactivação de antigos, uma vez que em 1856 temos já 80 e 10 fábricas de destilar aguardente. Aqui há que distinguir as fábricas de moer cana e os engenhos para fabrico de açúcar e destilação de aguardente. Os engenhos de moer apresentavam duas rodas na disposição horizontal, enquanto os movidos por bois tinham estas na posição vertical.

De acordo com D. João da Câmara Leme o avanço da cultura na ilha só será possível com "a fundação de fábricas com os apparelhos modernos e aperfeiçoados". Enquadrava-se neste espírito a Companhia Fabril de Açúcar Madeirense criada em 1866 e inaugurada em 1873, que se saldou num verdadeiro fracasso e motivo de acesa polémica. Por outro lado é de salientar as iniciativas tecnológicas do próprio D. João da Câmara Leme que em 1875 apresentou o seu novo invento de aproveitamento do açúcar que fica no bagaço nomeadamente usado por W. Hinton. As inovações introduzidas por este último ocorreram após a licença de 1872 para a construção de uma fábrica de extracção e cristalização de açúcar.

A política de proteccionismo e favorecimento do engenho do Torreão afastou todos os demais desta industria, levando a sua maioria ao encerramento. Em 1934 um decreto estabelece claramente essa situação: proibiu-se a construção de mais engenhos até 1953 e os demais existentes não podiam laborar açúcar, actividade exclusiva do engenho do Torreão, apenas são autorizados os melhoramentos. Pior foi o que sucedeu em 1954 com o decreto que determina a concentração de todos os fabricantes de aguardente em apenas três fábricas. Os engenhos do norte ficaram reunidos na companhia dos engenhos do norte com sede no Porto da Cruz.

O PREÇO DO ENGENHO. O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. De acordo com a avaliação, para inventário, do engenho de António Teixeira no Porto da Cruz em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em duzentos mil reais. Noutro documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam os 461.000 reais. Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na Ribeira dos Socorridos foi avaliado em 500.000 rs e no ano imediato o engenho de Baltasar Varela de Lira foi vendido por 422.000 rs. O primeiro deverá ser o mesmo que em 1780

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pertencia a D. Madalena Guiomar de Sá Vilhena, que o arrendou ao capitão Francisco Esmeraldo Betencourt por 10.000 réis ano.

Para os séculos XIX e XX a construção de um engenho para fabrico de açúcar, de acordo com as inovações tecnológicas, era uma aposta impossível para qualquer industrial caso não fossem garantidos os financiamentos e apoios governamentais. Esta neste caso o favorecimento dado ao engenho do Torreão, que levou ao quase monopólio da sua laboração. Daqui resultou que a maioria apostou em manter a tecnologia tradicional, servindo-se da tracção animal e da força motriz da água.

A situação arcaica das fabricas de moer cana era intolerável perante o incessante aumento da produção, por isso foi necessário a aposta num estabelecimento moderno, capaz de minorar os custos de laboração e de corresponder à oferta de cana. Enquadra-se neste objectivo a novel Companhia de Açúcar Madeirense, criada em 1868.

Por outro lado, tendo em conta a grande dificuldade do fabrico do açúcar e os elevados custos do investimento, denota-se nesta época dois tipos de complexos: para produção de açúcar e destilação de aguardente. Em meados do século a distinção entre a moenda da cana, o fabrico de açúcar e aguardente é claro. A partir de então a tendência foi para a aposta nas fábricas de destilação de aguardente, tendo em conta o atrás referido e o facto da sua procura para o consumo corrente e no processo de vinificação. Destas temos indicações dos custos da sua instalação. Em 1857 Diogo de Ornelas Frazão gastou 14.3000.000 réis na construção de uma fábrica de aguardente no estreito da Calheta e no ano imediato o Conde Carvalhal montou engenho semelhante no Paul do Mar por 8.800.000 réis

De acordo com inventário industrial feito em 1863 é possível fazer uma ideia das infra estruturas existentes e do seu valor:

DATA LOCAL PROPRIETÁRIO VALOR DO EQUIPAMENTO E EDIFÍCIOS

1856 Ponte Nova(Funchal)

Severiano Alberto Ferraz 2.500$000

1856 Torreão(Funchal) W. Hinton 30.000$000

1856 Pico do Funcho (Funchal)

Vitorino Ferreira Nogueira 18.000$000

1859 Ponte Deão (Funchal) Joaquim da Silva 5.760$000

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1858 Santa Cruz Romero Ornelas Frazão 22.400$000

1858 Machico Manuel Antonio Jardim 3.500$000

1858 Machico João Escorcio da Câmara 3.500$000

1858 Porto da Cruz Candido Velosa de Castello Branco 7.000$000

1859 Arco de S. Jorge Mauricio Castelo Branco & Co 850$000

1858 S. Jorge Manuel Fernandes Nóbrega 1.000$000

1858 Ponta Delgada Conde de Carvalhal 3.000$00

1861 Ponta Delgada

Candido Lusitano de França Andrade e António Fernandes Teles

3.000$000

1860 S. Vicente Caetano António de Freitas 1.200$000

1867 Arco da Calheta Diogo de Ornellas Frazão 14.300$000

1858 Paul do Mar Conde de Carvalhal 8.800$000 1853 Ponta de Sol Nuno Freitas Pestana 920$000

1855 Canhas Luiz de Bettencourt Esmeraldo 1.000$000

1858 Madalena Freitas abreu & Cº 11.000$000 1853 Ribeira Brava José Maria Barreto 7.200$000

1854 Câmara de Lobos

Tiburcio justino Henriques 4.500$000

1857 Câmara de Lobos JoãoFigueiredo Quintal 1.900$000

1858 Câmara de Lobos Joaquim Figueira 6 Cº 2.900$000

1847 Câmara de Lobos

Manuel martins e João da Silva 1.800$000

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O ENGENHO E A PRODUÇÃO. Os valores de produção dos engenhos insulares são muito distintos dos americanos. Para a Madeira em finais do século XV são referenciados apenas 12 engenhos para um total de 233 proprietários de canaviais. Estes situam-se todos nas partes do Fundo, não havendo qualquer referência para os que funcionavam na área do Caniço a Câmara de Lobos.

Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de notar que estes proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo caso de lavradores com valores superiores que não são proprietários de engenho. Note-se, ainda, que Fernão Lopes apresentava mais 2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século XVI estes valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1478 arrobas. Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o desfasamento entre ambos os grupos. Deste modo a distinção entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara. Note-se que neste grupo surgem seis com valores superiores a 1000 arrobas.

Por outro lado é de salientar que grandes proprietários de canaviais não são sinónimo de engenho. No caso do século dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declara apenas 70 arrobas de açúcar no Funchal. Deste modo podemos afirmar que estamos perante duas realidades distintas que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva em torno da cana de açúcar.

No decurso do século dezanove é cada vez mais evidente esta dissociação do engenho dos canaviais. em 1863 temos indicação dos preços de pagamento da moenda da cana e destilação da garapa: por 30 kg de cana pagava-se entre 70 a 90 réis e na destilação de 17 litros de garapa de 100 a 110 réis. Aqui a média de laboração dos engenhos nos quatro meses da safra era em média de 7917241 kg de cana, produzindo-se 117.600 kg.

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4. ESCRAVO COM E SEM AÇÚCAR. As ilhas apresentavam um ecossistema particular que conduziu o homem a um

relacionamento particular no sentido da sua exploração e aproveitamento. A Madeira, mercê da configuração geográfica,

foi definida por uma paisagem agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento

das áreas agrícolas (poios), única forma de aproveitamento do solo arável disponível, e a sua ampla disseminação na

vertente sul e norte, condicionaram o sistema de arroteamento e de posse de terras. As grandes e iniciais concessões de

terreno foram-se dividindo de acordo com o progresso da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração

extensiva deu lugar ao aproveitamento intensivo do solo, baseado nos inúmeros poios construídos pelos proprietários,

arrendatários ou meeiros. Deste modo é difícil, senão impossível, definir a grande propriedade de canaviais, se nos

situarmos ao mesmo nível do mundo americano.

No caso americano os canaviais avançaram a partir do engenho e estão, quase sempre, ligados indissociavelmente. Isto

não sucede na Madeira. Aqui, são muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Outra peculiaridade

da Madeira é a concentração dos engenhos em áreas de maior facilidade de contactos com o exterior, nomeadamente no

Funchal, o que nem sempre correspondia às de maior importância no cultivo dos canaviais. Esta diferente estrutura da

faina açucareira condicionou outro posicionamento do escravo.

Ainda, na exploração agrícola insular torna-se necessário distinguir dois grupos de proprietários: aqueles que haviam

entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse da terra marcou de

modo evidente a actividade agrícola e favoreceu na Madeira o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir

do século XVI. Por outro lado, a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência de um engenho para a

transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos. Por tudo isto, a posição dos escravos na estrutura

agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com esta dinâmica do sistema de propriedade na ilha. Se é certo

que na exploração directa ou no arrendamento se estabelece uma posição clara para o escravo, o mesmo não se poderá

dizer com o contrato de colonia. É o proprietário quem estabelece a forma de intervenção do escravo na sociedade e

economia e, como tal, adquire uma posição chave na definição e expressão da escravatura. Nos registos paroquiais, ao

nome do escravo e origem étnica, associa-se sempre o nome do proprietário. A distribuição geográfica destes adequa-se à

mancha da expressão da escravatura no arquipélago madeirense. Assim, a capitania do Funchal tem a supremacia com

86% dos proprietários e 87% dos escravos, adquirindo maior expressão no século XVI. No global da circunscrição definida

pela capitania do Funchal, temos, mais uma vez, o recinto do Funchal numa posição cimeira com 74% do número de

proprietários. A par disso a cidade, com as duas freguesias principais de que existe documentação - Sé e São Pedro -

apresentam 64% do número de proprietários, distribuindo-se os restantes pelas outras da capitania do Funchal (23%),

Machico (11%) e Porto Santo (2%). Esta elevada concentração dos escravos no espaço urbano revela, mais uma vez, que

estamos perante uma escravatura essencialmente doméstica, com pouca ou nenhuma relação com a vida rural.

Quando estabelecemos uma comparação entre o número de proprietários de escravos e o de canaviais verificamos que em

todas as áreas o primeiro grupo é superior ao segundo. Este facto poderá ser considerado um indicativo seguro de que

nem todos os proprietários de escravos se dedicavam à safra açucareira e que nem todos os escravos existiam para isso. A

diferença entre os dois grupos é mais acentuada no Funchal, onde o número de proprietários de escravos é três vezes

superior ao de canaviais. Nas "Partes do Fundo" ela não ultrapassa o dobro, no século XVI, e nas comarcas da Calheta,

Ponta do Sol e capitania de Machico apresentava valor inferior.

A mesma situação surge quando cruzamos o número de escravos com o dos proprietários de canaviais e engenhos de

açúcar. No século XV esta proporção é diminuta, na centúria seguinte, excepto em Ponta do Sol e Machico, atinge valores

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elevados, sendo a média no Funchal de dez escravos por proprietário, quatro na Ribeira Brava e três na Calheta. Estes

valores estão muito aquém da média estabelecida para as Antilhas e Brasil. Será isto demonstrativo de que não é tão

evidente na Madeira a relação entre o escravo e o açúcar?

A mesma conclusão é possível quando comparamos os escravos com o número de engenhos na ilha. Enquanto nas

Antilhas e América do Sul o valor por engenho oscila entre os 800 e 100, aqui, no global, não ultrapassaria os 30, sendo a

média mais elevada no Funchal (com 77 escravos) e Ribeira Brava (com 24 escravos). É de salientar, ainda, que, no total de

46 proprietários de engenhos dezasseis são do Funchal. Os dados disponibilizados pela investigação levam-nos a concluir

o seguinte: num total 502 produtores de açúcar apenas 78 (16%) são possuidores de escravos. Para o século dezassete é

maior o número (39%) de proprietários de canaviais com escravos, mas aumenta sem existir qualquer relação de causa e

efeito entre ambas as realidades. A comparação do número de escravos destes com o número de arrobas de açúcar dos

canaviais apresenta, igualmente, valores dispares, pelo que estaremos perante uma prova evidente da intervenção do

trabalho livre: a média do século dezasseis oscila entre 10 e 1329,5 arrobas por escravo. Por outro lado os proprietários

com maior número de escravos, como Francisco Betencor, Pedro Gonçalves e António Correia, não são, de modo algum,

os maiores produtores de açúcar. Apenas João Esmeraldo, Simão Acioli e João Rodrigues Castelhano se apresentam como

excepção.

Outro dos aspectos definidores da escravatura resulta do número de escravos disponíveis para cada proprietário.

Também aqui a Madeira afasta-se do Novo Mundo. Não encontrámos proprietários com duzentos ou mais escravos. O

número mais elevado destes não ultrapassava os 14 apresentados por João Esmeraldo na fazenda da Lombada da Ponta

do Sol. Na maioria (63%) os valores ficam-se por 5 escravos, por isso, tendo em conta o mínimo de mão-de-obra

imprescindível para a laboração de um engenho, seremos obrigados a afirmar que a grande força de trabalho que

animava os engenhos não era escrava, mas sim livre. O máximo que conseguimos reunir foi de vinte escravos de Ayres de

Ornelas e Vasconcelos (1556-1587),mas para pai e filho. Na Madeira a tendência era para a existência de um reduzido

número de escravos por proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não

ultrapassa os 11%. O grupo daqueles que possuem mais de dez escravos não suplanta os 2%. Estes destacados

proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto das duas freguesias e comarca.

O perfil deste proprietário de escravos define-se pelo reduzido número, pois 89% possuem entre um e cinco escravos.

Não havia lugar para uma excessiva valorização da sua força de trabalho, no campo e cidade. A dimensão das oficinas e

das arroteias não o permitia. Isto torna-se mais evidente quando estabelecemos uma relação entre o escravo e o

património do proprietário. De acordo com os dados disponíveis, apenas, foi possível estabelece-la para dez proprietários.

Eles situam-se, maioritariamente, no século XVII pelo que as fazendas são dominadas pelas vinhas. Apenas com João

Rodrigues Mondragão está expressa a trilogia rural madeirense. Nas suas fazendas era possível ver-se searas, vinhas e

canaviais. A tudo isto acresce o facto de haver por parte do proprietário rural pouco empenho em aumentar o

investimento em mão-de-obra escrava. Ele nunca ultrapassa os 5% do valor total do capital. Esta situação contrasta mais

uma vez com o sucedido do outro lado do Atlântico, onde sobe até os 28%. Caso existisse uma relação directa entre a

presença do escravo e as tarefas agrícolas era natural que o proprietário procura-se desviar parte do seu investimento de

capital para a aquisição deles. Ao nível do valor do capital investido pelos proprietários madeirenses na mão-de-obra

escrava também se verifica uma disparidade em relação ao que sucede no continente americano. Na Madeira o valor

oscilava entre os 2 e os 5%, enquanto, do outro lado do Atlântico a percentagem poderia atingir os 28%. A par disso, se

enquadrarmos os escravos na estrutura fundiária dos proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do

açúcar: em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas 9 são possuidores de canaviais. Os

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restantes, na sua maioria, detêm searas e vinhedos. Depois nos signatários de canaviais merece apenas referência

Bartolomeu Machado, no Funchal, com 10 escravos.

O escravo aparece ligado à cultura dos canaviais mas sem atingir a mesma proporção de S. Tomé ou do Brasil: em 1496 a

coroa dava conta da simbiose ao estabelecer a proibição de venda, por dívidas, de bens de raiz "nem escravos nem

espravas", animais e aparelhos de engenho, permitindo apenas a troca nas "novidades" arrecadadas. Noutro documento

de 1502, acerca das águas de regadio, o monarca refere que era hábito os proprietários mandarem "os espravos e homes

de soldada que tem de reger seus canaveaes". À ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também se

pode atestar a presença dele nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho.

A estes testemunhos, denunciadores da participação do escravo, como serventes, na cultura e fabrico do açúcar também

se poderão juntar outros que demonstram terem eles actuado na qualidade de oficiais de engenho: primeiro tivemos os

escravos canários que se apresentaram na ilha como exímios mestres de açúcar, como se poderá verificar pela cautela

posta em 1490 e 1505, quanto à sua expulsão. Desta época há apenas notícia de dois escravos que foram mestres de

engenho, e não sabemos se eram ou não guanches: em 1486 Rodrigo Anes, o Coxo, da Ponta do Sol, estabeleceu em

testamento a alforria de Fernando, mestre de engenho, e em 1500 no testamento de João Vaz, escudeiro, refere-se um

escravo seu, Gomes Jesus, como mestre de açúcar. Mais tarde, em 1605, é Jorge Rodrigues, homem baço, forro, quem

reclama de Pedro Agrela de Ornelas três mil réis de serviço que fizera no seu engenho em 1604. Em 1601 Jean Moquet dá

conta de que os escravos tinham uma activa intervenção na faina dos engenhos, uma vez que o mesmo terá visto um

"grand nombre d'esclaves noirs qui travaillent aux sucres dehors la ville".

Certamente que a única particularidade do serviço dos escravos nos engenhos madeirenses residia no facto de eles

trabalharem de parceria com homens livres ou libertos, destacando-se aqui os trabalhadores de soldada: em 1578 António

Rodrigues, trabalhador, declara em testamento que havia trabalhado sob as ordens de Manuel Rodrigues, feitor do

engenho de D. Maria.

O panorama da geografia açucareira na segunda metade do século XIX é distinto. A abolição da escravatura provocou

uma transformação da estrutura social e conduziu inevitavelmente a inovações técnicas. O fim da escravatura conduziu a

uma desenfreada busca de mão de obra livre através de contratos, sendo os novos colonos recrutados entre os chineses,

indianos e madeirenses. O sistema e forma decorrente não estão longe da escravatura, razão porque ficou conhecido na

imprensa madeirense da época com "escravatura branca". Este sistema vigorou até 1927. Neste momento o grande suporte

da estrutura produtiva madeirense que deu suporte à nova vaga dos canaviais é o contrato de colonia, responsável nos

séculos anteriores pelo total parcelamento do solo em minúsculos poios.

5. OS PREÇOS Do açúcar. Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do açúcar no mercado insular porque

não existem núcleos documentais que permitam a reconstituição de séries. Os dados disponíveis são avulsos e

desconexos. Se no caso da Madeira foi possível reunir o maior número de informações para a década de trinta do século

XVI. Além disso dever-se-ão juntar outras condicionantes que influem de forma decisiva nos preços. Em primeiro lugar

está a falta crónica de moeda e o recurso ao açúcar como meio de troca, a que se associa nos séculos XV e XVI a sua

insistente desvalorização.

É necessário ter ainda em conta que a lei da oferta e da procura condicionava de forma evidente a evolução do preço do

açúcar ao longo do ano. Deste modo, é de notar uma variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da

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presença de embarcações interessadas no seu trato. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam nos meses de Junho

e Julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açúcar do ano e, por isso, a afluência de

mercadores era maior. A par disso é de notar outras variações sazonais no próprio mês de acordo, como é óbvio, com a lei

da oferta e da procura.

O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. O último preço correspondia em

1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em conta, que em 15 000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10

000 na segunda, nota-se uma forte valorização do produto final. Esta insistência no açúcar de segunda cozedura é

considerada uma condição necessária para a valorização do produto, impedindo que chegue ao mercado europeu em más

condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia para metade a oferta do açúcar, o que favorecia a

competitividade do produto numa altura que o mercado se pautava por excedentes.

A partir da década de setenta o preço do açúcar entra em quebra acentuada. Esta ideia está testemunhada nas

intervenções do senhorio a partir de 1469 que insiste na solução do monopólio para o seu comércio. A negação dos

madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a avançar com novas medidas. Assim em 1496 fixa os preços

em 350 réis para o açúcar da primeira cozedura e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota

máxima de exportação que se cifrava em 120.000 arrobas. Os dados disponíveis revelam este movimento de quebra do

açúcar. O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2000 réis arroba. Já em 1469 o seu preço estava em 500 arrobas

para o de uma cozedura e 750 para o de duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para 1000 réis a arroba, mas esta deverá

ser uma situação particular resultante da quebra acentuada da moeda, pois que em 1478 regressou à normalidade. O

movimento de queda foi uma constante até princípios do século XVI e só a revolução dos preços inverteu a situação.

Todavia é evidente uma inversão de marcha a partir da década de trinta que pode ser entendida com a presença

concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano.

Para o segundo período, que começa na centúria oitocentista, os preços do açúcar articulam-se directamente com a

evolução dos níveis de produção da ilha, das facilidades ou proteccionismos sacarino e da conjuntura do instável

mercado mundial. De acordo com os dados disponíveis para 1884 evidenciam a disparidade de preços entre o açúcar

madeirense e brasileiro e inglês:

Preços do açúcar

Origem branco mascavado

Pernambuco 2000 1300

Baía 1600 1100

Inglês 1650 1250

MADEIRA 3350 2600

Para esta fase temos valores sobre o pagamento da cana de açúcar ao produtor, o que não acontece na primeira fase. Aqui

temos de distinguir a situação que decorre a partir de 1895, em que o preço de pagamento ao agricultor foi estabelecido

por decreto. Assim as fábricas matriculadas estavam obrigadas a adquirir a cana ao preço de 400 a 450 réis por trinta kg,

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tendo como compensação uma redução de 50% no imposto do melaço importado. Até esta data os preços eram

estabelecidos livremente pelas fábricas, de acordo com os graus Beaumé. A concorrência entre a fábrica de S. João, Hinton

e demais levou a uma inflação do seu preço na década de setenta do século XIX, mas a falência da primeira, a tendência

monopolista conduziram inevitavelmente à quebra abrupta do seu preço, o que levou à intervenção das autoridades.

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6. O CONSUMO DO AÇÚCAR. O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em substituição do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Esta conjuntura impôs a nova cultura no espaço atlântico e ditou as regras do seu mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. Neste último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e casca como resultado da solicitação dos veleiros que demandavam o Funchal.

O DISPENDIO DO AÇÚCAR DOS DIREITOS. O açúcar e derivados dele que se produziam na Madeira tinham um consumo variado. Assim a maior e melhor qualidade era canalizada para a exportação aos principais mercados estrangeiros. Do açúcar laborado há que distinguir aquele que pertence aos proprietários de canaviais e engenho e o que é da coroa, por arrecadação do almoxarifado dos quartos ou da Alfândega, resultante dos direitos que oneravam a produção (quarto/quinto/oitavo) e saída na Alfândega (dízima). Enquanto a cobrança deste último era feita directamente nas alfândegas do Funchal e Santa Cruz, o primeiro poderia ser recolhido pela estrutura institucional criada para o efeito - o almoxarifado dos quartos (1485-1522) - ou a cargo da anterior. Ainda, nesta situação poderia suceder a sua arrecadação por contratadores, maioritariamente estrangeiros, que oscilava entre as 18.507 e 31.876 arrobas entre 1497 e 1506

Este açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. Pereira, era gasto em despesas ordinárias, na carregação directa e nas vendas feitas aos mercadores e/ou sociedades comerciais. Na primeira despesa estavam incluídos, a redízima dos capitães, os gastos pessoais do monarca, da Casa Real, as esmolas, para além das despesas com os soldos dos funcionários, do transporte e embalagem do açúcar. Esta despesa variou entre as 1.070 e 2.114 arrobas, sendo a média anual no período de 1501 a 1537 de 1622 arrobas. No caso das esmolas é de realçar as que se faziam às Misericórdias - Funchal (1512), Ponta Delgada em S. Miguel (1515), Todos os Santos em Lisboa (1506 -, Conventos - Santa Maria de Guadalupe (1485), Jesus de Aveiro (1502), Conceição de Évora. A par disso também se regista a utilização temporária destes lucros arrecadados pela Coroa no custeamento das despesas com os socorros às praças africanas ou no provimento das armadas. A contrapartida estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel I, que em muito contribuiu para o enriquecimento do património artístico da Madeira.

AS CONSERVAS E DOÇARIA. Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria.

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São vários os testamentos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Em meados do século quinze Cadamosto refere a feitura de "muitos doces brancos perfeitíssimos", enquanto em 1567 Pompeo Arditi dá conta da "conserva de açúcar" que se fazia no Funchal "de óptima qualidade e muita abundância". E, esta tradição perpetuou-se na ilha para além do fulgor da produção açucareira local pois, segundo Hans Sloane em 1687, o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos após John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos que se exportava para França. Tal como se deduz de um documento de 1469 o fabrico de conservas era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava "molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam...". Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico de conservas, frutas seca e marmelada. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas de açúcar de vários tipos, sendo na sua maioria para consumo dos proprietários do referido açúcar.

A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o seu expoente máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. Segundo Gaspar Frutuoso compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio todo feito de assucar, e os cardiais todos feitos de alfenim, dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem". São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra que se exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol, Ribeira Brava, Machico e Camara de Lobos(Ribeira dos Socorridos), quase desaparecendo em finais do século XVIII e arrastando inevitavelmente esta industria para o seu fim.

Um dos factores de promoção desta indústria ao nível das conservas foi a importância assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos para a sua dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. D. Manuel foi o seu consumidor preferencial e aquele que divulgou as suas qualidades na Europa. Assim ficaram como o seu principal presente, dentro e fora do reino, sendo o seu exemplo seguido por Vasco da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha. No período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em

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conservas e frutas secas. A par disso o rei havia estabelecido a partir de 1520 o envio anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres.

Esta indústria manteve-se por todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso sabe-se que em 1680 foram importadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio muito grande porque há anno que se carregão com aquella terra mais de 20 embarcações de hu so doce para o qual he necesareo comprar assucar da terra ou mandalo vir do Brasil". A correspondência de William Bolton refere-nos que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França.

Parte significativa desse movimento comercial pode ser reconstituída através da correspondência comercial de dois mercadores: Diogo Fernandes Branco(1649-1652), William Bolton (1696-1715) e Duarte Sodré Pereira(1710-1712).

Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a correspondência é evidente a importância assumida pelo dito comércio. Assim em 1649, não obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos navios do Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a encomenda. Esta conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. Esta situação continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses. No ano imediato inverteu-se a situação: a casca abundou e em Outubro ainda tardavam em chegar os navios para a levar ao seu destino, o que era motivo para preocupação.

A correspondência de William Bolton refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França.

Duarte Sodré Pereira surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio deste produto. A sua actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão.

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No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas tão boas". Num breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação, Misericórdia do Funchal, e Recolhimento do Bom Jesus, constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce. Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34 arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de 1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas de mel.

Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação no período de 1671 a 1693. Aí, de acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria, que consistia em coscorões, batatada, talhadas, queijadas, arroz-doce e bolos. No caso deste convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças, Páscoa, Espírito Santo, Nª Sra. Encarnação e do Carmo, Natal. Nesta última festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas.

Extintos os conventos quase que também desapareceu a tradição da doçaria. Hoje, o único testemunho que resta dessa importante industria do doce madeirense é o bolo de mel. O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das festas do espírito Santo na ilha Terceira, único local onde ainda persiste esta tradição.

Um novo produto: O álcool e a aguardente. O açúcar é de todos os produtos resultantes da garapa aquele que requere um mais demorado período de laboração e uma requintada e custosa tecnologia. Mais fácil se torna a extracção do mel e aguardente. Neste sentido, o regresso da cana no século XIX fez-se mais por esta aposta na necessária produção de aguardente, tão necessária para a industria vitivinícola, não obstante as medidas impostas no sentido de uma produção equilibrada de aguardente, álcool e açúcar. O tratamento do vinho para exportação fazia-se no início com aguardentes de fora, depois queimaram-

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se os vinhos de inferior qualidade, a que se seguiu o recurso a aguardente de cana. Note-se que em 1865 os quatro engenhos em laboração são usados apenas para o fabrico de aguardente.

Esta abundância de aguardente levou ao consumo desusado, provocando graves problemas sanitários na ilha pelo que as autoridades foram obrigadas a intervir para o seu controle, procurando retirar-lhe o epíteto de ilha da aguardente. Foi essa a função do decreto de 11 de Março de 1911 que procurou estabelecer um travão, com a expropriação das fábricas de aguardente não matriculadas. Todavia, a quebra dos compromissos deste decreto levou a que as fábricas de aguardente se mantivessem. A machadada final nas fábricas de aguardente foi dada em 1928 com a criação da Companhia da Aguardente da Madeira, que detêm o contrato exclusivo de produção de aguardente por vinte e cinco anos. Esta medida, saudada por muitos, que tinha como objectivo reduzir o consumo da aguardente, conduziu inevitavelmente ao encerramento das fábricas de aguardente.

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7. O COMÉRCIO ATLÂNTICO. O desenvolvimento sócio-económico do mundo insular articula-se de modo directo, com

as solicitações de economia euro-atlântica: primeiro região periférica do centro de negócios europeus, ajustaram o seu

desenvolvimento económico às necessidades do mercado europeu e às carências alimentares europeias, depois, mercado

consumidor das manufacturas de produção continental em condições vantajosas de troca para o velho continente e,

finalmente, intervêm como intermediário nas ligações entre o Novo e Velho Mundo. Note-se que a partir de princípios do

século XVI, 0 Mediterrâneo Atlântico define-se como centro de contacto e apoio ao comércio africano, Índico e americano.

A tudo isto acresce que os interesses da burguesia e aristocracia dirigente peninsular entrecruzam-se no processo de

ocupação e valorização económica das novas sociedades e economias insulares. Esta componente peninsular é reforçada

com a participação da burguesia mediterrânica, atraída por novos mercados e pela fácil e rápida expansão dos seus

negócios. Por isso, um grupo de italianos, mais ou menos ligados às grandes sociedades comerciais mediterrânicas,

participa activamente no processo de reconhecimento, conquista e ocupação do novo espaço atlântico. Com efeito, eles

interessaram-se pela conquista do arquipélago canário, expedições portuguesas de exploração geográfica e o comércio ao

longo da costa ocidental africana. A sua penetração no mundo insular ficou assim facilitada o que os levou a alcançar uma

posição muito importante na sociedade e economia insulares. O investimento de capital de origem mercantil, nacional ou

estrangeiro surgiu apenas numa óptica da nova economia, afirmando-se como gerador de novas riquezas adequadas a

um aproveitamento comercial. Assim, o comércio foi o denominador comum para os produtos a introduzir, sendo

valorizados aqueles activadores da nova economia de mercado. Aqui, a cana de açúcar e o cobiçado produto final, o

açúcar, detém uma posição cimeira.

A Madeira foi no começo o mais importante entreposto. Os descobrimentos aliam-se ao comércio e, por isso, desde

meados do século XV, manteve-se um trato assíduo com o reino, activado com as madeiras, urzela, trigo e, depois, com o

açúcar e o vinho. Este movimento alargou-se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o aparecimento de estrangeiros

interessados no comércio do açúcar. Aliás, o mesmo produto contribuiu para o arranque decisivo da economia

madeirense, e para a consequente inserção na economia europeia. O acelerado ritmo de crescimento da ilha condicionou a

atracção de diversas correntes migratórias. Tal situação é definida em 1508 pelo monarca D. Manuel ao justificar a

elevação do Funchal a cidade: "teem creçido em mui gramde povoraçam e como nella vivem muytos fidalgos cavaleyros e

pessoaes homrradas e de gramdes fazendas pollas quaaes e pello grande trauto da dyta ylha...". Esta piccola lixbona,

segundo, Torriani inseria-se de modo evidente na economia europeia atlântica, participando do trato com o Velho e o

Novo Mundo, servindo de entreposto. Na Madeira ele assumiu uma posição dominante na produção e comércio entre

1450 e 1550, enquanto que nas restantes praças surge apenas em princípios do século XVI, tendo assumido idêntica

posição na década de trinta.

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O COMÉRCIO . O comércio do açúcar destaca-se no mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o principal

animador das trocas com o mercado europeu. Durante mais de um século a riqueza das gentes da ilha e o fornecimento

de bens alimentares e artefactos dependeu do comércio do produto. O mesmo sucedeu nas Canárias, a partir do século

XVI. Todavia, neste período a sua venda e valor sofreram diversas oscilações, mercê da conjuntura do mercado

consumidor e da concorrência dos mercados insulares e americanos.

AS FORMAS DE TROCA . O dispendio do açúcar do lavrador fazia-se de uma forma diversificada. As vendas directas

aos mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas de produtos e serviços. Os

livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos direitos em jogo, contabilizam o modo como os lavradores

despendiam o seu açúcar. A partir daqui poderá saber-se quem eram os principais compradores, como testemunhar do

seu uso no pagamento de serviços. Apenas na primeira metade do século dezassete é possível estabelecer com clareza

essa forma de dispêndio do açúcar conseguido por proprietários de canaviais e engenhos. No global tivemos cerca de

81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores. A tendência é para a disseminação pelos pequenos compradores,

acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam dominado o comércio na época de

apogeu.

O lavrador e o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da sua safra para o pagamento da mão de

obra assalariada que necessitavam. Por fim, registe-se que esta distribuição diversificadora dos lucros acumulados por

proprietários de canaviais e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no

século dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitectónico.

ROTAS E MERCADOS. O açúcar foi, durante mais de um século, o principal activador das trocas da Madeira com o

exterior. As dificuldades sentidas com a penetração no mercado europeu levaram a coroa a intervir no sentido de manter

um comércio controlado, que a partir de 1469 passou a ser feito sob o permanente olhar do senhorio e coroa. A situação

manteve-se até 1508, altura em que a coroa aboliu o regime de contrato. A partir de uma das medidas tomadas pela coroa

(o contingentamento de 1498) para defesa do mercado do açúcar madeirense poder-se-á fazer uma ideia dos principais

mercados consumidores. As praças do mar do norte dominavam o comércio, recebendo mais de metade das escápulas

estabelecidas: aqui a Flandres adquire uma posição dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço

mediterrânico. Se compararmos estas escápulas com o açúcar consignado às diversas praças europeias no período de 1490

e 1550, verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade. As únicas diferenças relevantes surgem nas Praças

da Turquia, França e Itália, sendo de salientar na última um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da

actuação das cidades italianas como centros de redistribuição no mercado levantino e francês.

Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira evidenciam a constância dos mercados flamengo e italiano.

O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do Castelo surge em terceiro lugar com apenas 10%. Observe-se que o

porto de Viana do Castelo adquiriu, desde 1511, grande importância neste circuito e daí com Espanha e Europa nórdica.

Aliás, no período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado nas exportações de açúcar, mantendo,

todavia, uma posição inferior à 1490-1550. Esta função redistribuidora dos portos a norte do Douro ficara, já evidenciada

entre 1535 e 1550, pois das cinquenta e seis embarcações entradas no porto de Antuérpia com açúcar da Madeira,

dezasseis são do norte e apenas uma de Lisboa. Na primeira 50% são provenientes de Vila do Conde, 31% do Porto e 19%

de Viana do Castelo. Em 1505 o monarca considerava que os naturais desta região tinham muito proveito no comércio do

açúcar da ilha. Em 1538 este trato era assegurado por um numeroso grupo de grupos de mercadores daí oriundos. O

mesmo sucede nas trocas com o mundo mediterrânico onde se contava com os entrepostos de Cádiz e Barcelona. Estas

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cidades surgem no período de 1493 a 1537 com os portos de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e

Águas Mortas.

Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550, testemunham esta realidade: a Flandres surge com 39% e a Itália

com 52%. Todavia, é de salientar a posição dominante dos mercadores italianos na condução deste açúcar, uma vez que

eles foram responsáveis pela saída de 78% do açúcar. Note-se que no início foram inúmeras as dificuldades para a

presença de estrangeiros. Somente a partir da década de oitenta do século XV surgiram os primeiros como vizinhos, que

se comprometeram com a cultura e comércio do açúcar. Para a segunda metade do século dezasseis escasseiam os dados

sobre o comércio do açúcar madeirense. Somente entre 1581 e 1587 temos nova informação. Neste período a ilha exportou

199.300 arrobas de açúcar para o estrangeiro e 4830 para o porto de Viana do Castelo.

A partir de princípios do século XVI o comércio do açúcar diversifica-se. A Madeira que na centúria de quatrocentos

surgira como o único mercado de produção, debater-se-á, a partir de finais desse século, com a concorrência do açúcar

das Canárias, de Berberia, de S. Tomé e, mais tarde, do Brasil e das Antilhas. Esta múltipla possibilidades de escolha, por

parte dos mercadores e compradores, condicionou a evolução do comércio açucareiro. Todavia, o açúcar madeirense

manteve uma situação preferencial no mercado europeu (Florença, Anvers, Ruão), sendo o mais caro. Talvez, devido a

este favoritismo encontramos com frequência referências à escala na Madeira de embarcações que faziam o seu comércio

com as Canárias, Berbéria e S. Tomé. Esta situação deveria, de igual modo, explicar a venda de açúcar madeirense em

Tenerife, no ano de 1505.

O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte pelas ilhas e litoral do

Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran Canaria e La Palma. Assim, na década de 30 os

navios normandos ocupados neste comércio dirigiam-se preferencialmente a esta área. Convém anotar que a maioria das

embarcações que rumavam a Marrocos, com escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no

comércio com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas décadas seguintes, não obstante

a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre 1536 e 1550, como o principal fornecedor de açúcar à

Flandres. Todavia, esta posição cimeira da ilha de São Tomé só é patente a partir de 1539.

A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico,

cede lugar a outros (Canárias, S.Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo as rotas desviam-se para novos mercados,

colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a

manutenção da importante industria de conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara

noutras épocas. É aqui que surge o arquipélago vizinho. O comércio canário, baseado nos mesmos produtos que o

madeirense, será um forte concorrente na disputa dos mercados nórdico e mediterrânico. Os produtos dos dois

arquipélagos surgem, lado a lado, nas praças de Londres, Anvers, Ruão e Génova. A única vantagem do madeirense

resultava de ter sido o primeiro a penetrar com o açúcar e o vinho no mercado europeu, ganhando a preferência de

muitos vendedores e consumidores.

A solução possível para debelar a crise da industria açucareira madeirense, desde a segunda metade do século dezasseis,

foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno ou como animador das relações com o mercado europeu. Por

isso os contactos com os portos brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do

Atlântico Sul. Tal como o refere José Gonçalves Salvador as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o

"trampolim para o Brasil e Rio da Prata". É o mesmo quem esclarece que este relacionamento poderia ter lugar de modo

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directo, ou indirecto, sendo este último rumo através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné. Aqui definia-se

um circuito de triangulação, de que são exemplo as actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de

1649 a 1652. Note-se que desde finais do século dezasseis estava documentado o comércio do açúcar, servindo os portos

do Funchal e Angra como entrepostos para a sua saída legal ou de contrabando para a Europa.

Este comercio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa ou por solicitação dos madeirenses, foi alvo de

frequentes limitações. Assim em 1591 ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal, medida que não

produziu qualquer efeito, pois em vereação de 17 de Outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação

plena de tal proibição. Desde 1596 é evidente uma activa intervenção das autoridades locais na defesa do açúcar de

produção local, prova evidente de que se promovia esta cultura. Em Janeiro deste ano os vereadores proibiram António

Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três anos o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía,

sendo obrigado a seguir o seu porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do

município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos

subsequentes até 1611: Brás Fernandes Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o grande e Manuel Pires em

1603, Pero Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel Rodrigues em 1611.

A constante pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos neste comercio veio a permitir uma solução de

consenso para ambas as partes. Assim em 1612 ficou estabelecido um contrato entre os mercadores e o município em que

os primeiros se comprometiam a vender 1/3 do açúcar de terra. Note-se que desde 1603 estava proibida a compra e venda

deste açúcar, sendo os infractores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas a partir de Dezembro

de 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da terra. Deste modo os

vereadores entregaram Domingos Dias nas mãos do alcaide, sob prisão, por ter vendido 50 caixas de açúcar brasileiro aos

ingleses. Em 1620 a transacção do açúcar da terra e do Brasil era feita à razão de 1 por 2, sendo o embarque feito por

licença assinada por dois vereadores e um juiz. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados que,

sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem

autorização da câmara. Em 1657 a proporção de cada açúcar era de metade.

Após a Restauração da independência de Portugal o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações.

Primeiro foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da Companhia para o efeito criada, depois o

estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação. A esta situação, estabelecida em 1649,

ressalva-se o caso particular da Madeira e Açores, que a partir de 1650 passaram a poder enviar, isoladamente dois navios

com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais

tarde, ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar.

Desde meados do século XIX que o açúcar voltou a entrar paulatinamente nas exportações madeirenses. Assim, em 1854

temos referência à saída de 238 kg que passam para 527.883 em 1871.Não existem dados concludentes sobre o comércio

do açúcar da ilha neste período, mas pelas medidas que favoreciam a sua saída (em 1870-1887) sabemos da necessidade

de garantir uma quota de mercado nos Açores e Continente. No primeiro quartel da presente centúria o açúcar de

produção local era excedentário, sendo exportado para Lisboa.

[GRAFICO EXPORT AÇÚCAR 1866-1918]

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Após a segunda guerra mundial a produção do açúcar não foi suficiente para cobrir as carências da ilha, tornando-se

necessária a sua importação.

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8. PROJECÇÃO DOS CANAVIAIS E AÇÚCAR MADEIRENSE NO MUNDO. A Madeira, arquipélago e Ilha, afirmou-se no processo da expansão europeia pela singularidade do seu protagonismo. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças-chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. Além disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto.

À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como "farol" Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.

Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no Atlântico. O rápido desenvolvimento da economia de mercado, em uníssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar continuidade à gesta de reconhecimento do Atlântico, reforçaram a posição da Ilha e fizeram avolumar os serviços prestados pelos madeirenses. Aqui, surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de títulos e benesses pelos serviços prestados no reconhecimento da costa africana, defesa das praças marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e indicas. A par disso a ilha surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi, assim, o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram.

O sistema institucional madeirense apresentava uma estrutura peculiar, definida pelas capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daqui ficou estabelecido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atlântico insular e brasileiro. Sem dúvida que o facto mais significativo desta estrutura institucional deriva de a Madeira ter servido de modelo referencial para o seu delineamento no espaço atlântico. O monarca insiste, nas cartas de doação de capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema traçado para a Madeira. Assim o comprovam idênticas cartas concedidas aos

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novos capitães das ilhas dos Açores e Cabo Verde. O mesmo sucede com a demais estrutura institucional que chegou também a S.Tomé e Brasil.

João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, resumia em 1532 de uma forma perspicaz o protagonismo madeirense no espaço atlântico. Segundo ele a sua família era portadora de uma longa e vasta experiência "porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê...". Isso dava-lhe o alento necessário e abri-lhe perspectivas para uma sua iniciativa no Brasil. Ele reclamava o protagonismo do seu ancestral Rui Gonçalves da Câmara que em 1474 comprara a ilha de S. Miguel, dando início ao seu verdadeiro povoamento. A mesma percepção surge em Gilberto Freire que em 1952 não hesita em afirmar: "A irmã mais velha do Brasil é o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã que se estremou em termos de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens,... concorreram para transformar rápida e solidamente em nova Lusitânia".

Outra componente importante da afirmação da ilha como modelo de referência tem a ver com a organização da sociedade no espaço atlântico e da importância aí assumida pelo escravo. Mais uma vez a Madeira é o ponto de partida para esta transformação social. De acordo com S. Greenfield ela serviu de trampolim entre o "Mediterranean Sugar Production" e a "Plantation Slavery" americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden desde a década de sessenta. Note-se que esta argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos.

Na verdade, tudo o que foi concretizado em termos do mundo atlântico português teve por matriz o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social, politico e económico, o ponto de partida para o "mundo que o português criou..." nos trópicos. Neste contexto é sumamente importante o conhecimento do sucedido na Madeira quando pretendemos estudar e compreender as outras situações. Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da cana de açúcar. Note-se que esta cultura não lhe era alheia, pois o navegador tem no seu curriculum algumas actividades ligadas ao comércio do açúcar na Madeira. Note-se que o navegador, antes da sua relação afectiva ao arquipélago, foi, a exemplo de muitos genoveses mercador do açúcar madeirense. Em 1478 ele encontrava-se no Funchal ao serviço de Paolo di Negro para conduzir a Génova 2400 arrobas a Ludovico Centurione. Com esta viagem e, depois da larga estância do navegador na ilha, Colombo ficou conhecedor da dinâmica e importância do açúcar da Madeira. Em Janeiro de 1494, aquando da preparação da Segunda Viagem, o navegador sugere aos reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar da Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até a Abril como o melhor

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momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do navegador pelo Funchal no decurso da terceira viagem em Junho de 1498 podemos apontar como muito provável a presença de socas de canas da Madeira na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Note-se que neste momento a cultura dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importante franja de canaviais ao longo da vertente sul.

A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia a cultura encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Note-se que ainda estão por descobrir as razões que conduziram Colombo, no decurso da Terceira viagem, a fazer um desvio na sua rota para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a primeira área do Atlântico onde se cultivou a cana-de-açúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e continente americano. Por isso mesmo o conhecimento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e geografia açucareira dos séculos XV a XVII.

O açúcar da Madeira ganhou fama ao nível do mercado europeu. A sua qualidade diferenciava-o dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. Deste modo o aparecimento de açúcar de outras ilhas ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência desenfreada ganha por aquele que estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço. Um testemunho disso surge-nos com Francisco Pyrard de Lavel: "Não se fale em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé". E refere que no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas que, segundo o mesmo, são vendidas como da Madeira.

O mais significativo desta situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense encontra-se indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de rentabilização e de abertura de novo mercado para o açúcar. Também o íncola foi capaz de agarrar esta opção, tornando-se no obreiro da sua difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos recantos do espaço atlântico e que os técnicos madeirenses foram responsáveis pela sua implantação. O primeiro exemplo encontramos em Rui Gonçalves da Câmara, quando em 1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na sua expedição de posse da sua capitania fez-se acompanhar de canas da sua Lombada, que entretanto vendera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. A estes seguiram-se outros

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que corporizaram diversas tentativas frustradas para fazer vingar a cana de açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira.

Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o governador D. Pedro de Vera quis tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as socas de cana para que aí surgissem os canaviais. Todavia, o mais significativo é a forte presença portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço a economia de mercado. Os portugueses em especial o Madeirense surge com frequência nestas ilhas ligando-se ao processo de arroteamento das terras, como colonos que recebem datas de terras na condição de trabalhadores especializados a soldada, ou de operários especializados que constroem os engenhos e os colocam em movimento.

O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da sua produção, deu-se nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só nesta última, pela disponibilidade de água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste modo em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à plantação de cana do açúcar. Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de "muitos mestres da ilha da Madeira".

A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé aperta o cerco do açúcar madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores madeirenses. Deste modo sucedem-se as queixas junto da coroa, que ficou testemunho em 1527. Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo desenvolvimento desta cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato, remete para uma análise dos interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano, seria tomada uma decisão, que parece nunca ter vindo. Note-se que a exploração fazia-se directamente pela coroa e só a partir de 1529 surgem os particulares interessados nisso.

Enquanto isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arroteamento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os seus obreiros. A coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estruturas necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o primeiro engenho, enquanto em 1555 foi construído pelo madeirense João Velosa um engenho a expensas da fazenda real. Esta aposta da coroa na rentabilização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a condicionar a forja de mão-de-obra

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especializada, que então se fazia na Madeira. Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estão proibidos de ir à terra dos mouros.

Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produção açucareira na ilha, muitos madeirenses são forçados a seguir ao encontro dos canaviais brasileiros. Deste modo em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e proprietários de engenho, pressente-se a presença madeirense. É de salientar que alguns destes madeirenses se tornaram em importantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador de Pernambuco. É a partir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através do trafico ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre os que do outro lado do Atlântico via florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem os seus benefícios. Contra isso intervêm os madeirenses e a coroa proibindo a importação deste açúcar para revenda na ilha. Depois sucederam-se outras medidas do município, proibindo a qualquer dos seus membros a compra de açúcar do Brasil. Todavia, o aparecimento do bicho da cana em 1610 os madeirenses tiveram de se conformar com a entrada do açúcar brasileiro, por isso a edilidade estabeleceu em 1611 um contrato com os mercadores em que estes se comprometem expedir do Funchal uma caixa de açúcar de ilha com outro do Brasil. Situação que nunca foi cumprida, uma vez que em 1620 nas 1178 caixas saídas da alfândega do Funchal temos 23560 arrobas de açúcar do Brasil e 1992 da Madeira.

Perante esta situação a capacidade concorrencial do açúcar insular estava irremediavelmente perdida. Os canaviais foram desaparecendo paulatinamente das terras, dando lugar aos vinhedos. Apenas a conjuntura da segunda metade do século dezanove permitiu o seu retorno. Mas foram efémeras as tentativas para a produção de açúcar, só possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais perderam a sua função de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida favoreceram uma produção alternativa de mel e aguardente. Daqui resulta as actuais sobrevivências da cultura na Madeira e Canárias.

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9. A TRADIÇÃO CULTURAL e O AÇÚCAR. Tal como o enunciámos ao princípio à expansão da cultura da cana-de-açúcar ligam-se tradições culturais europeio-africanas. Na verdade a cana-de-açúcar propiciou o confronto da cultura europeia com a africana, sendo exemplo cabal disso as sociedades geradas em seu torno nas Antilhas e Brasil. Neste último espaço são evidentes os aspectos sincréticos da cultura que veio a dar origem à designação de Afro-brasileira: os estudos de Gilberto Freire e Roger Bastide são bastante expressivos a esse nível. Mas aqui insiste-se nas aportaçöes culturais resultantes do confronto com a população africana, aí conduzida como escrava para a safra do açúcar. Por outro lado insiste-se que a expansão da cultura da cana-de-açúcar propiciou a divulgação de determinadas tradições lúdicas: representações teatrais e festivas. Está neste caso o "tchiloli" nome dado a peça "A Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno", atribuída ao madeirense Baltazar Dias. Esta é uma peça teatral o ciclo carolíngio, muito representada no século XVI, que teria sido levada para S. Tomé pelos plantadores e mestres de engenhos da Madeira. A tradição perpetuou-se e ainda hoje se apresenta o "Tchiloli" para celebrar um acontecimento importante ou um dia santo. Na ilha Terceira persiste na actualidade as afamadas danças do Entrudo, que segundo opinião de alguns estudiosos se filia na tradição do Bumba-meu-boi brasileiro. æ volta disso estabeleceu Luís Fagundes Duarte uma teoria que aponta para a existência de uma tradição lúdica canavieira, que acompanhou o percurso de expansão do açúcar no Atlântico, marcada por representações e danças de carácter dramático com "sabor" vicentino.

A par disso no Brasil algumas das folias que animavam os terreiros do engenho são um misto de tradições europeias e africanas. Destas destaca-se o Bumba-meu-boi e o fadango; a primeira aproxima-se da tradicional tourada, surgindo como forma de exaltação do negro e do boi, elementos fundamentais da safra açucareira; o segundo é um auto popular do ciclo natalício que descreve a luta entre o cristão e o mouro, numa clara alusão ao processo de conquista peninsular. Do lado oposto a estas duas tradições está a Congada, uma dança de senzala, definida pela coroação do rei do Congo. Ela tinha lugar em Maio (dia de são Benedicto) e Outubro (dia de Nossa Senhora do Rosário). Ainda no Brasil a economia açucareira gerou uma dinâmica socio-cultural diversa, que deixou rastros evidentes na literatura: o caso mais evidente é o de José Lins do Rego(1901-1957), que escreveu um conjunto de romances a retratar o ciclo da cana de açúcar: Menino de Engenho(1932), Doidinho(1933), Banguê(1934), o Moleque Ricardo(1935), Usina(1936), Fogo Morto(1943) e Meus Verdes anos(1956). Na Madeira esta vivência não entusiasmou a veia literário dos seus protagonistas e apenas na actualidade o tema despertou o interesse de Horácio Bento de Gouveia, em águas Mansas(1963), e João França em A ilha e o Tempo(1972).

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Por outro lado, é de salientar que A safra açucareira teve também implicações na política de urbanização do espaço rural, condicionando uma forma peculiar de ligação do espaço agrícola -industrial com as estruturas de mando e controle social. A célebre trilogia rural, tão bem definida por Gilberto Freire, teve o seu primeiro aparecimento aqui na Madeira, sendo testemunho actual disso a célebre lombada de João Esmeraldo (Ponta do Sol). Mas outros mais exemplos poderíamos referenciar na ilha que, lamentavelmente, se estão perdendo. Talvez por estas implicações do açúcar se define ao espaço rural, ou por outras razões que desconhecemos, se definiu para o Funchal epítetos pouco expressivos da realidade. Assim a partir da publicação do livro de António Aragão sobre a cidade do Funchal ficou estabelecido que ela era a "primeira cidade construída por Europeus fora a Europa" e dentro da sua malha urbana de uma "cidade do açúcar" e outra do "vinho". Esta aventureira definição não colhe argumentos a seu favor.

O pioneirismo aventureiro desta afirmação com a segurança e afirmações resultantes das pesquisas promovidas nos Açores, Canárias, Brasil e Antilhas, onde ninguém, até hoje, teve a ousadia de avançar com semelhante perspectiva reducionista da realidade arquitectónica e urbana. Todos são unânimes em afirmar a adaptação do modelo europeu às condições geo-humanas dos novos espaços e a forte vinculação às directivas régias e à mão-de-obra especializada da península. O desenvolvimento económico, assente na produção ou comércio de certos produtos surge em todas as áreas, não como factor definidor da traça urbana e arquitectónica, mas sim como meio.

O açúcar, o vinho surgem na Madeira como produtos catalizadores da actividade sócio-económica madeirense e não como princípios geradores das cidades ou do espaço urbanizado. Eles foram apenas os suportes financeiros necessários a este desenvolvimento e embelezamento do espaço urbano. A maioria dos mestres que orientaram a construção do espaço urbanizado são recrutados no reino e enquadram-se nos padrões peninsulares de humanização do espaço. Por outro lado os monarcas intervêm com assiduidade nessa política arquitectónica, enviando regimentos e planos sobre o modo porque se deverá proceder à construção. Tenha-se em atenção as recomendações dadas por D. Manuel para a construção da cerca e muros conforme o sistema delineado em Setúbal. Por outro lado o mesmo monarca ao ordenar em 1485 a construção dos paços do concelho, da igreja, alfândega e praça, pretendia dar ao Funchal uma dimensão peninsular. Terá sido esse espaço urbanizado à custa dos proventos do açúcar que conduziu à errada formulação dos princípios geradores do urbanismo funchalense.

Se tivermos em consideração que a economia açucareira madeirense não assumiu a mesma proporção da brasileira ou mexicana e que nestas últimas áreas não se fala de uma urbanização do açúcar mas sim das implicações sociológicas e

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arquitectónicas deste produto teremos por anacrónica a definição no Funchal de uma cidade do açúcar. Confrontados os estudos sobre a história das cidades das demais ilhas atlânticas e do Novo Mundo, onde a cana-de-açúcar foi dominante, não encontrámos qualquer definição deste tipo para a malha arquitectónica urbana. Tenha-se como exemplo o caso de Canárias onde é evidente também um extremo seguidismo aos cânones peninsulares. Por isso não entendemos a forma despropositada com que se tem defendido a existência no Funchal de uma cidade do açúcar. Mas do açúcar é a única coisa que se poderá dizer é que a imagem do açúcar ficou apenas o registo nas armas da cidade a partir do século XVI, a que se juntou a videira no século dezanove. Não obstante o facto de aquele espaço, que é hoje o centro da cidade, ter sido no século XV uma área de canaviais (o Campo do Duque), as alterações que se produziram a partir da década de oitenta do século XV conduziram à sua adequação aos modelos arquitectónicos peninsulares. É a imposição lançada em 1485 sobre o vinho, surgiu única e exclusivamente com o intuito de criar um fundo municipal para o "nobre cimento" da vila. Com isto não queremos excluir a função relevante dos proventos arrecadados pela economia açucareira na valorização do património urbano, mas apenas referenciar que não houve uma ligação directa entre as duas situações.

Em boa verdade se diga, que o recinto urbano, que emerge a partir da década de sessenta entre as ribeiras de João Gomes e Santa Luzia e, depois, para além desta última, foi o princípio da futura cidade, dominada pelos mercadores do açúcar. As residências de João Esmeraldo, de D. Mécia, do capitão do donatário, bem como os conventos (Encarnação, S. Francisco e Santa Clara) e igrejas (Sé, Capela dos Reis Magos, Madre de Deus e matrizes de Machico, Ponta do Sol, Calheta e Ribeira Brava) foram erguidas e embelezadas artisticamente a partir dos proventos acumulados com a safra do açúcar. Mas uma coisa é o açúcar ser fonte de receita, participadora deste processo e outra é o resultar daí implicações urbanísticas e plásticas. Na verdade a vila que é elevada em 1508 à categoria de cidade deve apenas ser considerada como a cidade dos mercadores de açúcar e nunca a cidade do açúcar.

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NOMENCLATURA DO AÇÚCAR

AÇÚCAR

BATIDO OU RETAME: é o açúcar resultante do cozimento do mel que escorre das formas, que é depois batido

BRANCO: açúcar puro, corresponde à metade do cone do pão de açúcar

CANDIL/CANDE: açúcar refinado, obtido pela cristalização.

MACHO: açúcar bem purgado, tirado da parte de cima das formas

MASCAVADO/MASCAVO: açúcar não refinado, do fundo das formas

PANELA: açúcar resultante da cozedura do mel que escorre das formas, o mesmo que retame

RESCUMA: açúcar feito com a primeira escuma

ALÇAPREMA/ALMANJARA: o mesmo que lagares manuais, usados para espremer o bagaço

AFELO/alféola: doce feito com mel ou açúcar mascavo em ponto grosso de grande viscosidade, o antecedente do actual caramelo

ALFENiM: doce seco feito com açúcar e água, levado ao ponto, com que se fabrica figuras diversas.

CASQUINHA/CASCA: conserva feita de casca fina de limão, lima ou cidra

CONSERVAS: fruta cristalizada em calda de açúcar

MELAÇO: mel resultante da 3ª cozedura

RAPADURA: doce fabricado directamente a partir do primeiro cozimento da garapa

REMEL: mel que escorre das formas no fabrico do açúcar batido

RESSOCA: segundo rebentamento da cana após o primeiro corte

SOCA: primeiro rebentamento da cana após o primeiro corte

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TACHA: tacho grande cobre ou ferro, usada nos engenhos para cozer a garapa.

TRAPICHES DE BESTA: mó de pedra vertical que ao ser movida, por força do homem ou de bois, esmaga a cana que depois é prensada na almanjara.

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FRANCISCO CLODE DE SOUSA

Testemunhos Artísticos Na Rota do Ouro Branco pela Ilha da Madeira

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No Funchal

1.MUSEUS Museu de Arte Sacra

O Museu de Arte Sacra do Funchal é um ponto fulcral , pela concentração no seu espólio de numerosos exemplares, na pintura, escultura e ourivesaria que caracterizam explicitamente as referências artísticas da Madeira desde fins o século XV e de todo o século XVI.

No Museu está reunido um conjunto de obras recolhidas por várias igrejas e capelas de numerosos pontos da ilha da Madeira, permitindo-se o conhecimento da enorme disparidade de lugares de onde foram feitas encomendas, a Bruges e sobretudo a Antuérpia.

Do espólio de pintura poderemos destacar:

SÃO TIAGO MENOR. Pintura a óleo sobre madeira de carvalho. Provavelmente da escola de Bruges, datável do último quartel do século XV. Está atribuído a Thierry Bouts (1457-1475).

Esta pintura deve ter pertencido à pequena capela de N. S. do Calhau, fundada em 1438, destruída pela aluvião de 1803, ou ainda possivelmente da capela de N. S. do Amparo na Sé do Funchal.

Santiago Menor foi eleito padroeiro da cidade do Funchal em 1521, altura em que a ilha sofria uma epidemia de peste 16 e se levantou uma capela dedicada ao Santo, onde actualmente existe a igreja do Socorro ou de Santa Maria Maior. O quadro era levado em procissão da Sé para a Capela de São Tiago, onde deve ter acabado por ficar. Destruída a Capela de São Tiago deve ter transitado para a Igreja do Socorro ou de Santa Maria Maior, onde foi encontrado.

SÃO NICOLAU- Pintura a óleo sobre madeira de carvalho. De uma escola flamenga de Antuérpia, primeiro quartel do século.

Esta pintura parece ter sido de um altar da Igreja de N. S. do Calhau, construída em 1438, também da invocação de S. Nicolau, bispo de Mira. Na iconografia hagiográfica, S. Nicolau é um dos temas mais fecundos, sendo representado com as insígnias episcopais, ou com três jovens numa tina, por ele salvos. Na pintura em questão, o Santo aparece com as insígnias episcopais, mas também com a representação dos três jovens. S. Nicolau é também padroeiro dos marinheiros, aparecendo muitas vezes representado em composições com uma ancora ou um navio, como é também o caso desta pintura.

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Apesar da sua possível origem ligar-se à igreja de Santa Maria do Calhau, sabemos que o quadro esteve no Recolhimento das Órfãs do Hospital da Misericórdia do Funchal, tendo depois transitado para a Sé do Funchal.

ASSUNÇÃO DA VIRGEM-Pintura a óleo sobre madeira de carvalho. De uma escola flamenga de Antuérpia, depois de 1520. Trata-se de um postigo de um perdido painel central, provavelmente com a representação da Anunciação. No verso podemos reconhecer vestígios de pintura, nunca restaurada e em mau estado de conservação. Esta pintura foi encontrada no Recolhimento do Bom Jesus da ribeira mas deve provir de um outro local, (Convento de São Francisco do Funchal?).

DESCIDA DA CRUZ- Tríptico, cujo painel central representa o Descimento da Cruz. Nos painéis laterais S. Bernardino de Sena e o Doador e Santiago com a Doadora. Trata-se de uma pintura a óleo sobre madeira de carvalho, atribuída por Max Friedlander a Gerard David (1450-1523). Presume-se que os doadores sejam Simão Acciaiuoli e sua mulher D. Maria de Pimentel isto na hipótese do tríptico ter pertencido ao hoje desaparecido Convento de S. Francisco do Funchal , ou Jorge Lomelini ou Lomelino e sua mulher Maria Adão se, pelo contrario, o local de origem for o Convento de N. S. da Piedade em Santa Cruz. Este tríptico foi encontrado em péssimo estado de conservação na Igreja do Santo da Serra, de onde não poderá ser originário.

SANTANA E SÃO JOAQUIM- Pintura a óleo sobre madeira de carvalho. De uma escola de Antuérpia, datável de inícios do século XVI. Por tradição tem-se vindo a querer ver nas figuras representadas, os retratos de Ladislau III da Polónia e sua mulher Senhorinha Anes, primitivos sesmeiros da Madalena do Mar. Obteve a concessão de sesmaria por carta do Infante D. Henrique em 1457. Segundo a tradição este rei veio para a Madeira após a batalha de Varna em 1444. Personagem coberta de lenda e mistério ficou conhecido por "Henrique o alemão", que parece ter vindo para a Madeira em 1454.

O quadro provém da antiga matriz da Madalena do Mar, de onde transitou para o Paço Episcopal.

Tríptico Painel Central- N. S. da ENCARNAÇÃO, Painéis Laterais- SANTANA, S. JOAQUIM e a VIRGEM e NATIVIDADE. Reversos, S. SEBASTIÃO S. ANTÓNIO. Pintura a óleo sobre madeira de carvalho de extraordinárias dimensões. Pintura flamenga atribuível a uma escola de Antuérpia de fim do primeiro quartel do século XVI.

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Curiosa é a proximidade do desenho e gestos de algumas das figuras, com o painel do Ecce Homo, de Quentin Metsys, do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, hoje no Museu Machado de Castro.

Este tríptico fazia parte da estrutura retabular do altar-mor do Convento da Encarnação.

, hoje desaparecido. Do Convento transitou para a Igreja paroquial de São Martinho, onde para adaptação ao altar-mor, foram serrados os postigos, na parte inferior.

ANUNCIAÇAO- Óleo sobre madeira de carvalho (250xl93cm). Pintura flamenga de uma escola de Antuérpia, início o século XVI.

Esta pintura pertenceu à capela de N. S. da Encarnação, fundada por António Mialheiro em 1522, apesar de concluída mais tarde por seu filho, Gonçalo Mialheiro.

Esta capela foi incluída no Convento de N. S. da Encarnação.

Está atribuída ao pintor Josse Van Cleve, datável entre os primeiros 15 anos do século XVI.

TRÍPTICO-SÃO PEDRO, painel central, SÃO PAULO e SANTO ANDRÉ painéis laterais. Óleo sobre madeira de carvalho. Pintura flamenga de um atelier de Antuérpia, de início do século XVI, (178cmxl16cmx54cm)

Este triptico pertenceu à pequena capela de São Paulo, fundada, cerca de 1454, por João Gonçalves Zarco. A sua encomenda deve-se provavelmente a Simão Gonçalves da Câmara.

O tríptico transitou mais tarde para a Igreja de São Pedro no Funchal onde foi encontrado. No reverso dos painéis laterais estão em grisalha pintados dos anjos anunciadores com a inscrição AVE GR(A)CIA PLENA DOMINUS TEC(UM) e ECCE ANCILLA DOMINI FIAT MICHI SECUNDUM VERBUM TUUM.

Em 1949 este tríptico foi exposto no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa atribuído a Mathieu Cock.

Nova atribuição foi feita mais recentemente ao denominado mestre das "meias figuras".

ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS- Óleo sobre madeira de carvalho,248cmx176cm, de uma escola flamenga de Antuérpia.

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A pintura provém da Igreja matriz da vila de Machico, onde se encontrava na Capela dos Reis Magos. Esta capela foi fundada pela filha de Tristão Vaz, primeiro donatário de Machico, Branca Teixeira.

O carácter monumentalista desta obra, assim como a maioria das pinturas flamengas conhecidas da Ilha da Madeira, apresentam algumas características que revelam uma informação maneirista, visível quer na composição das figuras, quer pelos elementos arquitectónicos representados. Esta corrente maneirista começa em Antuérpia a acentuar-se por volta dos anos de 1520.

Esta pintura tem sido atribuída ao denominado mestre de 1518 , mas também ao chamado "maître de la Madeleine".p>

ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS, no verso SANTA ISABEL. óleo sobre madeira de carvalho. Pintura de uma escola flamenga de Antuérpia, atribuído ao denominado mestre de Morisson, início do século XVI.

Esta pintura parece ser, apesar de diminuído nas suas dimensões o volante de uma outra pintura que a seguir se descreve. Provem da igreja matriz da vila da Ribeira Brava.

ADORAÇÃO DOS PASTORES OU NATIVIDADE- Painel central de um tríptico, do qual o painel anterior era um dos volantes (?).Este óleo sobre madeira de carvalho apresenta grandes afinidades com a pintura atrás descrita. A parte superior parece ter sido cortada, para adaptação em altar barroco, onde foi encontrado aplicado na Igreja matriz da Ribeira Brava.

A VIRGEM E O ANJO DA ANUNÇIAÇÃO, no verso SANTO ANTÓNIO e SÃO FRANCISCO- Postigos de um desaparecido painel central, que cobria o altar-mor primitivo da Igreja Matriz da Vila da Calheta, 274cmx88cm. Tratam-se de pinturas a óleo sobre madeira de carvalho, atribuídas a um atelier de Bruges de fins do século XV, mas mais recentemente tem sido colados ao atelier de Jan Provoost(1462-1529).

SANTA MARIA MADALENA- óleo sobre madeira de carvalho, atribuído a Jan Provoost. Esta pintura provém da igreja matriz da Madalena do Mar, Fazia parte de um tríptico, encomendado por Isabel Lopes viúva de João Rodrigues, conforme consta do seu testamento datado de 1524, a colocar no altar-mor da Igreja.

CALVARIO-Óleo sobre madeira de carvalho. Pintura flamenga de uma escola de Antuérpia. Este quadro provém do demolido convento de S. Francisco,

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fundado em 1473 por Luiz Alvares da Costa e seu filho Francisco Alvares da Costa.

A organização das figuras, seu posicionamento, gestos e indumentária, revelam-nos pormenores, que a aproximam de uma escola, que tomara conhecimento com a pintura italiana cerca de 1525.

N.S. do AMPAR0. Óleo sobre tela de uma escola Flamenga de Antuérpia. A Pintura encontra-se datada de 1543. Neste trabalho é nítida a informação do maneirismo italiano, quer pelo leque cromático, quer pela organização e presença de elementos arquitectónicos.

Esta pintura provém da Capela de N. S. do Amparo da Sé do Funchal. Foi por várias vezes atribuído a Jan Gossaert, também conhecido por Mabuse .

Para além da pintura flamenga, no Museu de Arte Sacra do Funchal, poderemos encontrar algumas pinturas que se ligam a algumas escolas portuguesas de meados do século XVI.

APARIÇÃ0 DE CRIST0 A MADALENA, no verso, CRIST0 N0 TÚMUL0-Pintura a óleo sobre madeira de carvalho, de uma escola portuguesa do primeiro quartel do século XVI. Parece, tal como a pintura a seguir descrita, um postigo de um desaparecido painel central. Provém do Convento de Santa Clara do Funchal. Apresenta um restauro muito prenunciado, que dificulta uma leitura precisa da obra.

DESCIDA DA CRUZ, no verso, APARIÇÃO DE CRIST0 A VIRGEM- Tal como o anterior provém do Convento de Santa Clara do Funchal. Pintura a óleo sobre madeira de carvalho, de uma escola portuguesa do primeiro quartel do século XVI.

VIRGEM- Pintura a óleo sobre madeira de carvalho, no que parece ser um fragmento de uma pintura maior. Pode estabelecer-se alguma relação desta pintura com a obra do denominado mestre da oficina de Coimbra, também designado mestre do Sardoal. Provém do convento de Santa Clara do Funchal.

CRISTO (Busto)- Pintura a óleo sobre madeira de carvalho, de pequenas dimensões, de uma escola portuguesa de finais do século XV, princípios do século XVI. Provem do Convento de Santa Clara do Funchal.

TRÍPTICO- painel central- DESCIDA DA CRUZ, painéis laterais JOSÉ DE ARIMATEIA e MARIA MADALENA. Foram encontrados na matriz da Ribeira Brava, mas provém da antiga Capela, hoje desaparecida, do Bom Jesus, também na Ribeira Brava. Trata-se de uma pintura a óleo sobre madeira de carvalho, com

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nítida informação, no painel central, de parte do descimento da Cruz de Roger Van der Weyden, no Museu do Prado. Escola Portuguesa (?).

Tríptico Painel Central-SANTA MARIA DEL PÓPULO, Painéis laterais- SANTA BARBARA E SANTA CATARINA. Pintura a óleo sobre madeira de uma escola portuguesa de meados do século XVI.

Provém da igreja matriz da Ponta do Sol.

S.JERÓNIMO- Pintura a óleo sobre madeira, de pequenas dimensões, atribuível a um autor português de fins do século XV, princípios do século XVI. Provém do antigo e hoje desaparecido convento da Encarnação, no Funchal.

No Museu de Arte Sacra do Funchal, a escultura relacionada com os ateliers flamengos de fins do século XV e do Século XVI. São em comparação com a pintura, de muito menor dimensão, apresentando no entanto notáveis exemplares.

Ofuscada pela pintura, a escultura de origem flamenga, só agora tem sido olhada com maior atenção. Do conjunto destaque-se:

SÃO ROQUE- Escultura em madeira, estofada e policromada e dourada, cerca de 160cmx66cm. Trata-se de um exemplar de provável origem flamenga, atribuível a um atelier próximo a Olivier de Gand (?). Início do século XVI. Foi encontrada na Igreja de São Roque, devendo provir da antiga capela de São Roque, no Funchal

VIRGEM- Escultura em madeira, estofada e pintada, cerca de 140cmx53cm. Provém das colecções do Paço Episcopal, cuja proveniência anterior parece ser o Convento de São Francisco do Funchal. Exemplar de um atelier flamengo de inícios do século XVI.

DEPOSIÇÃO NO TUMULO encontrado na Igreja de São Roque, mas provavelmente do Convento de São Francisco do Funchal .

SÃO SEBASTIÃO- Escultura estofada e policromada em madeira de carvalho, cerca de 114cmx60cm. Provém da antiga capela de São Sebastião, de onde transitou para a Matriz de Santa Maria Maior. Encontra-se actualmente em depósito no Museu da Cidade do Funchal. De um atelier flamengo, Malines (?).

SANTA LUZIA- Escultura de madeira estofada e policromada cerca de 90cmx30cm, da antiga igreja de Santa Luzia no Funchal. Escultura de um atelier flamengo (Malines) de inícios do século XVI.

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NOSSA SENHORA DA ESTRELA- Escultura de madeira de carvalho, estofada e policromada de um atelier flamengo do início do século XVI. Da antiga e hoje desaparecida capela de N. S. da Estrela na Calheta, fundada por Diogo Cabral em 1486

VIRGEM COM O MENINO- Escultura em madeira de carvalho, cerca de 119cmx38cm, de um atelier flamengo, de inícios do século XVI. Trata-se de um dos exemplares de maior "pureza", em relação aos modelos flamengos de imaginária. Esta escultura provém da igreja matriz da vila de Machico, segundo uma tradição foi uma oferta do Rei D. Manuel I.

NOSSA SENHORA DAS DORES- Escultura estofada e polícromada, de madeira de carvalho, cerca de 121cmx37cm, de um atelier flamengo de Antuérpia de inícios do século XVI, proveniente da Sé do Funchal.

SÃO JOÃO EVANGELISTA- Escultura de madeira de carvalho, estofada e policromada, cerca de 100cmx40cm. De um atelier flamengo, próximo a Olivier de Gand. De um desaparecido conjunto do Calvário da Sé do Funchal.

VIRGEM- Escultura de madeira de carvalho, estofada e policromada, cerca de 100cmx40cm. De um atelier flamengo, próximo a Olivier de Gand. Do desaparecido conjunto do Calvário da Sé do Funchal , como a peça atrás descrita. De inicio do século XVI.

DEPOSIÇÃO NO TÚMULO- Nossa Senhora, S.João e Maria Madalena, esculturas de madeira de carvalho, estofadas e policromadas de um atelier flamengo de inícios do século XVI. Faziam parte de um conjunto maior da qual, faltam outras esculturas. Devem ter pertencido à antiga igreja de são Roque, ou ao Convento de São Francisco do Funchal. Muito curiosa é a proximidade do talhe destas esculturas com uma Virgem já aqui descrita, da Sé, neste momento numa colecção particular.

SÃO JOÃO EVANGELISTA- Escultura em madeira de carvalho, cerca 115cmx42cm. de um atelier flamengo de inícios do século XVI. O conjunto deteriorado provém da Igreja de São João Evangelista no Funchal, mas a sua origem deve ser o Convento de São Francisco do Funchal.

NOSSA SENHORA- Escultura em madeira de carvalho, cerca de 115cmx40cm, de um atelier flamengo de inícios do século XVI.

Tal como a peça anterior deve ter feito parte de um desaparecido conjunto do Calvário do antigo convento de São Francisco do Funchal. Foi também encontrada na Igreja de São João Evangelista.

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CRISTO NA CRUZ- Escultura em madeira de carvalho, com vestígios de policromia, adquirido recentemente de um atelier flamengo do inicio do século XVI. Provém do antigo convento de São Francisco do Funchal.

Do espólio de ourivesaria, que aqui particularmente nos interessa, como resultado da economia açucareira, acontecido na Ilha da Madeira desde meados do século XV e por boa parte do século XVI, devemos destacar uma série de peças provindas na maioria dos casos do tesouro da Sé do Funchal, e que se encontram em exposição no Museu de Arte Sacra do Funchal.

Do espólio de ourivesaria do Museu poderemos destacar:

CRUZ PROCESSIONAL- Prata Dourada e cinzelada, cerca de 119 cmx55cm, proveniente da Sé do Funchal.

Oferecida por D. Manuel I, aparecem as suas insígnias, só foi entregue no tempo de D. João III.

Foram entregues ao Cónego Alvares Lopes em Lisboa no dia 6 de Dezembro de 1527, "João de Barros / Mandamovos que entregueis a Álvaro Lopes, Cónego da Sé da Cidade do Funchal , toda a prata que El-Rei, Nosso Senhor e Padre , que santa glória haja, mandou fazer para a dita Sé, a qual é em vosso poder, e cobrareis recibo (...)Manuel da Costa o fez em Lisboa a 20 de Outubro de 1527.

Sabemos que as cerca de 2O peças oferecidas pelo Rei; "vieram todas metidas numa arca", entre elas "Uma cruz grande, dourada , que de prata pesa 82 marcos, 20 onças e duas oitavas".

Trata-se , de um dos mais resplandecentes exemplares de ourivesaria portuguesa Manuelina, pelos efeitos decorativos, enquanto maquetismo de uma estrutura arquitectónica. O nó e de grande riqueza decorativa. A cruz apresenta as suas extremidades quadrilobadas onde se abrem motivos como "Jesus no Jardim das Oliveiras", o "Beijo de Judas", "Flagelação" e o "Ecce Homo".

Repare-se na proximidade do Cristo, representado no cruzamento dos braços da Cruz com o Cristo do Porta Paz do Museu de Arte Antiga.

MAÇA DE PORTEIRO- Prata portuguesa de cerca de 1520-30, 91cmxlO5cm. Provém da Sé Catedral, e encontra-se descrita no recibo do Cónego Álvaro Lopes, datado de 6 de Dezembro 1527

NOSSA SENHORA- Escultura em prata dourada, cerca de 30cmxl3cm provavelmente oferecida por D. Manuel à Sé do Funchal, ourivesaria portuguesa, cerca de 1520-25.

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PORTA PAZ- Prata dourada, 20cmx11cm, ourivesaria portuguesa cerca de 1520-25, aparece na relação de 1525:" Um porta puz dourado e lavrado de bastiães, que tem cinco jacintos grandes, que pesou 3 marcos e 1 onça".

CÁLICE- Prata dourada e cinzelada, cerca de 1500, 27cmx12, e que deve ser um dos cálices referidos na relação de 1527, depois referido nos inventários de 1533 e posteriores:"Um cálice de prata todo dourado, com sua paterna e campainhas, esmaltado em partes de azul, o qual veio de S. João de Latrão, que pesa 4 marcos menos três oitavas". No cálice aparecem cravadas ametistas, esmaltes e cristais.

LAMPADÁRIO- Prata portuguesa do último quartel do século XVI. Cerca de 57cmx235cm. Provém da Sé do Funchal.

NAVETA- Prata portuguesa da segunda metade do século XVI. Cerca de 16,5cmx21cm. Provém da antiga Misericórdia do Funchal.

BANDEJA- Ourivesaria flamenga, punção de Antuérpia, primeira metade do século XVI. Temos conhecimento. idem, "Um gomil dourado,da mesma obra" da existência de um desaparecido gomil com a mesma proveniência. Cerca de 52cm de diâmetro. Provém da Sé do Funchal.

CÁLICE- Prata portuguesa da segunda metade do século XVI.

Cerca de 21cmxl5cm. Provém da antiga Misericórdia do Funchal.

NAVETA- Prata Portuguesa datada de 1589. Cerca de 15cmx20, 5cm. Provém da antiga igreja da vila de Câmara de Lobos.

CÁLICE- Trabalho flamengo em prata dourada,17cmx15cm, início do século XVI. Apresenta punção de Antuérpia. Provém da igreja matriz de Machico, cerca de 17cmxl5. Conhecemos documento, que afirma a existência de um Cálice vindo da Flandres, para a Sé do Funchal, em inventario de 1533; "Um cálice de prata com sua paterna, todo dourado fora feito na Flandres, que está em poder do senhor Bispo, que com ele diz missa".

CÁLICE- Prata dourada, trabalho português, datado de 1580. cerca de 29cmxl5cm. Provém da Igreja do Corpo Santo.

CRUZ PROCESSIONAL- Prata portuguesa de finais do século XV, cerca de 1490-1495. 0 nó, muito próximo à cruz processional da igreja de São Miguel do Castelo em Guimarães. Idem. A cruz é rematada por flores-de-lis, apresentando um delicado lavrado. Da antiga igreja matriz de Gaula.

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A Quinta das Cruzes e a "Quinta das Cruzes Museu".

A Quinta das Cruzes liga-se � historia da Cidade do Funchal.

A primitiva Quinta das Cruzes foi constru�da numa propriedade e para servir de resid�ncia de Jo�o Gon�alves Zarco, capit�o donat�rio entre 1425-1467 (?) e sua fam�lia.

A constru��o da moradia dos C�maras nesta zona alta da baia do Funchal, justifica-se por serem eles propriet�rios de grandes terrenos, que se estendiam desde S�o Paulo at� ao Pico.

Uma casa de moradia modesta, come�ada a edificar por Jo�o Gon�alves Zarco foi posteriormente ampliada e muito engrandecida por seu filho, que parece ter aproveitado os mestres que trabalhavam na transforma��o da antiga igreja da Concei��o de Cima em Convento de Santa Clara, para a realiza��o das obras da sua moradia principal.

Gaspar Fructuoso, refere-se � exist�ncia de "pa�os grandes e sumptuosos", na zona das cruzes, ao falar das casas de Zarco.

A Casa das Cruzes, pela sua longa exist�ncia foi sofrendo numerosas altera��es, na adapta��o constante dos seus espa�os a utiliza��es e viv�ncias renov�veis.

Harmonizada, como "Quinta madeirense", constituindo-se na sua unidade mais ampla, casa, espa�os ajardinados, "casinha de prazer", capela, � hoje um dos exemplares sobreviventes da Madeira oitocentista.

No corpo principal da casa, podem ainda hoje ser observadas, duas janelas, antigas portadas, de n�tida inspira��o manuelina, pela presen�a de arcos contracurvados em cantaria bas�ltica da Ilha.

Transformada na d�cada de 50 deste s�culo em Museu da Quinta das Cruzes, tem pouco a pouco procurado harmonizar-se � volta do conceito, "Quinta das Cruzes Museu", na tentativa de estabelecer-se como mem�ria da viv�ncia insular dos s�culos XVIII - XIX.

Marcada por objectos de artes decorativas europeias, sobretudo inglesas, dos s�culos XVIII e XIX, nas suas colec��es constitu�das ao longo de d�cadas por v�rias doa��es importantes, apresenta alguns n�cleos que particularmente nos interessam.

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Num n�cleo exterior, denominado "jardim arqueol�gico", encontramos a j� referida pedra tumular de Gil Enes, pedreiro mestre da S�, transportada da antiga capela de N. S� da Concei��o da Serra de �gua, Arco da Calheta.

Montadas como "situa��es rom�nticas", com not�vel envolvente cenogr�fica, encontramos nos jardins duas janelas de cantaria bas�ltica, que nos recordam a cidade dos mercadores de a��car. Tratam-se de dois conjuntos, que pertenceram a uma destru�da casa da Rua da Boa Viagem . Um dos casos apresenta uma composi��o geminada com uma profusa decora��o de la�arias, colunelos aspiralados, elementos fitom�rficos, assim como adossamentos de le�es e figuras. 0 outro caso, com decora��o mais s�bria, tamb�m de defini��o manuelina, apresenta uma composi��o esquartelada, onde se devem destacar elementos figurativos que correm num parapeito historiado.

Das colec��es do Museu, para al�m de algumas pe�as de ourivesaria,destaque-se um magn�fico Porta Paz quinhentista, com a inscri��o "JORDAN DE FREITAS A DEU" proveniente da Matriz de Santa Cruz , e ainda um fruteiro de prata portuguesa do s�culo XVI. Pode ainda referir-se alguma estatu�ria como uma Virgem com o Menino provavelmente alem� do s�culo XVI, assim como o conjunto escult�rico do Nascimento, de proveni�ncia flamenga de in�cios do s�culo XVI .

No entanto e do conjunto das colec��es da Quinta das Cruzes Museu, na caracteriza��o dos resultados da economia acucareira, um conjunto de mobili�rio denominado "caixas de a�ucares parece-nos de especial interesse, para o estabelecimento de um percurso que tenha por fundo a Madeira dos mercadores do A��car.

Com a produ��o e consequente exporta��o do a��car, houve logo necessidade de resolver o problema dos meios mais seguros para o transporte de t�o preciosa mercadoria.

A maior parte do a��car era exportado sob a forma de cones cristalizados, os paes de a��car. "El rei D. Manuel (...) ao elevar a vila do Funchal a cidade , em 21 de Agosto de 1508, lhe deu por armas em vez das quinas de Portugal, cinco paes de a��car, dispostos em cruz".

Par� o transporte de t�o delicada mercadoria, a solu��o passava pela constru��o de caixas de madeira resistente, de entre as v�rias esp�cies em presen�a na ilha.

"lenhas que foram necesareos pera fazimento e encayxotamento dos ditos a�ucares".

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Gaspar Fructuoso ao referir-se ao funcionamento das serras de �gua diz:"Quan vir esta obra julgar� por mui grande e necessaria inven��o a serra de �gua naquela ilha, onde n�o era poss�vel serrarem-se tao grandes paus, como nela ha, com serra de bra�os nem tanta soma de tavoado, como se faz para caixas de a��car que se fazem muitas". Afirma-nos ainda: "grande e elevantadas serranias, mas tamb�m grotas e altas funduras, cobertas de matos e grossos paus e arvoredo de til que quando serram, dentro no cerne � muito preto e cheira mal; deste pau se faz muito tabuado para caixas de a��car e soalhado de casas e madres e dela � a maior parte da lenha que se queima nos engenhos, tamb�m h� outro pau vermelho, que se chama vinhatico de que se fazem as caixas para o servi�o da casa que s�o muito boas, mas as feitas dela para o mar sao muito mais presadas".

A necessidade de constantes abates de �rvores para alimentar as fornalhas para o fabrico do a��car, assim como para o seu embalamento, para al�m da sua aplica��o nas constru��es, levou, j� mesmo a partir de meados do s�culo XVI a uma escassez muito acentuada de madeira, para al�m do problema de sistem�tica e aflitiva desfloresta��o da Ilha.

Na capitania do Funchal o problema estava a agudizar-se, assim, conhecem-se pedidos para que Machico forne�a madeira ao Funchal: "E pessoas de jurdi�am de machico da nosa ilha da madeyra que leyxes vijr pera funchall da dita ilha taboado e madeira pera se fazer cayxas e engenhos asy como se sexpre fez sem nyso poerdes duvyda algua". Estas recomenda��es de D.Manuel I, tornam-se mesmo preocupa��es pelas continuas e cada vez mais gravosas dificuldades : "daqui emdiante nenhu estramgeyro nem naturall nom possa tirar da dita Ilha nenhum tavoado nem madeyra de nenhuma sorte resalvamdo pera esta cidade pera onde se poderam tirar somente algumas feytas de cedro ou tavoas pera as fazerem".

A maior parte das caixas onde eram transportados os a�ucares eram feitas de til, vinh�tico e cedro. Qualquer destas caixas, pela consist�ncia das madeiras e pelo processo de juntas malhetadas, eram a forma mais segura para o transporte, muitas vezes sujeito a intemp�ries de varia ordem. N�o se conhecem na ilha da Madeira nenhum exemplar destas caixas do s�culo XV ou mesmo XVI. No entanto deve aceitar-se a perman�ncia de processos ao longo dos s�culos, quando nos confrontamos com arm�rios de dois corpos e portadas assim como numerosas arcas que sobreviveram desde o s�culo XVII. Utilizando os mesmos processos de malhetes e as mesmas madeiras utilizadas nos caixotes de a��car, acondicionando-se aos modus do mobili�rio portugu�s coevo, sobreviveram mov�is, que na Madeira sempre se chamaram "caixas de a��car", pelo exotismo das madeiras aplicadas. Se no s�culo XVI, constru�mos caixas para embalar o nosso a��car, com o s�culo XVII, ap�s enorme press�o da produ��o de Cabo

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Verde, mas sobretudo do Brasil. vamos passar a importar a��car e madeiras ex�ticas algumas que conhec�amos como o vinhatico, mas outras desconhecidas, �s quais se generalizava, classificando todas de madeira de "caixa de a��car". Dessas madeiras, desmembradas que eram as caixas, se constru�ram m�veis, sobretudo arcas, ou arm�rios de duas portadas quer a partir de tabuado brasileiro, quer com certeza do insular. Muitos dos exemplares conhecidos apresentavam prateleiras dispostas no interior, com rebordos trabalhados, sendo tamb�m comum a sua pintura total por uma cor uniforme. Muito curiosa � a resist�ncia no tempo deste tipo de mobili�rio, que conhecido no s�culo XVI, tem grande desenvolvimento no s�culo XVII, mantendo-se inalter�vel durante o s�culo XVIII e por boa parte do s�culo XIX. Para al�m dos exemplares produzidos na ilha com madeiras ind�genas, a importa��o de tabuado brasileiro fez de facto incrementar a produ��o. Desde finais do s�culo XVI, mas sobretudo no s�culo XVII, procedemos tamb�m ao reembalamento para a Europa do a��car Brasileiro, que chegava muitas vezes em mau estado, em caixas semiabertas que eram reaproveitadas. Entre essas madeiras brasileiras encontradas nesses mov�is como os do Museu da Quinta das Cruzes , que possui uma not�vel colec��o, destaque-se o "mogno brasileiro", mas tamb�m a a Sucupira e o Barbusano.

A ind�stria do embalamento, reembalamento e calafetagem do a��car deve ao longo do s�culo XVI e XVII ter sido de grande import�ncia. Na planta da Cidade de Mateus Fernandes, aparece-nos uma refer�ncia � Rua dos Caixeiros.

No Museu da Quinta das Cruzes, entre v�rios exemplares, deve destacar-se um Arm�rio de duas portas, proveniente do Convento de Santa Clara do Funchal. Trata-se de um exemplar em "mogno brasileiro", com ferragens coevas, rematadas por flores-de-lis. Um outro exemplar particularmente not�vel prov�m do hoje desaparecido convento das Mer�es, sendo um Arm�rio de quatro portas, apresentando um almofadado disposto em quadrado, perfeitamente relacion�vel com o tipo de decora��o depurada do mobili�rio portugu�s do s�culo XVII. Este exemplar foi constru�do, tendo por base madeiras de varias esp�cies.

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MONUMENTOS

O CONVENTO DE SANTA CLARA DO FUNCHAL

O Convento de Santa Clara, liga-se estreitamente � fam�lia dos donat�rios do Funchal.

Perto das suas "moradias" , Zarco fundou: "hua Igreja da invoca��o de nossa Senhora da Concei��o pera seu iaziguo". A esta igreja se deu tamb�m o nome de "Santa Maria de Cima" para n�o a confundir com a igreja de "Santa Maria de Baixo" ou do Calhau, constru�da nas proximidades da foz da ribeira de Jo�o Gomes. Jo�o Gon�alves Zarco Parece ter morrido pelo ano de 1471, e foi sepultado na sua igreja de Santa Maria de Cima, nas proximidades da sua casa, o actual Museu da Quinta das Cruzes.

Pouco depois da morte de Zarco, o novo capit�o, Jo�o Gon�alves da C�mara, seu filho, pretendeu fundar um mosteiro de clarissas. Tal pretens�o foi conseguida, por bula de Sisto IV, passada a 4 de Maio de 1476.

A 17 de Julho de 1488, D. Manuel em carta enviada � C�mara do Funchal informa ter "avido letra do Santo padre pera na igreja De santa maria de cima Se aveer De fazer hum moesteyro De freyras".

0 capit�o Jo�o Gon�alves da C�mara, pretendia edificar um mosteiro, junto � capela mandada construir por seu pai e que servia de jazigo da fam�lia.

Sob um estrado que cobre a capela-mor da igreja do Convento que correspondia � capela de Santa Maria de Cima, encontram-se lajes tumulares. entre elas, as do fundador do convento, Joao Gon�alves da C�mara, as de Sim�o Gon�alves da C�mara 3� capit�o e de um outro, Sim�o o 5� capit�o Donat�rio do Funchal.

As lajes tumulares apresentam cercaduras de lat�o muito pr�ximas as importadas da Flandres, hoje ainda vis�veis na S� do Funchal e matriz da vila de Santa Cruz.

Jo�o Gon�alves da C�mara entrega � sua filha D.Isabel de Noronha a direc��o do novo mosteiro. D. Isabel professava no Convento da Concei��o de Beja, de onde veio, na companhia de duas das suas irm�s, D. Elvira e D. Constan�a.

D. Manuel autorizou que o Mosteiro tivesse uma renda anual at� 200.000 reis. Esta autoriza��o permitiu, a acumula��o de propriedades, na qual se destaca o Curral das Freiras. Da primitiva �poca da constru��o, iniciada na �ltima

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d�cada do s�culo XV. podem hoje ainda ser observados o corpo da igreja, com os seus remates junto aos coros, assim como o t�mulo de Martim Mendes de Vasconcelos, genro de Zarco, falecido em 1493. 0 T�mulo apresenta um nicho aberto na parede, em cantaria cinzenta da ilha. Comp�e-se de um jazigo sustentado por tr�s le�es jacentes, abrigado por um portal em ogiva. No intradorso da arquivolta do arco e nos capit�is desenvolve-se uma decora��o fitom�rfica.

A porta principal da igreja, composta em arco g�tico, � aberta no al�ado norte da nave, e devera ter sido trazida para a ilha, por ser de uma pedra aqui inexistente.

Na Sacristia da igreja pode observar-se um tecto mudejar de modesto talhe.

De fins do s�culo XV e princ�pios do s�culo XVI, s�o ainda alguns conjuntos j� alterados de arquitectura, onde se poder� destacar alguns portais em ogiva, assim como as arcarias toscas do claustro.

No coro alto do convento, sobre o corpo da igreja, deve referir-se um tecto de alguma simplicidade, de inspira��o mudejar, com a presen�a de tirantes em madeira de cedro onde se desenvolvem la�arias geom�tricas. Quer neste coro alto quer no coro baixo, pode observar-se uma not�vel cobertura do pavimento com azulejos de produ��o sevilhana de finais do s�culo XV, princ�pios do s�culo XVI. S�o exemplares �nicos em Portugal, pela sua monocromia, em t�cnica de aresta ou "cuenca", uns pr�ximos a uma tradi��o geometrizante, outros de entendimento fitomorfico. Podemos estabelecer uma curiosa rela��o entre a presen�a profusa de azulejaria hispano-mourisca no Convento de Santa Clara, com o facto de a primeira abadessa D. Isabel, tal como as suas irm�s, Elvira e Constan�a, terem professado no Convento da Concei��o em Beja, onde os azulejos sevilhanos foram muito aplicados

. Alguns exemplares soltos podem ser encontrados, monocromos e policromos por varias depend�ncias do conventos muitas vezes junto de exemplares de "tapete" portugueses, do s�culo XVII. em que o Convento � particularmente rico.

Por numerosas altera��es ao longo dos s�culos XVII, XVIII, e por depreda��es no s�culo XIX e XX. muita da estatu�ria primitiva e pintura desapareceu. De especial destaque, pode referir-se, duas pequenas t�buas flamengas (90x48cm) , colocadas provisoriamente no coro alto, representando Santo Antonio e o Anjo da Anuncia��o, assim como uma magn�fica Pieta, em terracota de origem portuguesa de meados do s�culo XVI. Na Casa-Museu Dr. Frederico de Freitas. podemos encontrar um S�o Jeronimo tamb�m em terracota, proveniente do

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Convento e dat�vel do s�culo XVI. De destaque especial uma pintura primitiva portuguesa, "Ecce Homo", com a rara legenda completa, de in�cios do s�culo XVI.

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Alfandega

A "Alfândega nova", hoje sede da Assembleia Legislativa regional foi mandada construir por D. Manuel I , por volta de 1508. Tornava-se um edifício essencial à economia real pela necessidade de cobrar tributos pela comercialização do açúcar. Da "alfândega nova", que veio substituir a velha que funcionou em vários locais da cidade, entre eles num edifício localizado junto ao largo do pelourinho, nas proximidades da rua Direita, instalada por volta de 1477.

Da "alfândega nova" restam ainda hoje a maioria dos seus elementos arquitectónicos, incluídos num conjunto maior, harmonizado por obras marcantes do século XVII e XVIII.

A obra deve com certeza ter tido como seu máximo responsável Pero Anes, autor dos planos da Sé.

Da época primitiva destaque para o conjunto de arcarias da "sala do despacho", onde se desenvolve nos mísulas uma decoração de folhagens e figuras recorte do gótico final português.

Próximos aos da Sé, são os tectos de três salas, no primeiro andar do edifício, pela profusão de elementos decorativos geométricos. Tratam-se de três exemplares de tectos de alfarge, em madeira de cedro pintados, de nítido recorte mudejar. De todos eles o de maior riqueza é o da "Sala dos Contos".

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Santa Cruz

Ap�s a defini��o de um percurso de reconhecimento das repercuss�es art�sticas e culturais pelo Funchal, tomando por apontamentos algumas das situa��es mais importantes na reinven��o de um roteiro da arte na Rota do Ouro Branco, procuraremos lan�ar pistas para uma marca��o de situa��es semelhantes pela costa sul da ilha da Madeira.

Num percurso estabelecido do FUNCHAL PARA LESTE, entrados na Capitania de Machico, s�o estes alguns dos reconhecimentos a fazer. "Meya l�goa adiante esta huma aldeya de duzentos fogos que se chama de Cani�o. Ao mar deste logar est� a ponta da Oliveira, onde se plantou huma, por baliza de reparti��o das duas capitanias ".

A par�quia do CANI�O, criada em 1440, v�m a ser uma das zonas de maior produ��o agr�cola da Madeira, onde existiam extensos canaviais.

No Cani�o poderemos hoje ainda encontrar a CAPELA da MADRE DE DEUS, tamb�m conhecida por Capela da M�e de Deus.

Trata-se de uma, das poucas capelas existentes na Ilha da Madeira, onde permanecem, quase intactos, elementos de grande homogenidade do per�odo Manuelino.

A Capela foi fundada, em 1536 por disposi��o testament�ria, de Isabel Alvares.

Documenta��o curiosa refere-se � necessidade do abaixamento dos rendimentos da propriedade, pela queda dos pre�os do a��car, dificultando a manuten��o das despesas com as obras da Capela.

A Capela da Madre de Deus no Cani�o, pode relacionar-se com a maioria das constru��es religiosas acontecidas na Madeira, entre a ultima d�cada do s�culo XV e a primeira metade do s�culo XVI. A Capela mant�m presa a uma organiza��o arquitect�nica t�pica do g�tico final portugu�s, na qual se envolvem com maior ou menor nitidez a presen�a de elementos de um plasticismo pr�ximo � chamada arte manuelina.

Em 1546, as obras deveriam estar j� praticamente conclu�das faltando apenas o lajeamento e a encomenda do ret�bulo.

A Capela apresenta na sua fachada um portal em volta perfeita, com a presen�a de duplos colunelos, cujos capit�is evidenciam uma tem�tica vegetalista. Este portal, segundo informa��o recolhida transitou de uma parede exterior lateral, estando o original desaparecido.

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Na fachada reconhece-se uma ros�cea simples e a junta das empenas � rematada por uma cruz de Cristo.

A nave �nica recorta-se, at� ao arco de asa de cesto que provid�ncia a separa��o do corpo da igreja com a capela-mor, de sec��o quadrangular � rematada exteriormente por ameias e g�rgulas. 0 interior � abobadado por uma cruzaria de ogiva em cuja chave se desenvolve uma motiva��o em pingente de tem�tica vegetalista. 0s arcos da abobada encontram-se assentes sobre m�sulas.

Um portal em ogiva acentuada, d� acesso � sacristia rematado por uma pinha ou ma�aroca envolta em folhagens.

De grande interesse � a estrutura retabular, que apesar de algumas altera��es, remate superior, zona central, e repintes sucessivos, parece ser a original. 0 emolduramento das quadro t�buas pintadas, desenvolve uma tem�tica de filtragem plateresca e influ�ncia de linguagens decorativas internacionalizadas pelo renascimento italiano, pela conjuga��o de fitas e grinaldas, folhagens e pequenas urnas.

No centro da composi��o, destaca-se uma Virgem com o Menino, de um atelier portugu�s de meados do s�culo XVI, reconhec�vel, apesar dos sucessivos repintes a que a escultura foi sujeita.

0s quatro pain�is de pintura a �leo sobre madeira, n�o passaram desapercebidos a Manuel C. de Almeida Cayola Zagallo, que os atribuiu � uma escola portuguesa do s�culo XVI.

Encontram-se representados, S�o Tiago Maior, S�o Jo�o Baptista, Santa Catarina de Alexandria e Santo Ant�nio.

Por informa��o j� adiantada, em 1546, faltava ainda a coloca��o do ret�bulo, que deve ter-se concretizado pouco depois, possivelmente na d�cada de 1550.

Apresentam-se como pinturas de um atelier portugu�s, provavelmente da d�cada de 40 do s�culo XVI, de not�vel qualidade, ainda pr�ximas � informa��o da pintura flamenga.

Depois da Madre de Deus um outro edif�cio de interesse insofism�vel para o reconhecimento de uma rota �, a igreja Matriz de SANTA CRUZ.

A Igreja de S�o Salvador, foi fundada por Jo�o de Freitas, pelo que teve merc� da Capela-mor para seu jazigo, provis�o passada por D. Joso III, em 29.11.1533.

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Esta igreja veio substituir uma pequena constru��o, mais antiga, junto ao s�tio de S. Fernando. A ela se refere a bula datada de 17 de Abril de 1507, de J�lio II, e enviada � confraria do Senhor Jesus: "Segundo o que no outro dia nos fizeste saber, no come�o desse vosso lugar de Santa Cruz, os edificadores dele, olhando a pouca gente que ent�o ai estava, fizeram uma igreja no mesmo lugar com a invoca��o de Santa Cruz."

A Confraria de Jesus parece ter tido um papel de enorme import�ncia para a persecu��o das obras da Matriz aberta ao p�blico em 1509.

Henrique Henriques de Noronha afirma-nos: "A Igreja Matriz de Santa Cruz, foi fundada por el-rei D. Manuel a dilig�ncia de Joao de Freitas, fidalgo da sua casa e creado do Duque D. Diogo, irm�o do Rei, e que falecendo o Duque de morte violenta, passou Jo�o de Freitas a viver em Santa Cruz, com seu pai Gon�alo de Freitas, monteiro-mor do Infante D. Fernando e creado da Casa de el-rei D. Afonso V"

A vila de Santa Cruz nasce "junto a um bosque umbroso", como nos diz Manuel Tom�s, autor da Insulana. Gaspar Fructuoso por seu lado afirma-nos: "entraram em uma formosa angra , na praya da qual acharam um formoso e deleitoso vale coberto de arvoredo, onde acharam em terra uns cepos velhos derribados do tempo, dos quais mandou o capit�o fazer uma cruz (...) que depois se fundou uma nobre vila".

Santa Cruz vai pouco a pouco, sobretudo ao longo da primeira metade do s�culo XVI, desenvolver-se enormemente at� pelo crescimento no local de canaviais e de v�rios engenhos de a��car.

A igreja matriz de Santa Cruz, que hoje conhecemos aparece-nos como um exemplar composto por campanhas de obras do s�culo XV, XVI, XVII, e XVIII.

Apresenta-se, de uma forma muito pr�xima, no que respeita � sua estrutura arquitect�nica � S� do Funchal.

A primeira refer�ncia escrita, a uma Igreja em Santa Cruz, consta do primeiro testamento de Gil Eanes feito a 10-6-1479: " Hordemamos e justituimos hua capella como morgado a qual fosse da evoca�am de jhesu setuada na Igreja de santa cruz (...)"

A partir de 1507, a igreja de Santa Cruz come�ou a ser chamada de Igreja Velha, pelo facto da Igreja Nova do Salvador estar i� aberta ao culto, sendo a que hoje conhecemos por Igreja Matriz.

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A igreja velha, ou capela de Jesus, continuou por algum temdo a servir para sepulcro e como sede da confraria de Jesus.

A constru��o da igreja nova ou de S�o Salvador deve ter decorrido entre os anos de 1502-1512, estando a capela-mor pronta em 1511.

Organiza-se interiormente a partir de tr�s naves separadas por arcarias g�ticas, na qual a cobertura deve ter sido feita com um tecto de alvenaria de alfarge, pr�ximo ao da S� do Funchal ou na linha do da matriz da Calheta.

Foi terminado por volta de 1516, o t�mulo de Micer Jo�o, natural de G�nova, mercador, morador na Ribeira de Santa Cruz, mandado construir por testamento datado de 1512. Este t�mulo, aberto em nicho na parede do lado do evangelho, ainda persiste, onde se reconhece uma linguagem compositiva e decorativa nitidamente manuelina.

Este t�mulo inscreve-se junto � Capela de S�o Tiago, edificada cerca de 1522, por Jo�o de Morais e sua mulher Catarina Fernandes Tavares: "mandou construir � parte do evangelho da Igreja de S�o Salvador". Montado na chave dos arcos encontram-se as armas dos Morais. Esta capela foi depois transformada em Capela do Santissimo.

A Capela-mor apresenta uma abobada artesoada, cujos arcos partem em sec��o elicoidal, assentando sobre misulas, onde se evid�ncia uma decora��o de "ramos podados".

A Capela-mor da Igreja de S�o Salvador foi mandada edificar � custa da fazenda Real, por alvar� de D. Manuel de 25.1.1502, que dela fez merc� a Jo�o de Freitas para sua sepultura e de sua mulher Guiomar de Lordelo. Jo�o de Freitas faleceu em 1544.

Ainda hoje persiste esta laje tumular que apresenta ao centro as armas dos Freitas, e uma legenda laminada de cobre, sobre pedra de Tournai. de origem flamenga, do s�culo XVI.

A Matriz de Santa Cruz, possuia uma estrutura retabular hoje desaparecida, podendo no entanto ser reconhecidas algumas pinturas montadas em emolduramentos do s�culo XVIII e XIX, nas paredes laterais da Capela-mor, de uma oficina portuguesa do segundo quartel do s�culo XVI. Pode sobre reserva encontrar-se alguma rela��o com a obra de Greg�rio Lopes (?). Restam-nos seis t�buas representando a Anuncia��o, o Nascimento de Cristo, a Adora��o dos Reis Magos, a Crucifica��o, Descida da Cruz e Ressurrei��o.

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De particular interesse � ainda o portal, geminado de acesso � sacristia, redescoberto este s�culo, de n�tido recorte manuelino, decorado no intradorso das colunas por esferas.

Sobrevivem ainda numa pequena arrecada��o de velas, que deveria fazer parte da antiga capela das Almas, uma cobertura pavimentar de azulejos sevilhanos de t�cnica de aresta ou "cuenca" de in�cios do s�culo XVI.

Poderemos reconhecer no esp�lio de ourivesaria da igreja, algumas pe�as de interesse, dat�veis do s�culo XVI.

Desde j� lembre-se que o Porta-Paz do Museu da Quinta das Cruzes, provem exactamente da Matriz de Santa Cruz .

Na igreja podem ainda ser reconhecidas algumas pe�as de grande interesse como o c�lice de prata dourada, composto por uma base tratada a dois n�veis com motiva��o renascentista, pela presen�a de volutas e grinaldas. A haste hexagonal inicia-se por seis cabe�as de grifos, apresentando no n� seis nichos vazios, com doss�is em forma de concha, rematados por volutas e urnas estilizadas. A copa, com movimento de bordo a tender ligeiramente para o sino invertido, � composto por duas partes. Uma com cabe�as de anjos alados e fitas em grinalda de onde estao suspensos tr�s dos seis tintin�bulos originais, a outra � completamente lisa. Deve tratar-se de um trabalho portugu�s.

Para al�m do C�lice, na igreja de Santa Cruz, poderemos reconhecer, um lampad�rio, duas cruzes processionais e dois casti�ais, dat�veis do �ltimo quartel do s�culo XVI de uma oficina portuguesa. Sob o altar-mor foi h� pouco descoberto uma �ltima ceia, escultura estofada, pintada e policromada, de um atelier portugu�s do fim do s�culo XVI pr�xima �s encontradas em Machico e na igreja Matriz da Vila da Calheta.

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Machico

Parece que os Descobridores aportaram primeiro em Machico, antes de outro qualquer local da ilha da Madeira. Machico ser� sede da Capitania de Trist�o Vaz, e um dos primeiros pontos de povoamento. As primeiras terras de sesmaria parecem ter sido distribu�das por volta de 1425.

Em 1440 o Infante D. Henrique faz uma carta de doa��o, concedendo a Trist�o Vaz, regalias e poderes. monop�lios e isen��es, transmiss�veis por linha masculina Caballeyro de minha casa na minha ilha da Madeyra".

A capitania de Machico estendia-se desde a Ponta da Oliveira at� � Ponta de S�o Louren�o e desta at� � Ponta do Trist�o.

Machico, apesar dos problemas da capitania, pode desenvolver-se e tornar-se um dos mais importantes centros de produ��o a�ucareira, pela presen�a j� observada de numerosos canaviais assim como de engenhos.

Como resultado desse esfor�o, podem ainda hoje serem observadas constru��es que nos reportam ao s�culo XV e XVI, sobretudo constru�dos como resultado dessa economia acucareira.

Na malha arquitect�nica da vila podem ser encontradas constru��es, que apesar de altera��es ao longo dos s�culos, mant�m elementos manuelinos. S�o v�rios os exemplares de portais em ogiva simples assim como a presen�a de arcos contra-curvados.

Das constru��es mais relevantes, pode destacar-se a igreja matriz de Machico.

V�rias t�m sido as aproxima��es para a identifica��o de uma data para a constru��o da matriz de Machico da invoca��o de Nossa Senhora da Concei��o. Foi posta a possibilidade de se ter iniciado por volta de 1499.

A sua estrutura arquitect�nica organiza-se de forma � de quase todas as matrizes das vilas da costa sul da ilha da Madeira. Apresenta uma nave �nica, na qual se recortam capelas. A presen�a perlongada de Pero Anes,autor dos planos da S�,parece indicar a direc��o de uma s�rie de campanhas de obras.

Na fachada pode destacar-se um portal em ogiva e uma ros�cea de talhe manuelino. Abre-se lateralmente na parede sul, um portal de dupla arcaria g�tica, onde se apresentam colunas de m�rmore branco, de n�tida informa��o mud�jar pr�ximos aos colunelos das janelas do antigo solar de D. M�cia no Funchal e as colunas existentes no alpendre da igreja do Loreto na Calheta, provavelmente de origem sevilhana.

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0 corpo da igreja tem uma cobertura de madeira, cujo original desaparecido, como na Matriz de Santa Cruz, deveria ser de alfarge. Este tipo de coberturas pode ser visto na Matriz da Vila da Calheta, Capela do Loreto, Coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara.

Do seu esp�lio deve destacar-se, para al�m da Virgem com o Menino, flamenga do s�culo XVI, um c�lice com pun��o de Antu�rpia, de cerca de 1530, e a magn�fica pintura da Adora��o dos Reis Magos, oferecida segundo consta por Branca Teixeira a filha de Trist�o Vaz, � Capela dos Reis Magos de Machico, hoje transformada em capela do Sant�ssimo. A Capela dos Reis Magos apresenta uma estrutura abobadada assim como capela de S�o Jo�o Baptista, Capela Tumular dos Capit�es Donat�rios, decorada no intradorso das arquivoltas dos arcos uma decora��o fitoformica, compondo-se como um arco flamejante, � rematada pelo bras�o de armas dos Teixeiras.

No Corpo da Igreja abre-se tamb�m a Capela do Esp�rito Santo. fundada por Sebasti�o de Morais, ostentando no topo do arco em asa de cesto do portal as suas armas.

Apresenta uma abobada em ogiva assente sobre misulas. Nesta Capela foi depositado um S�o Sebasti�o de madeira estofada e policromada de origem portuguesa de meados do s�culo XVI.

A Capela-mor abre-se por um arco de volta perfeita, estando o altar-mor ocupado por uma estrutura retabular de n�tida inspira��o maneirista, onde se abrem nichos com esculturas policromadas.

Depositada na sacristia pode referir-se a presen�a de um apostolado em madeira pintada e policromada, onde se apresenta a meios corpos uma �ltima Ceia do Senhor, de talhe portugu�s do fim do s�culo XVI, princ�pios do s�culo XVII, pr�xima � encontrada recentemente, nas matrizes de Santa Cruz, e da Calheta. Do esp�lio de ourivesaria deve destacar-se, para al�m do C�lice j� referido, um outro em prata dourada, portuguesa de in�cios do s�culo XVI, assim como uma cruz processional, um lampad�rio, e seis magn�ficas varas de p�lio, todas atribu�veis a um ourives portugu�s do �ltimo quartel do s�culo XVI, pr�ximas �s obras de Marcos Agostinho, do denominado "tesouro da Ribeira Brava".

Em Machico, deve ainda destacar-se a primitiva CAPELA DE CRISTO, ou CAPELA DOS MILAGRES, pequena constru��o muito adulterada, mas a onde se liga a lenda Machim e Ana D'Arfet . Nesta capela, cuja origem se deve situar na primeira metade do s�culo XV, poderemos ainda hoje encontrar um cristo na Cruz de n�tida inspira��o flamenga. A esta capela liga-se tamb�m o aparecimento da antiga Miseric�rdia, que � anterior a 1520. Muito adulterada,

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pelos constantes aluvi�es que a foram destruindo ao longo dos s�culos, mant�m ainda o seu portal em ogiva.

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Ribeira Brava

"Est� a Ribeira Brava. que por extremo tem nome; e uma aldeia que ter� trezentos fogos. com uma igreja de Sao Bento e bom porto de Calhau mi�do (...) A Ribeira � t�o furiosa quando enche que algumas vezes leva muitas casa e faz muito dano, por vir de grandes montes e altas serras e por ser desta maneira Ihe vieram a chamar Brava" .

A Ribeira Brava � uma das mais antigas freguesias da ilha da Madeira criada em 1440, tendo sido desde cedo povoada. Tornou-se um dos principais centros de produ��o a�ucareira.

Por volta do fim da primeira metade do s�culo XV, foi criada uma pequena ermida. Transformou-se em curato apenas em 1594, tendo no entanto sido sede de colegiada em 1540.

Alberto Artur Sarmento levanta a hip�tese do primeiro engenho, constru�do na Ilha da Madeira por Diogo de Teive, tenha sido n�o no Funchal mas na Ribeira Brava.

No entanto parecem ter existido dois Diogo de Teive, tio e sobrinho. 0 primeiro estabelecido no Funchal , e o segundo, Diogo de Teive sobrinho, na Ribeira Brava. Diogo de Teive sobrinho, era filho de Joana de Teive irm� do primeiro, constituindo morgadio na Ribeira Brava.

Na Ribeira Brava conhece-se informa��o da exist�ncia de uma pequena capela de Nossa Senhora da Apresenta��o, fundada em 1524 por v�nculo morganatico de Jo�o Mendes de Brito e de sua mulher Isabel Fernandes Tavares.

A igreja matriz da Ribeira Brava, apesar de muitas adultera��es ao longo dos tempos encerra em si numerosos elementos de interesse.

Fundada no �ltimo quartel do s�culo XV, apresenta uma nave �nica, na qual se recortam capelas. Apesar das modifica��es ainda se reconhece um arco ogival em cantaria bas�ltica, assim como um pia baptismal de intensos lavores manuelinos, onde para al�m de uma legenda se podem observar elementos decorativos como cordas, folhagens, frutos, e animais. Da �poca primitiva � tamb�m o p�lpito, onde se recorta na sua base um anjo, atravessado por uma fazenda.

N�o esque�amos que prov�m da matriz da Ribeira Brava, as pinturas flamengas atribu�das ao mestre de Morisson, ADORA��O DOS REIS MAGOS e ADORA��O DOS PASTORES ou NATIVIDADE, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal. Da Ribeira Brava � ainda o tr�ptico DESCIDA DA CRUZ , JOS� DE

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ARIMATEIA E MARIA MADALENA da antiga Capela do Bom Jesus da Ribeira Brava, mas reencontrado na Igreja Matriz. Pouco prov�vel � a rela��o deste quadro com o documento encontrado pelo Pe. Pita Ferreira, em que se prova a encomenda de um quadro a Fern�o Gomes pouco antes de 1590, encontrado no Livro primeiro da Confraria do Senhor Jesus: "Levou Fernam Gomez de pintar e dourar o Retabolo trinta e quatro mil reis".

Curiosa � a exist�ncia de um �leo sobre madeira, proveniente da S� do Funchal e hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal, representando a Ascens�o de Cristo, muito pr�ximo � obra de Fern�o Gomes, veja-se at� a sua rela��o com o desenho das colec��es do Museu Nacional de Arte Antiga de Fern�o Gomes, da Ascens�o de Cristo.

Na Igreja Matriz da Ribeira Brava, poderemos ainda hoje encontrar um magn�fico �leo sobre madeira, representando A VIRGEM COM O MENINO com S�O BENTO E S�O BERNARDO, atribu�do pelo Dr. Jo�o de Couto a Francisco Henriques, mestre dos pain�is da Igreja de S�o Francisco em �vora

Na escultura, especial destaque deve ser dado � VIRGEM COM O MENINO, flamenga, estofada, policromada e dourada, de in�cios do s�culo XVI, colocada em altar seiscentista no corpo da igreja.

Um S�O PEDRO, escultura em madeira, estofada e policromada de um atelier portugu�s de influ�ncia flamenga de in�cios do s�culo XVI, deve merecer a nossa aten��o.

Digna de destaque � a antiga imagem da Capela de Nossa Senhora da Apresenta��o, escultura em madeira policromada e dourada de in�cios do s�culo XVI, de origem flamenga, agora depositada na Igreja matriz.

Na ourivesaria n�o ser� por demais notar a extraordin�ria qualidade de um conjunto de pratas portuguesas atribu�veis a Marcos Agostinho, ourives madeirense, activo sobretudo no �ltimo quartel do s�culo XVI.

Do conjunto constitu�do por, turibulo, lampad�rio, bandejas, naveta, caldeirinha, varas de p�lio, casti�ais, lanternas etc, destaque-se a Cruz processional, que ostenta as iniciais M.A. (Marcos Agostinho), e a data de 1584.

Todo o conjunto vive de uma motiva��o decorativa, pr�xima a uma linguagem do Maneirismo. Este esp�lio encontra-se hoje reunido na chamada sala do tesouro da igreja, constituindo um motivo de especial interesse.

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Ponta de sol

"ME/M�Do/FA/ZERE/DOM/EMANUEL/REI/DE/PORTUGAL/ ANI/D./1499", esta � a inscri��o no peso de bronze da vila da Ponta de So1.

A Ponta do Sol, vai desenvolver-se de forma not�ria, no ultimo quartel do s�culo XV.

D. Manuel criar� o munic�pio da Ponta do Sol, em 1501 por carta datada de 2 de Dezembro.

"Chegou a uma ponta que faz abaixo huma l�gua e entra muito mar; e porque na rocha que esta sobre a ponta se enxerga de longe e se v� claro uma vea redonda na mesma rocha, com uns raios que parece sol, deo-lhe o nome o capitam a Ponta do Sol"

Esta � a descri��o de Gaspar Fructuoso, sobre o percurso de reconhecimento de Goncalves Zarco, a quando do descobrimento da ilha chegado ao local, que acabou por se chamar Ponta do Sol.

Um dos primeiros sesmeiros, foi Rodrigo Anes o "Coxo", fundador de uma pequena capela da invoca��o da Virgem, Santa Maria da Luz.

Rodrigues Anes est� tamb�m ligado � constru��o da igreja Matriz que parece ter-se iniciado por volta de 1486, da invoca��o tamb�m da Senhora da Luz.

A igreja matriz � hoje um conjunto harmonizado por obras do s�culo XVIII.

Da �poca primitiva, deve particularmente atender-se ao tecto de alfarge, Mudejar, do inicio do s�culo XVI, que cobre o altar-mor, assim como uma imagem de Nossa Senhora com o Menino, de uma oficina flamenga. O ret�bulo do altar mor, de prov�vel oficina portuguesa de meados do s�culo XVI, apresenta no seu emolduramento, ornados de inspirados em gravuras flamengas de meados do s�culo XVI. Deve referir-se de forma especial, ainda a presen�a de uma pequena imagem de Nossa Senhora da Luz de meados do s�culo XVI de um atelier portugu�s, estofada policromada e dourada.

De destacar � ainda, caso �nico na ilha da Madeira, uma Pia Baptismal em ceramica, esmaltada a verde, �xido de cobre, relevada, onde aparecem como motivos decorativos, conchas e encordoamentos. Deve tratar-se de um trabalho mudejar, produzido em Sevilha no inicio do s�culo XVI.

No que respeita � ourivesaria, poderemos referirmo-nos a v�rios exemplares dat�veis do �ltimo quartel do s�culo XVI. Destaque-se a presen�a de uma cruz

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processional de prata portuguesa e dois lampad�rios da Capela do Santissimo Sacramento. Na Ponta do Sol, de particular interesse, � o que resta do conjunto, da Lombada dos Esmeraldos, constitu�da por Casa, Capela, Engenho, terras agr�colas, etc. Lombada caracteriza na Ilha da Madeira, "encosta", extens�o de terra n�o muito inclinada e ar�vel. Jo�o Goncalves Zarco, deu as suas terras da Lombada a seu filho Rui Gon�alves da C�mara. Em 1474, foi para os A�ores, onde ocupou o cargo de Capit�o Donatario da Ilha de S�o Miguel. 0 Morgadio da Lombada foi vendido a Jo�o Esmeraldo, que a transformou, num dos mais produtivos redutos do a��car na Ilha da Madeira.

Dessa propriedade, ainda hoje reconhecivel apesar de muito transformada por obras dos s�culos XVII e XVIII, chegou-nos o Solar dos Esmeraldos e a Capela do Esp�rito Santo.

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As Calhetas

"Themos por bem e fazemos do dito lugar da Calheta, villa e queremos que se chame villa noua Caleta e tiramos e desmembramos de ser do termo da dita vila do Funchal e de sua jusrisdi�am como atee ora foi e lhe damos por termo das baixas da madallena pelo maar ate pomta de trystam e pola terra comtra a villa da ponte do soll partindo aguoas vertentes contra o arco". Por estes termos foi passada a Calheta a Vila concedida por carta r�gia datada de 1 de Julho de 1502.

A Calheta vai desenvolver-se extraordinariamente ao longo do �ltimo quartel do s�culo XV e por todo o s�culo XVI. Ser� um dos principais centros de produ��o e transforma��o da cana do a��car.

Neste logar da Calheta, mais abaixo chagado a uma fermosa ribeira, se fundou a villa, que se tomou o nome de calheta, amais f�rtil de todas as da ilha, por ter maior comarca. He esta villa t�o nobre em seus moradores, como abastada pelos muitos mantimentos que nela se ach�o. Esta villa da Calheta e seu termo foi condado do ilustrissimo Capitam Sim�o Gon�alves da C�mara, Conde de vila Nova da Calheta" . Este texto de Gaspar Fructuoso, refere-se ao 5� Capit�o Sim�o Gon�alves da C�mara que participou, em numerosas campanhas na Costa africana. D. Sebasti�o em 1576, far-lhe-� a merc� do Condado da Calheta.

Desde sempre qua a Calheta se ligar� � fam�lia dos capit�es donat�rios do Funchal.

Uma das lombadas da Calheta pertenceu a Jo�o Gon�alves da C�mara, e uma outra foi entregue por Jo�o Gon�alves Zarco a sua filha D. Beatriz, casada com Diogo Cabral, fundadores da Capela de Nossa Senhora da Estrela, j� referida. Dos tempos da economia a�ucareira, deveremos antes de mais referir a Igreja matriz da Vila da Calheta, da invoca��o do Esp�rito Santo.

Deve observar-se a sua proximidade com as matrizes de Machico ou da Ponta do Sol, e da rela��o com a obra de mestre Pero Anes .

Abre-se por via de um portal em ogiva, onde se reconhecem capiteis de sabor arca�zante com folhagens e figuras. Organiza-se a partir de uma nave �nica, coberta por um excepcional tecto de madeira de cedro pintado, de alfarge, de n�tido recorte mudeiar. No corpo da igreja a decora��o concentra-se nos tirantes, pela presen�a de la�arias geom�tricas. 0 tecto da capela-mor apresenta ainda uma decora��o mais rica, pela exist�ncia de estalactites, estalagmites e favos dourados. Colocado no altar-mor de arranjo seiscentista, descobre-se um sacr�rio em �bano e prata dat�vel do fim do s�culo XVI, princ�pio do s�culo XVII. Prov�m da Matriz da Calheta os pain�is laterais de um tr�ptico hoje

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desaparecido, representando o Anjo e a Virgem da Anuncia��o, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal. Encontra-se colocada no altar-mor uma cruz processional em prata dourada, dat�vel do in�cio do s�culo XVI, prov�vel oferta do Rei D. Manuel � Matriz da Calheta. Refira-se desde j� a exist�ncia na igreja de um conjunto de pratas portuguesas do �ltimo quartel do s�culo XVI. como varas de p�lio, lanternas, caldeirinha, casti�ais, pr�ximas �s da matriz da Ribeira Brava. Na escultura deve destacar-se um conjunto da "�1tima Ceia", estofada, policromada e dourada, em corpo inteiro, muito pr�xima, �s j� referidas a quando das passagens sobre a Igreja matriz de Santa Cruz e de Machico. Para um roteiro dos resultados art�sticos da economia a�ucareira, nao poderemos esquecer, a CAPELA DO LORETO, fundada segundo uns por Pedro Gon�alves da C�mara, neto de Jo�o Gon�alves Zarco, ou por sua mulher D. Joana d'E�a, camareira mor da rainha D. Catarina.

A Capela esteve ligada segundo tradi��o a um solar, tendo sido sede de um morgadio. A Capela apesar de alterada conserva algumas colunas de um primitivo alpendre em m�rmore branco e de prov�vel produ��o sevilhana do in�cio do s�culo XVI. De destacar � ainda a porta lateral da capela, pela presen�a de um arco em contracurva de n�tido sabor manuelino, encimado pela cruz de Cristo.

De real�ar � a cobertura da capela por um tecto de madeira de cedro, em alfarge, mudejar, do in�cio do s�culo XVI, repintado sucessivamente. Ainda na Calheta, destaque especial deve ser dado � pequena capela do morgadio dos Reis Magos, fundada por Francisco Homem de Gouveia e sua mulher Isabel Afonso, cerca de 1529. Nesta capela, para al�m de um tecto simples de inspira��o mudejar, deve referir-se o ret�bulo,onde nos aparece na sua estrutura central uma cena esculpida dos Reis Magos, em madeira policromada e dourada, aparecendo nos pain�is laterais, os doadores, Francisco Homem de Gouveia e Isabel Afonso. 0 Conjunto deve ter sido encomendado a um atelier flamengo de Antu�rpia da primeira metade do s�culo XVI.