A Saúde pelo Avesso

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A Saúde pelo Avesso – Roberto Passos Nogueira P. 1 A SAÚDE PELO AVESSO ROBERTO PASSOS NOGUEIRA

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Uma ampla discussão histórica e filosófica sobre a saúde a partir das teses heterodoxas de Ivan Illich

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ROBERTO PASSOS NOGUEIRA

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A saúde designa um processo de adaptação. Não é o resultado de instinto, mas uma reação autônoma, embora culturalmente moldada, diante da realidade socialmente criada. Ela designa a habilidade de adaptar-se aos ambientes mutáveis, ao crescimento e ao envelhecimento, à cura quando enfermo, ao sofrimento e à expectativa pacífica da morte. A saúde abrange o futuro também e, portanto, inclui a angústia assim como os recursos internos para conviver com ela.

IVAN ILLICH

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INTRODUÇÃO

Na primeira metade dos anos 70, um ex-padre austríaco-americano1 lançava a crítica mais contundente até então empreendida contra a medicina moderna. Dizia Ivan Illich, logo no primeiro parágrafo de sua Nêmesis da Medicina, que “ a medicina institucionalizada transformou-se numa grande ameaça à saúde”.2 A medicina ameaça a saúde, segundo Illich, ao difundir três formas principais de iatrogênese.3 Em primeiro lugar, pela iatrogênese clínica, que é causada pelos próprios cuidados de saúde, consistindo nos danos infligidos pela falta de segurança e pelo abuso das drogas e das tecnologias médicas mais avançadas. Em segundo lugar, pela iatrogênese social, decorrente de uma crescente dependência da população para com as drogas, os comportamentos e as medidas prescritas pela medicina em seus ramos preventivo, curativo, industrial e ambiental; a iatrogênese social é, ao fim e ao cabo, sinônimo de medicalização social, porque expropria a saúde enquanto responsabilidade de cada indivíduo e de sua família e dissemina na sociedade o “papel de doente”, que é um comportamento apassivado e dependente da autoridade médica. Finalmente, há um processo mais enraizado do ponto de vista histórico, que é a iatrogênese cultural4, ou seja, a destruição do potencial cultural das pessoas e das

1 Ivan Illich nasceu em Viena, Áustria, em 4 de setembro de 1926, e, após estudos de história, filosofia e teologia, em Nova Iorque, ordenou-se padre em 1951. Exerceu as funções de Vice-Reitor da Universidade Católica de Porto Rico até 1960, de onde migrou para Cuernavaca, México, após desaprovar publicamente a intervenção do bispo de Ponce nas eleições para a Universidade. As controvérsias causadas por suas denúncias contra a atividade missionária tradicional levaram-no a abandonar a Igreja em 1969. Em Cuernavaca, ajudou a criar o Centro Intercultural de Documentação (CIDOC), instituição onde, na primeira metade da década de 70, promoveu os famosos seminários que deram origem a seus livros críticos de temas da modernidade - os meios de transporte, o sistema educacional e a medicina. Nos anos recentes tem atuado como professor visitante e lecturer em diversas universidades americanas e européias, ocupando-se, principalmente, da história do alfabeto, do livro e do saber na Europa medieval. 2 Em inglês: “The medical establishment has become a major threat to health”. Nêmesis da Medicina, a Expropriação da Saúde foi escrita enquanto Illich se encontrava no CIDOC em Cuernavaca, em 1973, e dela apareceram três diferentes edições - em Londres (1974), Paris (1975) e Nova Iorque (1976). A edição brasileira, com o título invertido (A Expropriação da Saúde - Nêmesis da Medicina), publicada pela editora Nova Fronteira, foi traduzida da edição francesa. Na Introdução da edição brasileira, a primeira frase lê-se: “A empresa médica ameaça a saúde, a colonização médica da vida aliena os meios de tratamento, e o seu monopólio profissional impede que o conhecimento científico seja partilhado”. 3 O neologismo iatrogênese é derivado do adjetivo iatrogênico, que, no léxico médico, caracteriza a condição de dano ou enfermidade gerada por um procedimento de diagnóstico ou de terapia aplicado pelo profissional médico (iatro, em grego). O termo mais usado em português é iatrogenia. 4 Na primeira edição da Nêmesis, esse tipo de iatrogênese é denominado estrutural.

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comunidades para lidar de forma autônoma com a enfermidade, a dor e a morte. Neste caso, o que caracteriza o dano é a perda de tudo aquilo que as tradições criaram ao longo dos séculos enquanto expedientes culturais eficazes para enfrentar a vulnerabilidade humana diante de tais contingências da vida. As práticas tradicionais e o saber espontâneo que lhes acompanham foram, nos últimos séculos, substituídos pela figura plenipotente do médico e de sua técnica heterônoma, que trazem a promessa delusória de estender indefinidamente a existência das pessoas.

A medicina na modernidade volta-se, assim, contra seu objetivo inerente de promover a saúde, e entra numa condição trágica aludida nos mitos gregos: nêmesis é o castigo infligido a homens ou a heróis (como Prometeu e Sísifo) devido a feitos excepcionalmente audaciosos, que anunciam uma pretensão de apropriar-se da potência e do conhecimento peculiares aos deuses.5 A nêmesis que acometeu a medicina ocidental institucionalizada é, para Illich, uma espécie de castigo por esta ter tido a ousadia de ultrapassar um determinado limiar de desenvolvimento tecnológico, sem considerar uma indispensável contrapartida que advém do exercício da autonomia pessoal de cada um de nós, no referente ao cuidado com a saúde.

Illich introduzia, através desse tipo de crítica social da saúde, elementos de uma análise cultural que eram inéditos e até certo ponto perturbantes não só para os médicos praticantes como também para os que se dedicavam à medicina social. Ehrenreich (1978), em A Crise Cultural da Medicina Moderna, reconhecia que críticas como a de Illich pela primeira vez punham em questão a natureza mesma da medicina. O que Illich indicava não era a necessidade de estender os benefícios da medicina aos desprivilegiados, nem sua denúncia principal eram as ligações espúrias dos médicos com os interesses da grande indústria. O que exigia era nada menos que uma outra medicina, com base numa maneira distinta de entender a saúde. Ao lançar sua crítica cultural, ele estava nitidamente se contrapondo à vertente mais acadêmica da medicina social, que então se

5 Em Mitologia e Religião Grega, Maria Mavromataki observa: “Na era homérica e até os tempos de Heródoto, Nêmesis não era uma deusa mas uma condição filosófica, um sentido moral. Em suas vidas, os homens eram constrangidos por limites e obrigados a obedecer a leis morais que os deuses lhes impunham. Opor-se a essas leis ou transcender as restrições da fraqueza humana significava para os antigos gregos cometer uma ofensa aos deuses – cometer, em outras palavras, o crime de hubris. Se um mortal cometesse hubris, então poderia estar certo de que nêmesis – o poder que punia o que estava errado, a justiça divina – iria em breve acertas as contas com ele. No temor que muitos nutriam pela ira e punição dos deuses encontram-se as origens do culto da deusa Nêmesis (Mavromataki, 1997, p. 128).”

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inspirava na sociologia, na economia política e, mais especificamente, no marxismo.6

Illich veio, nos anos 80, a realizar, em relação à Nêmesis, certos reparos teóricos, cujo teor é decisivo para entender o alcance de suas idéias no contexto contemporâneo das práticas de saúde. O que Illich passou a denunciar desde então não é mais a manipulação da saúde pela organização “clerical” da medicina, mas a conversão da saúde em objeto de uma preocupação compulsiva, fenômeno que ele denominou de “iatrogênese do corpo”. Há de se distinguir, portanto, duas críticas sociais da saúde em Illich. Na primeira, ele considera que as pessoas são expropriadas em sua capacidade de cuidar de sua própria saúde e isto diminui os benefícios que racionalmente poderiam ser retirados da tecnologia médica moderna. A proposta principal de Illich, neste particular, é a de restabelecer um equilíbrio ético-político entre ações de saúde autônomas e heterônomas. Na segunda crítica, considera que se criou na sociedade uma espécie de obsessão com a saúde - trata-se do novo consumismo do “corpo saudável” que é alimentado, de forma difusa em toda a sociedade, por diversos tipos de agentes, especialmente pela mídia. Sua proposta agora é a de difundir um modo de vida alternativo, baseado na economia doméstica da auto-produção de bens e serviços, da qual o cuidado com a saúde possa ser um componente. Illich irá transitar, entre os anos 70 e 80, de uma defesa dos ideais de uma sociedade convivencial (marcada pelo uso humanamente apropriado de cada instrumento e pela produção de valores de uso em complemento aos bens industriais), à defesa dos ideais das comunidades vernaculares (marcadas pela produção caseira e auto-suficiente de bens e serviços). O que há de comum nessas duas críticas é uma tentativa de combinar uma concepção de autonomia moderna – individual e

6 Não surpreende que, em 1975, um marxista ortodoxo, Vicente Navarro, saísse a campo para esclarecer ao público de sua revista que Illich havia invertido os termos da questão ao defender a “ideologia do industrialismo”. Para Navarro estava claro que a dependência dos usuários da medicina era causada não pelo sistema industrial em geral, mas pelo modo de produção capitalista em particular e por seu fetichismo dos bens e serviços, que faz acreditar que ampliando o espectro de consumo - em saúde e de qualquer outra coisa - aumenta também o bem-estar de todos (Navarro, 1975). Para muitos de nós, que, em torno de 1975, freqüentávamos como alunos a pós-graduação do Instituto de Medicina Social, as teses de Illich, lidas na disciplina Saúde e Sociedade, soavam bastante estranhas, parecendo de fato resultarem de uma inversão de valores, já que a “superestrutura”, cultural ou ideológica, era tida como determinante. De um modo geral, nossas simpatias estavam do lado de Navarro. Pertencentes ao main-stream da medicina social, reconhecíamos no pensamento de Illich algo correto na parte referente à iatrogênese, mas, no restante, o que propunha parecia-nos desvarios próprios de um visionário. Esta foi a impressão que sua figura insólita nos deixou (“um monge anarquista”) na palestra proferida no Instituto em 1976: um intelectual muito arguto e provocante, mas sem contato com os problemas reais e prementes de uma sociedade que, como a nossa, tinha uma ampla parcela da população desassistida de qualquer serviço de saúde. Nesse momento, era ainda o jugo da ditadura que considerávamos ser o verdadeiro problema cultural da medicina, pois era esse jugo que nos impedia de sequer poder comentar os desvios das políticas governamentais de saúde.

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social – com estilos de vida e valores defendidos pela moral da tradição filosófica e religiosa do Ocidente.

Este trabalho está dedicado a uma reinterpretação dessas duas críticas sociais da saúde promovidas por Illich. Trata-se de reinterpretar o pensamento de Illich naquilo que tem de mais singular, ou seja, na sua tentativa de juntar a moral cristã tradicional - que comparece em suas obras de uma forma mais ou menos velada - e o racionalismo autonomista do século XVIII, que surge sempre com grande ênfase teórica. Esta combinação não só pode ser detectada nos móveis de suas duas críticas da saúde, mas também está presente na sua justificativa e pregação de novos modos de viver em sociedade.

Quero demonstrar que as idéias contidas na primeira crítica de Illich saíram amplamente vitoriosas no espaço de tempo que medeia entre 1975 e 1995. Mas quero demonstrar também que essa vitória descaracterizou os objetivos políticos radicais que estavam em sua origem e, por isto, Illich reage negativamente a seu aparente sucesso. De certo modo, as idéias autonomistas da primeira crítica foram “capturadas” justamente por quem Illich havia mais severamente criticado – os profissionais de saúde, o Estado e as agências internacionais. Distorcida, disfarçada ou camuflada, a ação autônoma em saúde passou, nos anos 80 e 90, a ser parte das preocupações dos programas oficiais, que, junto com a desprofissionalização e a desinstitucionalização do cuidado, fazem amplo apelo à ajuda mútua e à solidariedade da população, para que esta possa, na medida do possível, resolver seus próprios problemas de saúde. Pode-se dizer, sem exagero, que não há qualquer iniciativa recente de renovação das práticas de saúde que não tenha ressonância num tema já bem tratado na Nêmesis. A ação autônoma e a responsabilização pela saúde e pelos seus riscos passaram a ser instrumentalizadas com um sentido bem menos libertário do que o atribuído por Illich, mas com uma racionalidade similar, de buscar o aumento de sua efetividade, isto é, de fazer com que as ações sociais produzam os resultados esperados. E tal efetividade pode ser examinada em relação a dois outros objetivos complementares: a) o da prevenção dos riscos; e, b) o da diminuição dos gastos nos programas da assistência à saúde.

Três tipos de reação são possíveis quando se toma consciência de que a autonomia em matéria de saúde, tal como compreendida na Nêmesis, está sendo instrumentalizada pelas novas políticas públicas. A primeira leva a colocar Illich no banco dos réus e afirmar que sua concepção faz eco com a “ideologia neoliberal”

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dos que querem desmontar o aparato de bem-estar social, usando o auto-cuidado como um ardil para tornar aceitável a política de contenção de gastos em saúde. A segunda foi adotada pelo próprio Illich – consiste em dar as costas aos autonomistas recém-convertidos (muitos deles, economistas) e ir em busca de uma autenticidade verdadeira e não-manipulável, que para Illich encontra-se nas comunidades vernaculares. A terceira reação é tentar ver o que se pode retirar da Nêmesis e da segunda crítica da saúde que aponte para uma via de superação do antagonismo criado entre as políticas de heteronomia típicas do velho aparato de Estado de Bem-Estar Social e a onda autonomista das novas políticas públicas. Esta é a posição defendida por este trabalho, para o que se faz necessário reinterpretar as duas críticas de Illich e colocá-las em relação com o pensamento de inúmeros outros autores, antigos e contemporâneos.

Não é difícil imaginar que Illich possa ser ajuizado como um precursor do neoliberalismo malgré lui, na medida em que ele investiu fortemente contra o assistencialismo utilitarista do Estado de Bem-Estar Social. Com efeito, Illich enxerga tanto no socialismo como no aparato de bem-estar das democracias modernas a sobrevivência tenaz dos princípios do utilitarismo de Bentham e de seus discípulos, que considera ser o maior responsável pelo crescimento e legitimação das forças heterônomas. No entanto, se Illich, na primeira crítica, via que o mercado cria uma concepção apassivada da saúde que anula o sentido de responsabilidade e autonomia das pessoas, na segunda crítica ele anuncia que a própria noção de autonomia pessoal pode ser manipulada pelas forças do mercado e pelos “Chicago boys”, ou seja, pelos arautos do neoliberalismo. Seu ataque ao utilitarismo recorre aos mesmos argumentos que usa contra os economistas neoliberais de um modo geral. Um ponto central, neste particular, é a figura mítica do Homem Econômico, que ocupa uma enorme extensão nas reflexões éticas e históricas do Illich dos anos 80, por inspiração dos estudos do economista inglês Karl Polanyi.

O presente trabalho pretende promover algumas extensões teóricas dessa segunda crítica social da saúde. Um dos pressupostos que adoto é que existe um homem econômico específico da sociedade pós-industrial, que não é mais concebido pelo aspecto da dependência mercantil mas pela sua autonomia. Ao longo do texto, usarei com freqüência o conceito de sociedade pós-industrial pioneiramente desenvolvido por Daniel Bell7 para demarcar uma diferença que o 7 "A sociedade pós-industrial", diz Bell, "é uma sociedade do conhecimento em um duplo sentido: primeiro, as fontes de inovação derivam cada vez mais da investigação e do desenvolvimento (e de modo mais direto se

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próprio Illich veio a assumir entre sua crítica inicial, dirigida ao industrialismo, e sua crítica dos anos 80, que tem ciência de estar diante de um novo tipo de sociedade, fundada nas tecnologias soft, e essencialmente dependente do conhecimento como fator produtivo (Illich, 1992a, p. 96). Entendo que o que marca a figura do novo homem econômico é justamente uma idealização pelo lado da autonomia: alguém que produz, troca e consome de uma maneira que não é mais automatizada, padronizada ou dependente, como acontecia sob o antigo industrialismo, mas que precisa contar com um grau amplo de liberdade de escolha, de ação e de invenção. É esta condição de autonomia – expressando-se das mais diferentes formas num autonomismo pluralista – que permite fazer do conhecimento e da criatividade fatores de qualidade incorporados diretamente aos novos tipos de processos de trabalho e de consumo. É assim que a ação autônoma, paradoxalmente, e contra tudo o que Illich podia imaginar na década de 70, pôde tornar-se o leit motiv das novas relações econômico-sociais dos anos 80-90. Mas, distinto de Illich, entendo que a onda autonomista do fim do século traz consigo um aumento das possibilidades de realização político-jurídica e ética de certos modos de viver que nos põe numa melhor situação do que estávamos na década de 70, porque nos torna mais conscientes dessa diversidade de modelos de autonomia e nos permite escolher o que nos seja mais apropriado, assim como permitiu a Illich escolher o seu modelo, que corresponde às comunidades vernaculares.

A cultura vernacular pode ser descrita como resultante dos processos cooperativos e auto-sustentados de produção em pequenas comunidades que se recusam a viver em intimidade com o mercado. Na análise dos desdobramentos da segunda crítica, serei levado a discutir como Illich redefine os motivos e o contexto da ação autônoma, buscando na história do Ocidente evidências de que esse modelo de autonomia, fundado na economia doméstica, embora muito antigo, é hoje favorecido pela grande produtividade que se pode alcançar com o uso de modernas tecnologias. Considero que a insistência de Illich no modo de vida vernacular é mais uma indicação de que ele sempre ansiou por identificar uma forma “pura” de autonomia que pudesse ser uma espécie de fonte insuperável de valores morais. Em minha contra-crítica a Illich, pleiteio que existe uma pluralidade de soluções possíveis para as questões tanto da autonomia quanto da saúde, nenhuma das quais pode ser tida como perfeita, definitiva ou

produz uma nova relação entre a ciência e a tecnologia em razão do caráter central do conhecimento teórico); segundo, a carga da sociedade que se mede por uma maior proporção do Produto Nacional Bruto e uma maior taxa de emprego reside cada vez mais no campo do conhecimento (Bell, 1991, p. 249)”.

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verdadeiramente autêntica. Entendida assim, a autonomia tem de ser vista como algo que pode ser usado como um instrumento político ou ético para alcançar certos fins justificáveis por argumentação, de tal modo que sua inserção na vida social contemporânea não precisa mais estar comprometida com a “produção autônoma de valores de uso” como também pode ser desvencilhada dos seus laços explicitamente filosóficos com a “metafísica do sujeito” (Habermas, 1990a) e com as “metanarrativas emancipatórias” (Lyotard, 1993a).

Apoiando-me no pragmatismo, pretendo que a distinção entre autonomia e heteronomia possa ser assim historicizada como parte da práxis e dos discursos ético-políticos. Quero argüir, seguindo a Dewey, que a distinção entre liberdade e determinação é de grau e não devida a uma natureza que reside dentro de nós. Dado que a toda ação está sempre inserida em situações variáveis de contingência (e não de uma liberdade metafisicamente concebida), o que podemos ainda chamar de autonomia sempre envolve elementos de heteronomia ou de determinação extrínseca. Neste caso, é autônoma a maneira de proceder que esteja diferenciada pela riqueza e flexibilidade das escolhas. Vista como formas variadas de fazer e pensar por conta e risco de cada um, a autonomia é produto de contingências históricas e sociais tanto quanto o é a heteronomia; é algo a que se chega pela ação e pelo progresso de uma dada sociedade ou comunidade e não algo que se carrega dentro de si. Portanto, a autonomia não resguarda por si elementos que devam induzir a uma estima moral independentemente do contexto ou do momento histórico.

A autonomia é equivalente a um caminho de auto-enriquecimento pela possibilidade que traz de multiplicar as experiências de aprendizagem e as escolhas que cada um tem que realizar por sua conta e risco.8 Enquanto isso, a heteronomia caracteriza o que já encontramos pronto para ser usado, graças à acumulação social de experiências e de conhecimentos; portanto não admite muita variação ou adaptação. Por este ponto de vista, a ciência pode ser posta do lado da autonomia tanto quanto o pode a tradição desde que não existam dogmas ou limites tidos como instransponíveis e desde que o saber de cada uma seja tornado acessível a todos, seja democratizado. Aprendemos de Illich que não há razão para imaginar que a ciência seja sempre mais eficaz que a tradição quando se trata de enfrentar a enfermidade, a morte e o envelhecimento. 8 Essa interpretação tenta fazer uma aproximação entre autonomia e “auto-enriquecimento” que é um conceito desenvolvido por Rorty no contexto de uma reflexão moral sobre o pensamento de Freud (Rorty, 1991a, pp. 143 e ss.). Deve ser observado, no entanto, que Rorty faz pouco uso do termo autonomia, que vê ainda muito marcado pela filosofia idealista de Kant.

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Devo aclarar que a questão do “uso” ou da “reinvenção “ das tradições, da maneira como pretendo tratá-la com relação ao pensamento de Illich, é algo de que Rorty nunca se ocupou, por ser um crente bastante ortodoxo do Iluminismo. É possível que o William James de As Variedades de Experiências Religiosas e de A Vontade de Crer esteja mais próximo dessa posição, mas, de todos os modos, convém advertir desde logo que se trata de idéias pouco ortodoxas face ao conteúdo efetivamente modernista da filosofia de Dewey e Rorty, que são os principais pragmatistas a quem tomo como guias neste trabalho. O ponto de vista pragmatista não-ortodoxo que defendo aqui é que tanto a ciência quanto a tradição podem ser usadas para aumentar o grau de flexibilidade e plasticidade das escolhas individuais e coletivas que caracterizam a autonomia. Aplico, neste caso, o critério pragmatista que procura garantir o que é mais útil para resolver um dado problema numa dada circunstância9, critério que não escamoteia a necessidade de instrumentalização de qualquer coisa que seja.

Ver-se-á que a própria concepção da saúde expressa na Nêmesis como uma capacidade autônoma de lidar com o organismo e com o ambiente admite uma releitura pragmatista dessa espécie desde que se entenda que a saúde também é progressiva, que se dá por meio de um progresso que é a ampliação do controle reflexivo dos fatores restritivos do organismo e do meio. As posições sustentadas por Illich nessa obra têm maior consonância com os pontos de vistas pragmatistas do que aquelas que veio a defender posteriormente, quando se voltou para a tarefa de identificar uma forma autêntica e definitiva de autonomia através da cultura vernacular. A reinterpretação que tenciono fazer da Nêmesis conduz-me a um caminho oposto ao do último Illich, que é o de buscar pluralizar as descrições da autonomia e as descrições da saúde de tal modo a identificar uma grande quantidade de bons exemplos alternativos para dar conta da questão - de que modo devo cuidar de mim e de minha saúde?

É necessário, neste ponto, tecer alguns breves comentários sobre a abordagem reinterpretativa que adoto para tratar a Nêmesis e o pensamento de Illich. O conceito de reinterpretação que uso é um sinônimo de recontextualização, no sentido dado a este termo por Richard Rorty e pode ser assim resumido: é a multiplicação ao máximo do número de (con)textos a partir da qual se examina criticamente um pensador e sua obra. Recontextualizar Illich é pôr sua crítica

9 O pragmatismo aceita com naturalidade que seja acusado de “relativismo cultural” por quem acha que a moral deve ter um fundamento racional que extrapole todos os limites culturais da história e de uma dada comunidade (ver Rorty, 1998, pp. 167 e ss.).

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radical em contato com inúmeros textos e contextos: Aristóteles, os estóicos, Kant e os iluministas, Marx, Nietzsche, Foucault, Rorty, as novas políticas de promoção de estilos saudáveis de vida, o ethos de risco criado pela AIDS, a sociedade pós-industrial e assim por diante. O propósito de uma recontextualização (Rorty, 1993, p.110) é de “imaginar tantos novos contextos quanto for possível” para as idéias que um texto contenha. A recontextualização resulta de um entendimento quanto ao que há de essencialmente comum nas variadíssimas formas de interpretação que se difundem na filosofia, na sociologia, nas ciências físicas, na crítica literária, etc. (Rorty,1993, pp. 93 e ss. ).Trata-se de um entendimento anti-dualista da interpretação, na medida em que recusa as dicotomias do tipo fato versus valor, ciências naturais versus ciências humanas, prática científica versus prática ético-estética. A noção de recontextualização abstrai também qualquer diferença que algum teórico estabeleça entre texto e contexto: todo contexto tem de ser lido como texto e vice-versa. Com essa compreensão do processo de recontextualização, o neopragmatismo busca contornar os dualismos resultantes dos esforços de auto-identificação empreendidos por algumas correntes da filosofia, da psicanálise e das ciências humanas, que se atribuem o uso de um método interpretativo, de detecção de sentidos, portanto, “hermenêutico”, enquanto as ciências naturais usariam um método de representação de fatos. Para Rorty, assim como para Putnam10, não existe qualquer diferença entre sentido e fato - o fato existe como uma espécie a mais de significado, é uma variante daquilo que podemos apreender quando lemos um texto.

O fato, portanto, não tem a acepção de algo “dado e certo”, mas apenas de algo tão falível quanto uma certa leitura que, de todos os modos não é arbitrária, porque tem que ser justificada pelas crenças que compartilhamos (cientistas e leigos). Os pragmatistas foram dos primeiros a se preocuparem com um tematização das incertezas do conhecimento científico, não só por uma reação contra os imperativos e o apriorismo da filosofia de Kant, mas pela proximidade intelectual que sempre mantiveram com as novas teorias e descobertas dos seus colegas da ciência, tal como a discussão de James sobre a entropia e as leis da termodinâmica, recentemente recuperadas por Diggins (1994, pp. 108 e ss. ). A 10 Este ponto é de ampla coincidência de opinião entre os pragmatistas, o que os leva a rejeitar a proposta de que a ciência opera com juízos distintos (‘mais objetivos”) do que aqueles da ética. Putnam (1992, 1995), na questão da verdade, enxerga em Rorty um relativismo que confunde verdade com justificação; esta posição ele pretende corrigir mediante um “realismo com face humana”, que, apoiando-se em William James, admite uma concepção absoluta e universal da verdade nas condições de uma justificação ideal, válida como “término do inquérito”. Rorty (1991b), por sua vez, apoiando-se em Dewey e Davidson, considera que não há nada de muito de interessante a dizer sobre a verdade e que os filósofos deveriam se limitar a tratá-la no âmbito da justificação, como uma “assertividade garantida” (warranted assertibility).

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crítica à concepção do Ser como permanência e identidade, como metafísica da presença, representou também um importante exercício intelectual para Dewey, que tomava o mundo de uma forma heracliteana, isto é, pelo vir-a-ser, pela mudança constante de forma e conteúdo. O conhecimento científico é incerto não por uma questão de grau, como viria a defender o neopositivismo na sua interpretação da inferência, mas, sim, porque não há qualquer “essência” do ser que deva ser gradualmente descoberta. Esse anti-essencialismo foi transformado por Rorty numa crítica do conhecimento como reflexo ou espelho da natureza. O anti-essencialismo de Rorty pode ser resumido assim: o que sabemos certamente é causado11 pelo mundo mas isto apenas nos autoriza a dizer que nossas crenças, sempre corrigíveis, habilitam-nos cada vez mais a melhor lidar (to cope) com esse mundo, mas não nos fazem melhor copiar (to copy) a natureza ou a essência do que existe “lá fora” (out there).

Rorty, ao desenvolver a idéia de recontextualização, parte do pressuposto, que vem de James e Dewey, de que toda crença liga-se a um desejo, da mesma maneira que toda crença é uma regra de ação. Mas Rorty reelabora esse pressuposto de uma forma muito peculiar através da idéia de rede ou teia de crenças e desejos, que se inspira numa leitura pragmatista de Freud. A teia de crença e de desejos está sendo retecida continuamente em nós, e a complexidade dessa operação de tecedura varia deste o nível mais elementar - um simples hábito - até ao nível mais reflexivo de uma pesquisa, e que em qualquer nível empurram o indivíduo para a ação. Alguns segmentos dessa teia atuam de uma maneira transparente para o sujeito, enquanto outros segmentos projetam-se desde e para o inconsciente constituindo semi-eus relativamente autônomos. A recontextualização surge a partir de um dado grau de complexidade dessa operação contínua de tecedura e pode ser tomada como sinônimo de inquérito, investigação, pesquisa ou (re)interpretação. Por conseguinte, não pretende ser nem uma “descoberta” nem uma doação de significados diante de um texto, mas sua recolocação numa teia de novas crenças e novos desejos.

Para cumprir com tal tarefa, o esforço de recontextualização neste trabalho estende-se por duas partes. Em Da Convivencialidade aos Valores Vernaculares o 11 A tese de que o mundo causa nossas crenças é usada por Rorty como uma defesa contra as acusações de “relativismo” : mesmo negando a idéia de “um mundo como ele realmente é” ou de que nossas crenças “representem” o que há no mundo, Rorty admite um sentido de determinação dessas crenças por pressões causais, que podem ser descritas de diferentes maneiras e para diferentes objetivos. Seguindo a Davidson, propugna uma imagem materialista e fisicalista das relações entre indivíduo e mundo: na análise do que motiva as ações humanas estados “mentais”, crenças e desejos, podem funcionar como “razões” tanto quanto os estados fisiológicos ou neurofisiológicos podem funcionar como “causas” (Rorty, 1990b, pp. 113 e ss.).

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foco está colocado em torno ao próprio pensamento de Illich - são suas idéias sobre autonomia e saúde que constituem o objeto principal de indagação, que interpreto pressupondo em sua base uma síntese conceitual muito original entre moral cristã e Iluminismo; em Descrições da Saúde e da Autonomia, procuro desenvolver, em caráter de ensaios, alguns temas inspirados tanto pela primeira quanto pela segunda críticas, multiplicando os textos e contextos descritivos da saúde e da autonomia de tal modo a tornar mais claro como as idéias de Illich podem contribuir ao debate das questões contemporâneas da saúde.

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PARTE I - Da Convivencialidade aos Valores Vernaculares

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A Primeira Crítica Social da Saúde

A Nêmesis pode ser considerada um libelo contra-cultural, um produto típico da geração dos anos 60 e 70. Ela dá, de certo modo, continuidade às indagações anteriores de Illich sobre uma sociedade convivencial, caracterizada pelo fato de seus instrumentos serem plenamente controlados pelo homem.12 Illich professava aí sua crença de que seria necessário realizar “uma revolução institucional”, que reinstalasse o antigo equilíbrio existente entre a arte médica e as práticas de saúde da população. Caberia ao público leigo - e jamais aos profissionais de saúde - tomar a iniciativa de desencadear essa profunda mudança cultural.

A associação do nome de Illich com o movimento ecológico é inevitável, mas, em diversas passagens de suas obras, ele mesmo se encarrega de rechaçar tal vinculação, quando afirma que a crise do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade industrial não pode ser contornada através de uma “ideologia ecológica”, que, como uma espécie de nova religião, modernizasse o mito da santidade da natureza (NM13, p. 267). Com efeito, a auto-compreensão de Illich na Nêmesis e nas obras do mesmo período não é a de um reformista ecológico, mas a de um crítico radical da sociedade industrial em seu todo.

Pode-se afirmar, assim, que a Nêmesis constitui uma ilustração de alguns dos conceitos da utopia convivencial aplicados ao campo específico das tecnologias médicas. Contudo, as propostas de ação que aí encontramos aparecem sobriamente restritas a um quadro filosófico, ético e político muito geral - Illich concentra-se na crítica da modernidade médica e não num detalhamento de eventuais meios convivenciais. Um ponto central em sua visão crítica é o seguinte: o consumo intensivo da medicina moderna é uma forma de dependência, no sentido específico de uma dependência a uma droga. Esta forma de dependência é assegurada, de um lado, pela monopolização do exercício profissional pelos médicos, e, de outro, pela confiança que os leigos depositam gratuitamente nos

12 Na sociedade convivencial, “a ferramenta moderna está a serviço da pessoa integrada na coletividade, e não a serviço de um corpo de especialistas. Convivencial é a sociedade em que o homem controla a ferramenta”(1976, pp. 10-11). O lento trânsito dos automóveis nas grandes cidades constitui um exemplo em que a sociedade contemporânea, ao ultrapassar o limiar de convivencialidade, e ao incorrer num gasto excessivo de energia em certas ferramentas, passa a escravizar e a imobilizar o homem. A bicicleta, ao contrário, seria o caso paradigmático de um instrumento convivencial entre os meios de transporte (Illich, 1985, pp. 22 e ss.). 13 Neste trabalho, todas as citações da edição americana da Nêmesis, de 1976, aparecerão doravante assinaladas pela abreviatura NM, a fim de que possam ser melhor identificadas.

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agentes da medicina (NM, p. 46) . Para ultrapassar as condições de dependência e obter uma verdadeira satisfação, as pessoas terão que recuperar sua autonomia no exercício de inúmeras formas de cuidado que não necessitam da intervenção profissional. Só com uma desmedicalização, que limite o alcance e a intensidade das terapias heterônomas, poderão gozar de uma “satisfação eqüitativamente compartilhada”.14

Em princípio poder-se-ia pensar que a iatrogênese seria eliminada mediante melhor aplicação da ciência médica e pelo aprimoramento do desempenho técnico de seus praticantes. Illich rejeita de imediato tal hipótese, desferindo um ataque virulento contra a “religião do cientificismo” dos médicos que se transformou numa arma inquisitorial contra as avaliações externas de natureza política. Os médicos tendem mais a proteger os seus interesses, ao apelarem para a autoridade da ciência, do que os interesses dos seus clientes. Recusam-se a ampliar os espaços de autonomia dos seus clientes, tanto quanto rechaçam eventuais avaliações políticas e técnicas externas que poderiam pôr em risco seu poder monopólico de corporação (NM, pp. 254-5).

Quanto aos movimentos que defendem uma melhoria da estrutura e desempenho do conjunto dos serviços de saúde, mediante uma reorganização administrativa e a aplicação de medidas políticas e legislativas com vistas a conter a iatrogênese, Illich acredita que nenhuma reforma dessa natureza terá efetividade se não considerar dois tipos de limites. Primeiro, um limite de eqüidade, pelo qual nenhuma pessoa poderá receber cuidados intensivos em tecnologia, portanto, dispendiosos, quando outras pessoas sentirem que estão sendo privadas de seu direito a uma igual participação na alocação de recursos públicos para atender uma condição similar. Segundo, um limite de liberdade civil em saúde, pelo qual nenhuma pessoa será internada ou tratada contra sua vontade, em nome da saúde (NM, p. 243).

Esses dois limites correspondem a duas dimensões de ordenamento público da saúde: direito e liberdade. A proposta de Illich de desmedicalização passa por ambas dimensões. Quanto ao direito à saúde, porque a diminuição do grau de institucionalização e de manipulação profissional da medicina, e a priorização de ações e instrumentos efetivos levam a uma contenção nos gastos sociais em saúde, vindo a favorecer o acesso ampliado da população aos serviços heterônomos. Mas a eqüidade em saúde compreende também a possibilidade de 14 “Equitably shared satisfaction” (NM, p. 270).

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acesso a níveis generalizados de competência e confiança na realização de atos de auto-cuidado, que deveriam estar sendo protegidos e promovidos pelas políticas públicas. É preciso que a lei conserve a distribuição do direito à saúde como sendo uma liberdade civil, como sendo o direito de liberdade em saúde ou a saúde como liberdade. Assumindo um princípio caro ao liberalismo e desenvolvendo-o especificamente no campo da saúde, Illich admite que o direito à saúde como liberdade tem um horizonte mais amplo e precede ao direito ao acesso a serviços heterônomos. Faz-se necessário reconhecer tal precedência para que a produção global de serviços de saúde seja mantida em níveis que não gerem iatrogênese. A limitação da iatrogênese só é possível em sociedades democráticas e com uma imposição, pelas políticas públicas, do respeito ao princípio de eqüidade (NM, p. 243). Mas uma sobreprodução de serviços de saúde monopolizados pelo poder heteronômico, mesmo que estes sejam distribuídos em forma eqüitativa, fatalmente destruirá a saúde como liberdade e favorecerá a iatrogênese (NM, p. 242).

A proposta de desprofissionalização da medicina obedece a essa mesma feição de ênfase na liberdade civil, pela qual uma certa tradição de socialismo libertário se encontra e se identifica com as raízes do liberalismo clássico de Adam Smith e Suart Mill. Illich mostra-se favorável a que o controle da profissão médica (e das profissões em geral) passe cada vez mais por uma mediação da opinião pública, por uma avaliação realizada diretamente pela comunidade leiga. Não se trata, esclarece, de negar a utilidade de uma força de trabalho específica que cuide da pessoa quando nasce, quebra uma perna ou fique inválida. O que a desprofissionalização implica é na recusa de um endosso político do Estado e da destinação de recursos públicos para sustentar as maquinações corporativas dos médicos, através de seus “clubes de Cós”, onde apenas um par é considerado capaz de conferir legitimidade a outro, onde só um dos seus membros é tido como autorizado para avaliar a qualidade dos serviços que prestam ou pode ser guindado a uma função social de julgar se uma pessoa está apta ou não para freqüentar o seu trabalho.

Vale aditar aqui uma citação que brilhantemente resume tudo o que Illich pensa sobre desmedicalização e desprofissionalização - talvez nenhuma outra passagem da Nêmesis ponha em palavras tão claras e veementes sua crítica aos ideais de progresso do Iluminismo:

Desprofissionalizar a medicina significa desmascarar o mito de acordo com o qual o progresso técnico conduz à solução dos

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problemas humanos pela aplicação de princípios científicos, o mito do benefício através do aumento da especialização do trabalho, e de multiplicação de formulações esotéricas, o mito de que o aumento da dependência das pessoas em relação ao direito de acesso a instituições impessoais é melhor do que a confiança um nos outros (NM, p. 256).

O anti-profissionalismo em Illich deita raízes profundas em suas crenças morais e religiosas. Com freqüência, ele compara os profissionais modernos aos magos, sacerdotes ou clérigos de outros tempos, porque vivem todos eles de um saber esotérico, ciosamente mantido, e da exploração da confiança que neles é depositada pelos seus clientes. Esta interpretação não resulta apenas da leitura de uma teoria da sociologia das profissões15 desenvolvida por Freidson e outros autores, os quais Illich cita na Nêmesis. As razões da rejeição do modelo profissionalista por Illich têm de ser identificadas, de uma forma que lhe é afetivamente mais significativa, nas suas convicções anti-clericais dentro da Igreja, que adotou muito precocemente, no tempo de suas atividades pastorais entre porto-riquenhos em Nova Iorque, nos anos 60. Suas idéias a esse respeito estão expostas em Celebração da Consciência e passam por uma proposta minuciosa de desprofissionalização da função clerical, de tal modo a restaurar o igualitarismo que existia entre os fiéis e os diáconos da Igreja primitiva. Diz ali que a aceitação deste tipo de reforma “exigirá da Igreja viver a pobreza evangélica de Cristo” (Illich, 1970, p. 72). Sua antevisão de uma Igreja liberada dos labirintos burocráticos e da pretensão de ser regida em moldes empresariais (p. 75) anuncia um convívio evangélico revigorado entre os fiéis e os que são responsáveis por presidir as funções sacramentais:

O futuro “padre” comum, ganhando seu pão fora da Igreja, presidirá um encontro semanal de diáconos em sua casa. Juntos lerão as Escrituras, em seguida estudarão e comentarão acerca da instrução semanal do bispo. Após o encontro, quando incluir uma Missa, cada diácono levará o Sacramento para sua própria casa, onde o conservará junto com o crucifixo e a Bíblia. O “padre” visitará suas várias “diaconias” e presidirá a suas eventuais Missas. Algumas vezes, várias “diaconias” reunir-se-ão para uma Missa mais solene num salão ou numa catedral (Illich, 1970, p. 83).

15 Para uma revisão do pensamento sociológico americano sobre o profissionalismo, consulte-se Machado (1995).

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Preconizando a desprofissionalização no âmbito da própria Igreja, Illich seguramente podia se sentir mais à vontade para levar uma proposta similar aos diversos âmbitos da ação social - educação, saúde, transportes, etc. A imagem da desprofissionalização faz jus ao aspecto principal de seu pensamento que consiste numa defesa intransigente da liberdade de ação, da segurança e da autogratificação de cada pessoa, coisas que podem ser obtidas mesmo em condições de alto desenvolvimento tecnológico desde que sejam observadas certas regras de preservação da esfera da autonomia individual.

A contribuição de Illich, contudo, não se limita a essas linhas ousadas de intervenções sociais marcadas pelo “des”, mas estende-se a suas propostas marcadas pelo “re”, que, no caso específico da saúde, parte da crítica do modus operandi da medicina moderna para advogar um reequilíbrio sinérgico entre a ação heterônoma e a ação autônoma. Se Illich se limitasse a defender a autonomia individual contra a manipulação instrumental e o controle burocrático-profissional da medicina estaria repisando os ideais emancipatórios que desde o jovem Marx haviam motivados tantas críticas acerbas à modernidade. Nessa compreensão da genealogia e da microfísica do poder, Illich está muito próximo de Foucault e não por acaso, já que se deixara influenciar por suas obras, especialmente as que tratam do nascimento da clínica e da evolução da psiquiatria e dos manicômios na Europa16. Mas Illich desenvolve também uma espécie de microeconomia do poder, ao defender uma tese extremamente original de que as forças produtivas da sociedade, mesmo que continuem a se desenvolver na dimensão técnico-científica, impulsionadas pela sociedade, deixam de funcionar a contento localmente e tornam-se destrutivas, se esse reequilíbrio sinérgico entre heteronomia e autonomia não vier a ocorrer.

Illich entende que uma composição adequada de ações autônomas com ações heterônomas é necessária (e viável) para garantir a própria efetividade das ações. Contra os exageros de uma razão que se auto-impulsiona no aperfeiçoamento ou reinvenção contínua do instrumento, Illich levanta a condição da autonomia do consumidor numa sociedade convivencial.17 Illich não é um crítico da “razão instrumental” em geral e não convém analisá-lo como esposando 16 A edição brasileira da Nêmesis contém um capítulo inteiro (cap. VII) dedicado à “doença heteronômica”, que se inicia com uma extensa citação de O Nascimento da Clínica sobre a reorganização da profissão médica na França no período pós-revolucionário. A edição americana não destaca um capítulo separado para o tema; contém várias notas de referência às obras de Foucault, porém nenhuma citação. 17 É possível que se possa interpretar a proposta de uma sociedade convivencial como pertencente a um tipo de “metanarrativa emancipatória” no sentido que lhe dá Lyotard (1993a), mas de todos os modos, na Nêmesis os vestígios desse referencial utopista aparecem bem atenuados.

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tal categoria filosófica, a exemplo da Escola de Frankfurt em sua crítica da modernidade.18 Ele crê que é o próprio desempenho eficiente dos diversos aparatos tecnológicos que exige um acordo entre quem usa o instrumento e o consumidor, ou seja, este tem que se assumir como um co-produtor dessas ações para que sejam efetivas.

A chave para o entendimento da primeira crítica social da saúde encontra-se no conceito de “contraprodutividade”. Este conceito já havia sido exposto na obra sobre convivencialidade, mas há uma versão mais desenvolvida na Nêmesis em que a mescla de planos de análise - de natureza tecnológica, econômica e política - aparece melhor delineada.19 É preciso fazer notar inicialmente que para Illich uma instituição (hospital, escola, etc.) é uma ferramenta como outra qualquer. Ferramentas tais como a máquina e a instituição definem-se pela intenção ou objetivo geral que lhe é subjacente, pelo “serviço” que se supõe devam prestar a quem os utiliza. A idéia central da “contraprodutividade” é a de uma ferramenta que passa a produzir resultados paradoxais, operando contra o objetivo implícito em sua função. Constituem exemplos de contraprodutividade: o hospital que favorece a doença, o automóvel que produz trânsito lento, a escola que inibe talentos, etc. O mundo industrial gera constantemente essas frustrações no uso de ferramentas de utilidade social, porque faz com que elas operem de tal modo a minimizar ou paralisar a ação autônoma dos indivíduos, coisa que é indispensável para que estes possam se beneficiar com conveniência e segurança dessa utilidade pressuposta. Algumas vezes, a contraprodução é resultante da sobreprodução, como no caso do engarrafamento no trânsito, demonstrando que essas ferramentas deixaram de agir como portadoras do progresso e do bem-estar. Outras vezes é o próprio açambarcamento da função por um grupo profissional que faz surgir o efeito paradoxal: a cura que não acontece porque o paciente espera que tudo seja feito pelo médico ou por sua equipe.

Essa contraprodutividade é “específica”, dentro de uma concepção microeconômica, porque se diferencia de outras duas formas de contraprodutividade: a utilidade marginal decrescente e a externalidade negativa. A utilidade marginal decrescente é conseqüência de uma perda para o consumidor devido ao uso intensivo progressivo de um dado bem. Já as externalidades

18 A comparação mais apropriada a ser feita a esse respeito é com Marcuse (1991) e suas críticas sobre a “unidimensionalidade” do homem na sociedade industrial. 19 Na edição brasileira da Nêmesis, Illich trata esse conceito sob a denominação de “contraprodutividade institucional” (capítulo III) e, na edição americana, sob a denominação de “contraprodutividade específica” (capítulo VI).

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negativas referem-se a custos, perturbações e privações que são extrojetados para outros setores de produção ou para a sociedade como um todo. A contraprodutividade específica é diferente desses dois tipos de contraprodutividade: aparece quando uma ferramenta como o hospital passa a produzir justamente o contrário daquilo que dele se espera – a enfermidade sob a forma das infecções hospitalares, por exemplo. A contraprodutividade específica pode ser considerada uma frustração social interna ao uso da ferramenta. Seus custos não podem ser externalizados, nem pode o consumidor recorrer a outro fornecedor de serviços (outro hospital, por exemplo) porque as condições sociais da profissionalização e do institucionalismo fazem com que todos operem sob a mesma lógica (NM, p. 213).

O que ocasiona a iatrogênese e outras formas de contraprodutividade específica? Não se devem a erros técnicos ocasionais nem a aspectos relacionados com diferenças e luta de classes, responde Illich; resultam, sim, de uma paralisia da capacidade de auto-governo do cidadão induzida pelo sistema industrial.20 Essa paralisia vem da destruição de certas condições culturais e psicológicas que possibilitam a produção autônoma de valores de uso, por fora dos esquemas mercantis e profissionais que hoje os monopolizam. As pessoas tornaram-se condicionadas a obter em vez de fazer, a comprar em vez de criar: não querem mais curar-se mas serem curadas. No entanto, há uma parcela da população que continua a usar valores de uso de domínio autônomo, que recorrem à medicina natural caseira e ao saber espontâneo da mãe ou da avó quando um dos seus familiares está enfermo. Uma parte desses serviços são valores de uso que não são mediados pelo mercado, nem aparecem computados no produto bruto interno do país. Esses auto-serviços tendem a desaparecer pela concorrência do setor produtivo industrial.

Illich avança em seguida para a exposição de sua tese convivencial: de que a efetividade na busca dos objetivos sociais pelo uso das ferramentas institucionais e técnicas só pode ser alcançada quando se juntam convenientemente esses dois tipos ou modos de produção21 - o heterônomo, como output do setor técnico-profissional, e o autônomo, como contribuição da tradição e da criatividade das pessoas e da comunidade na geração de determinados serviços (valores de uso não-mercantis). A efetividade de cada setor

20 “...industrially induced paralysis of practical self-governing activity” (NM, p. 213) 21 Illich usa, nesses casos, a expressão “modo de produção”, de origem marxista, por mera analogia, portanto, sem a intenção de que corresponda ao conceito original.

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industrial depende dessa correlação ou equilíbrio sinérgico entre os dois modos de produzir as coisas e serviços úteis: a nutrição, a habitação, o transporte e a saúde tornam-se melhores e mais efetivos quando os produtos padronizados do mercado são combinados com produtos e serviços resultantes da ação espontânea, inalienável, dos membros de uma dada comunidade.

É ao estender essa proposição, em diferentes versões interpretativas em sua obra, e ao analisar suas conseqüências para diversos setores produtivos, que Illich se autocompreende como um crítico radical da efetividade industrial (NM, p. 211). A proposição tem conseqüências práticas muito importantes, mas Illich prefere que seja interpretada como uma proposta de mudança mais ampla do que a de um aperfeiçoamento gerencial de um determinado setor produtivo.

Quanto à questão do exato ponto de equilíbrio sinérgico entre o modo de produção heterônomo e o modo de produção autônomo, uma leitura atenta das obras de Illich dos anos 70 revela que sua posição vai pouco a pouco mudando, passando de uma interpretação que é em grande parte cientificista a uma interpretação política. Esta mudança de entendimento dá-se também no tocante à contraprodutividade, que nada mais é do que a manifestação palpável desse desequilíbrio. Em A Convivencialidade, Illich trata de um limiar definido ou de uma “escala natural” ultrapassado o qual a ferramenta volta-se contra seus objetivos; aí Illich se revela em busca de uma fórmula determinista e expressa ser necessário detectar com exatidão esse limiar (Illich, 1976, p. 17). Na análise do dispêndio de energia na sociedade industrial, diz que existe uma “constante k” de energia mecânica, abaixo da qual a sociedade está subequipada para uma produção eficaz e participatória; acima dessa constante, a sociedade começa a perder a capacidade de manter um controle eqüitativo na distribuição dessa energia em benefício de todos seus membros. E admite que para cada sociedade concreta, independentemente do avanço da tecnologia, existe um “nível de energia de rendimento mecânico” que, se obedecido, pode um sistema político participatório funcionar de maneira ótima (Illich, 1985, p. 21). É esta defesa “naturalista” e “cientificista” de uma justiça social na distribuição da energia na sociedade que fez Illich exaltar a bicicleta como o meio de transporte convivencial; e que o levou a declarar que o socialismo exige para a realização de seus ideais que não venha “nem à pé nem de automóvel, mas na velocidade da bicicleta” (Illich, 1985, p. 16). Nessa fase, Illich expressamente propugna por uma sociedade alternativa, “convivencial”, que promoveria uma ampla recuperação do modo de produção autônomo.

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Na edição americana da Nêmesis, Illich parece abandonar não só essa visão determinista da contraprodutividade, mas também abranda seus princípios quanto ao equilíbrio dos modos de produção, admitindo que uma mudança de valores pelo público poderia melhorar a efetividade do sistema de saúde. Reconhece que esse equilíbrio não pode ser alcançado senão por um juízo político e uma transformação ética na ação dos consumidores. Um sistema de saúde eqüitativo na oferta de seus serviços, que se utilizasse de adequadas tecnologias de saneamento, vacinação, primeiros socorros, cuidados primários, educação sanitária, etc., poderia perfeitamente compor um quadro cultural de uma sociedade moderna que patrocina a liberdade de ação individual e ajuda a aprimorar a competência de cada um em “lidar e criar seu próprio futuro” (NM, p. 220).

É preciso voltar a sublinhar neste ponto da retrospectiva do pensamento da Nêmesis, que a dicotomia entre ação autônoma e ação heterônoma replica a contraposição tradicional que o Iluminismo havia criado entre emancipação e progresso, com a diferença essencial de que, para o Iluminismo, emancipação significava eliminação da autoridade intelectual e moral da tradição e da religião, e progresso era a ascensão da humanidade na escadaria infinita do desenvolvimento das forças produtivas. Para Illich, ao contrário, a liberdade de ação podia ser perfeitamente assegurada pela tradição, tanto no aspecto moral, que permite enfrentar austeramente o sofrimento, quanto no aspecto técnico, de um saber-fazer que está inscrito nas práticas de solidariedade beneficente e no ato auto-suficiente do cuidar de si. A monopolização do saber tecnológico através das corporações médicas é o que hoje promove a regressão reacionária a um passado de opressão da razão. O médico, transformado num novo sacerdote ou num mago de um culto de uma espécie de magia negra, é quem opõe-se hoje às forças emancipatórias da “saúde como liberdade”. Nas sociedades industriais são instituições seculares que assumem a função de consagração do mito e a proteção aos privilégios das novas castas sacerdotais, ou seja, dos especialistas em alguma área de saber técnico. A medicina altamente tecnológica faz do progresso constante, sonhado pelo Iluminismo, um ritual de magia:

Os procedimentos médicos tornam-se uma magia negra quando em vez de mobilizar no enfermo seus poderes de curar a si mesmo, transformam-no num manco e num voyeur mistificado de seu próprio tratamento. Os procedimentos médicos tronam-se uma religião da doença quando são perpetrados como rituais que enfocam a inteira expectativa do enfermo na ciência e nos seus funcionários ao invés de encorajá-los a buscar uma interpretação

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poética de suas inquietações ou encontrar um exemplo admirável em alguém - um falecido ou um vizinho - que aprendeu como suportar o sofrimento (NM, p. 114).

Esse tipo de crítica, em que as pretensões emancipatórias da modernidade são retornadas contra si mesmas, tem por certo um parentesco com a idéia de “retorno do mito” que foi esposada por Adorno e Horkheimer em sua enigmática Dialética do Esclarecimento. O drama criado pela modernidade, afirmam esses dois fundadores da Escola de Frankfurt, são a conseqüência de um malogro das forças do progresso anunciadas pelo Iluminismo e endossadas pelo marxismo; seu drama decorre justamente de ser um bem sucedido empreendimento no seu intento generalizado de aprimorar as forças produtivas. É este sucesso que acarreta a usurpação da capacidade autônoma de reflexão e de ação das pessoas, que se exterioriza numa força suprema no dia-a-dia das pessoas; este sucesso que ninguém mais controla faz voltar o mito como situação existencial, nas sociedades industriais seja elas capitalistas, socialistas ou fascistas. A direção desta crítica é muito similar à de Illich como se pode constatar pela seguinte passagem:

Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e cientifica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos e tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas (Adorno & Horkheimer, 1994, p. 47).

A crítica que Adorno e Horkheimer efetuam aos mecanismos manipulatórios da indústria cultural e da publicidade é notavelmente similar à que Illich empreende contra a industrialização da saúde. A teodisséia de Ulisses é a narrativa metafórica pela qual buscam dramatizar a situação alienada da razão, assim como o mito do castigo divino diante da hubris serviu a Illich para transmitir uma mensagem muito similar. Mas, de um modo geral, o clima dessa obra, de soturno pessimismo quanto às possibilidades de um progresso que não se dê como expropriação mitificada da razão, não é compartilhado por Illich. Adorno e Horkheimer, desalentados com os resultados práticos da experiência socialista,

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recusam admitir qualquer via de resgate da razão iluminista; e se alguma esperança emancipatória ainda lhes resta, aparece desviada para fora de todos os esquemas de instrumentalidade, através de um refúgio contemplativo e criativo no mundo das artes cultas. Tal concepção ratifica o desejo de alcançar a autenticidade de vida num circuito puramente individual de fruição de uma transcendência estética.

Quero fazer notar que a defesa por Illich da liberdade, criatividade e autenticidade próprias da ação autônoma em saúde vincula-se a motivos bem diferentes dos que deram origem ao solipcismo estetizante de Adorno e Horkheimer. É tema recorrente em Illich que as condições objetivas para exercício do cuidado autônomo e para lidar com o sofrimento e a morte foram eliminadas junto com a perda das tradições promovida pela modernização industrial e que não há possibilidade de um regresso tout court às velhas tradições. A religião como endosso à resignação e austeridade diante das contingências da vida; o saber espontâneo das comunidades que funda os métodos do curar-se; o sagrado que estabelece os limites que não podem ser ultrapassados na ação humana de domínio da natureza; - todas essas figuras da tradição já não existem como fontes de autoridade, e se permanecem em alguma medida, intactas ou readaptadas, já não podem ditar soluções de interesse público. Por outro lado, as condições de limitação do crescimento industrial iatrogênico e de expansão das ações autônomas em saúde não se aceitam mais como uma imposição unilateral e policialesca do Estado; essas condições terão que ser criadas agora por uma outra via - a da ação política e ética (NM, p. 263). Mas para tanto é necessário, em primeiro lugar, estabelecer um julgamento de quais são os procedimentos que podem eqüitativamente compor o exercício da autonomia (NM, p. 267). Está implícito nessa proposição de que discutir democraticamente quais são esses “procedimentos saudáveis” constitui parte importante da ação política, em busca de um acordo generalizado (widespread agreement). E em segundo lugar, precisa ser engendrado um fundamento ético que inclua novos tipos de normatividade de ação, a serem postos no lugar do sagrado, para o devido reconhecimento dos “limites”. Trata-se de difundir um imperativo de prudência que Illich sumaria na seguinte máxima:

Aja de tal maneira que sua ação seja compatível com a permanência de uma vida humana genuína (NM, p. 268).

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Uma sutil inflexão parece ter se operado em Illich, entre a edição francesa e americana da Nêmesis, que o tornou menos um crítico radical e mais um reformista social. O capítulo final da primeira edição (1974) chama-se dramaticamente, “Nêmesis - Materialização do Pesadelo”, e o da edição americana (1976) , auspiciosamente, “A Recuperação da Saúde”. 22 É necessário entender, portanto, o que Illich considera como expropriação da saúde, antes de abordar suas sugestões sobre como recuperá-la.

É singular que o próprio Illich praticamente não tenha empregado a expressão expropriação da saúde ao longo da Nêmesis e que, embora apareça como subtítulo do livro, seu significado tenha que ser depreendido do texto como um todo. Para uma concepção moderna da saúde não deixa de existir nesta expressão um certo contra-senso. Se a saúde é entendida, por exemplo, como um “estado de bem estar”, de acordo com a famosa definição da Organização Mundial de Saúde, como justificar a idéia de expropriação? Para que se dê uma expropriação, há de se supor que a coisa expropriada estivesse previamente na posse de alguém. Mas a saúde entendida como “estado de bem-estar” situa-se claramente fora de uma relação de posse. Embora contenha uma referência sociológica implícita a tudo o que materialmente lhe é indispensável, para que o estado de bem-estar seja garantido, esta noção não define propriamente uma situação de posse pessoal, do que decorre que um estado de bem-estar não possa ser transferido ou expropriado. Na verdade, não há na linguagem da medicina e da saúde pública modernas nada que reforce ou endosse a metáfora de uma saúde expropriada.

Com efeito, a saúde costuma ser vista, no plano científico da epidemiologia e das ciências sociais em saúde, como um estado ou uma condição, seja do indivíduo, seja da população como um todo. E o que importa sempre, nesse tipo de visão, é entender o que determina tal estado ou condição. Nesta perspectiva científica da causalidade, a saúde é um resultado, um evento, e não algo que seja possuído por alguém. Apenas na linguagem popular encontramos usos que emprestam um sentido coerente à expressão de Illich, quando as pessoas dizem, por exemplo, “tenho saúde”, “desejo manter minha saúde”, ou “perdi minha saúde”. A linguagem popular indiscutivelmente faz da saúde uma coisa situada numa relação de posse pessoal - a saúde pode aí ser 22 Não é nada desprezível a hipótese de que certas características intelectuais dos dois públicos a que se dirigiam - o francês e o americano - tenham influenciado a conformação final do texto nessas edições. O tom sombrio das conclusões da primeira edição pode ter sido considerado inapropriado para o público americano, que gosta de ver a crítica ser seguida de algum tipo de proposta alternativa.

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tida como uma propriedade alienável, o que justifica que alguém diga “a velhice roubou minha saúde” da mesma forma que Illich quis dizer em sua Nêmesis que “a medicina moderna expropria a saúde das pessoas”.

Essa idéia de saúde como objeto de uma posse vincula-se, no meu modo de entender, àquilo que MacIntyre (1984) denomina de moral da tradição. A análise que pretendo fazer do pensamento moral23 de Illich está voltada justamente para entender a interseção muito singular que Illich promove entre a moral da tradição - aristotélica, tomista ou estóica - e o pressuposto de autonomia do sujeito, que tem origem no Iluminismo. A Nêmesis tem de ser entendida pelo estudo dessa vinculação do pensamento de Illich à moral da tradição greco-romana e cristã, a despeito de todo o amplo compromisso que ele estabelece com o conceito iluminista de autonomia.

Qual o sentido que se pode dar à acusação promovida por Illich de que a saúde é expropriada na modernidade do consumismo médico? A meu ver, a passagem da Nêmesis que faz mais explícita essa idéia é a seguinte:

A saúde deixou de ser a propriedade natural (‘native endowment”) de que cada homem é presumivelmente dotado até que seja provado que ele está doente. Ela se transformou nesse sonho inacessível, nessa promessa sempre longínqua a que cada um pode pretender em virtude dos princípios de justiça social (NM, p. 122).

Postulo que essa passagem só pode tornar-se transparente se tomada como uma referência ao aristotelismo de Agostinho e Tomás de Aquino, para quem a saúde é um dote congênito, um dom natural (“native endowment”). É este um dos significados morais da saúde que, segundo Illich, veio a ser perdido na modernidade médica. A outra concepção pré-moderna que, a meu ver, dá sentido a esta excerto da obra de Illich é a saúde entendida como um fim aspirado por uma ação, ou seja, a saúde como um bem. Na visão aristotélico-tomista, a saúde representa, simultaneamente, um dom e um bem - como dom, é algo que, em maior ou menor medida já se tem naturalmente; e como bem, é algo que se deseja conservar, aperfeiçoar ou reaver.

23 Como o interesse principal de Illich está em vincular as práticas sociais, em suas dimensões coletivas, aos condicionantes de cada cultura, o emprego do termo “moral” parece-me aqui mais justificado do que “ética”, que sabidamente remete às dimensões individuais da conduta e à subjetividade, em particular.

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Aqui convém apresentar a única passagem da Nêmesis em que aparece literalmente uma referência à expropriação da saúde. Ao tratar do “escamoteamento da morte”, Illich diz que “a saúde, ou o poder de enfrentar os acontecimentos (‘the autonomous power to cope”), foi expropriada até o último suspiro (“last breadth”)” (1975, p. 188; NM, p. 207). Neste ponto, a tradução brasileira foi infeliz ao omitir o adjetivo “autônomo”, porque é essencial para Illich que a saúde seja entendida como integrando o conceito de autonomia do sujeito. A saúde tem a ver com o grau de “liberdade vivida”, com a capacidade de cada pessoa em exercer o controle sobre seus estados biológicos e sobre o meio ambiente imediato (NM, p. 242). Mas a maior infelicidade da tradução está em ter interpretado o verbo “to cope”, que surge nesse contexto sem o seu habitual complemento “with”, como equivalente a “enfrentar os acontecimentos”, quando, de fato, quer significar batalhar, lutar ou lidar. Uma tradução mais fiel às origens do pensamento de Illich diria: “o poder autônomo de lidar”.

Illich incorpora esse conceito da saúde como liberdade de lutar e de se auto-afirmar na proposta de um cuidado autônomo, ou cuidado de si, diante do avanço expropriador do cuidado heterônomo, ou seja, do cuidado que não está na alçada da pessoa e da comunidade prestar a si mesmas. A Nêmesis, especialmente na sua edição americana, bosqueja um projeto de reapropriação da saúde que tenta realizar uma insólita junção entre a paixão iluminista pela autonomia do sujeito e os termos doutrinários de uma moral pré-moderna. O esboço de tal projeto está presente nas três últimas páginas dessa versão da Nêmesis e não aparece na edição francesa, na qual se baseou a tradução brasileira. Seu título é muito expressivo: a saúde como virtude. Tomo a liberdade de apresentar aqui uma tradução desse trecho que é de grande relevância para as análises que seguirão.

A Saúde como Virtude A saúde designa um processo de adaptação. Não é o resultado de instinto, mas uma reação autônoma, embora culturalmente moldada, diante da realidade socialmente criada. Ela designa a habilidade de adaptar-se aos ambientes mutáveis, ao crescimento e ao envelhecimento, à cura quando enfermo, ao sofrimento e à expectativa pacífica da morte. A saúde abrange o futuro também e, portanto, inclui a angústia assim como os recursos internos para conviver com ela. A saúde designa o processo pelo qual cada pessoa é responsável, mas só em parte responsável diante dos demais. Ser responsável pode significar duas coisas. Um homem é

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responsável pelo que fez e responsável por outra pessoa ou grupo. Somente quando ele se sente subjetivamente responsável ou capaz de responder a uma outra pessoa é que as conseqüências de sua falência não serão a crítica, a censura ou a punição, mas condoimento, remorso e verdadeiro arrependimento. Os estados conseqüentes de mágoa e desconforto são sinais de recuperação e de cura, e são fenomenologicamente distintos dos sentimentos de culpa. A saúde é uma tarefa e como tal não é comparável aos estados de equilíbrio fisiológico dos animais. Sucesso nessa tarefa pessoal é em grande parte o resultado da autoconsciência, da autodisciplina e dos recursos internos pelos quais cada pessoa regula seu ritmo diário e suas ações, sua dieta e sua atividade sexual. Conhecimentos que envolvam atividades desejáveis, desempenho competente e o compromisso de melhorar a saúde nos outros são coisas que se aprendem com o exemplo dos companheiros ou dos mais velhos. Estas atividades pessoais são moldadas e condicionadas pela cultura na qual o indivíduo cresce: padrões de trabalho e lazer, de celebração e sono, de produção e preparação de alimentos e bebidas, de relações familiares e da política. Padrões de saúde longamente comprovados dependem em ampla medida de uma autonomia política longamente sustentada. Dependem da difusão da responsabilidade pelos hábitos saudáveis e pelo ambiente sócio-biológico. Isto é, dependem da estabilidade da cultura. O nível de saúde pública corresponde ao grau em que os meios e a responsabilidade para lidar com a enfermidade encontram-se disseminados entre a população. Esta habilidade de lidar pode ser aumentada mas jamais substituída pela intervenção médica ou pelas características higiênicas do meio ambiente. A sociedade que possa reduzir a intervenção profissional ao mínimo proverá as melhores condições para a saúde. Quanto maior o potencial para adaptação a si próprio, a outros e ao ambiente, tanto menos gerência dessa adaptação será requerida ou tolerada. Um mundo de saúde generalizada e difundida será obviamente um mundo de mínima e apenas ocasional intervenção médica. Pessoas sadias são aquelas que vivem em casas sadias com base numa dieta sadia num ambiente igualmente adequado para nascer, crescer, trabalhar, curar-se e morrer; são sustentadas por uma cultura que aprofunda a aceitação consciente dos limites relacionados com a população, o envelhecimento, a reabilitação incompleta e a morte sempre iminente. Pessoas sadias precisam de uma mínima interferência burocrática para acasalar, parir, compartilhar a condição humana e morrer. A fragilidade vivida conscientemente pelo homem, sua individualidade e seu relacionamento com os demais fazem da experiência da dor, da doença e da morte uma parte integrante de sua vida. A habilidade de lidar com essa trinca é de fundamental importância para sua saúde. Na proporção em que se torna dependente da gerência de sua intimidade, ele renuncia a sua autonomia e sua saúde inexoravelmente declinará. O verdadeiro milagre da medicina moderna é diabólico. Consiste em fazer não só os indivíduos mas inteiras populações sobreviverem em baixíssimos níveis de saúde pessoal. A Nêmesis médica é a retroalimentação negativa de uma organização social que se propôs a melhorar e equalizar a oportunidade de cada homem de lidar em autonomia e acabou por destruí-la (NM, pp. 273-275).

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Os primeiros parágrafos do trecho estão dedicados a caracterizar melhor o que Illich entende pela saúde enquanto “poder autônomo de lidar”. A saúde é um processo de adaptação ao meio ambiente através de recursos autônomos de reação que são culturalmente modelados, incluindo a habilidade de enfrentar mudanças desse meio, de crescer e de envelhecer, de curar-se quando enfermo, além da capacidade de manter uma “expectativa pacífica” da morte. Como a saúde abrange o futuro e as incertezas da vida, ela traz consigo suas próprias angústias. Parte dessas angústias decorre da responsabilidade que cada um tem por si e pelo que faz com sua saúde, como também de sua responsabilidade para com os outros. É sob esta última condição, de responder pelos seus atos perante os membros de sua comunidade, que as falhas pessoais podem não ser motivo de mera crítica ou de ressentimentos individualistas, mas de verdadeiro remorso e arrependimento. Os conseqüentes sentimentos de tristeza e desconforto assinalam o processo de recuperação para a saúde, a cura. A saúde é, assim, uma tarefa pessoal que é em grande parte resultante do auto-controle, da auto-disciplina, dos recursos interiores de cada um, para que cada pessoa possa regular seu ritmo diário, sua dieta e sua atividade sexual. O conhecimento que se adquire com os amigos e com os mais velhos, aplicado a essa tarefa, a competência desenvolvida pelo esforço pessoal, e a dedicação à saúde do próximo, são valores essenciais que cada um pode adquirir pela conformação dentro de uma dada cultura.

A reprodução literal desse trecho foi necessária para dar uma idéia da singularíssima fusão que Illich promove entre a linguagem iluminista da autonomia do sujeito e os termos de uma moral tradicional. Mas convém logo sublinhar que a inspiração para essa fusão não é unicamente o racionalismo aristotélico, nas suas fontes originais ou na adaptação cristã feita por Tomás de Aquino. A insistência na auto-transformação e no auto-controle, com base no exercício das virtudes, resguarda uma conotação individualista e apaixonada da moral, que não é em nada peculiar à linha aristotélica. O que Illich preconiza nesse trecho, assim como em inúmeras outras partes da Nêmesis, mantém maior parentesco com a tradição estóica que vem de Epíteto e Sêneca. Numa palestra realizada em 1989, para um público da Igreja Evangélica Luterana na América, Illich (1992a, pp. 221-2) revela que foi o filósofo neo-tomista francês Jacques Maritain quem o orientou no estudo da “história da prática e da teoria das virtudes no Ocidente Cristão”. No entanto, a hipótese que sustento é que a concepção das virtudes que serve de pano de

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fundo para a Nêmesis e está explicitamente presente no trecho mencionado é de mais forte inspiração estóica do que tomista.24

Convém agora empreender uma análise mais pormenorizada desse trecho da Nêmesis. Um dos primeiros parágrafos trata da saúde enquanto uma tarefa, conferindo-lhe uma conformação que está em consonância com o espírito aristotélico e com as normas dietéticas da medicina hipocrática:

A saúde é uma tarefa e como tal não é comparável aos estados de equilíbrio dos animais. Sucesso nessa tarefa pessoal é em grande parte o resultado de autoconsciência, auto-disciplina e dos recursos internos pelos quais cada pessoa regula seu ritmo diário e suas ações, sua dieta e sua atividade sexual.

Deve-se notar que “tarefa”, “responsabilidade”, “pessoal” e “recursos internos” têm aí sentidos precisos que devem ser cotejados com o que diz a tradição aristotélica e tomista. Primeiro ponto: a saúde humana não é um mero equilíbrio biológico, ela é resultado de uma forma especificamente humana de ser. Tendo em referência o esquema interpretativo aristotélico do dom e do bem, isto significa a superação da compreensão prima facie da saúde como dom natural, com vistas a sua afirmação numa dimensão propriamente humana e social. Segundo ponto: tarefa quer dizer precisamente uma ação que almeja um fim, que se move inteligentemente para um bem. Com esta acepção teleológica, como atividade racional, uma tarefa é algo que não pode ser cumprido pelos animais. É exclusivamente da “natureza” do homem que se pode dizer que tem um dever para com sua saúde. Por sua vez, a responsabilidade pessoal marca não uma posição individualista do tipo “cada um por si”, mas desde logo o compromisso com a saúde dos demais, num contexto social e cultural (que para Aristóteles, era o contexto da polis). O adjetivo pessoal, neste caso, refere-se à categoria da pessoa como agente moral, conceito fundamental na tradição tomista (Maritain, 1985, pp. 31 e ss.). Finalmente, “recursos internos” é uma forma moderna de denominar os bons hábitos devidamente cultivados, ou seja, as próprias virtudes. Portanto, essa concepção da tarefa e da responsabilidade pela saúde, ao mesmo tempo moralmente personalizada e socialmente comprometida, alude inegavelmente às vertentes aristotélica e tomista da filosofia moral.

24 Reencontramos nesse trecho, na saúde tomada como virtude e poder de autonomia, temas muitos similares ao que preocupou o último Foucault (1997) no seu estudo da ascese estóica como instrumento de realização do cuidado de si. Como será visto adiante, Foucault sugeriu explicitamente que a moral estóica, devido a suas bases individualistas, é uma fonte de inspiração apropriada na conformação de um ética para a subjetividade igualmente individualista da contemporaneidade.

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Contudo, isso logo vem se combinar com um tema estóico por excelência: a questão de como enfrentar a trinca enfermidade, dor e morte. Este problema existencial, como é bem sabido, é marcadamente peculiar aos estóicos, e, constitui, por assim dizer, o epicentro de sua peroração a favor da ação enérgica das virtudes da coragem e da serenidade. Um dos argumentos principais da Nêmesis é que o enfraquecimento ou a total eliminação dos modos de vida tradicionais deixaram o homem moderno totalmente desequipado para enfrentar essa tríade. A saúde, neste nivelamento dramático com o sofrimento e a morte, designa, segundo Illich

...a habilidade de adaptar-se aos ambientes mutáveis, ao crescimento e ao envelhecimento, à cura quando enfermo, ao sofrimento e à expectativa pacífica da morte. A saúde abrange o futuro também e, portanto, inclui a angústia e os recursos internos para conviver com ela.

Nessa definição cripticamente estóica da saúde, Illich utiliza-se novamente da expressão “recursos internos” em substituição a “virtudes”: ele que dizer que a saúde abrange a coragem de lidar com a finitude de cada um, de pôr-se face a face com a angústia da morte e a antevisão do não-ser. Portanto, a saúde abrange as virtudes para afirmar-se a si mesmo a despeito da autoconsciência da morte. Isto relembra o que diz o neo-estóico Tillich (1980, p 66) sobre a angústia existencial e patológica, quando afirma que a coragem toma a si a angústia do não-ser e esta angústia leva à coragem existencial, porque a outra alternativa é o desespero. Nessa descrição, Illich não parece delimitar algo que é particular da saúde física ou da saúde mental - vê-se que procura minimizar as diferenças modernamente criadas por essa polarização da saúde.

Outro componente do sincretismo illichiano aparece em seguida sob a denominação de autonomia, que é tomada num duplo sentido, da política e da moral. A saúde da população correlaciona-se com a autonomia civil do povo:

Padrões de saúde longamente comprovados dependem em ampla medida de uma autonomia política longamente sustentada.

Essa é também a condição de uma capacidade moral individual que dá margem à responsabilidade do cidadão para cuidar de si e dos que lhe cercam, coisa que ameaça ser extirpada ou expropriada pela medicina e pela saúde pública burocratizadas:

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Na proporção em que torna-se dependente da gerência de sua intimidade, ele renuncia a sua autonomia e sua saúde inexoravelmente declinará.

Este sentido da autonomia remete a uma visão agonística da saúde como “poder autônomo de lidar”. Illich faz questão de ressaltar que os padrões desse cuidado de si não são universais nem imutáveis, mas conformados pela cultura. O conceito de autonomia em Illich envolve, deste modo, um tríplice plano de articulação semântica.

- Tem uma inserção numa dimensão política, sendo entendida como parte das garantias fornecidas pela democracia liberal aos cidadãos. A saúde desfruta de um estatuto de liberdade anterior ao estatuto dos direitos; assim é que, antes de ser um direito a ser cumprido pelo Estado ou outra entidade jurídica, tem de ser sustentada como a liberdade do cidadão para cuidar de si e dos que lhe são caros.

- Tem um plano moral geral que se pode expressar pelas idéias de responsabilidade e vontade (“will to self-care”, NM, p. 35); neste caso designa a responsabilidade e a vontade de usar a razão, ser prudente, agir e cuidar-se em busca de sua própria saúde e dos demais.

- Envolve, finalmente, uma concepção agonística muito particular da saúde como “poder autônomo de lidar”: a idéia de que a saúde humana é auto-mantenedora por sua intrínseca capacidade de lutar, desafiar e enfrentar adversidades; que não sendo dada sempre por natureza, como mero dom, a saúde do homem é diferente da saúde dos animais porque tem de se alimentar da coragem e de outras virtudes cultiváveis no meio social.

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O Homem Econômico

Nos anos 80, Illich tomou um interesse crescente nas questões da história econômica do Ocidente perante a qual buscou dar novo tratamento teórico a sua tese sobre a necessidade de alçar a produção autônoma de valores de uso a uma posição de equilíbrio com a produção industrial e profissional. Dois autores influenciaram decisivamente seu pensamento nesse período: o historiador econômico inglês Karl Polanyi, através de seu renomado estudo sobre a emergência do mercado capitalista (A Grande Transformação, de 1943), e o antropólogo francês Louis Dumont, que produziu inúmeros ensaios acerca da questão do individualismo25 no Ocidente e uma história do pensamento econômico, de Mandeville a Marx, que é tributária das idéias de Polanyi. Ambos conferiram destaque a uma personagem que consideram sumamente marcante na caracterização da modernidade - o homem econômico (Polanyi, 1957; Dumont, 1992).

Segundo Polanyi, a concepção do homem econômico é apenas uma ficção histórica, mas que foi profética em seu tempo em relação ao desenvolvimento ulterior do capitalismo. Foi Adam Smith quem a formulou inicialmente quando, ao tratar da necessidade da divisão do trabalho, disse que o homem sempre manifestou uma tendência natural para a troca e o escambo.26 Polanyi acentua, no entanto, que tanto essa personagem quanto sua influência ideológica sobre os economistas, filósofos e políticos aparecem muito tardiamente na história ocidental. Seu estudo pretende demonstrar, pelo contrário, que a extensão ilimitada da função de troca para satisfação de necessidades humanas é um fenômeno muito recente e só foi possível pela introdução de uma ruptura traumática com os esquemas das economias comunitárias, onde a troca sempre exerceu um papel suplementar e subordinado à produção que tinha por objetivo a subsistência e a manutenção das tradições. Esta ruptura, assinalada nos países europeus, pelos cercamentos das áreas públicas aráveis e pela expulsão dos camponeses de suas terras ancestrais, custou quantidades extraordinárias de 25 Embora o tema do individualismo moderno esteja necessariamente correlacionado com o da autonomia, sendo esta a expressão de um individualismo iluminista, o conceito de Dumont é muito amplo: inclui desde as tendências a uma projeção individual “para fora do mundo”, no hinduismo, no cristianismo e no estoicismo, até os filósofos que conceberam as origens do Estado moderno por algum tipo de contrato entre indivíduos (Hobbes e Locke, por exemplo). 26 Essa afirmação encontra-se no capítulo I de As Riquezas das Nações: Assim como é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos outros a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa mesma propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão de trabalho. (Smith, 1983, p. 50)

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vidas humanas que foram sacrificadas no que Polanyi chama de “moinho satânico” - o mercado. É esta instituição pretensamente auto-regulada, o mercado, que acarreta condições de penúria extrema para os trabalhadores, como resultado da tentativa de transformar o trabalho em mais uma mercadoria.

Além de inúmeras evidências de estudos antropológicos sobre o papel limitado que o escambo desempenha em sociedades tribais, Polanyi aduz a favor de seu ponto de vista a interpretação dada por Aristóteles em A Política sobre o alcance e o significado social das trocas comerciais na Grécia. Aristóteles exalta a arte de gerenciar a economia de subsistência do domicílio como forma digna de ocupação do homem livre e considera que a arte de fazer riquezas com as trocas mercantis é uma parte complementar da arte principal que maneja economia de subsistência.27 O comércio a varejo é tido como um fim somente por alguns indivíduos que tendem a transformar qualquer ocupação num meio de obter riquezas. Por isto admite a existência de duas formas de obter riqueza, de duas crematísticas:

Uma é parte da administração doméstica, a outra é o comércio a varejo: a primeira necessária e honrosa, enquanto a que consiste em trocas é com razão censurada; porque é não-natural e uma maneira pela qual os homens obtém um ganho uns dos outros. A forma mais odiosa e com maior razão é a usura, que faz um ganho de dinheiro a partir do dinheiro mesmo e não de seu objeto natural. Porque o dinheiro foi feito com a intenção de ser usado na troca e não de aumentar pelo juro (A Política, Livro I, Cap. 10).

Em Aristóteles, mais do que uma subordinação da troca à economia doméstica, o que sobressai é uma intenção moral de limitar o envolvimento dos cidadãos com o mercado em função da visão da “boa vida” e seus princípios, expostos na Ética a Nicômaco. Os que, pelo contrário, fogem à pratica das virtudes e apenas se preocupam em viver, e não em viver bem, têm desejos ilimitados como também são não ilimitáveis os meios com que buscam gratificar esses desejos (A Política, Livro I, Cap. 9).

É fácil de entender por que encanta a Illich esse tipo de exemplo histórico - uma combinação entre produção doméstica de valores de uso e troca limitada de mercadorias. É que ele sempre havia considerado o monopólio da heteronomia

27 Para estabelecer essa diferença entre economia doméstica e economia de troca, Aristóteles é levado a fazer também uma distinção clara entre valor de uso e valor de troca das mercadorias cuja pertinência é destacada por Marx no primeiro volume de O Capital.

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como uma criação abusiva do industrialismo e não um desenvolvimento inevitável das forças produtivas. No caso da prescrição aristotélica está presente um elemento adicional de atração que é a proposta de uma regulação ética e política entre os “dois modos de produção”, associados numa lógica tal que, sem excluir as contingências e os aportes do mercado, permite a subsistência do núcleo familiar como o verdadeiro fim da atividade humana. Com base nesses exemplos históricos, ganha maior credibilidade a idéia de um arranjo cooperativo entre esses dois modos de produção. Se a tendência a vender e negociar não é algo inerente à natureza produtiva do homem, mas um apêndice recente que foi tomado como o todo, ainda se pode esperar uma reversão histórica, que dê uma dimensão mais reduzida ao que se adquire no mercado em relação ao que se pode fazer por conta própria, numa ótica de subsistência comunitária.

Polanyi (1957, p. 46) tratou de dar corpo a tal argumento, pondo-se na perspectiva crítica de que a antropologia tem mais o que dizer, com base em dados históricos, do que a economia, a respeito da dimensão tomada pelas relações mercantis dentro do conjunto das relações sociais:

A descoberta relevante da pesquisa antropológica e histórica recente é de que a economia humana, como regra, está submersa nas relações sociais do homem. Ele não age de tal modo a salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais; age, sim, para salvaguardar sua posição social, suas demandas sociais, seu cabedal social. Valoriza esses bens materiais só na medida em que servem a esse fim.

Junto com a negação da verdade histórica da hipótese do homem econômico de Adam Smith, Polanyi esposa outra idéia muito importante e influente, acerca do caráter fictício das mercadorias trabalho, terra e moeda. A despeito de estarem envolvidas nas engrenagens do mercado, esses bens jamais constituem legítimas mercadorias, ou seja, não são produzidos segundo a mesma lógica dos demais valores de troca. Por isto, o torvelinho do mercado auto-regulado representa uma constante ameaça ao homem, à natureza e à estabilidade financeira, ameaça que tem de ser vencida pela ação conseqüente dos governos:

Em relação, portanto, aos negócios uma situação muito similar existia a respeito da substância natural e social da sociedade. O mercado auto-regulado era uma ameaça a todos eles e por razões essencialmente similares. E se a legislação fabril e as leis sociais foram requeridas para proteger o homem industrial das

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implicações da ficção de mercadoria da força de trabalho, se as leis e tarifas agrárias foram chamadas à existência devido a necessidade de proteger os recursos naturais, é igualmente verdadeiro que os mecanismos de banco central e de sistema monetário foram necessários para manter as indústrias e outros empreendimentos produtivos a salvo do dano provocado pela ficção de mercadoria aplicada ao dinheiro (Polanyi, 1957, p.132).

A origem da “proteção social” é justificada assim por Polanyi como uma maneira não de contornar os efeitos deletérios do mercado sobre a vida das pessoas, mas para diminuir o ritmo em que a impacta. A ação protetora do Estado em parte compensa e em parte diminui o ritmo de aparecimento desses efeitos, que são os riscos sociais de uma economia mercantil. Illich, no entanto, não assume essa posição de Polanyi, que admite ser necessária a proteção pelo Estado a fim de garantir a sobrevida do organização social produtiva como um todo. Por definição, a proteção social tem uma orientação heterônoma, que é justamente aquilo que Illich pretende colocar no alvo de sua crítica. Assim, ele prefere concentrar-se na primeira ficção referida por Polanyi, a do homem econômico. Sobre esse conceito, é conveniente citar Illich a partir de uma das inumeráveis notas bibliográficas de pé de pagina que aparecem na sua obra sobre o gênero28. Aqui o tema de Polanyi é mesclado com o da emergência do individualismo, segundo a análise de Dumont, e com uma crítica geral do utilitarismo (que se sustenta na no princípio da beneficência, mas que só pode faze-lo tendo por base o individualismo do homem econômico). A citação é um pouco longa mas justifica-se a reprodução de cada uma de suas partes, que se encadeiam num raciocínio de interpretação muito particular e criativo da história do pensamento econômico-social dos últimos três séculos:

Marcel Mauss foi o primeiro a reconhecer que “só recentemente as sociedades ocidentais fizeram do homem um animal econômico” (1909). O homem ocidentalizado é Homo oeconomicus. Chamamos uma sociedade de ocidental quando suas instituições são reconfiguradas para a produção desenraizada que vai de encontro às necessidades básicas deste ser.(...) A percepção do eu como um humano e a demanda de que as instituições sociais atendam as necessidades humanas igualitárias do ego representam uma ruptura com todas formas pré-moderna de consciência. (...) O utilitarismo pôde produzir uma

28 Illich entende gênero no sentido que foi consagrado pelo feminismo contemporâneo, por sua imersão nas particularidades que cada cultura dá às relações sociais entre homens e mulheres - no trabalho, na vida doméstica, nas celebrações comunitárias, etc. No entanto, ele é contrário a uma plataforma geral de eqüidade de gênero como defendida pelo feminismo porque entende que, de algum modo, esta aspiração acaba por destruir os fundamentos da sua diferenciação “vernacular.”

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fé no paternalismo burocrático baseada na intervenção legislativa e uma crença no individualismo anárquico e no laisser faire. Halevy descreve como ambas posições foram mantidas pelos discípulos de Bentham. (...) Pelo espelho do marxismo do século vinte, a história social do século pode ser lida como um conflito entre essas políticas opostas deduzidas dos princípios do utilitarismo. [Dumont] explora a identidade fundamental do pensamento utilitarista. Oferece uma cuidadosa e sólida análise textual de Mandeville, Locke, Smith e Marx. Cada um desses pensadores conceptualiza o “humano” como “individual”, determinado pelas necessidades básicas sob a hipótese de uma escassez universal.(...) [MacPherson] demonstra cuidadosamente sua intuição de que o traço fundamental do indivíduo, que subjaz a todo o pensamento moderno é sua qualidade possessiva (...) O indivíduo possessivo é sem gênero, antropologicamente construído como meramente um sexo neutro. Logicamente, como deverei argumentar, só um indivíduo que é ao mesmo tempo possessivo e desprovido de gênero pode ajustar-se à hipótese de escassez sobre a qual repousa qualquer economia política (Illich, 1982, pp. 10-11).

É preciso desdobrar e reconectar os elementos dessa seqüência em alguns pontos focais para tornar mais clara a interpretação especial que Illich pretende dar da evolução do pensamento econômico-social ao entretecer os textos de Polanyi, Dumont, Halevy, MacPherson e outros (deixo de lado aqui a questão do gênero):

a) o homem econômico aparece historicamente quando os indivíduos são desapropriados de seus meios imediatos de produção para a subsistência e são simultaneamente desenraizados das circunstâncias culturais em que se dá essa produção;

b) o consumo dependente de bens e serviços fornecidos pelo mercado gera uma categoria inédita, necessidades básicas, que é variavelmente definida ao longo do processo de desenvolvimento industrial;

c) a qualidade possessiva é o outro pólo de caracterização do homem econômico: não só os proprietários mas também os desenraizados possuem ou deveriam possuir alguma coisa; da mesma maneira, ambos são portadores de necessidades;

d) diante da industrialização e da expansão constante do mercado, o utilitarismo de Bentham e seus discípulos introduz duas tendências contraditórias:

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uma corrente que preconiza e implanta a proteção legislativa aos trabalhadores, a fim de compensar os danos causados pela ficção da mercadoria trabalho; e outra corrente que reivindica um laisser-faire econômico-social e a solução pelos méritos individuais de cada um, ou seja, o ajuste pelos próprios mecanismos do mercado auto-regulado;

e) o marxismo e todas as ideologias do Estado de Bem-Estar Social em grande parte constituem-se numa continuidade da primeira corrente utilitarista, que defende uma intervenção do Estado não só para proteger o trabalhador em sua vulnerabilidade diante da máquina produtiva industrial, mas para atender diretamente as necessidades básicas da maior parte da população; enquanto isso, o liberalismo (ou o neoliberalismos atual) surge como a vertente contraposta, pondo fé na correção pelo mercado auto-regulado;

f) as necessidades de consumo de todos tornam-se crescentes, não só porque a produção gera a demanda correspondente, mas também porque os herdeiros de Bentham instituem programas de atendimento a certas necessidades sociais - na saúde, educação, moradia, etc. - e nessas circunstâncias, a economia, fundada em necessidades criadas socialmente e na multiplicação de demandas e pressões políticas, passa a ser entendida como a ciência da escassez.

Illich diz que essa história produz o homem econômico ao mesmo tempo em que produz o homem necessitado: a obsessão com a produção e o consumo pela via do mercado traz consigo a obsessão com a escassez e o compadecimento diante de necessidades não satisfeitas dos pobres. A geração constante de novas necessidades pelo mercado e pelos profissionais de toda ordem (inclusive os da saúde) pressupõe que jamais elas possam ser integralmente satisfeitas. A produção social de necessidades foi inicialmente trabalhada por Illich num ensaio denominado O Desemprego Útil e seus Inimigos Profissionais, escrito em 1977 na qualidade de um posfácio a seu livro sobre a sociedade convivencial (Illich, 1978, pp. 3-53). Neste ensaio, Illich identifica de forma bastante pitoresca de que modo dá-se o surgimento de certos vocábulos que traduzem na história recente a emergência da preocupação universal com as necessidades:

Quando aprendi a falar, “problemas” só existiam na matemática ou no xadrez; “soluções” eram salinas ou legais, e “necessidade” era usada principalmente em sua forma verbal. As expressões “Eu tenho um problema” ou “Eu tenho uma necessidade” pareciam igualmente insensatas. Enquanto me acercava aos dez anos de

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idade e Hitler trabalhava em suas “soluções”, o “problema social” também disseminou-se. Crianças “problemáticas” de cada vez mais novas tonalidades foram descobertas entre os pobres na medida em que os assistentes sociais aprendiam a nomear os que se tornavam suas presas e padronizavam suas “necessidades”. Necessidade, usada como substantivo, tornou-se a ração com a qual os profissionais alimentam sua dominação (1978, p. 30).

A medicina também produziu uma história particular de conformação das necessidades das pessoas, à medida em que seus profissionais alicerçavam seu domínio sobre as definições das condições de saúde e enfermidade (1978, pp. 31-33). Illich, prosseguindo na mesma linha autobiográfica, diz que quando nasceu (nos anos 20) só os hipocondríacos, os ricos e os membros das elites sindicais pensavam em “necessidade de consultar um médico” quando tinham uma febre. Mas o aparecimento de formas eficazes de tratamento de infecções, como os quimioterápicos e os antibióticos, ajudaram a criar o papel de doente e a conduta que dele se espera nessas condições: ir ao médico passou a ser uma obrigação de cidadão. Uma segunda mutação das necessidades de saúde ocorreu quando os testes de avaliação preventiva foram rotinizados - neste momento, toda pessoa passa a ser presumida enferma até que prove o contrário. Os sadios agora transformaram-se numa minoria: não é hipocondríaco quem a todo momento pensa estar doente e cria uma necessidade de atendimento, é hipocondríaco quem ousa pensar que está são. Num terceiro estágio, as necessidades - ditas físicas e psíquicas, curativas e preventivas - são fragmentadas em mil pedaços que passam a exigir a intervenção de variadas categorias de profissionais e especialistas. Finalmente, as necessidades de saúde são recompostas num todo idealizado que exige agora a intervenção de uma equipe multidisciplinar. A atenção integral dada por múltiplos profissionais passa a ser a nova política de difusão de necessidades, defendida com destaque pela medicina social em nome de uma “totalidade” do ser humano.

A crítica de Illich quanto aos aspecto de “avaliação de necessidades” e de “satisfação” tem em conta essa dependência infinda que é criada perante a ação heterônoma em saúde. As necessidades e demandas eventuais das pessoas pela “atenção” e pelo “cuidado” são convertidas em paralisadora compulsão de consumo. Illich desconfia da capacidade da medicina moderna em ajuizar as “necessidades” de saúde como também parece ver na satisfação imediata que as pessoas aí obtêm o resultado de ações manipulatórias, de auto-interesse. Tal desconfiança se estende ao conjunto das ações realizadas pelo aparato de bem-

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estar do Estado moderno. Illich crítica o Estado de Bem-Estar Social na medida em que este dissemina a ideologia das necessidades e promove a passividade e o conformismo na espera de um sempre pronto atendimento pelo aparato institucional. Mas este é o mesmo Illich que também, como foi visto antes, defende as políticas sociais com base na eqüidade, embora pensadas num plano de reequilíbrio entre ações autônomas e heterônomas. O cerne da argumentação de Polanyi é que a proteção social constitui-se numa reação política inevitável, da direita e da esquerda, à noção do mercado auto-regulado e à ficção da mercadoria força de trabalho. Por sua vez, Illich rechaça enfaticamente o formato tomado por essa proteção, que se consolida nos enormes aparelhos de seguridade social nos países ocidentais, e que, em nome da defesa dos direitos de cidadania, acabam por comprometer a capacidade de ação autônoma dos cidadãos.

Na crítica do homem econômico, o pensamento de Illich continua a fazer claro contra quem devem ser dirigidas suas farpas mais agudas: aos economistas, de uma maneira tangencial, mas especialmente aos filósofos utilitaristas. Illich acredita, e o declara, que o utilitarismo molda sua ética na perspectiva de uma produção e de um consumo que têm por base uma completa heteronomia social: a justiça é a possibilidade de o Estado promover o bem, da mesma forma que a economia é a possibilidade de alguém ter acesso a todos os outros “bens” necessários pela via do mercado. A economia reduz à sua imagem e semelhança a ação moral: o bem econômico nivela toda concepção do bem.29

As necessidades, numa supremacia da ótica utilitarista, tendem a se transformar em direitos de cidadania e estes direitos, numa autorização, e até numa obrigação, de consumo heteronômico ilimitado e paralisador. Nesta perspectiva, Illich vê que os bens sociais relacionados com saúde e educação vão se multiplicando e se tornando mais complexos no mesmo passo em que cresce a quantidade de profissionais que se encarregam de cuidar e educar, cada um deles vindo a definir novas necessidades, subordinadas a um direito geral, numa espiral

29 Estendendo alguns dos pressupostos de sua teoria da contraprodutividade, Illich adotou, no final dos anos 70, o conceito de “desvalor”. É desvalor tudo aquilo que reflete a perda da capacidade de produção autônoma e de auto-satisfação, na condição de uma desutilidade crescente gerada pela produção industrial em massa. Os economistas são incapazes de transformar essa perda numa expressão monetária, numa correspondência de mercado, e por isso ela permanece como o oposto do valor. “O valor econômico só acumula como resultado do prévio desgaste da cultura, o que também pode ser considerado a criação de desvalor (Illich, 1992, p. 76)”. Assim, o desvalor, assumindo um significado puramente negativo, representa uma desutilidade desprovida de expressão econômica: o que se perde é uma forma de satisfação que não pode ser suprida por nada daquilo que se encontra no mercado.

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de produção e consumo que aniquila a possibilidade do indivíduo de cuidar de si e de educar-se pela auto-aprendizagem.

Os novos especialistas, que são usualmente servidores das necessidades humanas definidas por sua especialidade, tendem a usar a máscara do amor e a fornecer algum tipo de cuidado. São mais profundamente arraigados do que uma burocracia bizantina, mais internacionais que uma igreja mundial, mais estáveis que qualquer sindicato, dotados de maiores competências que qualquer shaman e equipados com maior capacidade de dominar que qualquer máfia (Illich, 1978, p. 23).

Ainda posicionando-se contra a escalada das necessidades em crescimento incessante, Illich entende que a proteção às liberdades civis tem de estar acima de tudo e implica em que os governos ativamente protejam ou promovam a autonomia de ação da sociedade em saúde. É Illich quem o diz com sua incisiva retórica:

A sinergia da produção autônoma e heterônoma é refletida no equilíbrio de liberdades e direitos. As liberdades protegem os valores de uso assim como os direitos protegem o acesso a mercadorias. E assim como as mercadorias podem extinguir a possibilidade de produzir valores de uso e tornar-se um bem-estar empobrecedor, do mesmo modo a definição profissional dos direitos pode extinguir as liberdades e estabelecer a tirania que esmaga as pessoas de baixo de seus direitos (Illich, 1978, p. 43).

O equilíbrio entre ação autônoma e ação heterônoma é alçada aqui a um princípio regulador de duas ações de política pública a) da distribuição social de bens e serviços, como base material dos direitos; e b) da produção autônoma de valores de uso, como base política das liberdades civis na saúde. Esta diretriz é suficientemente ampla para abranger tudo aquilo que é material e politicamente necessário para promover e proteger a saúde, para além da distribuição dos serviços de saúde propriamente ditos. Mas como saber onde está esse equilíbrio? Segundo Illich, não é possível a um julgamento meramente técnico estabelecer o ponto onde será posto esse equilíbrio ou sinergia, como se fora uma nova “necessidade” ditada por competência técnico-científica. Tal tarefa compete, sim, à ação política dos cidadãos e dos governos, dentro das regras de uma democracia (NM, 217).

A justa aplicação de uma política de sinergia entre autonomia e heteronomia tem uma condição prévia evidente: pressupõe a desmedicalização e

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a desinstitucionalização como redução do total do “output” de atos heterônomos. Illich entende que neste ponto o princípio da eqüidade em saúde e o princípio da saúde como liberdade são interdependentes do ponto de vista de sua efetividade conjunta:

Nas sociedades democráticas, tais restrições são inalcançáveis sem garantias de eqüidade - sem acesso igual. Neste sentido, a política de eqüidade é provavelmente um elemento de um programa efetivo para a saúde. Inversamente, se a preocupação com a eqüidade não é posta em relação com as restrições à produção total, e se não é usada como uma força antagônica ao cuidado médico institucional, será algo fútil (NM, pp. 243-4).

Se nos fiarmos na crítica de Illich ao homem econômico, teremos de concluir que o conceito de necessidade é por demais plástico, por demais manipulável pelas elites profissionais, para que possa constituir um critério razoável de justiça distributiva.

Walzer (1983, pp. 86-91), em seu já clássico Esferas da Justiça, sugere que o conceito de necessidade seja o critério específico de justiça distributiva na esfera da saúde. Não poucos autores concordariam com a afirmação de que ser justo em matéria de saúde é dar a cada um o que necessita. Walzer dá certa força aparente a seu argumento pelo fato de que toma a necessidade de saúde como um imperativo moral para a justiça, não na forma em que é definida por esta ou aquela pessoa (ou profissional), mas na forma que decorre do próprio sentimento da comunidade, amplo e profundo, sobre o que de fato “carece”, e o que é “querido” (wanted). Portanto, a necessidade tem de ser socialmente reconhecida e este reconhecimento e sua extensão têm uma história em cada cultura. Na saúde, Walzer vê sentido em se aplicar, em forma parafraseada, a famosa máxima de Marx: a cada um segundo suas necessidades socialmente reconhecidas. Mas este critério de necessidade deve ser complementado com outro, o da eqüidade, para que tudo o que é reconhecido e provido como necessário para alguém, também o seja para os demais. Assim, quando a comunidade começa a prover a distribuição desse bem, logo o critério de uma distribuição eqüitativa para todos impõe-se à percepção e ao senso de justiça dessa comunidade. Com este argumento, Walzer pensa que se pode fixar para justiça distributiva em saúde um referencial específico que funcione dominantemente apenas nesta esfera e não em outras. Por isto, o dinheiro tem de ser considerado intrusivo e abusivo na esfera de distribuição da saúde quando, exorbitando de sua função de compra de bens mercantis ordinários, permite a

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uma pessoa abastada comprar cuidados essenciais, socialmente reconhecidos como necessários, os quais simultaneamente são inacessíveis a outras pessoas.

Para uma ótica illichiana, o problema com essa interpretação de Walzer é que muitas vezes se faz impositivo combater o que é socialmente reconhecido como necessidade a fim de que o princípio da eqüidade possa de fato vigorar. Para Illich, em sociedades tecnificadas como a nossa, a necessidade é sempre fabricada: pode ser modificada, aumentada e diminuída, por influências tão variadas que este critério não desfruta de nenhuma estabilidade nem de substância para conformar uma política pública. Por isto, o necessário pode ser uma “moda” que açambarca e esgota os recursos disponíveis. A política de saúde não pode seguir cegamente uma bússola de necessidades que se expressam em demandas incessantes, mas têm de arbitrar sobre o que é melhor para todos. Portanto, para Illich, a combinação politicamente ajustada entre eqüidade e autonomia, que se acompanharia nas condições atuais, de uma diminuição substantiva do tamanho do aparato assistencial heteronômico, é suficiente para determinar as bases de uma política de saúde que não seja uma mera consagração das necessidades incessantemente detectadas pelos especialistas.

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A Segunda Crítica Social da Saúde

Numa conferência pronunciada em 1985 na Universidade Estadual da Pensilvânia, que levou o título Doze Anos Após a Nêmesis da Medicina: uma Conclama para uma História do Corpo, Illich emite o seguinte juízo profundamente auto-crítico em relação à sua polêmica obra:

Há doze anos escrevi a Nêmesis da Medicina. O livro começava com a afirmação: “a medicina institucionalizada transformou-se numa grande ameaça à saúde”. Ouvindo isto hoje, eu responderia: “e daí?”. O maior agente patógeno de hoje, acho eu, é a busca de um corpo sadio. E, de uma maneira importante, isto tem uma história (Illich, 1992a, p. 211).

Illich constata que a iatrogênese clínica, como dano direto aos pacientes, acidental ou por imperícia, tornou-se um lugar comum nos Estados Unidos e sua constatação já não choca mais ninguém. De fato, pode-se acrescentar, tão lugar comum veio a ser a iatrogênese clínica que passou a alimentar duas indústrias interligadas que movimentam milhões de dólares anualmente: a indústria de seguros e a de advocacia da malpractice. Mas a aguda autocrítica de Illich dirige-se a um ponto distinto, que é de natureza conceitual: a noção de iatrogênese não poderia deixar de partir de uma história do corpo e das práticas a ele relacionadas. Ecoando algumas das teses dos estudos de Rosen (1979) e de Foucault (1979), diz Illich que a história do corpo na modernidade começou com o mercantilismo, coincidindo com a emergência do estado-nação e sua polícia sanitária. O corpo aparece então como imagem coletiva, como quantidade de população produtora e força do exército, tidos então, na ideologia do mercantilismo, como garantias da prosperidade nacional. Mas, posteriormente, o corpo é transformado num objeto portador de um direito individualizado, um direito de felicidade.30 Mais recentemente, prossegue Illich, o sonho de uma vida ativa ainda na terceira idade e a demanda econômica por trabalhadores produtivos foram fundidos na própria idéia da saúde como direito social. Porém, no ano de 1985, afirma Illich, a saúde vai além de um direito e de uma prerrogativa, pois transformou-se numa necessidade obsessiva que tem de se materializar na experiência do corpo: “para muitos contemporâneos, a busca da saúde tornou-se consubstancial com a experiência de seus corpos”.

30 É este direito, pode-se agregar ao texto de Illich, que a filosofia utilitarista desdobrou numa expressão coletiva: a felicidade do maior número possível, inspiração essencial para as reformas da saúde pública promovidas por Chardwick na Inglaterra do século passado.

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Illich confessa que este importante aspecto da iatrogênese cultural, que é “a busca patogênica da saúde”, havia lhe escapado por completo quando escreveu sua obra famosa. Uma percepção obsessiva de corpo, a monomania com sua própria condição de saúde corporal ou higiomania31, é algo que passou a fazer parte definitivamente de um estilo de vida altamente tecnificado da contemporaneidade. Tal estilo de vida, que se funda na idolatria do corpo e da saúde do corpo, não é criado por uma simples expropriação profissional: é alimentado pela mídia, pelas academias de cultura física, pela indústria da “dieta” epela indústria em geral, e, enfim, pelos que estão sempre interessados em vender esse novo produto - o auto-cuidado. Nos anos 80, observa, é preciso salientar que não é mais o establishment de saúde que produz a imagem do corpo. A concepção predominante surge agora de uma somatocracia dominadora que exalta e promove a industrialização automatizada da produção do corpo:

Durante os anos sessenta a profissão médica era proeminente em determinar o que é o corpo e como se deve senti-lo. Nos anos setenta, ela começou a dividir com outros agentes o poder de reificar as pessoas. De um empreendimento que reifica as pessoas como psiques e corpos, um novo modelo surgiu que engendra pessoas que reificam a si mesmas: os que se concebem como “produtores” do seu próprio corpo (p. 217).

A saúde passa a ter duas vias privilegiadas de acesso e não apenas uma: não só o acesso possibilitado pela medicina, que ainda se mantém pelo domínio dos profissionais, como também o acesso através da cultura do corpo, cada vez mais influente, cultura da qual os médicos são apenas uma reduzida fração entre seus inumeráveis protagonistas. Trata-se de uma produção do corpo em maneira robotizada, automatizada. Similarmente a Foucault, Illich conclui pela necessidade de construir uma história do corpo que englobe as ideologias da saúde.32

Segundo Illich, é o próprio caráter simbólico da medicina que muda nos anos 80. As medicinas alternativas, as concepções ambientalistas, as correntes de psicologia da auto-ajuda, as modas dietéticas, as práticas de corpo inumeráveis,

31 Na segunda parte deste trabalho, utilizo esse termo no lugar da expressão “iatrogênese do corpo”, porque entendo que na análise de Illich sobre essa tendência contemporânea não fica claro o que é um busca patogênica da saúde e o que é um mero narcisismo do corpo sadio. O termo higiomania pode ser usado para cobrir esses dois significados. 32 Illich não se refere nesse texto aos trabalhos de Foucault sobre a história da sexualidade que expõe pontos de vista similares. Mas em sua obra anterior sobre gênero (Illich, 1982, p. 109) observa que o primeiro volume da História da Sexualidade de Foucault “foi pioneiro no estudo histórico do processo pelo qual o corpo dos sujeitos do novo Estado de Bem-Estar Social foi constituído como objeto de um discurso profissional sobre o corpo dele ou dela”.

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etc. influenciam mais sobre o que o leigo pensa a respeito de saúde do que os próprios médicos. Naturalmente, a mídia toma um papel muito proeminente, pois abarca e serve de veículo de difusão a todas essas variadas formas normativas de cuidado do corpo. Por outro lado, nos aspectos financeiros, verifica-se que os gastos com programas integrais de cuidado com a saúde passam a crescer mais rapidamente do que os gastos com a medicina. Mais ainda - os recursos para investimentos em segurança, ecologia, educação e defesa civil são facilmente aprovados pelo governo quando seus efeitos sobre a saúde conseguem ser patentemente demonstrados:

Portanto, a relativa importância da medicina institucionalizada dentro do setor saúde vem diminuindo. Uma mistura curiosa de práticas de auto-cuidado, ao mesmo tempo opinativas e detalhadas, juntas com um entusiasmo ingênuo pelas tecnologias sofisticadas, tornam os esforços e atenção pessoal dos médicos cada vez mais frustrante. Suspeito que a contribuição da medicina à busca patogênica da saúde é um fator menor hoje em dia (p. 212).

Illich afirma que não está insatisfeito com o texto que escreveu na década anterior, porque seu objetivo era enfocar também certas formas gerais de dano, que advêm, de maneira indireta da disseminação de crenças e práticas sociais inibidoras da autonomia diante da enfermidade, da dor e da morte. No entanto, lamenta que tenha deixado de enxergar o que seria um efeito simbólico iatrogênico mais profundo: a da iatrogênese do corpo mesmo. Esse fenômeno contemporâneo só pode ser compreendido através da história das mudanças operadas na matriz (“gestalt”) de percepção do corpo. A auto-percepção do corpo volveu-se iatrogênica, em sua mais recente metamorfose e situa-se agora por relação à emergência de um estilo de vida high-tech e midiático.

O poder profissional sobre a definição da realidade atingiu seu clímax e está em declínio agora. Neste momento, uma mistura confusa do high-tech com sabedoria naturalista, bio-engenharia e exercício autônomo operam para criar o sentimento de realidade sentida, inclusive a do corpo (p. 217).

O que é curioso nessa auto-crítica é que Illich não só indica uma limitação da sua forma de abordagem anterior da iatrogênese, como também parece inverter suas compreensão quanto ao que pode constituir uma forma adequada de evitar seus riscos: as práticas do auto-cuidado passam a ser consideradas parte da iatrogênese gerada pela nova imagem do corpo. Os agentes terapêuticos

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profissionais podem ser dispensados pelos consumidores que recorrem agora a um saber difuso sobre saúde que a sociedade disponibiliza através dos meios de comunicação.

Illich faz uma interpretação veementemente negativa dessa linha contemporânea de autonomização do cuidado com o corpo. Quando tudo parecia merecer seu endosso diante de uma tendência de ganho de autonomia do sujeito no manejo consciente dos meios para garantir sua saúde, ele institui um novo parâmetro de julgamento: essa autonomia (ou pseudo-autonomia) pode ser iatrogênica. O que Illich quer enfatizar agora, reconhecendo-se mais claramente como historiador, é que a consciência do corpo é inseparável da consciência do eu e que ambas formas de consciência estão historicamente situadas. O principal objeto da autocrítica é a posição particularmente “filosófica” que adotara na Nêmesis. Pensando como filósofo, ele estava naquele momento interessado em resgatar e preservar uma certa arte; ou seja, a arte tradicional do saber viver e morrer decentemente, que depende da capacidade cultivada para passar austeramente pelas ocasiões de dor e sofrimento físico, de usufruir plenamente das alegrias e prazeres que a vida reserva a cada um e de desenvolver a perspectiva pacífica na iminência da morte. Estudando os estilo de vida do século doze33, Illich diz que aprendeu algo diferente, que é uma lição sobre a contextualidade do corpo através da história:

A história do corpo, contudo, levou-me a ver o que era genuinamente deficiente em minha análise. Tanto o gozo quanto o sofrimento são conceitos abstratos. Designam formas opostas em que as sensações são culturalmente materializadas. O gozo refere-se à encarnação enculturada do prazer, e o sofrimento à topologia da frustração, depressão, angústia ou dor. Cada época tem seu estilo de experimentar aquela condição humana que tradicionalmente tem sido chamada de “a carne” (p. 215).

Aqui o Illich-historiador parece deitar sobre o altar sacrificial o Illich-filósofo da Nêmesis. Meu ponto de vista é que essa auto-apreciação é injusta e se funda numa dificuldade pessoal do autor em conciliar os papéis de filósofo e historiador. O Illich-historiador mostra-se em busca de um conhecimento mais completo e concreto das “encarnações” culturais do corpo e não sabe bem como reconciliar essa visão historicista com a interpretação moral que sempre lhe foi peculiar. O conhecimento “concreto” da história do corpo através das épocas e das culturas 33 Illich estava então recolhendo material sobre a arte de ler, o alfabeto e o livro no século doze na pesquisa que deu origem ao livro sobre Hugo de São Vítor.

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parece-lhe agora ser o melhor contraste com a generalidade da filosofia da Nêmesis que assume a realidade permanente da dor e da angústia de viver.

É preciso notar que esse tipo de preocupação com a história do corpo nasce diretamente do estudo que Illich empreendeu sobre a arte de ler nos tempos de Hugo de São Vítor. A leitura dos monges em voz alta, a ars legendi, constituía um hábito corporal e não um simples exercício mental: o livro podia ser degustado e mastigado como se o leitor estivesse colhendo uvas do vinhedo. O comentário sobre o Didascalicon de Hugo de São Vítor, que tomou a Illich cerca de dez anos de preparação, denomina-se justamente No Vinhedo do Texto (In the Vineyard of the Text). Publicado em 1993 pela Universidade de Chicago, este livro marca uma virada importante na trajetória intelectual de Illich: é seu primeiro texto em que a erudição não está posta a serviço de uma crítica social radical e é também o primeiro que se conforma inteiramente aos cânones de uma pesquisa acadêmica rigorosa.34

A reinterpretação que faço da crítica radical de Illich põe a descoberto que ele jamais deixou de se orientar por uma filosofia moral tanto quanto jamais pôs de lado sua vocação e talento como historiador de práticas sociais. Em minha compreensão, o que há de filosofia moral em Illich resulta da fusão de princípios iluministas da autonomia com os da tradição estóica e tomista, mas esta mescla está sempre mais ou menos implícita ou mais ou menos escamoteada em todas suas análises históricas, mesmo no momento em que ele ousa empreender sua autocrítica da Nêmesis por ser deficientemente historicista e abstratamente filosófica: o conceito mesmo de iatrogênese do corpo esconde uma condenação moral que só faz sentido nessa perspectiva.

De todo modo, ao contrário do que se poderia imaginar, Illich não veio a retomar, com vistas a melhor fundamentá-los, os princípios da “saúde como virtude”. Isto não só não aconteceu, como também, ao longo dos anos 80, decidindo assumir cada vez mais uma identidade de historiador, Illich, de certo modo, rejeita, por seu caráter anti-histórico, o que havia de mais “filosófico” nessa obra, que é justamente sua interpretação estoicizante do significado moral da dor, do sofrimento e da morte. O questionamento que se poderia dirigir a Illich, nesse particular, é que sua condenação da glorificação do corpo e da saúde na

34 Essa observação leva em conta o fato de que a obra anterior de Illich, ABC da Alfabetização, embora exiba uma erudição acadêmica similar, foi escrito em parceria. Essas duas obras sintetizam os resultados da pesquisa de Illich sobre a história do texto e do alfabeto no mundo ocidental, que lhe tomou mais de dez anos de trabalho.

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modernidade tardia representa igualmente uma atitude moral tanto quanto era moral sua exaltação anterior da autonomia do sujeito e das virtudes na saúde; ou seja, Illich não deixa de ser um filósofo moralista mesmo quando investe profundamente na função de historiador.

O contexto social que serve de referência teórica a essa segunda crítica da saúde é algo bem distinto do industrialismo que Illich havia analisado na Nêmesis. No final dos anos 70, Illich já começara a falar do surgimento de um profissionalismo pós-industrial, que não está mais fundado na detecção e atendimento unilateral das necessidades dos seus clientes (1978, pp. 47 e ss.). Aparece um pósprofissional que se mostra sensível às falhas e desvios éticos do profissionalismo anterior, que se diz mais atento aos problemas de relacionamento com seus clientes e que propõe a estes seguir variados métodos de auto-ajuda. Há agora uma ênfase muito especial que é posta nos mecanismos de auto-ajuda e ajuda recíproca entre os clientes. Este novo ethos entre os profissionais responde a reclamos da sociedade, que exige uma avaliação leiga dos resultados dos serviços profissionais e dos riscos que introduzem, uma melhor legislação para proteção dos seus interesses como consumidores e a quebra de certos controles corporativos. Aparecem médicos, dentistas, advogados, “conscientes”, sensíveis aos problemas econômico-sociais do exercício de suas profissões.35 O conhecimento profissional torna-se auto-crítico, o que esconde, na verdade, segundo Illich, um conjunto de estratagemas de subsistência num mundo que passou a questionar todos os monopólios. É nesse contexto de renovada sensibilidade às limitações da ação heterônoma em saúde que surge a bioética, da qual Illich tem uma apreciação particularmente negativa, como será visto adiante.

Diz Illich que três diferentes estratagemas são usados pelo novo profissionalismo36 ou pós-profissionalismo, com o fito de consolidar seu domínio, o que é ilustrado por alguns exemplos:

1) a auto-crítica - os médicos recomendam que, numa grande quantidade de casos de câncer, sejam abandonados os procedimentos habituais de cirurgia, radiação e quimioterapia, visto que essas terapias prolongam e tornam mais agudo o sofrimento dos pacientes, sem que haja uma recompensa em termos de

35 Em resumo, profissionais “politicamente corretos”- Illich não o diz com essas palavras - porque o conceito só veio a se firmar posteriormente na sociedade americana, mas o sentido é esse. 36 Os exemplos que tomo aqui de Illich são propositadamente limitados às questões de saúde.

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sua sobrevida; conseqüência que Illich visualiza: é preciso ter mais profissionais e organizações específicas para promover a função de auto-vigilância;

2) a coordenação interprofissional - é amplamente divulgado o slogan “é melhor gastar dinheiro para continuar sadio, do que com os médicos quando você se enferma”; isto quer dizer, interpreta Illich, que os profissionais que se beneficiam com a indústria da promoção da saúde pretendem que esse dinheiro seja agora gasto com seus serviços;

3) a proteção à auto-ajuda - nos Estados Unidos, de 1965 a 1978, foram escritos nada menos que 2700 livros de auto-ajuda em saúde para que cada um seja seu próprio paciente, “de tal modo que você só consulte um médico quando valer a pena para ele”. Interpretação dada por Illich: o cliente foi transformado num profissional a mais e a auto-ajuda tornou-se o novo radical chic das elites de uma sociedade pós-industrial.

Essas três mudanças dão sinal de conformidade, segundo Illich, com o velho ditado plus ça change... O caso da auto-ajuda em saúde é particularmente interessante, pois o “empowerment” dos clientes serve apenas ao propósito de colocar a mesma velha água em novos potes. Diz Illich que a idéia do treinamento dos pacientes para serem auto-cuidadores alcança tais extremos que alguns chegam a preconizar que os clientes dotados de capacitação paguem uma taxa menor nos hospitais ou sejam beneficiados com uma redução de prêmio pelos seus seguros de saúde. A reação social à profissionalização acaba por gerar um profissionalismo do cliente que submete tudo de novo a uma lógica mercantil e de controles sobrepostos:

Somente as mulheres com licença de prática de parto em casa deveriam ter seus filhos fora de um hospital já que essas mães profissionais podem, se necessário, serem processadas por “malpratice”. Vi uma proposta “radical” de que tal licença deveria ser provida sob os auspícios de feministas e não dos médicos (1978, p. 51).

Illich poderia ter feito comentários similares acerca das novas políticas públicas em saúde dos anos 80-90, que traduzem com muita coincidência de detalhes esse ethos do pós-profissionalismo, estimulado diretamente pelo Estado e pelas agências internacionais. O foco dessas políticas é uma ação “pró-ativa” em saúde por parte da população; os cuidados de saúde desinstitucionalizados e com base nos modos de vida tradicionais são agora recomendados como

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complementos importantes aos serviços mais complexos oferecidos pela rede regular. Recursos humanos não-profissionalizados, meios terapêuticos mais simples ou populares, ajuda mútua no âmbito comunitário, solidariedade entre os grupos sociais, este conjunto de diretrizes incorpora-se às novas políticas públicas de saúde. A tão propalada crise fiscal do Estado acabou por impor uma lógica de gastos que busca justamente uma maior efetividade e eficácia das ações públicas no campo da saúde, e para este fim as diversas fórmulas de autonomia do cuidado (inclusive do cuidado tradicional) são apontadas como soluções adequadas.

Illich havia tomado ciência de uma mudança relativamente recente do mercado de trabalho capitalista que forçaria um importante reparo em sua concepção da autonomia. Ele sempre insistira na característica distintiva do modo de produção autônomo, que é uma produção pessoal ou socializada de valores de uso. Mas nas economias avançadas surge um mercado de trabalho sombra que se caracteriza por produzir valores de uso que se integram funcionalmente à economia como um todo. É uma espécie de trabalho que tanto pode ser pago quanto não pago, mas que sempre complementa as ocupações formais e ajuda a economia a operar melhor. Este setor informal cria alternativas importantes de ocupação para os que não a encontram no mundo do trabalho formal, que se tornou por demais competitivo e exigente em matéria de qualificação. Outro significado do trabalho sombra (Illich, 1982, p. 42) que Illich detecta nas economias industriais avançadas é o que se refere ao trabalho preparatório que torna as mercadorias adequadas ao consumo: por exemplo, a mulher do operário, que prepara uma refeição para sua família, age produzindo valores de uso que entram como uma sombra da economia industrial na qual seu marido está diretamente engajado.

Essa constatação conduz Illich a optar pelo emprego de uma categoria inédita e absolutamente inovativa - valor vernacular. Com este novo conceito pretende promover um substituto da categoria valor de uso para melhor poder caracterizar a produção autenticamente autônoma, ligada a uma economia de subsistência. Illich descobre surpreso que sua teoria da autonomia presta-se muito bem para ser instrumentalizada na ótica das políticas sociais dos “Chicago boys” ou do socialismo de Estado e resolve partir para sua defesa mediante um estilo existencial e não um modo de fazer as coisas:

Necessitamos de um adjetivo simples para designar os valores que queremos defender das mensurações e manipulações dos

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Chicago boys ou dos comissários socialistas, e esse adjetivo tem de ser amplo o suficiente para referir-se a alimentação e linguagem, parto e criação, sem que implique numa atividade privada ou um procedimento reacionário. Ao falar de uma linguagem vernacular estou querendo trazer à discussão a existência de um modo vernacular de ser e fazer que se estende a todos os aspectos da vida (Illich, 1992a, p. 125).11

O termo vernacular é de origem romana, significando tudo o que é feito ou criado em casa por oposição ao que é forâneo e adquirido por algum meio, fora da economia doméstica. Os valores vernaculares da cultura e da natureza são os commons - como as antigas terras públicas aráveis e as florestas -, bens usados em comum na origem para um fim de subsistência, sem dependência com o mercado. Portanto, o conceito vem em substituição ao sentido indiferente de valor de uso, que Illich empregou sempre em associação com a idéia de ação autônoma. Illich pretende agora diferenciar o trabalho vernacular daquilo que é a produção oculta de valores de uso na economia geral, em que se depende do uso intensivo de mercadorias e da informalidade complementar do mercado de trabalho.

Mas, como se vê pela citação anterior, para Illich, vernacular quer dizer também uma cultura alternativa ou pelo menos um estilo existencial alternativo. Os valores vernaculares anunciam a adoção de uma forma de encarar a vida que não é tradicional nem industrial mas voltada para o cultivo das atividades de subsistência “racionalmente orientadas”. Mais e mais pessoas, assevera Illich, estão adotando esse estilo de vida vernacular em comunidades locais de vanguarda, a partir de uma certa confluência com o pensamento de correntes do movimento ecológico:

Suas vidas expressam, com maior ou menor sucesso, um sentido crítico da beleza, uma particular experiência de prazer, uma visão única da vida cultivada por um grupo, entendida mas não necessariamente compartilhada pelo próximo. Descobriram que os instrumentos modernos podem tornar possível subsistir com base numa variedade de estilos de vida em constante desabrochar e poupar uma boa parte do pesado trabalho de subsistência dos velhos tempos. São pessoas que lutam pela liberdade de expandir o domínio vernacular em suas vidas (1992a, p. 101).

Com sua posição em defesa do trabalho, da cultura e do gênero vernaculares, o Illich dos anos 80 acredita completar e atualizar sua crítica ao homem econômico, retomando o naturalismo aristotélico da economia do lar que

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Polanyi tanto admirava. O estilo de vida vernacular caracteriza-se por manter de forma mais consciente suas ligações com os modos de vida tradicionais sem abandonar os benefícios das tecnologias atuais, ou seja, das tecnologias que se considerem compatíveis com seus pressupostos ecológicos e morais. Uma nova relação entre as pessoas homem e seus instrumentos permite que o homo habilis venha a substituir o homo industrialis. Modernidade da tecnologia e tradição do saber-fazer comunitário podem conviver pacificamente nessa proposta. Contudo, Illich não deixa claro de que modo essa via vernacular pode ser combinada com a idéia do equilíbrio ou sinergia entre os modos de produção autônomo e heterônomo ou se as duas propostas são inconciliáveis entre si. Esta é, com efeito, uma grande lacuna na obra de Illich - a autocrítica da Nêmesis não é suficiente para esclarecer esse ponto, sobre uma possível linha de continuidade entre as duas propostas e o leitor entusiasta dessa obra enfrentará tal dúvida, na medida em que tenha consciência de que Illich continua a retecer a trama que, no seu pensamento, liga modernidade e tradição.

Quero fazer notar, no entanto, que há alguma coisa de muito inquietante em todas essas reformulações conceituais promovidas por Illich. O que certamente inquieta um leitor com menor parti pris na sua crítica radical da sociedade contemporânea é que quando emerge uma tendência social que parece absorver o princípio de autonomia por ele preconizado, logo ele vem prontamente à frente de sua audiência para afirmar que o novo repete o velho, ou para repor seu foco noutra questão; por exemplo, o valor de uso é deslocado para ceder espaço a uma categoria absolutamente sui generis, o valor vernacular; a ação de auto-cuidado do cliente é apenas o disfarce de um neoprofissionalismo, etc. Quando tudo parecia indicar que as teses de Illich tornaram-se vitoriosas, embora do lado de seus adversários (o Estado, as agências internacionais, os profissionais), ele retorna com uma nova mensagem que remove seus objetivos finais, seu telos, para outro lugar, onde possa preservar sua autenticidade. Este tipo de atitude, em que Illich mimetiza o comportamento nada tolerante dos profetas, tentando a todo custo preservar a intocabilidade de sua mensagem revelada, exige, de quem adota uma linha de reflexão mais interpretativa da moral, uma crítica do crítico.

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Crítica do Crítico

Todo crítico social tem, segundo Walzer (1985), três modos ou caminhos (paths) distintos de fazer filosofia moral. O primeiro caminho é o de alguém que emite um juízo cabal sobre o que é melhor para a sociedade em que vive, sob a forma de uma revelação ou de uma descoberta inaudita. Walzer vê dois tipos básico de seguidores dessa via: os religiosos, que assumem o aspecto da revelação das verdades morais, e os filósofos cientificistas, que se pretendem descobridores de uma regra moral que estaria inscrita na própria ordem social. O filósofo cientificista age às vezes como um profeta - também “sobe a montanha” para escutar ou perscrutar uma verdade recôndida e para trazer à terra sua mensagem. Isto significa que a lógica de desvendamento da moral pelo profeta, que atribui à voz de Deus a mensagem que traz no seu regresso da montanha, é similar à do filósofo de crença positivista, que, após dedicar exaustivos esforços a sua pesquisa, descobre uma regra que lhe parece ser a voz da ordem social, tornada natureza humana. Este é o caso de Bentham e dos demais utilitaristas que proclamaram haver descoberto o princípio basilar da moral como “a felicidade para o maior número possível”.

O segundo caminho é o do filósofo que procura conscientemente elaborar um método ou inventar um procedimento que reproduz o que se passaria como fenômeno moral na sociedade: agem assim, de Hobbes a Rawls, todos os que se preocuparam em divisar uma base racional de princípios morais “mínimos” que regem o contrato social, como possibilidade histórica do Estado e da justiça.

Aparecem, por fim, aqueles que seguem o caminho da interpretação, que consiste numa pretensão aparentemente mais simples - a de melhor entender um mundo já familiar, com seus problemas, princípios e valores. A interpretação parte da idéia de que o significado da moral já se encontra mais ou menos dado nas práticas quotidianas, diante das quais o crítico social emite um ponto de vista argumentativo, posto em confronto virtual com muitos outros. Portanto, os filósofos interpretativos, entre os quais Walzer se inscreve, buscam identificar um significado social para certas práticas morais bem conhecidas, podendo igualmente criticá-las com base em algum parâmetro preconcebido.

Walzer (1985, p. 26) faz a ressalva importante de que qualquer descoberta ou qualquer invenção requer também uma interpretação ulterior. De sua parte, os pragmatistas só podem entender essa tipologia como resultado da intenção de contar com uma ilustração útil para o debate sobre a diversidade dos enfoques

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morais (classificando a auto-descrição de cada autor) e não como uma tese de cunho epistemológico. Lembrariam, neste ponto, que a distinção entre descobrir e inventar uma teoria científica foi superada pela compreensão kuhniana das revoluções científicas e que descobrir um fato científico novo não tem nada de muito peculiar em relação a ditar uma regra moral nova – são ambos reinterpretações em relação a crenças que se tinha antes.

De todos modos, Illich, se avaliado em consideração a essa tipologia ilustrativa, apresenta-se entre os que seguem o primeiro caminho: entende-se como um desvendador de verdades morais. Mas Illich apresenta a particularidade de combinar a vertente cientificista da descoberta com a vertente profética da revelação. Estas vertentes sobrepõem-se em medidas distintas ao longo de sua história intelectual. Contudo, seja na posição mais cientificista, seja na mais profética, Illich revela outra particularidade: a de ocultar o fato de que faz filosofia moral. E o oculta mesmo quando usa com bastante propriedade e clareza uma linguagem totalmente perpassada pela filosofia moral. Tomarei exemplos extremos em sua obra, em que ele pende excessivamente para um lado ou para outro, ou seja, em que pretende trazer a público uma verdade moral pela via da descoberta ou pretende revelá-la pela via da autoridade religiosa.

A sua “descoberta” do princípio da contraprodutividade específica, com variadas aplicações aos campos da energia e do meio ambiente, dos transportes, da educação e da saúde, constitui o caso extremo de uma pretensão cientificista. Mencionei anteriormente que, na fase inicial da formulação deste princípio, Illich acreditou que deveria existir uma “constante k”, ultrapassada a qual a efetividade da ação social passaria a ser decrescente, porque a partir daí o acúmulo de meios heterônomos limita ou paralisa a capacidade autônoma de uso da ferramenta. Que esta mistura de linguagem moral com linguagem científica era algo orgânico à visão de mundo do jovem Illich fica evidenciado nessa passagem de sua obra sobre a convivencialidade:

Uma sociedade que define o bem como satisfação máxima, pelo maior consumo de bens e serviços sociais, do maior número de pessoas, mutila de modo intolerável a autonomia do indivíduo. Uma solução política de recurso para este utilitarismo definirá o bem como a capacidade da pessoa para moldar a imagem do seu próprio porvir. Esta definição do bem só poderá ser operacional se se aplicarem critérios negativos. Trata-se, acima de tudo, de proscrever os instrumentos e as leis que obstaculizam o exercício da liberdade pessoal. Esta empresa limitaria as dimensões das ferramentas, a fim de defender valores essenciais que entitularia

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sobrevivência, equidade, autonomia criadora, mas, ainda assim, se poderiam designar pelos três critérios matemáticos de viabilidade, curva de distribuição de “inputs” e controlo de “outputs. Estes valores são fundamentais para toda a estrutura convivencial mesmo quando as leis e a moral variarem de uma cultura para outra (Illich, 1976, p. 27).

Repare-se, em primeiro lugar, que Illich lança mão aqui de uma linguagem moral autoconsciente, a começar pela crítica que promove da vitória do utilitarismo, com sua obsessão pelo bem-estar. Mas o que interessa em particular é o emprego de certos termos científicos para descrever de que maneira coisas tais como autonomia e eqüidade (“valores essenciais”) podem ser expressos numa equação da efetividade de fatores de produção com seus inputs e outputs. Illich anuncia mais uma vez sua “descoberta” da fórmula universal pela qual o impedimento da autonomia gera a inefetividade.

Eqüidade e autonomia são esses valores essenciais, modernos ou iluministas, para os quais Illich tem um uso especial: podem ser tomados como termos de uma notação científica, de uma equação de insumo-produto. Por serem constantes e universais, prestam-se a reger as relações interpessoais e de consumo na sociedade, independentemente de sua cultura. Se a autonomia e a eqüidade podem ser mantidos constantes quando a moral varia de uma cultura para outra, depreende-se que não dependem de outros valores da moral. Pode-se indagar, no entanto, como entender a autonomia em Illich senão como o que se costuma denominar de um valor moral que está na dependência de outros numa dada cultura, sobretudo considerando que ele mesmo diz que equivale à “capacidade da pessoa para moldar a imagem do seu próprio porvir”.

Mas Illich não deixa de delimitar sua tese de efetividade decrescente dos fatores produtivos mediante termos explícitos de uma filosofia moral. Ele supunha que o ganho de eqüidade e de autonomia numa sociedade convivencial exigiria uma restrição do consumo e da produção, uma limitação de sua escala. Em nome de quê se deve exercer essa restrição? Para isto Illich tem uma resposta a dar que se estriba na moral da tradição, no tomismo, e em sua concepção de austeridade:

Ao tratar do jogo ordenado e criador, Tomás definiu a austeridade como uma virtude que não exclui todos os prazeres apenas aqueles que degradam a relação pessoal. A austeridade faz parte de uma virtude que é mais frágil, que a excede e a engloba: a alegria, a eutrapelia, a amizade (1976, p. 11).

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Assim, pode-se concluir de suas análises que o motor da sociedade convivencial é o par autonomia-eqüidade que tem caráter universal e invariável; enquanto isso, o que limita o consumismo e a concupiscência socais é a virtude da austeridade, mediante a convicção moral de cada indivíduo. A autoconsciência das bases morais, na crítica social desenvolvida por em Illich, encontra-se em tudo que diz respeito ao alcance da austeridade e de outras virtudes, mas estranhamente não abrange os valores da autonomia e da eqüidade. Para estes, reserva um tratamento cientificista. A defesa da autonomia não assume, na obra sobre a convivencialidade, a clareza de um princípio moral, como acontecerá posteriormente na Nêmesis. A relação entre autonomia e heteronomia seria apenas a de um princípio matematizável da lógica de convivência social em que a extensão ilimitada da heteronomia exaure a criatividade humana e produz efeitos paradoxais em cada esfera da produção social. Illich não só pretende haver descoberto o desequilíbrio da contraprodutividade específica mas quer também demonstrá-lo exaustivamente na sua forma objetiva de operar. Insiste em dizer que se pode produzir mais e de forma mais efetiva quando a autonomia rege as ações humanas.

Em contraposição ao Illich cientificista da moral, existe o Illich profético. É o que apela à autoridade religiosa, portanto, à voz de Deus, e encontra-se exemplarmente na coletânea No Espelho do Passado (Illich, 1992a) que reúne ensaios e palestras do período 1978-1990. Tomarei para breve exame a palestra sobre a construção institucional da vida como um “novo fetiche” (pp. 218-231). Nesta palestra, proferida na Igreja Luterana Americana ( a qual já fiz menção anteriormente pela reverência com que Illich trata seu mestre no estudo da teoria e prática das virtudes no Ocidente, Jacques Maritain), o objeto de discussão é a invenção pelas eco-ciências de um novo mito, a “vida na Terra”, que é tida como o recurso maior a ser preservado pela mobilização de esforços a nível planetário.

O que Illich defende nessa palestra é que o conceito de vida, de uma vida, resulta de um viés biologicista que começa com Lamarck e se estende aos ecologistas contemporâneos. Trata-se, em sua opinião, de uma distorção de uma história, ou seja , da história de um conceito que se inicia com um conteúdo eminentemente pessoal e que se prende à mensagem de Cristo. Segundo os Evangelhos, o que Cristo proporciona não é uma vida qualquer, mas a Vida, um dom pessoal, conforme se verifica pelo seu diálogo com Marta:

Ele não diz “Eu sou uma vida”. Ele diz “Eu sou a Vida”, tout court. A vida hipostática tem suas raízes históricas na revelação de que

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uma pessoa humana, Jesus, é também Deus. Essa Vida única é a substância da fé de Marta e da nossa. Esperamos receber esta Vida como um dom e esperamos compartilhá-la. Sabemos que esta Vida nos foi dada na Cruz e que não podemos buscá-la exceto pela via crucis. Estar meramente vivo ainda não significa ter esta Vida. Esta Vida é gratuita, vai além e acima do fato de ter nascido e estar vivendo (1992a, p. 225).

Poder-se-ia argüir que esta citação não deve ser tomada em forma exemplar porque é extraída de uma palestra dirigida a um público muito particular com quem Illich divide a fé cristã. Mas minha interpretação admite este tipo de excepcionalidade: é que diante de um tal público Illich pode recorrer abertamente a uma crítica “profética” que usa em outras partes de sua obra, embora de uma forma menos respaldada em referências explícitas à autoridade religiosa. Na situação sob exame, a moral da tradição pode surgir como parte do argumento principal, enquanto alhures ela é apenas fundamentadora da argumentação a favor de certos limites morais, como por exemplo, a coragem para “saber morrer” e o exercício da austeridade.

A crítica profética (ou que recorre à história profética) pode ainda ser encontrada, de forma supercondensada, no manifesto que Illich proclamou contra a bioética e que aparece como texto final do volume supramencionado. O que move esta crítica é o sentimento de que o conceito de vida é igualmente manipulado e gerenciado pelas novos saberes acadêmicos que agora se revestem de uma direcionalidade ética meramente aparente:

A transfiguração de uma pessoa em ‘uma vida’ é uma operação letal, tão arriscada como o acercar-se à árvore da vida nos tempos de Adão e Eva. Ética, institutos, programas e cursos criaram um discurso no qual ‘vida’ aparece como um objeto de gerência médica, profissional e administrativa. Deste modo, o guarda-chuva da racionalidade acadêmica está dando legitimidade a um empreendimento essencialmente falacioso. A ética médica agora obscurece a prática da virtude no sofrimento e na morte (Illich, 1992a, p. 232).

O que Illich entende por espelho do passado é justamente essa possibilidade de encontrar na história ocidental e do cristianismo certos elementos que comprovem as distorções a que submetemos nossa conduta e nossos conceitos no mundo contemporâneo. A história é um espelho moral para as falhas e riscos da sociedade atual. Mas no espelho o que transparece nitidamente, não

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poucas vezes, é o próprio cristianismo e a moral da tradição, que estavam presentes de forma disfarçadas nas suas primeira obras de crítica social.

Tomada isoladamente, sua mais recente obra, No Vinhedo do Texto não pode ser lida como uma peça de crítica social, antes projeta-se como um relevante estudo do pensamento cristão no século doze, fruto de grande erudição histórica. Mas se recontextualizamos esse livro, pondo-o numa teia de relações com tudo o que antes escreveu, veremos que Illich ainda continua a buscar no passado indícios morais para sua crítica da contemporaneidade. É que seu declarado motivo para escrever essa obra prende-se à questão de saber o que acontecerá com a capacidade de ler e escrever das pessoas, numa era dominada pela informatização do conhecimento; e Illich estabelece um contraste instrutivo com uma experiência monástica da Idade Média, em que ler era mais do que adquirir novos conhecimentos. A arte monástica de ler em Hugo de São Vítor consistia em desenvolver hábitos físicos e mentais que criavam, por repetição exaustiva em voz alta e memorização constante, uma espécie determinada de eu e de corpo. O livro era devorado para fazer parte doravante da mente e do corpo do leitor. Mais do que uma formação de personalidade, era uma conformação disciplinada do eu, de tal modo que se fizesse pronto para o alcance da “perfeita sabedoria” em Deus, o supremo bem. O parentesco dessa disciplina monástica com a ascese estóica é muito evidente. Assim, ainda nos motivos e nos temas que o levaram a produzir seu texto de maior excelência acadêmica, Illich mantém um interesse enorme pela tradição moral do Ocidente.

A evolução da obra de Illich nos anos 80 e 90 traça uma trajetória de aproximação crescente entre sua fé cristã, seus interesses intelectuais e seu trabalho de historiador. Na fase inicial, em que Illich pende para o cientificismo moral, sua crítica mantêm-se alheia a uma autoconsciência de historiador. Sociedade sem Escolas e Nêmesis da Medicina são obras escritas na perspectiva da compreensão da contemporaneidade e dirigem-se especialmente aos leigos, na ânsia de ganhar sua adesão a uma linha que é, como dito antes, tipicamente de crítica radical e contra-cultural. A história desempenha aí uma função meramente instrumental, de método de coleta de evidências, para que possam ser bem demonstradas as teses em jogo. A moral da tradição não é o objeto principal de estudo e aparece em forma implícita, quase imperceptível. Por outro lado, na fase em que Illich pende para a restauração da autoridade religiosa, a partir dos anos 80, é quando mais assume a identidade e o método de historiador. A história que lhe interessa passa, com grande importância, pelos

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Evangelhos, pelos autores cristãos da Idade Média e a abordagem dos temas escolhidos vincula-se explicitamente à ótica da moral da tradição.

Pode-se dizer que o olhar crítico de Illich sempre procurou entender a modernidade pelo lado avesso. Criticar pelo lado avesso não significa pensar ao contrário.37 O avesso, para Illich, não é igual ao lado contrário, uma parte da superfície que ainda se pode vislumbrar num olhar atento, mas é o lado invisível: aquilo que, no homem econômico, está ocultado devido a sua dependência para com o mercado e o profissionalismo, que é a capacidade de cada pessoa de fazer por si. Ao revirar o homem econômico pelo avesso, Illich anunciava também sua mensagem sobre o porvir, mostrava não só o que se pode ver desse lado recôndito, mas o novo homem que deveria surgir pela junção de um projeto de autonomia iluminista com um legado moral da tradição.

Nas questões de saúde, esta junção pode ser expressa pela vontade de cuidar-se. Da Nêmesis saem duas propostas da vontade de cuidar-se: uma é ampla, inespecífica, pois abrange pela mesma lógica os diversos outro campos de ação social comprometidos pela contraprodutividade: é a recuperação da efetividade das ações socais pela criação de uma sinergia entre autonomia e heteronomia, que supõe, como limite, a virtude da austeridade, e, como contexto possível, uma sociedade convivencial. A segundo proposta é restrita à saúde, consistindo na vontade de manter e aperfeiçoar a saúde mediante o exercício contínuo das virtudes. Por sua vez, a própria saúde é entendida enquanto uma “capacidade autônoma de lidar”.

A teoria da sinergia ou da contraprodutividade repousava sobre uma base microeconômica essencial, a associação entre produtividade e valor de uso, a partir da hipótese de que a ampliação da autonomia aumenta a efetividade das ações. A recuperação da autonomia revestia um significado econômico e moral ao mesmo tempo. Essa junção entre economia e moral é original por seu conteúdo, mas apresenta antecedentes na história da sociedade capitalista. Como o demonstrou Weber (1981), a virtude da austeridade e sua força de disciplina, pela via da inspiração religiosa, tinha desempenhado o papel de uma poderosa alavanca econômica nos primórdios do capitalismo, ajudando a promover a acumulação primitiva de capital, portanto, impedindo que o lucro dos empreendimentos fosse dilapidado em consumo improdutivo. Noutro exemplo,

37 Tal como Coriat (1992) e os demais economistas regulacionistas fizeram com o fordismo, para anunciar a retomada da autonomia no processo de trabalho, com o advento do modo de produção flexível.

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mais recente, uma ética leiga, o utilitarismo fez-se presente através da intervenção do Estado de Bem-Estar na economia, permitindo que ações direcionadas para “o maior bem do maior número possível” funcionasse como poderoso fermento do crescimento da economia e do emprego.

Para mostrar o avesso do homem econômico, Illich teve de lançar mão da categoria filosófica da autonomia, ligada à história do Iluminismo, e adaptá-la a uma versão que mantém um amplo fundamento econômico. Ora, assumo aqui que aconteceu o inesperado para Illich: é que, nas sociedades pós-industriais contemporâneas, algo muito similar à autonomia descrita por Illich (inclusive com a incorporação de elementos da tradição ) difundiu-se em inúmeros campos de ação social, e tornou-se o epicentro de algumas políticas públicas, do funcionamento efetivo da economia e da gerência de empresas. A autonomia saiu das “altas esferas” das artes, das ciências, etc., onde havia sido isolada como privilégio de uns poucos, e se incorporou ao dia-a-dia da produção de bens e serviços, na razão direta do avanço tecnológico de cada área de atividade pós-industrial. Neste sentido, venceu a pertinência filosófica das teses de Illich, mas foram derrotados sua política radical e seu sonho convivencial.

Nos final dos anos 70 e começo dos 80, Illich toma consciência dessas mudanças sociais, faz uma série de ajustes e auto-críticas em suas concepções, mas o faz de uma maneira nitidamente negativa e unilateral, que não deixa margem à possibilidade de enxergar nessas tendências autonomistas contemporâneas um ou outro aspecto que coincida com suas propostas. Portanto, fecha as portas ao diálogo com quem ativamente participa do comportamento majoritário, ao admitir de forma peremptória posições como tais: a) por detrás dos novos estilos de vida que fazem da saúde uma preocupação própria e quotidiana com o corpo, o que há é uma forma especial de iatrogênese; b) da mesma maneira, por detrás do reforço à auto-ajuda e aos procedimentos de cuidado caseiro (portanto, por detrás do auto-cuidado que tanto defendeu e ao qual deu conotações libertárias) o que há é uma profissionalização do cliente. Quanto à bioética, que na sua aplicação à saúde, como se sabe, tem como pilar fundamental o reconhecimento, pelos agentes da tecnociência contemporânea, da autonomia do alter (ser humano sob pesquisa ou tratamento), o que ela faz, no fundo, é promover um fetichismo da vida.

Reagindo a todas as mudanças contemporâneas no meio cultural geral e na cultura específica da tecnociência, Illich deposita suas expectativas de

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autenticidade de vida autônoma nos projetos que conseguem reimplantar uma forma de viver baseada na economia de subsistência e em seus valores vernaculares. É como se o crítico quisesse chegar agora ao avesso do avesso. Mas o que é o avesso do avesso senão o resultado da evocação da dimensão temporal - não mais o que se oculta do outro lado, mas o que se oculta no tempo? Para realizar essa façanha, para manter-se radical em dobro, Illich vai ao passado, com esmero de historiógrafo, para resgatar todos os vestígios de uma cultura vernacular perdida.

A crítica ao crítico tem que começar por apontar que, na transição que promoveu, passando da teoria da efetividade dos fatores de produção a uma ênfase no trabalho vernacular, Illich estreitou dramaticamente seu público. Antes contava com uma abordagem aplicável a inúmeros campos da convivência social: saúde, educação, transporte, energia, etc. Com o ideal vernacular, conta com uma proposta de estilo de viver, certamente muito gratificante, mas que só pode ser adotado por uma minoria. O reformador social desaparece e em seu lugar emerge o líder das comunidades locais que usam instrumentos modernos para, como citado antes, “tornar possível subsistir com base numa variedade de estilos de vida em constante desabrochar e poupar uma boa parte do pesado trabalho de subsistência dos velhos tempos”.

Essa contra-crítica a Illich só fica clara se entendermos melhor a diferença que ele estabelece entre valor de uso produzido pelo trabalho sombra e valor de uso produzido pelo trabalho vernacular. Um bom exemplo dessa diferença é dado no seu livro sobre gênero (Illich, 1982, p. 49), do qual faço uma pequena adaptação. Suponha o caso de uma moderna dona de casa que pretende cozinhar uns ovos. Para faze-lo, ela costumeiramente tem de descer pelo elevador, pegar seu carro, ir ao supermercado, comprar ovos, sal e margarina, etc. Para cozinhar os ovos, ela tem de adicionar valor a todos esses bens, ou seja, tem de dar-lhes utilidade concreta na forma de seu trabalho, que aparece como uma sombra do trabalho formal que produz as mercadorias elevador, carro, ovos, margarina, etc. No caso de nossas avós ou bisavós que viviam no campo, havia uma situação bem distinta: colhiam os ovos direto do galinheiro, pegavam o toucinho (do porco criado em casa) e usavam o sal que compravam no armazém. Nossas avós realizavam uma tarefa específica de gênero no seu trabalho voltado para a subsistência doméstica, enquanto a dona de cada moderna trabalha na sombra da economia pós-industrial

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O trabalho vernacular não pressupõe a ausência do mercado, mas uma mínima dependência dele. Illich não nos diz o quanto de valores mercantis é admissível nesse esquema, nem dá a entender que essa questão seja relevante (como era antes relevante fixar política e eticamente um ponto de equilíbrio entre autonomia e heteronomia) . Pode-se depreender que vale aqui o espírito com que as coisas são feitas: uma austeridade para garantir a menor dependência possível para com o mercado, simultaneamente com a melhor utilização possível de uns poucos instrumentos modernos que aumentam a produtividade do trabalho.

Sabe-se que muitas comunidades alternativas estão adotando essa via de austeridade convivencial, mas tal via dificilmente pode ser encarada como uma solução razoável para um número significativo de pessoas que, à semelhança dos vernacularistas, expressam uma atitude moral de repúdio ao consumismo e à mercantilização global da vida. Quanto à idéia mesma do mundo vernacular, a única lição fundamental que tiro dos seus textos é de que todos nós precisamos, individual, familiar e comunitariamente, de certas proteções pessoais contra o poder corrosivo do mercado e do consumismo contemporâneos. Contudo, se olharmos ao nosso redor, deparamos com inumeráveis propostas - inclusive as que brotam diretamente das religiões ou da religiosidade - que podem ajudar a alcançar tal objetivo sem que tenhamos que recorrer a uma demarcação tão pouco clara como a que opõe o valor de uso vernacular ao valor de uso de sombra. Neste particular, Illich é bem mais compreensível quando manifesta sua rejeição à bioética, dizendo que ela faz de A Vida (que é Cristo) um objeto de exclusividade de conhecimento e de manipulação por parte de biocratas. Pelo menos aqui, concordemos ou não com ele no fundamento de sua fé cristã, há uma linguagem que exibe termos mais transparentes, mais fáceis de serem entendidos por quem compartilha nossa cultura.

À medida que avançava em sua linha de especulação histórica sobre o vernacular, Illich transformava seu projeto de autonomia num nicho de subjetivação e de auto-suficiência, por conseguinte, em algo muito próximo ou igual ao que Rorty chama de ironia, uma ética do mundo privado que almeja a constante auto-criação. Como se vê nos ensaios e palestras de No Espelho do Passado (1992a), Illich está à busca de um estilo existencial coerente com a austeridade e os valores da tradição: uma arte de saber morar com simplicidade, de trabalhar com alegria os frutos da terra e de saber manter o silêncio; uma arte dos commons. O espírito do monasticismo estóico de Hugo de São Vítor parece absorve-lo por inteiro e o dirige doravante na tarefa de produzir-se a si mesmo.

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Seus textos ganham em poesia e elaboração literária o que perdem em eficácia de uma causa social reformista mais ampla; veja-se, por exemplo, como inicia sua palestra sobre o morar (Dwelling) :

Morar é humano. Animais selvagens têm ninhos, gado tem estábulo, carruagens cabem nos galpões e para os automóveis existem as garagens. Só os homens podem morar. Morar é uma arte. Toda aranha nasce com a compulsão de tecer sua teia de tipo particular. Aranhas, como todos os animais, são programados pelos seus gens. O homem é o único animal que é um artista e a arte de morar é parte da arte de viver. Uma casa não é nem um ninho nem uma garagem (Illich, 1992a, p. 55).

O último Illich, como o último Heidegger38, está em busca da morada do homem, mas não em sentido metafísico, do Ser original e fundamentador, e sim em sentido bem mais coloquial, de um estilo existencial ético e estético de realizar-se a si mesmo, o que inclui saber escolher uma moradia digna no cenário urbano decadente. Illich acaba por nutrir o mesmo saudosismo de Heidegger por um mundo de linguagem autêntica, um mundo vernacular.

Para o último Heidegger39, a modernidade corresponde ao auge da degeneração do pensamento ocidental, que tem início com Aristóteles e Platão. O que lhe preocupa é o resgate do pensamento original, da poiesis, que reate o homem e seu destino com a essência do Ser e com o dealbar do Ocidente na Grécia antiga. Heidegger, equaciona a liberdade com a criatividade humana, tal como Illich o faz em sua linguagem bem menos metafísica. O homem, diz Heiddeger, não se sabe quem é através de definições eruditas, mas somente quando

...luta com seu Existente, penando para levá-lo a seu ser, isto é, em limite e forma, por outras palavras, quando ele projeta alguma coisa nova (ainda não presente), quando ele cria poesia original, quando constrói poeticamente (Heidegger, 1987, p. 144).

O retorno do espírito perdido da poiesis não pode ocorrer, segundo Heidegger, por mediação proveniente do mundo social. Este tipo de acesso a uma 38 O texto de Heidegger que se mostra mais próximo dessas preocupações de Illlich talvez seja “Construir Morar Pensar” que diz coisas assim: “Conseguimos morar, assim parece, só por meio do construir. O último, o construir, tem o primeiro como seu objetivo. Assim, nem toda edificação é uma moradia. Pontes e hangares, estádios e unsinas de energia elétrica são edificações, mas não moradias; estações de trem e auto-estradas são edificadas, mas não são lugares de moradia. (...) Esses prédios alojam o homem. Ele os habita mas não mora neles...” (Heidegger, 1994, pp. 347-8). 39 Para esses comentários sobre Heidegger sigo fielmente o que diz Rorty (1991, pp. 27-82).

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visão poética do Ser necessita de uma linguagem depurada, capaz de restabelecer o contato com o fundamento original e poético do pensamento ocidental, que ele diz encontra-se em Parmênides, Heráclito e outros préssocráticos. A “descoberta” por Illich dos valores vernaculares também ocorreu no campo do estudo da linguagem, e tem por noção um contraste entre a língua que é feita pela comunidade e a língua que é normalizada para ser ensinada pelos professores, como uma espécie de instrumento de correção moral nas escolas. 40 O valor vernacular, por isso, relembra a restauração de tudo que é autêntico e original na linguagem, na moradia, no trabalho e assim por diante.

No seu movimento de recuo ao vernacular vejo que Illich quer transformar a economia semi-natural da casa - defendida por Aristóteles diante da intrusão da economia mercantil - num paradigma para o qual encontra inumeráveis testemunhos históricos. O oikos ou domus antigo, composto por uma construção e uma família que se mantém numa economia de subsistência, é o que considera ser “o objeto da história, a unidade social básica” (1982, 117). Em sua nova visão da autonomia como autenticidade vernacular, Illich ajusta-se por inteiro ao naturalismo que está presente na ética e na política de Aristóteles. Ele está em busca de “one best way of living”, que é uma espécie de excelência da autonomia. O que lhe pode ser objetado é que ele deixa de lado os valores iluministas de que se imbuía antes quando falava de uma autonomia em que o fazer por si não estava limitado por um contexto nem natural, nem histórico, nem tradicional.

A inspiração que Illich buscou no modelo de economia doméstica da polis (através de Polanyi) passa por cima de muitos detalhes sociais que creio serem incompatíveis com uma concepção democrática da autonomia. As funções de cada pessoa na sociedade grega clássica são clara e rigidamente determinadas por sua pertinência a um ou outro grupo social: os cidadãos-proprietários, os que trabalham por um salário (thêtes), os servos, etc. É impensável, nesse contexto, que possa surgir uma autonomia individualista como a moderna que tem de ser entendida como “a capacidade da pessoa para moldar a imagem do seu próprio porvir”, para relembrar a definição dada por Illich mesmo. Os limites que a estratificação social impunha à economia doméstica, nessas circunstâncias, excluem qualquer possibilidade de uma “liberdade vernacular”, o que fica evidente quando se lê em Aristóteles (A Política, I, 7) que 40 Em ABC: A Alfabetização da Mente Popular (Illich & Sanders, 1989), seu tema central é a perda da espontaneidade da linguagem oral vernacular por efeito das cânones impostos pela linguagem “culta”, como a que foi promovida na Espanha do século XV pela Gramática de Nebrija. Illich vê essa dominação da língua vernacular da plebe pela norma culta como sendo uma parte das estratégias absolutistas de poder.

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Aqueles que estão numa posição que os coloca acima da labuta têm administradores que trabalham em suas casas enquanto se ocupam com a filosofia ou a política.

A concepção democrática e igualitarista da autonomia, se julgarmos a partir do pensamento contido na Nêmesis , proscreve a apologia do ócio feita pelas elites gregas e seus filósofos. Pelo contrário, a essência da idéia ali apresentada por Illich era que cada um produzisse, por sua própria conta risco, e com suas próprias mãos, uma parte dos valores de uso que lhe são necessários no dia-a-dia. A história do vernacular na Antigüidade e na Idade Média não nos dá nenhum bom exemplo dessa forma de autonomia. Em Atenas, as virtudes estão voltadas para que cada cidadão atinja a excelência nas tarefas que lhe tocam socialmente: o objetivo é fazer o melhor possível o que lhe compete socialmente, alcançando com isso uma vida digna e honrosa (MacIntyre, 1988, pp. 46 e ss.)41. Ao contrário, as virtudes da autonomia moderna têm a ver com uma capacidade de pensamento e ação que tem por traço distintivo o fato de ser independente da função social da cada indivíduo e da própria sociedade em que vive. Isto quer dizer que cada um pode legitimamente buscar uma meta de perfeição de vida ou de auto-transformação a despeito de qualquer papel que a sociedade espera de seus cidadãos. As comunidades vernaculares contemporâneas, ao aplicarem tais diretrizes de autonomia em seus estilos de vida, estão sendo beneficiadas por essas conquistas da modernidade, embora possam reagir contra o Iluminismo e sua crença no progresso constante.

Há uma linha comum de juízo moral entre o Illich que condena a reificação do corpo, como nova forma de iatrogênese, e o Illich que abomina o mercantilismo do homem econômico e abraça os valores vernaculares. Os dois objetos de juízo parecem, à primeira vista, serem muito diferentes. O primeiro é uma figura historicamente bem recente, o outro é um coetâneo do capitalismo. Quanto à questão da autonomia e da heteronomia, parecem também bem contrastantes. O freqüentador de academias de ginástica é alguém que produz seu próprio corpo, ao perseguir tenazmente seu objetivo de saúde e vigor, parecendo estar do lado da autonomia, enquanto o mercantilista (ou consumista, dá no mesmo) parece ser o exemplo de alguém dominado pela heteronomia, na sua obsessão de acumular riquezas ou de fruir bens infindáveis. Sendo assim, por que Illich condena aos dois simultaneamente e não tem uma palavra de elogio para o primeiro? 41 Essa concepção das virtudes e dos bens da excelência do cidadão junta-se em Aristóteles com uma concepção dos “bens da efetividade” que tem a ver com habilidades e com a capacidade de uso da razão prática que são características mais “individuais” (MacIntyre, 1988, pp. 124 e ss.).

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O que motiva a censura de Illich não é uma avaliação de que o ginasta dá um exemplo falsificado de autonomia, na medida em que sua ação corresponderia a uma automatização da produção do corpo - embora esta observação também esteja integrada a sua análise. Na verdade, o que Illich não pode entender é que alguém faça da saúde do seu corpo e da riqueza (ou do consumo) uma espécie de bem supremo. Portanto, mais uma vez, recorre ao paradigma implícito da moral da tradição em seu ajuizamento; como Ezra Pound em seu poema sobre a usura, Illich exclama: contranatura !

Illich não é um autor que se sobressaia particularmente pela tendência a argumentar. Ao contrário, sendo um “descobridor” de verdades morais, ele costuma apenas traduzir seu juízo nos termos patéticos de uma condenação. Mas, suponhamos que quisesse aduzir algum argumento a seu favor, de que evidência deveria lançar mão senão a de que existe um bem superior à riqueza e à saúde a que ambos devem estar subordinados? Mas para argumentar assim, coerentemente com a tradição, deveria escolher um bem que pudesse ser plausível para uma comunidade de interlocutores leigos que compartilham a cultura da contemporaneidade. Em torno de que bem (ou valor) tais pessoas poderiam estabelecer um consenso? Noutros tempos e noutros lugares, poderiam ser lembradas coisas tais como: a salvação da alma, a contemplação de Deus, uma vida digna e honrada, uma serenidade inabalável, e assim por diante. Mas hoje nada dessa lista sequer parece ter um sentido compreensível para o comum das pessoas. O debate moral atual sobre esses assuntos está restrito a saber se a saúde é um valor superior à riqueza ou ao contrário. Parece haver atualmente maior pudor em se converter a riqueza no supremo bem do que a saúde. Nos últimos vinte anos, passou a ter um quê de grande correção moral quem faz da saúde o seu supremo bem. Naturalmente, o ginasta de musculação é um exemplo extremo e bastante polêmico. Mas não o é quem assume seu regime do corpo no formato que virou consenso hoje: dieta com pouca gordura, abstinência do fumo, exercícios físicos moderados, formas de trabalho não-estressantes, etc. A esse modelo – que parece ser um estilo de vida virtuoso para a promoção da saúde - Illich não pode impunemente colocar junto com os casos extremos e dizer que dá origem a uma iatrogênese do corpo.

Com isso apenas sublinho que, se Illich anseia por aplicar um juízo ético a quem faz da saúde seu supremo bem, é melhor tornar mais inteligíveis para todos nós os termos de sua reivindicação. Ao condenar a idolatria do corpo, a higiomania contemporânea, Illich poderia simplesmente lançar mão, uma vez

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mais, de seu discurso sobre a saúde como virtude, que se presta muito bem ao duplo fim de mostrar que não devemos desprezar a tarefa do cuidado do corpo sem contudo fazer dela o grande telos da vida de cada um de nós. Esperaríamos simplesmente de Illich que continuasse a nos inspirar através da indicação de melhores modelos de cuidado de si. Mas o Illich-historiador não consegue divisar nenhum horizonte social para a autonomia fora daquele que é descortinado pelo modo de vida das comunidades vernaculares.

A dificuldade primária para o leitor de suas últimas obras reside em entender o que de fato está em jogo quando ele introduz essa idéia. Colocando a questão nos termos da moral da tradição: o valor vernacular constitui um bem superior à auto-suficiência de uma vida de frugalidade comum e corrente, que leve a uma conduta moralmente digna perante o mundo do mercado? Ou ambos são fins desejáveis na mesma intensidade?

Esta última interpretação é a que prefiro manter, de tal modo que posso continuar a ler Illich não como quem encontrou a chave da autenticidade no mundo contemporâneo mas como alguém que encontrou e indica um bom exemplo de vida comunitária. Se o vernacular é tido como um bom modo de vida comunitária, entre muitos outros possíveis, pode-se entender que Illich está apenas procurando realçar suas virtudes, assim como o fez quando, para tratar da conduta individual no cuidado de si, escreveu seu trecho sobre a saúde como virtude. No entanto, o Illich-historiador dos anos 80 e 90 não parece muito afeito a produzir uma versão atualizada da sociedade convivencial. Despede-se definitivamente dos grandes projetos de reforma da ação social da década anterior, de suas “revoluções institucionais”. Por exemplo, a obra sobre gênero termina com uma afirmação bastante cética acerca da possibilidade de retornar aos valores vernaculares entre homens e mulheres: “Não tenho qualquer estratégia a oferecer. Recuso a especular sobre as probabilidades de cura (Illich, 1982, p. 179).”

Nesse ato de abandono das propostas reformistas, Illich não esteve sozinho - de certo modo limitou-se a seguir o espírito da época, marcada pelo desalento da “esperança radical” quanto a uma mudança da sociedade em seu todo. O estilo existencial vernacular que agora defende lhe devolve a suas raízes na contra-cultura dos anos 60 e passa a demarcar sua posição definitiva como integrante de uma minoria moral, mas ainda um rebelde. No momento em que o establishment propaga a necessidade de modificar os estilos de vida para

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promover a saúde (que são, muitas vezes, apenas disfarce para novos modos de consumo), Illich propõe a adoção de um estilo existencial austero para promover a dignidade.

Pode-se dizer que em todos os usos proféticos que fez da moral e do conhecimento científico, em todas as suas revisões conceituais e auto-críticas, e mesmo em sua produção mais acadêmica, portanto, ao longo de toda sua trajetória intelectual, Illich teve um único propósito: o de defender a autonomia como autenticidade de vida. Nisto Illich foi e continua sendo absolutamente coerente e temos de reconhecê-lo por menos que desejemos segui-lo inteiramente em todos seus passos. Por isso, creio que lhe cabe bem a denominação que lhe atribuí no subtítulo deste trabalho, a de profeta da autonomia, denominação que, entre os críticos sociais da modernidade, talvez mereça ser compartilhada somente com Nieztsche.42

42 Quero externar minha gratidão a Sábado Girardi por me ter chamado a atenção acerca de Walzer (1985) e sobre o caráter profético da moral illichiana, o que foi de muita valia na elaboração deste capítulo.

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PARTE II - Descrições da Saúde e da Autonomia

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A Saúde e a Moral da Tradição

Como devo cuidar de minha saúde? Esta pergunta, colocada assim num formato de auto-reflexão e denotando um senso de responsabilidade por algo que é meu, foi considerada por muito tempo, na tradição filosófica do Ocidente que vem Aristóteles, como estando subordinada à questão moral fundamental, que, segundo MacIntyre (1984, p. 275), pode ser expressa assim: qual é o melhor tipo de vida que deve levar uma pessoa como eu? Que o cuidado com a saúde fosse parte da moral e que esta, por sua vez, dissesse respeito aos modos de viver socialmente condicionados (a vida na polis, por exemplo) foi algo tido como evidente na história intelectual ocidental até que a questão moral fundamental fosse redescrita por Kant e os iluministas como sendo como devo me conduzir perante os meus semelhantes?

A noção de uma “boa vida”, que conduz pela correta prática das virtudes à felicidade - num sentido preciso, que será visto adiante - foi substituída pela noção da obrigação de uma conduta correta, tomada como um finalidade em si mesma. A regra de ouro da moral kantiana é que devo tratar aos outros sempre como um fim e jamais como meio para alcançar o que desejo, caso em que subordino essa pessoa à minha própria vontade. Explicando melhor - devo sempre oferecer a alguém, para livre deliberação de sua parte, as razões pelas quais é melhor para seu próprio bem agir de um modo ou de outro, sem tentar influenciá-lo diretamente em sua decisão como ser autônomo e racional que é (MacIntyre, 1984, p. 46). Assim, enquanto a importância relativa da saúde em comparação com outros bens que concorrem para o alcance da felicidade é um tema muito presente em Aristóteles (embora menos entre os seus discípulos cristãos), este tipo de ela reflexão se mostra ausente em Kant e seus seguidores, porque para estes o objetivo da moral não está associado com a excelência de uma determinada forma de viver, mas com uma conduta virtuosa perante os nossos semelhantes de acordo com os imperativos universais da razão. Ao conceber a moral como um dever a ser exercido em relação aos outros e ao subordiná-la à noção de autonomia do sujeito no uso da razão prática, Kant, de certo modo, colaborou para excluir o tema da saúde como parte integrante e intrigante de uma doutrina moral.

Os utilitaristas seguiram Kant no que se refere à adoção da relação de alteridade como foco das reflexões éticas, mas tentaram divisar um fim externo e

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último para a conduta correta que seria algo assim como uma felicidade prazenteira. Nos seus cálculos sobre como materializar “o maior bem possível para o maior número possível de pessoas” e como evitar o grande mal humano que é a dor, entrava naturalmente a saúde. A corrente utilitarista teve grande destaque no século XIX por seus bem sucedidos esforços para criar uma legislação específica voltada para a melhoria das condições sanitárias das cidades européias. Como se sabe, Chardwick, o pai da saúde pública inglesa, era devoto discípulo de Bentham. Assim, se as intenções e princípios beneficentes dos utilitaristas repõem a saúde como uma finalidade importante da ação moral, fazem-no na condição de quem observa primariamente a sua dimensão coletiva, ou seja, trata-se de indagar sobretudo como posso promover o bem da saúde para um grande número de pessoas de uma dada população.

Recentemente coube à bioética realizar uma codificação modernizante desses princípios da autonomia kantiana e da beneficência utilitarista. Como nota Berlinguer (1996, p. 16), as questões da saúde em sentido estrito têm ocupado um lugar na bioética secundário diante daquilo que são os “fenômenos extremos”, cujo debate ganha, inclusive, enorme espaço na mídia - questões candentes tais como a dos estados terminais dos pacientes, a do direito ao aborto e da clonagem de mamíferos. Mas, a despeito disso, a bioética voltou, na época contemporânea, a fazer da saúde um objeto importante de reflexão ética, embora mantenha ainda a dupla perspectiva kantiana das obrigações e da relação com outro, em base a princípios gerais que se destinam não a orientar o cuidado com minha saúde mas o cuidado com a saúde do meu paciente. Com efeito, é difícil imaginar que a bioética pudesse ter um feitio não-normativo e de não-alteridade, dado que se trata de uma ética de “convenção formal” entre pares profissionais.

Illich, como foi visto na primeira parte deste trabalho é extremamente reativo tanto ao utilitarismo quanto à bioética, enquanto nada diz sobre Kant, a não ser indiretamente, pela redefinição original que faz dos conceitos de autonomia e heteronomia. Para Illich, as questões da saúde têm sempre de ser colocadas na primeira pessoa e tendo em conta uma relação de posse; a pergunta como devo cuidar de minha saúde depende desta outra - qual é a melhor maneira em que posso viver em comum com meus semelhantes? Para dar respostas a essas duas perguntas, recorreu aos ideais de uma sociedade convivencial e, posteriormente, aos da comunidade vernacular. Nisto, Illich mostra-se um fiel seguidor dos pressupostos doutrinários da moral da tradição aristotélica e tomista.

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Convém complementar essas breves observações introdutórias às descrições da saúde e da autonomia explicitando a posição pragmatista em relação ao tema das grandes questões morais. É preciso sublinhar inicialmente que, para os pragmatistas, não há qualquer tipo de questão moral fundamental a ser respondida, já que entendem que a moral não pode ser concebida na forma de um inquérito racional tal como o faz a tradição aristotélica, mas por uma forma de ajuste com nossos semelhantes em que a linguagem é um dos instrumentos de que lançamos mão.43 Tendem mais a concordar com Hume, que a moral é muito uma questão de refinamento e de educação dos sentimentos. Num recente ensaio sobre uma “ética sem obrigações universais”, Rorty (1997, p. 91) afirma que “deve-se pensar o progresso moral como um aumento da sensibilidade, um incremento da capacidade de responder às necessidades de uma variedade cada vez maior de pessoas e coisas.” Os pragmatistas rejeitam a idéia de que exista algum fim último da ação moral, ou seja, um bem supremo, a não ser como objeto momentâneo de indagação ou dos esforços sociais. Neste sentido, o moralmente correto (ou “o bem”) só o é tendo em conta uma dada finalidade e um dado contexto da história social. De um modo geral, os pragmatistas concordam com os utilitaristas em que o moral é o útil, da mesma maneira que entendem que a prudência, como o expediente de um auto-interesse, confunde-se com o moralmente correto. Portanto, a atitude moral do auto-interesse e da prudência que indaga sobre como devo cuidar de minha saúde pode ser um bom ponto de partida para entender como se deve proceder na relação de alteridade beneficente do como devo cuidar da saúde dos outros? Nos dois casos, “cuidado” denota uma precaução, uma atitude de prudência mas que não pode ser tomada em forma isolada da noção instrumental do “tratar”, como uma manipulação técnica incluída no cuidado.44 O que faz uma grande diferença entre a pergunta auto-referida e a da alteridade é que o cuidado com outro envolve uma sensibilidade especial diante da sua situação e das sua necessidades. Dessas três acepções do cuidado (de prudência, de sensibilidade e de manejo técnico), naturalmente a da sensibilidade é a mais difícil de ser estendida aos que não estão numa relação afetiva imediata conosco, ou seja, aos que nos são estranhos. Mas é justamente

43 “Os pragmatistas explicam o inquérito – na física na ética – como uma busca de ajuste e, em particular, de ajuste com nossos congêneres que denominamos ‘a busca da justificação e do acordo’. Sugeri no primeiro capítulo que a tradicional busca da verdade seja substituída por essa outra busca. Esta substituição nos levará a pensar que conhecer é um modo de ajuste mais completo e, de tal maneira, nos permitirá visualizar nossas faculdades como contínuas com as dos animais( Rorty, 1997, p.77).” 44 Ao contrário de Kant e dos tomistas, Rorty ( 1991a, p, 159) entende, instruído por Freud, que tudo o que fazemos uns com os outros no quotidiano, inclusive em relação aos que nos são mais queridos, envolve algo que pode ser entendido como uma “manipulação” .

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esta faceta que pode, segundo Rorty, marcar nosso progresso moral pela contínua expansão de nosso círculo de simpatia, no atendimento das necessidades de pessoas cada vez mais diversificadas e numerosas. Daqui que os vários sentimentos e emoções que Rorty quer denotar pela palavra sensibilidade (compaixão, ternura, etc.) não possam ser recobertos, em sua espontaneidade e progressividade, por um princípio geral de ação, que se chame beneficência ou benevolência ou como se queira. É que essa capacidade de dar conta, pela sensibilidade, de um número cada vez maior de pessoas não é inata, nem um dever imperativo, nem é algo que se desenvolve pela leitura de tratado éticos ou por exortações de nossos superiores; os pragmatistas crêem que ela é dependente de bons exemplos que possamos assimilar das pessoas que nos cercam, tanto quanto da leitura de autores excepcionais (como um Illich) e da apreciação da literatura e das artes em geral.

Essas marcantes diferenças entre a moral da tradição, o kantismo, o utilitarismo e o pragmatismo, mesmo que recapituladas aqui de uma maneira muito sumária, podem servir de orientação inicial para a discussão que segue. Começo esta recontextualização do pensamento de Illich expondo as descrições das saúde fornecidas pela moral da tradição, ou seja, por Aristóteles, Tomás de Aquino e os estóicos. No entanto, convém sublinhar de saída que há uma grande diferença entre Illich e os filósofos da moral da tradição devida ao fato de que ele não presume a existência de um contexto social “herdado” dos antepassados no qual pudesse estar inserido um modo de vida ideal, nem pretende dar seguimento a um inquérito moral de regras rigorosas. Illich entende, ao contrário, que a tradição, tanto em termos de idéias como em termos materiais, pode ser “reinventada” graças aos recursos da autonomia. Portanto, a autonomia para Illich, que, nas duas críticas, aparece como uma espécie de fazer por si e para si, representa um motor capaz de reformular a tradição e mantê-la atualizada em determinados modos de vida, que são tradicionais devido a alguns de seus conteúdos de crenças, mas também são modernos pelo seu formato e pela busca do uso eficaz das ferramentas. Neste sentido, Illich dedicou-se às tarefas de uma “reinvenção da tradição” (Giddens, 1994) desde os anos 70 e exerceu esse papel conscientemente em nome da autonomia, que é um “valor” precipuamente modernista.

Na medida em que a abordagem de Illich não faz da autonomia um princípio de uma metanarrativa de emancipação do sujeito, mas a concebe pelos seus resultados práticos, pelo lado da efetividade de diversas formas

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institucionalizadas ou comunitárias de prática social, e na medida em que incorpora certos elementos das tradições ocidentais, seu perfil intelectual o aproxima bastante daquilo que as novas convenções filosóficas chamam de “o pós-moderno”. Prefiro, contudo, não aprofundar essa linha de indagação, por concordar com Rorty (1991a, p. 1) de que esse termo “tem sido tão abusado que está causando mais problemas do que contribuição.” É melhor entender Illich não por um rótulo da moda mas através de uma recontexualização do que ele diz, pondo-o em conexão com os textos de muitos outros autores. Em relação a alguns desses autores, como Aristóteles, ele revela admiração reverente, em relação a outros, como Marx, ele tem uma posição francamente adversa, e, por fim, há alguns, como Nietzsche, que ele ignora, a despeito de terem em comum a alta estima pela autonomia.

***

O conceito de saúde como dom e bem tem origem em Aristóteles45 e está relacionado com sua teoria das qualidades humanas. Nesta teoria, o esquema teleológico do bem, entendido como objetivo da ação moral, articula-se harmoniosamente com o esquema normativo das virtudes, que são disposições do corpo, do intelecto e do espírito. No tratado sobre as Categorias, Aristóteles fala das qualidades como o que caracteriza as pessoas de uma forma ou de outra. O primeiro tipo de qualidade é o hábito (palavra que vem de habere, ter). O hábito é uma disposição relativamente duradoura e firmemente estabelecida no indivíduo, isto é, uma disposição que não muda facilmente. As virtudes e os vícios constituem hábitos, nesse sentido. O segundo tipo de qualidade é a capacidade inata. A exposição de Aristóteles, de um modo geral, leva a considerar que a saúde é uma capacidade inata, na medida em que “os homens são chamados de saudáveis em virtude de uma capacidade inata de fácil resistência às influências nocivas que podem ordinariamente aparecer-lhes; e não saudáveis em virtude da falta dessa capacidade” (Categorias, 8). Mas a saúde e a enfermidade em si constituem também hábitos, sendo duas qualidades distintas pelas quais o corpo pode ser bem ou mal disposto (Metafísica, V, 20).

45 Minha hipótese para a interpretação da filosofia moral “implícita” de Illich é que ela está fundada numa mescla muito singular de três fontes doutrinárias: o aristotelismo/tomismo, pela idéia da saúde como dom e bem; o estoicismo, pelo espírito de exaltação das virtudes; e o Iluminismo, numa variante do projeto de autonomia do sujeito. Este e os capítulos seguintes realizam um breve estudo dessas três fontes doutrinárias, começando pelo aristotelismo/tomismo.

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A saúde pode ser alcançada, deste modo, sem nenhum esforço específico ou, em graus muito variáveis de esforço, mediante a criação de uma disposição corporal produzida como um hábito. A boa condição do corpo pode ocorrer, para alguns homens, sem apelo a qualquer forma de exercício físico, mas para outros requer caminhar, correr, etc.; há ainda alguns que, por mais que tentem trabalhar arduamente seu corpo, jamais conseguem assegurar esse bem para si (Sobre os Céus, II, 12). Portanto, a saúde é tanto um dom inato - tal como a beleza, a força, etc. - quanto uma propriedade adquirida através do mérito individual, ou seja, um bom hábito, e nisto é similar às virtudes em geral e contrária ao vício, que é um mau hábito. Tomás de Aquino esclarece que para Aristóteles o hábito é um gênero que abrange a categoria da disposição; numa primeira instância, a saúde é tida como um hábito, igualada às virtudes; mas, numa segunda instância, o hábito é retido numa acepção da “forma perfeita” do gênero, e a saúde é vista como mera disposição, porque é fácil de ser perdida, enquanto as virtudes não o são (Summa Theologica, Parte II Q. 49 A. 2) . Em síntese, as virtudes reais constituem disposições mais duradouras, menos mutáveis, do que a saúde e a enfermidade.

O fim ou bem a que tende a ação humana no caso da saúde pode advir da pessoa mesma que deseja mantê-la, obedecendo, por exemplo, as regras do regime; ou que deseja reavê-la recorrendo à medicina. E pode advir do médico, pois “o fim da arte médica é a saúde”, como diz Aristóteles logo no início da Ética a Nicômaco.

Assim, seguindo nesta linha de raciocínio, Aristóteles se pergunta qual o bem geral do homem, aquilo para o que ele tende quando cumpre sua função como ser. O bem do homem, em sua função como animal específico, responde, não é o prazer, nem as honras, etc. mas a eudaimonia, a felicidade. É o exercício das virtudes - temperança, prudência, justiça, etc. - que prepara o homem para alcançar a auto-suficiência de que consiste a felicidade. Mas sendo o bem maior, a felicidade é a “atividade virtuosa da alma”, não um bem desejável entre outros, mas, na verdade, o bem absoluto, a finalidade mesma da ação humana (Ética a Nicômaco, I, 7). No entanto, há bens que são condições prévias da felicidade e outros que são cooperantes para alcançá-la (Ética a Nicômaco, I, 9). O que produz a felicidade excede aquilo que produz a saúde, da mesma forma que a felicidade é um bem mais excelente que a saúde (Tópicos, III, 1).

Aristóteles não o diz explicitamente, mas deixa subentendido que a saúde é um dos bens cooperantes para a felicidade e não um bem que lhe seja

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indispensável. Neste particular, Aristóteles juntava-se a outros filósofos antigos numa crítica velada à “glorificação da saúde” e à idolatria do corpo que veio a ser enraizada profundamente na cultura da polis.

A felicidade aristotélica não constitui uma espécie de bem-estar como se poderia interpretar por um viés modernista. Embora não desprovida de prazer, (que é inerente a qualquer atividade realizada em sua perfeição), a felicidade é a realização da perfeição do bem ou da finalidade mesma do homem, envolvendo uma sabedoria contemplativa ou uma contemplação sábia. Mas esta atividade bem realizada não se dá num vazio dos bens exteriores e materiais, embora também não os tome por excesso:

A nossa natureza não basta a si mesma para os fins da contemplação: nosso corpo precisa também de gozar saúde, ser alimentado, ser cuidado. Não se pense, todavia, que o homem para ser feliz necessite de muitas ou de grandes coisas, só porque não pode ser supremamente feliz sem bens exteriores (Ética a Nicômaco, X, 8).

A tradição aristotélica dará ensejo, assim, a uma preocupação constante com a hierarquização dos bens segundo sua importância para a eudaimonia: bens materiais (ou exteriores), corporais, morais e intelectuais, com suas correspondentes virtudes. A isto a teologia cristã irá agregar os bens e virtudes espirituais. A saúde entra tipicamente na descrição dos bens corporais. Assim, por exemplo, Agostinho, no tratado sobre o livre-arbítrio, ao falar dos bens que são ordenados pela lei comum, bens que as pessoas desejam possuir e a sociedade tem interesse em preservar para que a paz e a ordem sejam salvaguardados, diz

Ora, eis quais são eles: em primeiro lugar, o corpo e os bens denominados corporais, tais como uma boa saúde, a integridade dos sentidos, a força, a beleza e outras qualidades das quais umas são inerentes às artes liberais, e por aí, mais desejáveis que outras de menor apreço (O Livre-Arbítrio, Livro 1, 32).

Nesta passagem de espirito inteiramente aristotélico, inclusive na referência explícita à medicina como arte liberal (arte digna de ser exercida pelos homens livres), Agostinho mantém o esquema de relativa valorização da saúde que compreende sua colocação hierárquica como bem não desprezível, mas subordinado a outros que contribuem, de uma forma mais imediata, à obtenção do bem supremo. Na teologia agostiniana, o bem-supremo, junto com seu supremo deleite, é ainda uma sabedoria contemplativa, mas aparece agora com o

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sentido da contemplação bem-aventurada de Deus, que se pode alcançar de modo imperfeito nesta vida como simples prenúncio ou antevisão daquela beatitude completa que só se realizará após a morte. A introdução desse plano espiritual pela teologia cristã, inclui a concepção da possibilidade de que a saúde surja como uma disposição infundida diretamente por Deus; portanto, a saúde sendo gerada ou restabelecida por uma graça divina. A saúde como graça vem a constituir uma terceira alternativa, em adição ao dom natural e ao exercício do bom hábito. Diz Tomás de Aquino que tanto a virtude como a saúde podem ser infundidas por Deus:

Do mesmo modo que, portanto, algumas vezes, para demonstrar Seu poder, causa a saúde sem sua causa natural, mas que a natureza poderia ter provocado, assim também, para manifestação do Seu poder, Ele infunde no homem mesmo aqueles hábitos que podem ser causados por uma potência natural (Summa Theologica, Parte II Q. 52 A. 1).

A saúde, no pensamento tomista, goza de três referenciais distintos diante da natureza: 1) como “natureza primeira”, por dom, dote ou propriedade congênita da pessoa, devido a uma capacidade inata de resistir às influências que conduzem às doenças ; 2) como “uma segunda natureza”, pelos bons ou maus hábitos de cada um, sendo a própria saúde um hábito particular; e 3) por transcendência da natureza, na medida em que Deus é capaz de causar a saúde, embora o faça como se tudo resultasse de processos naturais.

Convém complementar esta breve exposição de noções aristotélico-tomistas, referindo a importância da idéia de equilíbrio ou de harmonia dos elementos naturais em sua compreensão do que seja a “essência” da saúde. Esta noção guarda grande semelhança com o equilíbrio dos humores na forma em que aparece na coleção hipocrática. No entanto, a concepção aristotélica é mais física do que fisiológica, o que remete às doutrinas cosmológicas dos pré-socráticos. Os seres, segundo Aristóteles, têm suas condições naturais de excelência ou de perfeição, das quais podem divergir por alteração ou defeito. A saúde e a beleza são as condições de excelência natural do corpo para o ser humano. Esta excelência consiste de uma mistura de elementos quentes e úmidos em proporção adequadas, quer na relação de uns como os outros, quer em relação à atmosfera em volta (Física, VII, 3). Assim, da saúde pode-se dizer que é uma harmonia do corpo (Sobre a Alma, I, 4). Tomás de Aquino limita-se a retomar literalmente de

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Aristóteles essa doutrina do equilíbrio dos elementos internos na saúde, sem nada acrescentar-lhe (Summa Theologica, Parte II Q. 49 Art. 2).

A interpretação da saúde na tradição tomista estará assentada sobre esses quatro pilares de entendimento sobre a presença do natural e do sobrenatural na existência humana: a) o equilíbrio básico entre os elementos físicos do corpo; b) o dom natural da saúde, enquanto uma potência inata para resistir a fatores de desequilíbrio; c) o bem, como algo que é almejado por todos; d) e a graça divina ou o dom divino que restaura por meio praerternaturalis o equilíbrio natural do corpo. A inovação introduzida pelo cristianismo em relação ao aristotelismo refere-se apenas a esta noção transcendente.

É assim que, no século sexto, Boécio, assimilando a herança aristotélica e estóica, podia contar com uma doutrina bem assentada para falar do significado moral da saúde, recorrendo à filosofia não como um ofício, mas na qualidade de um homem comum que nela buscava motivos para consolar-se:

É claro que os dons físicos são aspectos dos bens superiores: porque claramente a força corporal e o talho dão ao homem poder; beleza e ligeireza lhe conferem renome; e a saúde lhe dá prazer. E através disso tudo fica claro que aquilo que os homens almejam é a felicidade. Todo homem considera que aquilo que ele deseja acima de tudo é o supremo bem (Consolação da Filosofia, III).

Como a eudaimonia envolvia um duplo aspecto, de sabedoria filosófica e de contemplação bem-aventurada , os filósofos cristãos que a interpretaram podiam pôr maior ênfase num ou noutro aspecto. Boécio46, recém-convertidos ao catolicismo, parece que ainda interpretava a sabedoria do bem supremo como sinônimo de sabedoria filosófica. Agostinho, Hugo de São Vítor e Tomás de Aquino, mais ortodoxos, vêem a felicidade na forma da contemplação beatífica de Deus.

No final da Ética a Nicômaco (X, 8) é dito que a contemplação bem-aventurada é a atividade específica de Deus e que das atividades humanas a que

46 Illich compara Boécio com Agostinho nos seguintes termos: “Ao contrário do noviço apaixonado Agostinho, que buscava se distanciar dos sábios deste mundo, Boécio voltava-se a eles. Em Platão, Aristóteles, Plotino e Virgílio, ele via os pioneiros que prepararam o caminho para a vinda de Cristo. Em assim procedendo, tornou-se uma fonte importante sobre a antigüidade para os estudiosos medievais que aceitavam a idéia de que a filosofia clássica, especialmente o Estoicismo, era uma praeparatio evangelii, um prefácio ao Evangelho (1993, p. 12)”.

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mais dela se aproxima é também a que mais merece ser chamada de felicidade. Mas logo em seguida, Aristóteles diz:

Mas o homem feliz, como homem que é, também necessita de prosperidade exterior, porquanto a nossa natureza não basta a si mesma para os fins da contemplação: nosso corpo também precisa de gozar saúde, de ser alimentado e cuidado.

Persiste, portanto, em Aristóteles uma certa ambigüidade quanto ao significado moral da saúde: de um lado aparece como um bem de tipo hierarquicamente inferior embora cooperativo para a felicidade; de outro, faz parte dos bens de uma cidadania dignificada e tem de ser devidamente valorizado nessa hierarquia, porque a própria cultura grega assim o exige; do que resulta uma imediata associação entre os bens espiritualmente mais elevados com os mais terrenos, materiais ou corporais. É esta associação que a teologia cristã ortodoxa iria rejeitar como um ideal de vida do “bom pagão”. Contra esse ideal, o cristianismo assume a tendência a interpretar sabedoria como idêntica à contemplação de Deus e a fazer desta concepção do bem supremo um remédio que promove a salvação - palavra que deriva de salus, saúde. A saúde será relacionada com o bem supremo mediante algo efetivamente transcendente, o poder salvífico de Cristo. Esta via de interpretação é a que escolhe Hugo de São Vítor, quando diz no incipt do seu Didascalicon: “de todas as coisas a serem buscadas a maior é a sabedoria na qual consiste o bem perfeito”( citado por Illich, 1993, p. 9). Illich esclarece que, para Hugo, a sabedoria era nada menos que a segunda figura da Santíssima Trindade, Cristo. A citação de Hugo que nos é fornecida em seguida por Illich (p. 10) põe a descoberto essa ligação entre uma saúde cósmica e o bem supremo:

Ele é a sabedoria através da qual [Deus] fez todas as coisas...Ele é a Forma. Ele é a Medicina, Ele é o Exemplo, Ele é seu Remédio.

No cristianismo, definitivamente o salvador é o curador, ou seja, Cristo, o médico das almas. O teólogo luterano Paul Tillich, muito conhecido nos anos 50 pela junção original que fez entre estoicismo cristão, psicanálise e existencialismo, observa que a salvação é um ato de “cura cósmica”, entendido como a restauração de um todo que foi rompido, desintegrado (Tillich, 1984, pp. 16 e ss.). Não só para o cristianismo como também para muitas outras religiões (como é o caso dos sacerdotes dos antigos templos dos Asclepíades), embora esse poder salvífico seja de origem cósmica, tem a propriedade de incorporar-se

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individualmente ao poder do sacerdote ou do mago, sendo também individualmente recebido por quem padece. A cura de que se trata aqui é integral, pois não distingue entre males do corpo, da mente ou do espírito. Neste aspecto, a semelhança entre a antiga religião grega e o cristianismo é tão grande que, segundo Tillich (p. 19), Orígenes, entre as questões polêmicas que manteve com Celsus, incluiu a de saber se Cristo tinha maiores qualidades de médico do que Asclépio. De qualquer modo, o que cumpre salientar não é a extensão indefinida que esses símbolos da salvação pela via médica (vis medicatrix dei) assumem entre os “padres da Igreja” , mas o quão eficiente é essa imagística para promover um enquadramento religioso da medicina e da saúde, através de sua clara subordinação à vida espiritual do cristão.

***

A moral aristotélica, quando destaca o significado da saúde como dom e bem - e isto vale para tudo o mais que considere moralmente desejável -, prescreve um padrão de conduta cujo fundamento, como dito, é tanto uma relação de posse quanto um imperativo de busca consciente e racional do bem que deve ser possuído. Como bem já apropriado, a saúde tem de ser mantida; em caso contrário, é algo que cada um deve buscar. Neste esquema de posse e busca do desejado, a saúde insere-se num âmbito de responsabilidade pessoal claramente demarcado, que Illich recupera como uma das tônicas da sua Nêmesis. A totalidade dos bens, em sua hierarquização, obedece a uma lógica similar porque estabelece uma ordem em que os bens superiores são os que devem ser buscados com mais afinco, porque também são os mais difíceis de haver. O que prevalece nessa concepção da saúde é o seu lado positivo - o equilíbrio e a energia do homem sadio como algo que colabora no alcance da felicidade.

A moral estóica, ao contrário, irá fazer da saúde um valor que tem de ser interpretado em primeira instância pelo seu lado negativo, que é a experiência do homem posto diante da enfermidade - mais concretamente, diante do sofrimento, da debilitação e da ameaça de morte acarretados pela enfermidade. O padrão de conduta prescrito, como se pode identificar em Epíteto, não tem nada a ver com uma relação de posse e uma ação de busca: o que é estimado é a capacidade de manter, nessas circunstâncias, a soberania da razão, ou seja, o auto-controle, de tal modo que tais acometimentos do corpo não afetem, ou afetem ao mínimo, o ânimo pessoal. Isto envolve, em primeiro lugar, uma convicção adquirida pela

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reflexão acerca de um princípio de sabedoria: as enfermidades fazem parte daquelas coisas que nossa vontade não tem o poder de evitar; por sua vez, essa compreensão tem de levar, pela via de um adestramento, ao desenvolvimento de uma habilidade moral para suportar com abnegação, coragem e relativa indiferença, os momentos de enfermidade. Esse princípio da sabedoria estóica é referido no primeiro capítulo dos Discursos de Epíteto: “Devemos fazer o melhor uso das coisas que estão em nosso poder e usar o resto de acordo com sua natureza. Qual é a sua natureza? Da forma que Deus dispor.” O estudo do estoicismo de Epíteto, Sêneca e Marco Aurélio ajuda sobremaneira a entender de que modo Illich pôde, como crítica da modernidade, retomar uma visão do cuidado de si que tem tanto uma base libertária individualista com uma forte evocação da cultura e da moral greco-romanas.

O objeto da filosofia, segundo Epíteto nos seus Discursos, é a vida de cada pessoa, da mesma maneira que a matéria prima da estatuária é o cobre. Para esta função de moldar o eu, de aumentar a capacidade de autodomínio e de governo da razão, a saúde não tem qualquer utilidade, é uma coisa externa tal como um pedaço de terra ou a reputação. Buscar a saúde acima de tudo significa expor o eu a tudo que é externamente ofensivo, é tornar-se vulnerável e submeter-se a uma espécie de escravidão:

Se ponho minha admiração no pobre corpo, resignei-me em ser um escravo; se nas minhas posses, faço de mim também um escravo; porque assim procedendo torno imediatamente evidente de que modo posso ser capturado (Livro I, Capítulo 25).

Um dos temas prediletos dos estóicos é o da terapia do desejo. Eles consideram o desejo não como uma irrupção espontânea na consciência de um apetite ou tendência, mas procedendo repetitivamente da ação de um hábito ou faculdade, que se cultiva inevitavelmente pela satisfação do próprio desejo. O desejo é curável só na medida em que sua fonte, os hábitos, sejam efetivamente transformados ou eliminados. A condição de enfermidade mental criada pelo desejo das coisas externas tem de ser curada mediante a correção das faculdades e dos hábitos que lhes dão origem, tornando a vontade efetivamente indiferente, por exercício, a seu poder de atração. O exercício, neste caso, tem um sentido estrito de práticas de cuidado do eu, que envolvem um detalhamento de regras práticas com o fito de progresssivamente enfraquecer e finalmente destruir o mau hábito, que pode ser o apego ao dinheiro, a irascibilidade, etc. (Livro II, Capítulo

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18). O restabelecimento do autodomínio, da soberania da razão, da pureza do eu é o trunfo que se conquista por esses exercícios:

Este é o verdadeiro atleta, o homem que se exercita contra tais aparências. Fique, miserável, não se deixe levar. Grande é o combate, divino é o trabalho; ele vem com o objetivo de garantir a soberania, a liberdade, a felicidade, a liberdade afastada da perturbação (Livro II, Capítulo 18).

Se para Aristóteles desejar a saúde como um fim ou um bem é parte das responsabilidades de cada um, para os estóicos a responsabilidade principal é o do treinamento do eu para curar todo desejo por bens externos, inclusive o desejo pela saúde, de tal maneira que as enfermidades e seus riscos sejam bem enfrentados. Ou seja, que sejam enfrentados como - o que se poderia dizer na linguagem de hoje - “coisas normais da vida” . Nos Discursos de Epíteto, essa orientação aparece com muitos detalhes no capítulo 10 do Livro III, que resumo a seguir na forma de uma série de máximas auto-reflexivas.

a) Como devo enfrentar as ocasiões de enfermidade e de dor? Tenho que dizer para mim mesmo: para isso me preparei e me disciplinei. Que venha a febre e a dor, pois saberei suportá-las bem, visto que não está em meu poder evitá-las.

b) Nada impede que eu mantenha a serenidade e a soberania da minha razão durante uma febre: ter febre faz parte da vida tal como andar, viajar ou velejar; e se ela me impede de fazer algumas coisas é porque é natural não poder fazer alguns tipos de coisas em determinadas ocasiões - assim como não posso ler quando ando, também não posso faze-lo quando tenho febre. De resto posso fazer muitas outras coisas que continuam facultadas ao homem quando tem uma febre.

c) O que farei para suportar bem uma febre? Não culparei Deus nem os homens, não me afligirei com o que acontece, estarei pronto para eventualmente morrer e para fazer tudo o que eu tenha que fazer nessas circunstâncias.

d) Se tenho uma febre, estarei preparado para não me assustar com o que diz o médico e para não ficar muito entusiasmado quando afirmar que estou passando bem. O que afinal a saúde ou a enfermidade podem me aportar de muito valioso? Se estou bem de saúde de fato, isto não me traz nada de essencial para mim; e se estou mau e perto da morte, isto é algo que certamente haveria de me acontecer mais cedo ou mais tarde.

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e) Por que então devo tentar agradar ao médico, dizendo coisas tais como: “se for da sua vontade, senhor, estarei bem”. Por que devo faze-lo sentir-se superior? Um médico não precisa ser mais valorizado do que um sapateiro ou um carpinteiro que cuidam das coisas materiais, porque ele trata do meu corpo que não é minha propriedade e por natureza é morto.

f) Se eu proceder assim, farei o que é próprio a alguém que tem uma febre. Porque não é dever do filósofo dar muita atenção a essas coisas externas, mas apenas manter o poder de soberania. Quanto a meu pobre corpo, basta-me não ser negligente no seu cuidado.

A atitude que se expressa nesse primado do cuidado da alma pela filosofia traça um paralelo profundamente contrastante com o primado do cuidado do corpo pela medicina e pela dieta que a cultura grega clássica tanto reforçou. Porque a enfermidade e o sofrimento não perturbam o estóico? Porque, como diz Tillich (1980, pp. p e ss.) em seu A Coragem de Ser, ele se vê acima dessas contingências humanas; porque considera a enfermidade e a dor como acidentais e não como pertencentes ao que é essencial em si, que é sua participação no logos, na razão universal. Daqui que para os estóicos a virtude torna-se um fim em si mesmo e não um meio para alcançar um dado objetivo na vida. O estoicismo soterraria, nessa interpretação, a teleologia aristotélica e seus compromissos com uma boa vida em sociedade. A virtude não é instrumental, é antes a energia indispensável que permite manter um estilo de vida que alimenta essa atitude de auto-afirmação individual apaixonada. A primeira máxima de Sêneca diz: imperturbáveis pelo medo e inesgotáveis pelos prazeres, não teremos nem a morte nem os deuses.

***

O que Illich seguramente identifica de repugnante na tendência atual de glorificação da saúde e de “produção automatizada do corpo” é um contra-senso que só pode ser avaliado quando alguém se põe na ótica da moral da tradição: trata-se da saúde do corpo transformada num bem em si, afastada da consideração e ponderação quanto ao que há de desejável em outros bens com os quais a saúde possa ser relacionada ou subordinada, como parte integrante de um bom modo de viver. Entendo que a crítica de Illich, neste ponto, mantém-se ligada a uma reflexão moral sobre as virtudes segundo a dupla linhagem do tomismo e do estoicismo, a despeito de seu apelo para o estudo da história do

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corpo que dá impressão de ansiar por uma autoridade científica, por um forma de “objetividade” do juízo moral.

A crítica de Illich em relação à iatrogênese do corpo bem poderia começar por Descartes. Foi Descartes, no Discurso do Método (sexta parte), quem iniciou a longa trajetória de sobrevalorização moral da saúde e da medicina que caracteriza toda a modernidade e sua extensão nas atuais sociedades pós-industriais. Descartes diz nada menos que a saúde é “o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida”. Entusiasta por toda sua vida do estudo da anatomia, da fisiologia e da medicina em geral, Descartes agrega que se há algum meio de tornar os homens mais sábios e hábeis, este meio deve ser buscado na medicina, que, se mais avançada fosse, já teria encontrado as causas de muitas enfermidades e os remédios para combatê-las. Isto nos livraria de tantos males “quer do espírito, quer do corpo, quer do enfraquecimento da velhice”.

Convém cotejar a situação atual disso que Illich chama de iatrogênese do corpo com o que aconteceu na Antigüidade greco-romana onde se produziu uma cultura do corpo muito assemelhada àquela que observamos hoje. O primeiro contraste pode ser salientado a partir da ética aristotélica, na medida em que a saúde, vista como dom e bem, abre caminho para o que denomino de enquadramento moral da saúde. O objetivo desse enquadramento é dar um lugar adequado e destacado à saúde e à medicina na sociedade e na vida das pessoas sem permitir que sejam convertidas em encarnações do supremo bem.

Edelstein (1987, pp. 349-366) discute esse tema em seu livro A Medicina Antiga, retratando o embate movido apaixonadamente pela filosofia contra a “glorificação da saúde” que os médicos já se encarregavam de promover na Antigüidade Clássica. A glorificação da saúde na Grécia e em Roma é bem exemplificada pela ditadura imposta pelos médicos através do Regime, um conjunto de regras rígidas e detalhistas sobre o que comer e beber, que exercícios físicos realizar, de que modo dosar a atividade sexual, etc. Na medida em que a saúde era pressuposta como um equilíbrio, sempre perturbável por fatores adversos, é que mais forte se tornava a preocupação com o regime, impondo uma obsessão ao indivíduo sadio em vigiar-se constantemente e seguir as regras minuciosas do regime. Enfim, o indivíduo - e era geralmente o que se chamava então um particular, alguém pertencente às clãs abastadas ou proprietárias - tinha que estar precavido contra a possibilidade de qualquer desvio em relação ao regime que lhe foi prescrito (Edelstein, p. 358). Preocupado com a observância do

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regime, no caso dos particulares, ou requerendo dos médicos um tratamento pronto, porque “não tem tempo para ficar doente”, como diz o artesão retratado em A República47, o grego fazia da saúde algo que freqüentemente corria o risco de ser tomado como o bem supremo.

Com efeito, o filósofo céptico Sextus Empiricus, citado por Edelstein, afirmava que, para as pessoas comuns, ou seja, os que têm de trabalhar para sobreviver, a saúde é de fato o maior dos bens, o summum bonum. No entanto, que a saúde fosse igual à felicidade sempre pareceu algo imoral aos olhos de Platão, de Aristóteles e praticamente de todos os antigos filósofos. Daqui que, conforme observa ainda Edelstein, alguns desses filósofos, tal como Plutarco, conceberam suas próprias regras de regime, mais flexíveis, para que as pessoas pudessem aprender a ter uma vida sadia, sem precisarem vestir a camisa de força oferecida pelos médicos.

Uma reação espontânea contra a medicalização da sociedade grega clássica pode ser vista no relato que Heródoto faz de sua viagem à Babilônia onde supostamente não havia médicos e os enfermos curavam-se uns aos outros. A questão da fidelidade histórica desse relato de Heródoto (que foi provavelmente contemporâneo de Hipócrates) tem menor importância do que sua interpretação como um libelo contra o excessivo poder dos médicos em sua própria casa:

O seguinte costume parece-me a melhor de suas instituições depois da que acaba de ser louvada. Eles não têm qualquer médico, mas quando um homem se enferma, deitam-no numa praça pública e os transeuntes vêm a seu encontro e, se eventualmente tiveram uma enfermidade similar ou souberam de alguém que a teve, eles lhe dão conselho, recomendando fazer tudo o que consideraram bom no seu próprio caso e no caso de que têm conhecimento; e a ninguém é permitido passar em silêncio sem perguntar-lhe qual é o seu problema (História, Livro I, 197).

Essa espécie de imagem mítica de uma sociedade desmedicalizada contrasta fortemente com o ideal grego da saúde, que fazia da medicina uma arte

47 O trecho de Platão é o seguinte: “Um carpinteiro doente - disse-lhe eu - pede ao médico que lhe dê um remédio que, por vomitório ou purga, evacue sua doença ou então que lhe faça uma cauterização ou incisão que o liberte dela. Mas, se alguém lhe prescrever um longo regime, com ligaduras em volta da cabeça e coisas similares, diz logo que não tem tempo para estar doente, que não vê nenhuma vantagem em viver assim, ocupando-se unicamente de sua doença e desprezando o trabalho que tem diante de si. Em seguida, manda o médico embora e, retomando o regime habitual, recupera a sua saúde e vive exercendo o seu ofício; ou então, se o seu corpo não está em condições de resistir, a morte liberta-o (A República, Livro III)”.

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reconhecidamente superior a todas as “artes iliberais”, como é registrado no diálogo Górgias. O fato de que Heródoto não tenha censurado como bárbaro o costume de dispensar os médicos nessas condições, mas antes o tenha elogiado, pode ser tomado como uma crítica velada à medicalização da vida na civilização grega. Mas a glorificação do corpo e da saúde, a exaltação da arte médica, traziam, como contrapartida, uma ameaça à ordem moral, na maneira em que era interpretada pelos filósofos. O que Edelstein (p. 358) nota dessa situação é muito similar ao que Illich chama de expropriação da saúde na modernidade:

Mas a obediência a tal ideal não apenas dificulta o desfrute e o prazer - tornam o homem inepto para a vida. Faz dele um escravo de seu corpo. Ele perde toda a liberdade de ação e decisão; deixa de cumprir seus deveres de cidadão. Platão não foi pouco ágil em apontar esses riscos todos, nem os romanos deixaram de observá-lo; a resistência inicial destes à medicina grega foi devida em grande parte a sua oposição a doutrinas que ameaçavam destruir a vida política e cívica.

A Ética a Nicômaco, nesse contexto da medicalização social da polis, serve de estratagema discursivo para enquadrar moralmente a saúde e a medicina nessa perspectiva dos filósofos, para quem a felicidade estava na sabedoria, na contemplação filosófica e mística do mundo ou em qualquer outro bem mais elevado do que o representado pela saúde. Aristóteles podia faze-lo com a tranqüilidade e a legitimidade de alguém que era membro de uma família de médicos, tendo ele próprio, ao que se diz, exercido a medicina em Atenas. São três os recursos a que a moral aristotélica lança mão para esse enquadramento da saúde. O mais importante é uma bem arquitetada hierarquização dos bens. A hierarquia dos bens em Aristóteles não era rígida: ela constituía um método de problematização da situação moral de cada indivíduo, levando-o a indagar-se: nesta situação, qual o bem maior que devo escolher? No caso da saúde lhe estava reservado um lugar eminente entre os bens corporais, mas subordinado aos bens morais que são também virtudes e aos bens intelectuais: a honra, a justiça, o entendimento e a própria felicidade como bem supremo. Assim, a saúde encontrava-se alijada em definitivo do âmbito da eudaimonia , compreendida como uma situação de auto-suficiência. Se a obtenção da felicidade implica na auto-suficiência da boa vida, em que nenhum outro bem lhe é necessário para assegurar seu gozo, fica claro que a saúde, na concepção ortodoxa do regime, com todas suas exigências de cuidados e de necessidades constantes a serem atendidas, está fora de sua definição mesma, embora deva ser entendida como

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um bem suplementar, que concorre para alcançá-la. De um modo geral, Aristóteles destaca a relativa parcimônia de posse de bens que é condição suficiente para assegurar a eudaimonia.

O segundo recurso decorre da própria concepção de bem, que estabelece uma noção de responsabilidade pessoal. A saúde não é só algo que já se tem em maior ou menor medida, por dotação natural, mas é um bem diante do qual cada um tem a responsabilidade de envidar esforços para mantê-lo e torná-lo mais perfeito ou, quando enfermo, recuperá-lo. É o que diz Aristóteles quando trata das virtudes e dos vícios como ações de responsabilidade de cada um na escolha de meios para alcançar um fim almejado:

Podemos supor o caso de um homem que seja enfermo voluntariamente, por viver na incontinência e desobedecer aos seus médicos. Nesse caso, a princípio dependia dele o não ser doente, mas agora não sucede assim, porquanto virou as costas à sua oportunidade - tal como quem arremessou uma pedra já não é possível recuperá-la; e contudo estava em seu poder não arremessar, visto que o princípio motor se encontrava nele (Ética a Nicômaco, III, 5).

O princípio motor da saúde como inerente ao próprio indivíduo demarca um critério de responsabilidade, de capacidade de ajuizamento pessoal, que tem sua correspondência no moderno conceito de autonomia. É um fim inerente a cada indivíduo, decorrente de suas funções de ser ativo, zelar por sua própria saúde. Da mesma maneira, o fim da medicina é também a saúde mesma, mas concretizada como o que é mais conveniente ao indivíduo numa dada situação. É isto que pode ser entendido como o efeito específico das virtudes morais sobre a saúde. Assim, a saúde decorre de uma ação consciente da alma através das virtudes, particularmente da temperança e da prudência.

Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força; e, da mesma forma, o alimento ou a bebida que ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, aumentam e preservam (Ética a Nicômaco, II, 2).

Através do preceito de mediania, do justo meio, daquilo que não é excessivo nem insuficiente, Aristóteles busca caracterizar uma diretriz geral de exercício da virtude na qual enquadra tanto a saúde como bem quanto a medicina como arte. A arte médica fornece inúmeras símiles que permitem precisar melhor

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o que seja esse justo meio. A doutrinação moral pela via das símiles médicas foi, como se sabe, um recursos amplamente utilizado por Platão. Proporcionando ilustrações para orientar a ação moral, a saúde e a própria medicina submetem-se a uma terceira e importante forma de enquadramento moral, na medida em que evidenciava que a ação médica podia de algum modo representar metaforicamente a ação moral, mas não podia substituí-la. A medicina - portanto, a arte mais popularmente conhecida na Antigüidade -, nesse processo de ilustração da ação moral, aparecia como secundarizada, pois era o filósofo quem forjava essas símiles para expor seu saber, de tal modo que a medicina tinha que ser vista como subordinada ao amor do saber, à própria filosofia, a quem cabia, de pleno direito, indicar no que consistia o bem supremo do homem.

O enquadramento moral da saúde, para os estóicos, está derivada também do exercício das virtudes, mas estas obedecem a uma concepção individualista em que não aparecem como hábitos de relevância social mas como forças básicas, impulsos essenciais do ser humano. MacIntyre observa que na visão estóica, a aretê (virtude) é uma questão de tudo ou nada. Com a virtude se tem a dignidade moral, sem a virtude não se tem. Mas se a virtude é para Aristóteles a busca da perfeição e da eficiência social e individual em cada ação por referência à cultura da polis, para os estóicos, a virtude não se presta a um semelhante papel funcional:

Fazer o que é certo não necessariamente produz prazer ou felicidade, saúde corporal, sucesso mundano ou de outro tipo qualquer. Nenhum desses é um bem verdadeiro; são bens apenas condicionalmente após sua administração para uma ação correta por um agente que corretamente formou sua vontade. Somente tal vontade é incondicionalmente boa. Daqui que o estoicismo abandonou qualquer noção de um telos (MacIntyre, 1984, pp. 168-9).

Nesse esquema moral, a saúde e a medicina são coisas relativamente sem relevância, que não cumprem uma função importante na conformação dessa vontade, a não ser, mais uma vez, pelo empréstimo de símiles terapêuticas. Elas já se encontram alijadas do que é moralmente essencial: a enfermidade, porque é um acidente, um evento inevitável no confronto com o destino, e a medicina, porque é mero artesanato do “pobre corpo”. Cultivar a saúde é algo que não tem, por conseguinte, prioridade e deixa de ser um telos. Por essa via negativa, o estoicismo realiza um enquadramento moral da saúde que é muito distinto

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daquele que se encontra em Aristóteles, mas que é igualmente eficaz para impedir que alguém a conceba como bem supremo.

Na verdade, o que está ausente na visão estóica é a própria ênfase num bem supremo, qualquer que ele seja. Daqui que o estoicismo não proceda a uma hierarquização dos bens, mas apenas a uma contraposição entre o que é interno ao ser e dependente de sua vontade e o que é lhe externo, ou seja, aquilo que não pode ser evitado por mais que se eduque a vontade. Ao promover esse tipo de contraste que é, por assim dizer, existencial, os estóicos constróem seus objetivos morais numa esfera ontológica do ser e não na esfera sociológica da posse. Para Aristóteles, o hábito é o que se tem, o bem é o que se busca ter. Neste caso, a saúde é o que já se tem ou pode-se ter, de uma ou outra maneira, mais ou menos aperfeiçoada. Em contraposição, para os estóicos, o hábito é aquilo que cada um é e contra o qual se luta. Mas, no estoicismo, a idéia da saúde aparece identificada com a própria virtude, como força e coragem para ser o se quer ser e para lutar contra aquilo que, dentro de cada um, obstaculiza o cumprimento dessa vontade.

O auto-controle estóico diante da enfermidade, da dor e da morte é apenas uma das formas do cuidado de si que desde Platão ocupa os filósofos em sua confrontação com as práticas da medicina. Nos seus estudos da sexualidade e da moral no mundo greco-romano, Foucault conferiu grande destaque a essa concepção, que em grego é a epimeleia heautou (cura sui, em latim):

Podemos dizer que na filosofia antiga como um todo, o cuidado do eu era considerado tanto como um dever e uma técnica quanto como um conjunto de procedimentos cuidadosamente estruturado (Foucault, 1997, p. 95).

Platão, os cínicos e os epicuristas fornecem outros exemplos de como o cuidado de si pode ser materializado com princípios distintos daqueles do estoicismo, embora com uma imagística terapêutica assemelhada. O estoicismo criou sua própria versão do cuidado de si, através dessa ênfase na disciplina da alma, isto é, de uma ascese especial para o controle dos desejos. A epimeleia aparece, numa forma totalmente individualista e auto-centrada, como uma proposta de governo de si e não como de governo dos outros. Por isso, seu escopo pedagógico não pode ser o da paideia, uma função de preparação do indivíduo para a convivência social, mas o da autoterapia. No ensaio do qual retiro a citação anterior, A Hermenêutica do Sujeito, Foucault (196, pp. 95-97)

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busca precisar melhor o sentido da epimeleia em comparação com as práticas da pedagogia, salientando três diferenças essenciais:

A) É uma prática crítica, que procede por negação e eliminação dos maus hábitos e falsa opiniões. Não se trata somente de mover-se sistematicamente para um objetivo, aprendendo mais de cada vez - na verdade, é preciso começar por “desaprender”, por liberar-se de algumas coisas que se sabe ou se faz por costume, mas estão erradas.

B) É vista através de uma ótica agonística, em que a imagem da luta e da preparação para a luta, a coragem para enfrentar as adversidades, ocupam o centro de um quadro de virtudes morais que têm de ser cultivadas com tenacidade.

C) Tem por base um modelo médico-terapêutico e não propriamente de ensino-aprendizagem, na medida em que a filosofia volta-se expressamente para o tratamento de males que se concebem nos planos simultâneos do físico e do mental, do sentimento e do pensamento - é preciso recorrer a ações drásticas de tratamento que implicam em purgar, escarificar ou amputar.

Quais são as diferenças filosóficas importantes que podem ser sublinhadas entre a moral aristotélica e a moral estóica? Há muitas, mas talvez a de maior interesse para os temas relacionados com a saúde esteja no individualismo rebelde e autoconsciente que não se propõe em nenhum momento a ter uma solução moral de amplo alcance social. A moral estóica claramente se dirige unicamente à transformação do eu, ela é, por assim dizer, psicoterápica, dispondo de um instrumental para combater a angústia, a vacilação, a indisciplina do indivíduo. Seu propósito é liberá-lo das inibições, compulsões, impedimentos - torná-lo livre e feliz (Epíteto, Discursos, II, 18). Para isso, o professor tem que moldar a natureza do seu aluno, como o artesão faz com sua matéria prima. Neste trabalho, as virtudes que o estóico tenta desenvolver nos seus seguidores não decorrem de um desígnio de um correto proceder afinado com a convivência em sociedade, como no caso das virtudes aristotélicas. Cada um prepara-se apenas para melhor enfrentar seu destino individual, livrando-se dos temores inúteis e mantendo sempre a serenidade em cada ocasião que a opinião comum tem como adversa. Aqui encontra-se excluído qualquer princípio metafísico que preveja uma finalidade peculiar ao ser humano. Por outro lado, a própria idéia de uma autopoiese da pessoa humana é algo que apresenta uma forte ressonância com o

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individualismo filosófico moderno, tal como aparece em Nietzsche, na psicanálise e no neopragmatismo de Rorty.

***

A idéia de uma moral da tradição, como a venho utilizando neste trabalho, é devida a MacIntyre (1984, pp.146 ss.). MacIntyre mantém um ponto de vista historicista da moral, posto a serviço de um compromisso profundo com uma determinada tradição, aquela que vem de Aristóteles e é abraçada por Tomás de Aquino. Assim, embora MacIntyre praticamente não se detenha na interpretação da moral estóica, esta corrente, igualmente influente na reflexão moral moderna, tem o direito de ser incluída no campo ampliado de uma moral da tradição.

MacIntyre diz que o próprio conceito de tradição é sumamente anti-aristotélico, porque se funda não numa análise da natureza mas na compreensão não-positivista da história da cultura. Para esta compreensão, um conjunto de crenças defendidas por um autor só é inteligível e justificável enquanto esse autor se coloca como membro de uma série histórica e na medida em que a entrada de novos figurantes nesta série implica na aceitação dos pressupostos estabelecidos pelos seus antecessores e na busca da ampliação de resultados através da investigação moral. A tradição fixa um marco epistemológico cuja aceitação é condição impositiva para que os argumentos morais façam sentido e para que esse tipo particular de investigação possa avançar. MacIntyre nega que exista uma racionalidade geral que possa ser compartilhada pelas várias linguagens morais a que se pode recorrer atualmente: a da tradição, a do utilitarismo, a da genealogia nietzscheana, etc. De fato, sua hipótese de trabalho principal é que essas linguagens são ininteligíveis ou incomensuráveis entre si, o que torna inviável a idéia mesma de um debate moral amplo na contemporaneidade. Assumindo este débito para com a filosofia de Wittgenstein, MacIntyre concebe que a única forma conseqüente de debate moral é aquela que ocorre numa dada comunidade dos que falam uma dessas linguagens particulares.

Sobre a obra moral de Aristóteles, ele observa que ela está literalmente comprometida com pressupostos acerca da “natureza humana” e dos vários fins a que tende a ação humana, numa correspondência com essa natureza. A ética aristotélica é teleológica, define uma norma de conduta em função de um fim, que entende como algo natural ao homem. Se esta é a garantia de sua extraordinária coerência interna, constitui também a maior dificuldade de sua aceitação para o

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pensamento contemporâneo que recusa a idéia mesma de que o homem tenha uma natureza qualquer.

Nessa crítica do naturalismo é conveniente seguir a MacIntyre, sem que isto implique num endosso a seus pontos de vista inseridos dentro da tradição aristotélico-tomista. Ao tratar das virtudes segundo a concepção aristotélica, realça que, para Aristóteles,

Os seres humanos como os membros de outras espécies, têm uma natureza específica; e essa natureza é tal que eles têm certos alvos e objetivos, de tal modo que se movem em direção a um telos específico. O bem é definido em termos de suas características específicas. Daqui que a ética de Aristóteles, exposta como ele a expõe, pressuponha sua biologia metafísica (MacIntyre,1984, p. 148).

O naturalismo aristotélico estendeu-se por inteiro ao tomismo, que nada fez para mudar seus pressupostos básicos sobre a “natureza do homem”. Isto é tão verdadeiro, que um tomista ortodoxo como Jacques Maritain, em pleno século XX, assevera que o homem tende para seu bem naturalmente, isto é, que o desejo pelo supremo bem e pela felicidade “é necessariamente predeterminado pela natureza” e que “isto é um fato empírico” (Maritain, 1990, p. 89-90).

Mas para manter essa concepção ampla do naturalismo da ética, Aristóteles põe em prática um estratagema que é o de naturalizar a própria cultura da polis. Aristóteles, ao dar conta dessa realidade social, dos seus costumes e de suas leis, fá-lo através de sua teoria das virtudes e da hierarquia dos bens. De um modo geral, essa dimensão cultural ou política da ética aristotélica - que está presa à própria etimologia da palavra moral, no sentido dos costumes de um povo - tem sido mais apreciada na modernidade do que a dimensão biologicista e naturalista, que praticamente passa despercebida. Mas as duas dimensões interagem constantemente e dependem uma da outra, como se constata na análise de Aristóteles sobre a saúde: esta é dom natural e bem cultural, ao mesmo tempo, pois só pode ser assegurada pelo exercício continuado da temperança, da prudência e de outras virtudes. No entanto, por natureza, o homem tende mais aos excessos; por exemplo, tende mais aos prazeres e à intemperança, daqui que as virtudes têm de exercer uma correção continuada para faze-lo aproximar-se do meio termo.

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É nesse ponto que surge outra dificuldade para a assimilação de sua ética. As virtudes aristotélicas são elementos de conformação do caráter e constituem índices importantes de uma “unidade de vida” que só têm sentido quando referida a um agente permanente das virtudes. Têm de estar referidas à construção sólida de um caráter, de um “eu centrado”, que mantenha a persistência e energia necessárias para seus feitos, que transforme seus maus hábitos em bons hábitos, que, enfim, seja pessoalmente responsabilizável pelo que faz ou deixe de fazer. Conduta virtuosa e caráter se entrelaçam nessa concepção, porque como diz Dewey, recuperando metafisicamente muitos dos termos da ética aristotélica,

A essência da moral reflexiva é que ela é consciente da existência de um eu persistente e da parte que ele desempenha em tudo o que é exteriormente realizado (1996, p. 15).

Isso tudo conduz a uma teoria metafísica do eu e da ação que a filosofia e a psicanálise “desconstruíram” sobejamente neste século. É por esse motivo que MacIntyre propõe que se reinterprete essa integridade do eu sem uma referência ontológica à agência individual, mediante um processo narrativo. O que sustenta essa faceta da moral é a capacidade de narrar um história que interliga, sempre a posteriori, os vários momentos da vida individual, do nascimento à morte, em conjunto com os argumentos justificativos de suas ações. A unidade da vida pessoal e a coerência do que nela se busca não resulta de uma continuidade psicológica nem ontológica, mas da capacidade narrativa de cada um de nós de referir ao mesmo personagem da história que contamos a nós mesmos e aos demais. Evidentemente, isto pode envolver, em maior ou menor medida, uma interpretação dramatizável da trajetória do eu, dos seus conflitos consigo mesmo e de seu confronto com os valores sociais. Nessa versão narrativa da agência moral, diz MacIntyre (1984, pp. 217-18), é negada a noção supra-histórica do caráter e da identidade pessoal:

O que a concepção narrativa da identidade (“selfhood”) requer é algo duplo. De um lado, eu sou o que sou a partir de uma história que vai do meu nascimento a minha morte; eu sou o sujeito de minha história e de mais ninguém, que tem seu particular significado.(...) O outro aspecto da narrativa da identidade começa a emergir: eu sou alguém que pode exigir dos outros um relato, que pode questioná-los. Sou parte da história deles como eles são da minha.

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Com este recurso à filosofia da linguagem, MacIntyre contorna de forma elegante os problemas que uma abordagem contemporânea facilmente identifica no aristotelismo e na sua teoria das virtudes. Rorty (1991), em seu artigo sobre Freud e a Reflexão Moral, saúda essa solução engenhosa de MacIntyre que ele próprio veio a incorporar e desenvolver através da noção de “redescrição do eu”. Lamenta, porém, o “anti-mecanicismo” de MacIntyre que ainda o faz pensar num eu centrado e único, que se mantém através das narrativas: o modelo freudiano dos múltiplos eus concorrentes, alternativos e descentrados, que conversam entre si, é o que Rorty toma como melhor substituto para o “caráter” e a “pessoa” segundo a tradição aristotélica-tomista.

Outro problema do qual MacIntyre está consciente é que a teleologia de Aristóteles, com seu particular entendimento do bem e das virtudes humanas, pressupõe sua biologia metafísica. Ele pergunta se ao rejeitarmos esta última não estamos obrigados também a deixar de lado a primeira. Esse problema importa na dificuldade de se encontrar um substituto adequado para a teleologia biológica, que não revista sua identidade metafísica mas que seja ainda tão geral que possa derivar um telos racional para as pessoas em sociedade. O segundo questionamento que apresenta é quanto à possibilidade de manter a estrutura cultural compreendida na concepção dos bens e da virtude em Aristóteles numa sociedade como a nossa que não mais admite as relações sociais e a prática política que caracterizaram a polis. A pergunta pode ser apresentada na forma particular da indagação sobre o significado de uma virtude: o que pode ser a phronêsis (prudência), algo que tem a ver com a capacidade de julgar o que é certo em circunstâncias particulares, fora da herança cultural da época heróica que ainda se mantém viva na Grécia Clássica? A última questão, levantada por MacIntyre, diz respeito à harmonia preestabelecida por Aristóteles entre o bem da polis, ou seja, o bem-comum da coletividade, com o bem pessoal. Esta pressuposta harmonia elimina a possibilidade de uma confrontação trágica entre a consciência individual e o bem coletivo, entre o remorso pelas falhas pessoais e a compreensão em separado do que é o melhor para a sociedade. Em Aristóteles, não há o drama de um homem que está buscando se fazer virtuoso mas que assim mesmo enfrenta suas falhas: a norma racional de Aristóteles já apresenta a virtude como tendendo para a reafirmação inevitável do bem comum.

MacIntyre trata de oferecer uma resposta adequada a essas três importantes questões pelo estudo da continuidade histórica da tradição aristotélica. A história evidencia de que modo os termos culturais da polis

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puderam, em forma bem sucedida, ser transpostos para uma outra realidade social que é a da Idade Média cristã. Esse processo é que permitiu, por exemplo, à idéia de dom natural agregar-se a de graça divina, como já referido antes. Mas MacIntyre sabe bem que num e noutro momento, na Grécia e na Idade Média, havia uma estrutura cultural, dada pela vida da polis e pela presença da Igreja, o que hoje está ausente e não mais sustenta os ideais de uma boa vida pessoal, assim como não sustenta um concepção do bem comum da sociedade. São enormes as dificuldades de atualização do aristotelismo e do tomismo em nossas sociedades democráticas em que a cultura favorece tanto o pluralismo das doutrinas morais quanto uma ética puramente individualista e laicizada.

O estoicismo é muito menos problemático, nesse sentido, porque não se pode todavia dizer que esteja fortemente enraizado nesta ou naquela cultura ou tenha sido incorporado como parte de uma teologia; pelo contrário, sua atitude perante a cultura foi sempre individualista, de renúncia ao mundo (Dumont, 1992, p. 28). Assim enquanto a eudaimonia pode ser descrita como uma apreciação do valor relativo de cada bem, considerado numa hierarquia que é favorecida pela cultura da polis, a auto-suficiência estóica consiste numa renúncia e numa indiferença que se recusa a admitir qualquer valor relativo aos bens mundanos ou qualquer interesse especial por sua posse, inclusive no diz respeito à saúde. Rechaçando assim um conteúdo cultural específico, de certo modo, o estoicismo pôde ser tomado só por sua metodologia de ascese, de suas técnicas do eu, para se converter num paradigma ético importante no mundo contemporâneo, ao ponto de inspirar um Foucault em sua última fase.

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Kant, Nietzsche e Marx

A autonomia é a conformação da vontade numa lei para si mesma, de tal maneira que o proceder virtuoso - uma volição obediente a máximas de nossa escolha como leis universais - constitui o próprio summum bonus. Kant, quando formulou esta concepção, basilar no seu entendimento da razão prática, estava conscientemente pondo a tradição estóica do seu lado, separando a noção de felicidade da de supremo bem. A virtude não é um meio para a posse do supremo bem, mas, pelo contrário, é o exercício correto das virtudes que constitui o supremo bem; isto é, o supremo bem é a própria moralidade; e a felicidade é uma conseqüência possível da moralidade mas não seu objetivo básico.

A moralidade em Kant tem de ser entendida por referência à idéia de autonomia. Nos Princípios Fundamentais da Metafísica dos Costumes, Kant diz que a autonomia é o princípio supremo da moral. A autonomia recobre o sentido de uma vontade que se submete livremente aos imperativos categóricos da razão (por exemplo, “não matarás”), sem nenhuma outra consideração para com motivos de interesse pessoal, inclusive a própria felicidade do agente da moralidade. Se este agente busca conformar sua vontade por referência a qualquer outra coisa que não sejam as máximas que ele encontra em si mesmo, como expressão de leis universais, resulta daí a heteronomia da vontade. A heteronomia é “a fonte de todos os princípios espúrios da moral”. É o caso por exemplo de alguém que raciocina consciente da máxima universal, mas que quer apenas evitar o que não lhe parece conveniente: “não matarei, porque não quero passar o resto da minha vida numa prisão”. Segundo Bobbio (1995, p. 65), pode-se depreender dessa doutrina de Kant, que a esfera da moralidade é a da autonomia, e a esfera da juridicidade, ou seja, das leis, é a da heteronomia.

Exposto assim, em termos gerais filosóficos, o princípio da autonomia de Kant parece ter pouco a ver com o que Illich chama pelo mesmo nome. Mas é difícil imaginar que Illich o tenha absorvido de qualquer outra fonte, direta ou indireta, que não seja Kant. Minha hipótese neste trabalho é que o ponto de partida óbvio para seu par conceitual autonomia e heteronomia é Kant mesmo, mas que Illich, ao desdobrá-lo em sua crítica social, realiza um movimento para trás no que se refere ao Iluminismo kantiano, retrocedendo parcialmente para uma inspiração nas correntes tradicionais da moral. Este movimento posiciona Illich a partir de Kant e do Iluminismo, mas simultaneamente aquém deles, e precisamente isto constitui, em minha opinião, o que há de atraentemente singular

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na “filosofia” desse crítico social. Ou seja, Illich é partidário do projeto iluminista da autonomia, mas sua versão particular deste projeto tem afinidade explícita com um referencial pré-moderno. O que está aquém de Kant, nesse sentido, como busquei evidenciar nos capítulos anteriores, decorre de seu vínculo com a moral da tradição. Neste capítulo, cumpre-me brevemente retraçar semelhanças e dessemelhanças com Kant que podem ser identificados no conceito de autonomia em Illich.

Em primeiro lugar, quero observar que é evidente que Illich, assim como Kant, designa por autonomia uma conformação da vontade: não por acaso refere-se à “vontade de cuidar-se”. O trânsito da “vontade pessoal” desde uma situação de autonomia para outra de heteronomia e vice-versa constitui o próprio tema central da causação e prevenção da iatrogênese no escopo da Nêmesis. Illich identifica uma determinação econômica da heteronomia no industrialismo e na emergência do homo oeconomicus, esta figura moderna que só sabe compreender seu telos a partir da inserção nas relações de produção e de consumo - nos transportes, na educação, na saúde e em tudo o mais. A redução da autonomia pessoal, que num primeiro momento parece favorecer a produtividade, acaba por ser contra-produtiva. Por exemplo, o cuidado com a saúde quando entregue totalmente nas mãos dos médicos chega a um ponto em que provoca iatrogênese e faz as pessoas viverem com menos saúde do que antes. No entanto, esta situação é também moralmente condicionada, e, em princípio, é remissível pela ação combinada da vontade pessoal e de um movimento político:

A recuperação da autonomia pessoal será assim o resultado de uma ação política reforçando um despertar ético. As pessoas hão de limitar o transporte porque querem mover-se eficiente, livre e eqüitativamente; hão de limitar a escolarização porque querem compartilhar igualmente a oportunidade, o tempo e a motivação de aprender no e não sobre mundo; as pessoas hão de limitar as terapias médicas porque querem preservar sua oportunidade e poder de curar. Elas reconhecerão que só a disciplinada limitação do poder pode proporcionar uma satisfação eqüitativamente compartilhada (NM, p. 270).

Portanto, fica claro que para Illich a autonomia é também um princípio pragmático de direção da vontade pessoal. Assim, sua análise foge totalmente ao quadro intelectual de determinismos econômico-sociais que estiveram tão em moda nos anos 70, particularmente através do estruturalismo. Outro pressuposto,

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implícito nisto, e que Illich divide com o kantismo, é de que esta vontade tem por fundamento a liberdade do sujeito. Isto vale para toda a obra de Illich, da qual se pode dizer com propriedade que é uma obra libertária. Mas para ele, a liberdade não é simplesmente, como o é para o marxismo, um objetivo de uma ação política e ética que se pretende emancipatória em relação a uma situação de opressão. É, antes de nada, um pressuposto filosófico de sua compreensão da pessoa humana e nisto se localiza, pela via de um certo tomismo, a raiz de sua veemente defesa das liberdades civis para as práticas sociais de educação, saúde, transporte, etc., de tal modo que tais práticas não se convertam em meras expressões do interesse pelo valor de troca, numa operação peculiar ao homo oeconomicus. Neste particular, Illich antecipou a revivescência de ideais filosóficos dos liberais, que marca muitas correntes de pensamento na década de 90.

É particularmente interessante notar que a Nêmesis funde os conceitos de liberdade filosófica e liberdade política numa proposta de regulação liberal dos direitos sociais:

Há dois aspectos da saúde: liberdade e direitos. Acima de tudo, a saúde designa o grau de autonomia dentro da qual uma pessoa exerce controle sobre seus estados biológicos e sobre as condições de seu ambiente imediato. Neste sentido, a saúde é idêntica ao grau de liberdade vital (“lived freedom”). Primariamente, a lei deve garantir a distribuição eqüitativa da saúde como liberdade, a qual, por sua vez, depende de condições ambientais que somente os esforços políticos organizados podem alcançar. Além de um certo nível de intensidade, o cuidado de saúde, por mais eqüitativamente distribuído que seja, destrói a saúde como liberdade (NM, p. 242).

Vê-se que há uma similaridade nos pressupostos da conformação da vontade em Kant e em Illich. Num caso essa conformação dá-se na relação de razão prática com um dever (Kant) e, noutro caso, em relação com um “faça você mesmo”, que é uma tarefa (Illich). É comum entre ambos, na base, a noção de uma liberdade da vontade de conformar-se ou não com o dever ou com a tarefa. O que Illich afirma aristotelicamente é que essa tarefa não se constitui numa função natural do homem; é antes de tudo, o resultado de uma cultura, dos costumes ou dos mores. A autonomia é garantida pelo que culturalmente herdamos de uma dada tradição (que, para nós, é ainda greco-romana-cristã). Em Kant, ao contrário, o primado da razão exige uma moralidade estritamente centrada na subjetividade.

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É claro que, para Illich, a tarefa da saúde não reveste a forma universal de uma máxima ou uma lei, antes pelo contrário, requer sempre o ajustamento a circunstâncias mediante um controle autoconsciente. A autonomia da saúde é liberdade para exercício do auto-controle frente às mudanças do organismo e do ambiente, cumprindo lembrar que isto não se faz, segundo Illich, por um reajuste automático ou “feedback” que levaria de novo ao estado de equilíbrio: o ajuste já é em si humano e autoconsciente, expressa uma capacidade de escolha de vias alternativas de ação que se sustentam em bons hábitos, ou seja, na saúde como virtude. Ao contrário, para Kant, a virtude é apenas a força da vontade que se autodetermina para cumprir seu dever, que, por sua vez, expressa-se numa máxima universal. A autonomia moral em Illich é teleológica e flexível, busca pesar as conseqüências de suas decisões e a correção momentânea do juízo e da ação, enquanto em Kant a autonomia moral é imanente à vontade mesma, formal, na sua apresentação, e rígida, na sua execução como dever.

A partir deste ponto, Illich diverge crescentemente de uma teoria da ação moral que tenha por referência a autonomia kantiana, quer em sentido geral do exercício da razão esclarecida , quer em sentido particular de fundamento da moralidade. É que nesse auto-ajuste e no esforço de controle de si e do ambiente o que ressalta da autonomia em Illich é a capacidade de lidar (“to cope”) que nada tem a ver com a rigidez das regras universais. A noção de “capacidade autônoma de lidar” (isto é, lidar consigo, com os demais, com o ambiente, etc.) só pode ser entendida se, à semelhança dos pragmatistas e ao contrário dos kantianos, não se tenta separar, em esferas distintas, a ética e a prudência (o bem de outrem em relação ao bem próprio, a benevolência em relação ao desejo de autoconservação, etc.).

***

Pode-se indagar, neste ponto, se não existe um vitalismo escamoteado por detrás da idéia da saúde como “poder autônomo de lidar”? Antes de tentar responder esta questão, gostaria de pontuar acerca da existência de dois tipos bem distintos de vitalismo: a) o vitalismo baseado num modelo de equilíbrio entre forças ou elementos orgânicos e b) o vitalismo baseado na idéia de constante superação dos estados orgânicos e de suas relações com o meio, mediante as forças da vida e do instinto. O primeiro tipo é característico dos médicos hipocráticos e de Aristóteles. Neste caso, a saúde é vista como um estado de equilíbrio ou um retorno a esse estado, através de um processo que é mais ou

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menos natural, graças aos poderes intrínsecos da vida, e mais ou menos artificial, graças à imitação desses poderes pela medicina. No segundo modelo, a vida e o instinto são fontes de uma energia e de forças de autoconservação do organismo que são capazes de dominar e suplantar suas eventuais situações de debilitamento ou degeneração. Este é o vitalismo da genealogia da moral de Nietzsche e da ética de Dilthey. Pode-se dizer, para resumir, que há um vitalismo médico, que é caudatário da idéia de equilíbrio vital intrínseco, assim como há um vitalismo filosófico, que atenta mais à capacidade geral do indivíduo de dominar e transformar o meio pelo pleno uso das suas forças vitais.

Não me proponho a realizar aqui uma discussão mais detalhada de nenhum desses dois modelos clássicos. No que se refere ao vitalismo de Nietzsche e, para os fins de ilustrar brevemente a discussão desta temática, basta mencionar o conhecido equacionamento que promove entre degenerescência social-biológica e os estados mórbidos de esgotamento físico-mental, que se encontra sobretudo em Vontade de Potência (fragmentos 72 a 85). Dessas passagens, o que ressalta é um forte organicismo que está preso à tônica na tese de que há um debilitamento individual e da “raça”, que é hereditário, em comparação com a plenitude de gozo das forças vitais de quem assume claramente sua vontade potência. Mas, numa inversão de significado moral, típica de Nietzsche, o “patológico”, a paixão, é o que pode haver de mais sadio. Quando a paixão permite reunir e coordenar as forças internas em torno de um propósito dominante, tem-se aquilo que mais se aproxima da definição de saúde. É a paixão dominante, alimentada pelos fortes, “que leva consigo a forma suprema da saúde”; ao contrário o que é próprio dos fracos é “a multiplicidade das almas num só peito” ( situação em que um desejo contradiz e enfraquece outro).

Em Nietzsche e Dilthey se faz presente a crítica ao conceito de ação desinteressada (que é um fim em si mesmo) como fundamento do dever moral. Recusando as premissas kantianas, que vão ao ponto de divorciar a ética da prudência, Nietzsche e Dilthey têm em comum a preocupação em derivar uma moral a partir de pressupostos contrários, que se referem ao pleno florescimento ou à sublimação dos instintos de autoconservação do indivíduo e da espécie. Dilthey não segue o caminho de Nietzsche de exaltação da força original e transformadora dos instintos como apanágio dos fortes e “sadios”. Ao contrário, Dilthey (1994, p 81) centra seus argumentos contra Kant na possibilidade de que os instintos (ou pulsões ) se mantenham prolongadamente, mas de maneira sublimada, na postura ética e nas virtudes da convivência social:

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Os instintos se mantêm dentro dos limites da tendência de obter satisfação com o menor atrito possível que perturbe o efeito. Porque cada atrito tem como conseqüência a diminuição da autoconservação e da força anelada. Deste modo, da tendência de satisfazer aos instintos já se conclui que o ódio e a luta são evitados e a cooperação buscada por conveniência.

É evidente que tal processo de sublimação das forças vitais é justamente contra o que Nietzsche se rebela e denuncia como escamoteamento ou debilitamento indevido da vontade de potência: debilitamento dos que aceitam esses argumentos morais e escamoteamento de quem os utiliza para reafirmar, ao fim e ao cabo, seus próprios instintos nada sublimados.

Aqui a pergunta fundamental que temos a fazer não diz respeito às discrepâncias entre esses dois filósofos, mas a seguinte: o que Illich tem a ver com esses dois modelos de vitalismo, o do equilíbrio e o da luta pela autoconservação? Meu entendimento é de que Illich mantém um compromisso simultâneo mas distanciado com ambos modelos. Assim é que Illich conserva na sua interpretação da saúde as idéias transmutadas e genéricas de a) um equilíbrio entre elementos opostos; b) um poder intrínseco de auto-afirmação pela lide. Mas o que é essencial nesse reaproveitamento dos dois modelos é que ele corta pela raiz a dependência reducionista dos vitalismos para com o mundo orgânico e animal. Por outras palavras, Illich retira as noções vitalistas do âmbito do natural e as repõe no âmbito do social e do cultural. Se Illich não associasse a “capacidade de lidar” da saúde ao conceito tomista de pessoa, mas a compreendesse como contínua com os mecanismos de “adaptação” de todo animal na sua luta pela subsistência, conforme descritos por Darwin, ele estaria posicionado mais próximo dos pragmatistas. No entanto, ele se move em direção contrária porque entende a lide da saúde como buscando um bem almejado, num esquema teleológico que é próprio do racionalismo aristotélico. Daqui que a capacidade de lidar esteja subordinada a uma ‘tarefa pessoal”. Ademais, ele enxerga o equilíbrio da saúde na dependência não de elementos naturais, mas daquilo que a sociedade promove de iniciativas na relação entre os dois modos de produção complementares: o autônomo e o heterônomo. A saúde é o resultado de um equilíbrio socialmente dado entre as forças da autonomia e as da heteronomia nas relações entre o indivíduo e seu meio:

Enquanto a intervenção arquitetada [da medicina] na relação entre indivíduos e seu meio permanece abaixo de uma dada intensidade, em relação ao grau de liberdade de ação individual,

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tal intervenção pode aumentar a competência do organismo de lidar e criar seu próprio futuro. Mas além de um certo nível, a administração heterônoma da vida invevitavelmente irá, primeiramente, restringir, então deformar e, finalmente, paralisar as respostas não-triviais do organismo e o que foi pensado como um cuidado de saúde tornar-se-á uma forma específica de negação da saúde (1996, p. 220).

Se a saúde é uma tarefa pessoal, na sua dimensão de autonomia, ela também é o resultado de uma sinergia delicada entre duas espécies de intervenções sociais: entre aquela que o indivíduo aprende a fazer sobre si mesmo (e os que lhe são próximos) e a que a sociedade lhe oferece e aplica como recursos manipulados por outros. Mas Illich quer realçar que, sempre que esse equilíbrio socialmente conformado deixa de existir, o organismo humano passa a apresentar um outro tipo de reação que promove a enfermidade e a iatrogênese. Portanto, o equilíbrio é primariamente social mas materializa-se favorável ou desfavoravelmente no próprio organismo. Mas, por outro lado, havendo a situação de equilíbrio, por suposto que deve se manter também a competência do organismo de “lidar e criar seu próprio futuro”. Por este ângulo, a saúde é enfocada não mais pelo aspecto estático, como pressupõe o modelo de equilíbrio/desequilíbrio, mas por um dinamismo de auto-transformação, ou seja, por uma ligação com certa vontade de potência. Aqui, o segundo modelo vitalista vem a ser discretamente evocado. O que resta nesse duplo compromisso com os modelos vitalistas da saúde é, assim, uma forma atenuada e socialmente redefinida de vitalismo.

***

As concepções de Illich sobre o resgate da efetividade da produção social na modernidade, como foi examinado até aqui, atinge sua formulação mais geral na crítica do homem econômico. Dirige-se, ao mesmo tempo, contra a ficção histórica de que o homem sempre foi um ser propenso à troca e à negociação, e contra a realização dessa imagem estereotipada numa figura da modernidade, que se tornou um ser dependente do mercado e dependente de necessidades constantemente fabricadas. Embora Illich mencione apenas marginalmente a Marx, um paralelo mais explícito convém ser estabelecido, neste particular, com o pensamento marxista.

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Também Marx48 acreditava que havia uma tarefa de resgate da efetividade do uso das forças produtivas no capitalismo, mas por motivos diferentes dos de Illich. É que Marx não admitia uma contraprodutividade que existisse como obstáculo interno às diversas aplicações construtivas da razão técnico-científica. Os limites à expansão das forças produtivas lhe pareciam ser socialmente determinados, ou seja, internos a cada modo de produção. Isto faz com que o resgate das forças produtivas bloqueadas no marxismo seja entendido enquanto uma tarefa reservada ao socialismo, por ser a única forma social de produção capaz de liberar o crescimento da ciência e da técnica, superando os limites que lhes são impostos continuamente pelo capitalismo. Esta era tida como uma tarefa historicamente necessária porque o ímpeto incessante de autovalorização do capital se enfrenta mais cedo ou mais tarde com as dimensões necessariamente estreitadas da base social do consumo, gerando certas situações de crise social que propiciariam a transformação revolucionária desse modo de produção. O florescimento adequado das forças produtivas depende da capacidade de expansão da base produtiva, que por sua vez depende da expansão do poder de consumo da população. Mas o poder de consumo da população depende dos salários pagos aos trabalhadores, cuja manutenção em patamares mínimos é ditado pelo interesse de cada capitalista em aumentar sua taxa individual de lucro. Esta contradição entre interesse geral de expansão da produção/consumo e o interesse individual pelo lucro estabelece limites externos às forças produtivas e vem a constituir a razão principal das crises de sobreprodução industrial que se dão com a persistência das condições de subconsumo das massas. A oportunidade de superação desse empasse é criada pelas crises político-econômicas que configuram o choque entre o interesse de expansão das forças produtivas e os limites sociais estreitos impostos pelo modo de produção capitalista. Pode-se dizer, por analogia, que, para Marx, as crises de sobreprodução são também casos exemplares de uma “contraprodutividade”, porque o excesso de produção gera uma situação contrária aos objetivos do desenvolvimento das técnicas sociais: miséria em meio da fartura, já que os produtos excedentes não têm como circular e não podem ser consumidos, devido à inexistência de uma capacidade efetiva, monetária, de aquisição pela população.

No entanto, a teoria marxista praticamente exclui a possibilidade, antevista por Illich, de uma reequilibração entre autonomia e heteronomia numa fase

48 Para esta discussão recorrerei principalmente aos Grundrisse (Marx, 1972, I, pp. 275 e ss.).

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avançada do capitalismo. Com efeito, o desenvolvimento capitalista, na forma em que é descrito em O Capital, pressupõe uma contínua submissão do trabalho e da produção autônoma de valores de uso à produção industrial. A eliminação dessa situação de autoprodução de valores de uso é admitida não só para a agricultura e a manufatura como também para os próprios serviços, esfera na qual se inserem os cuidados de saúde. Um equilíbrio entre produção de valores de uso imediatos e produção de valores de troca só poderia ser concebida numa situação ideal e seguramente temporária de “submissão formal” da autonomia comunitária à heteronomia capitalista. No longo prazo, a tendência de expansão do capital subverte a ordem da produção autônoma e acaba por impor uma “subordinação real” ao capital de todos que agem nessa esfera.49

Essa leitura da análise marxiana, de uma progressiva eliminação da esfera de produção autônoma de valores de uso, apresenta, entretanto, dois importantes contrapontos que mostram maiores afinidades com a visão elaborada por Illich. O primeiro contraponto é o da relação dialética entre produção e consumo. Nas suas primeiras formulações para O Capital, Marx insistia na unidade dialética desses dois pólos opostos, para que a produção e consumo não fossem conceitualmente contrapostos em forma separada - ou seja, a produção para se realizar precisa de um consumo produtivo e o consumo está sempre baseado numa forma de autoprodução:

Imediatamente, o consumo é também produção, à semelhança da natureza, em que o consumo dos elementos e das substâncias químicas é a produção da planta. É evidente que através da alimentação, por exemplo, forma particular do consumo, o homem produz o seu próprio corpo(Marx, 1977, pp. 208-9).

Marx não vai muito adiante nessa afirmação do caráter produtivo do consumo, ou seja, do consumo como autoprodutivo, através da mediação de valores de uso, que não só estão constituídos pelas mercadorias, mas também por certos autoserviços e produtos pessoais indispensáveis. Poderia ter dedicado atenção ao exemplo da mulher operária, que precisa comprar seus alimentos para viver e alimentar seu filho com algo que é um puro valor de uso - o leite materno. O puro valor de uso é acrescido neste caso da prestação de um autoserviço familiar. Que se trata de um autoserviço é comprovado pelo fato de que esse

49 A discussão da passagem da submissão formal à submissão real encontra-se com muitos detalhes históricos (envolvendo, por exemplo, a pequena produção das corporações de artesãos) no chamado quinto capítulo inédito de O Capital (Marx, 1971, pp. 191 e ss.).

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consumo pode ser eventualmente garantido por uma terceira pessoa, a chamada “mãe de leite”. Esses hábitos de base biológica podem ser substituídos integralmente por elementos mercantis, tal como ocorre numa maternidade que alimenta um recém-nascido com leite industrial. Mais ainda, a história recente das práticas de amamentação está marcada pela polêmica e por movimentos em torno da necessidade de promover formas mais saudáveis de alimentação infantil que têm por base esses puros valores de uso - o autoserviço da amamentação e o próprio leite materno. A mamadeira, que nos países subdesenvolvidos passou a ser símbolo de status da família, é tratada por Illich como um dos elementos mais potentes na indução da iatrogênese social durante a primeira infância (NM, pp. 87-88).

Outro contraponto nas concepções de Marx sobre a eliminação progressiva da ação autônoma e da produção individual de valores de uso encontra-se em sua intrincada crítica acerca da distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, a que se associa a discussão da natureza dos chamados “serviços”. Não cabe aqui reproduzir toda a complexidade dessa questão que decorre das aplicações da sua teoria do valor-trabalho. Quero apenas assinalar que nessa discussão, que se encontra nos textos preparatórios para O Capital e foi omitida na versão final, Marx parece indicar que inúmeras variantes do trabalho improdutivo, inclusive do trabalho doméstico (“meros serviços “), têm um caráter permanente ou relativamente estável em relação à economia propriamente capitalista. Portanto, não estão fadadas a uma submissão formal às relações de produção capitalista. Marx sugere que o trabalho improdutivo é indispensável à reprodução da economia capitalista como um todo, incluindo, com destaque, a reprodução da força de trabalho, que reconhecidamente depende de inumeráveis valores de uso produzidos no domínio doméstico. Mas em nenhum momento, abraça a concepção de que a produção autônoma de valores de uso tem de estar integrada adequadamente à produção industrial na qualidade de uma garantia da eficácia das forças produtivas envolvidas. Ele acredita que essa eficácia é dada mais que nada pela evolução dos conhecimentos técnicos e científicos, dos quais o capital se apropria continua e avidamente.

É apenas numa citação marginal de um mote em latim, que Marx (1971, p. 237) aproxima-se de uma fórmula que pode bem representar o efeito sinérgico entre ação heterônoma e ação autônoma da maneira como Illich a concebeu: do ut facias, facio ut facias, facio ut des, do ut des. O que quer dizer, dou para que faças, faço para que faças, faço para que dês, dou para que dês. Mas Marx

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considera esse tipo de lógica como sendo específica de uma transação mercantil simples, que ocorre quando alguém compra um serviço de outrem, como o de um alfaiate, a quem dou o tecido para que me faça um terno. O que Illich pressupunha, pondo-se no espírito desse mote, é que a eficácia da ação instrumental heterônoma ainda depende de uma relação imediatamente não-mercantil, que tem de ser preservada na compra e no consumo de bens e serviços no mercado. Tenho que “fazer” e “dar” em contrapartida ao que outrem me dá e me faz, porque de outra maneira o consumo se torna predatório e destrutivo de seus objetivos últimos de manutenção de uma vida humana digna. A saúde, se sempre comprada e consumida passivamente, dá como resultado mais enfermidade.

Pelo que foi dito, conclui-se que a idéia de uma efetividade das forças produtivas pela sinergia entre as esferas de produção autônoma e heterônoma é estranha ao pensamento de Marx. O florescimento contínuo de novas técnicas e novos materiais de produção é o que, em sua opinião, tem de ser resguardado como promessa de bem-estar geral, mas que só pode realizar-se efetivamente para todos com a superação dos limites externos erigidos pelo capital, já numa outra forma de sociedade.

O Marx da maturidade permanece fiel ao compromisso iluminista com o progresso pela via das aplicações racionais da ciência e das técnicas. Crê, por outro lado, que a riqueza humana consiste na abundância crescente de novas necessidades humanas, do corpo e do espírito, que são criadas socialmente, a par de novos produtos e instrumentos inventados para satisfazer tais necessidades. Ele enxergaria algo assim como uma contraprodutividade no fato de haver uma coexistência entre inúmeras necessidades não satisfeitas, de uma população que vive sem poder atender suas necessidades básicas, po um lado, e a sobreprodução de mercadorias, de riquezas, por outro lado.

Foi só o Marx da juventude, dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que lançou mão de uma crítica das necessidades que se assemelha à de Illich, como se pode ver pela passagem em que diz que, sob o regime de propriedade privada,

...cada qual especula para criar no outro uma nova necessidade, de maneira a conduzi-lo a um novo sacrifício, a colocá-lo numa nova dependência, seduzi-lo com um novo modo de deleite e com isso arruiná-lo economicamente. Cada qual trata de estabelecer sobre o outro um poder alienado para assim encontrar satisfação em sua própria necessidade egoísta. O aumento da quantidade de

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objetos é acompanhada da extensão do domínio dos poderes alienados aos quais está sujeito o homem, e cada produto novo representa uma nova potencialidade de mútuo engano e expropriação. O homem se faz cada vez mais pobre enquanto tal; sua necessidade de dinheiro é maior se quer vencer os poderes hostis; e o poder do dinheiro diminui exatamente em inversa proporção com o aumento do volume da produção, isto é, aumenta sua necessidade à medida que aumenta o poder do dinheiro (Marx, 1976, p.116).

Por essa citação pode-se inferir que a crítica ao homem alienado no jovem Marx tem motivos morais muito similares aos que mobilizam Illich em sua crítica à multiplicação incessante de necessidades do homem econômico. Há no jovem Marx um certo naturalismo humanista que coincide, em muitos pontos, com o naturalismo ético de Aristóteles, que inspirou a Polanyi e a MacIntyre.

Mas o Marx maduro, dos Grundrisse e de O Capital, afirma também, como Polanyi, que, noutras formas anteriores de sociedade, o homem que vivia para o interesse mercantil constituía uma exceção, e que o fim da produção social era não primariamente o ganho, mas a formação do homem como membro de uma dada sociedade (como cidadão grego, por exemplo):

A riqueza não aparecia como um fim em si mais do que entre os povos comerciantes que monopolizam os transportes e vivem nos poros do mundo antigo, como, por exemplo, os judeus na sociedade medieval. Atualmente, a riqueza é, por uma parte, uma coisa realizada em coisas, produção material, e o homem opõe-se a ela como sujeito; por outra parte, como valor, não é mais que um poder de dominar o trabalho do outro com o fim não de exercer uma dominação mas de tirar disso um benefício. Quando é um fim em si a riqueza adota uma aparência material, própria a uma coisa, própria a uma relação mediatizada pela coisa contingente e exterior ao indivíduo. Assim quão sublime parece a concepção antiga que faz do homem (seja qual for a estreiteza da base nacional, religiosa e política) a finalidade da produção quando comparada com a do mundo moderno em que a finalidade do homem é a produção, e a riqueza a finalidade da produção (Marx, 1972, I, p. 354).

Esse trecho e muitos outros similares que se pode extrair da obra juvenil e da maturidade de Marx não se coadunam com o juízo de que ele foi um divulgador da imagem do homem econômico. Marx era um crítico ferrenho do economicismo dos economistas tanto quanto tentava fazer jus às evidências antropológicas e históricas, disponíveis em sua época, para mostrar que os arroubos mercantis

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entre os povos antigos eram sempre postos em cheque e restringidos por algum tipo de tabu ou de censura velada consagrados pelos seus costumes.

Encontram-se em muitas análises feitas por marxistas no século atual um estrito desdobramento do pensamento crítico de Marx em relação às limitações do homem econômico. Uma delas, e bastante conhecida em sua época, foram as discussões sobre o homem unidimensional, propagadas nos Estados Unidos nos anos 60 por Herbert Marcuse. A unidimensionalidade do homem nas sociedades avançadas resulta, segundo Marcuse (1964), da incapacidade dessas sociedades em proporcionar um grau suficiente de autonomia criativa e de exercício livre da política aos indivíduos, coisa que acontece justamente num momento em que a maturação das forças produtivas sociais já possibilitam a liberação do homem em relação ao peso histórico das necessidades básicas e dos controles sociais que tolhem sua auto-satisfação. Marcuse crê que as condições das sociedades industriais têm plenas condições materiais e intelectuais que possibilitariam pôr um fim ao “reino das necessidades” e poderiam incrementar substancialmente o grau de autonomia e de criatividade individuais. Porém todos os controles políticos dessas sociedades estão voltados para impedir que isso aconteça e para que qualquer tentativa de encontrar um caminho alternativo ou crítico seja amortecida em seu poder de transformação social e reduzida ao status quo vigente.

Apesar de certa analogia superficial com Illich, percebe-se que a direção tomada pela crítica de Marcuse sobre a relação entre necessidades e da autonomia é bem distinta. A autonomia em Marcuse é concebida na forma modernista da liberdade para cultivar o mundo do espírito (as artes, literatura, etc.) e as necessidades continuam a ser um empecilho que pode ser superado pelo justo arranjo e controle social das forças produtivas mais desenvolvidas:

Se o aparato produtivo fosse organizado e dirigido para a satisfação de necessidades vitais, seu controle poderia ser centralizado; tal controle não preveniria a autonomia individual, mas lhe faria possível (Marcuse, 1964, p. 2).

Ora, essa separação entre aparato produtivo, como domínio da heteronomia, e as atividades privadas individuais, como reino da autonomia, é estranha e até contrária ao pensamento de Illich. Para Illich é preciso pensar a autonomia como contribuição individual à produção social e não lhe reservar uma esfera à parte, onde apenas estão em jogo os valores espirituais. O divórcio entre mundo material e mundo espiritual alimenta certas dicotomias modernistas - o belo

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e o útil, a moralidade e a beleza - que não fazem parte do universo intelectual de Illich. Mas para entender que esse divórcio foi superado recentemente por uma espécie de redefinição social da autonomia, temos que pensar criticamente não a categoria autonomia, em sua abstração filosófica, mas as diversas crenças que historicamente a alimentaram na modernidade.

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A Multiplicidade das Crenças sobre a Autonomia

O que há de mais problemático no conceito de autonomia, analisado desde uma perspectiva pragmatista, é a suposição de que a liberdade do sujeito constitui um necessário antecedente da ação. Illich, na Nêmesis, fala algumas vezes da autonomia desse modo, como se ela estivesse inscrita na natureza mesma da saúde. Neste caso, mais do que uma identificação entre autonomia e liberdade o que está pressuposto é uma liberdade considerada metafisicamente, como condição prévia da existência ou da ação humana.

A direção interpretativa tomada pelo pragmatismo acerca da liberdade (e que valeria para a concepção equivalente de autonomia) vai em sentido oposto: a liberdade é vista enquanto um conseqüente da ação humana, ela é construída pela ação mesma, mas apenas sob a condição de uma interação favorável com o meio ambiente e com as outras pessoas. O que precisamente quer dizer favorável? Quer dizer que o sucesso depende, em parte, de um certo ardil da razão; mas depende igualmente da cooperação de fatores que nós não controlamos tais como o mero acaso. A liberdade define-se, nessas circunstâncias, pelo ganho crescente nas escolhas que levam a uma ação mais desimpedida, mais firmemente fundada num controle efetivo das variáveis dos fatores conhecidos; mas isto sempre tem em conta que há uma contingência da ação que se configura como o agir do acaso e do incontrolável – da má ou boa sorte.50 Nesta linha de atentar para o que resulta do condicionamento epistêmico da ação e não de uma situação que lhe antecede no próprio sujeito, a liberdade é entendida pelos pragmatistas como sinônimo de crescimento, de multiplicação, de domínio e de variedade das escolhas possíveis. É justamente isto o que ressalta Dewey em seu artigo Filosofias da Liberdade:

...A liberdade consiste numa tendência da conduta que faz com que as escolhas sejam mais diversificadas e flexíveis, mais plásticas e mais cônscias do seu próprio significado, enquanto amplia o espectro de sua operação desinibida (Dewey, 1993, p. 136).

50 Essa idéia darwiniana de um “acaso criador” é assim expressa por Rorty: “Podemos dizer que um dado evento irracional e acidental (e.g. o declínio dos dinossauros, o desejo por ouro entre monarcas seiscentistas intolerantes e fanáticos) de fato contribuíram para um resultado admirável (antropóides, os Estados Unidos da América), não por causa de uma ardilosa Razão histórico-mundial, mas simplesmente devido à boa sorte (Rorty, 1998, 304)”.

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Dewey sabe bem, no entanto, que predomina na visão filosófica moderna a idéia de que a liberdade constitui uma espécie de condição mais ou menos transcendental da ação, não importando se o propósito dessa ação é o conhecimento, um alvo político ou um fim moral. Para Kant, a autonomia é em si uma liberdade da razão prática que se ajusta com o incondicionado da razão pura. O pragmatismo prefere prudentemente considerar que esses pressupostos metafísicos têm por base uma certa historicidade dos conhecimentos científicos que influenciam, de uma maneira indireta, o pensamento filosófico. Tanto é assim que, em Kant, a imagem de um universo que funciona como um relógio, tem por base as leis causais rígidas da mecânica de Newton, e para ser conciliável com a categoria da liberdade, foi obrigada a se juntar ao postulado que coloca a subjetividade transcendental de cada pessoa em contato com o incondicionado, com o noumenon.

O pragmatismo de James e Dewey está referido a uma compreensão não-determinista do universo e das invenções sociais e, por isso, vê que esses postulados favorecem a permanência de certas dicotomias antigas na interpretação da relação entre o teórico e o prático. Como o pragmatista não preconcebe um limite de certeza e uniformidade dado pelas “leis físicas” (nem sequer o dos “imperativos morais”), entende que a vontade não é antecedentemente livre, mas se faz livre, no sentido de que, no curso da ação, torna-se capaz de progressivamente multiplicar suas alternativas de escolhas. A liberdade dá-se como fruto das escolhas bem pensadas ao longo de um processo de desenvolvimento e maturação, que leva em conta a história do indivíduo e da sociedade, e não como um momento isolado da vida do sujeito. Esta compreensão, por certo, é herdeira do historicismo de Hegel51 e, em muitos aspectos, é compartilhada com o marxismo. É assim que Dewey prossegue:

Nossa idéia conduz-nos, ao contrário, a buscar a liberdade em alguma coisa que vem a estar, por um certo tipo de crescimento, nos conseqüentes em vez de nos antecedentes. Somos livres não pelo que estaticamente somos, mas somente na medida em que estamos nos fazendo diferentes do que éramos antes (Idem).

Capacidade de cada indivíduo crescer, de amadurecer, de ser diferente por sua ação, na mudança para o melhor, é que o Dewey e James valorizam na idéia 51 Diz Rorty (1996, pp. 19-19) que Marx e Dewey beberam em Hegel e os dois ‘...rechaçaram de Hegel tudo o que não fosse historicista, especialmente seu idealismo. Também rechaçaram sua preferência por compreender o mundo em vez de mudá-lo. Os dois conservaram de Hegel as partes que podiam ser facilmente conciliáveis com Darwin”.

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de liberdade. Uma crítica pragmatista de Illich diria, assim, que a saúde como “capacidade de lidar” inclui a liberdade como conseqüente ao aumento, ou progressão, dessa habilidade de contornar e controlar os fatores desfavoráveis do meio e do organismo. É uma matéria de aperfeiçoamento por esforços individuais e coletivos, sendo algo assim, parafraseando Canguilhem (1971), como modos inventivos de fazer andar a vida. Deste ponto de vista, a expressão “capacidade autônoma de lidar” é redundante: porque é o exercício contínuo do lidar (“to cope”) que gera a autonomia como uma capacidade crescente de flexibilizar regras e tolerar infrações.

Mas a concepção da liberdade em Dewey - que, para todos os efeitos eqüivale a uma concepção de autonomia, apesar de não usar esta palavra - vai além de uma compreensão de flexibilidade crescente (que ainda pode ser determinista), na medida em que antevisão do melhor nunca é tida como garantida de antemão, mas dependente de fatores imponderáveis. Tal como na seleção natural, o melhor resulta da combinação entre esforço de confrontação com as adversidades do meio (o equivalente da “luta pela vida”) e o acaso de algumas mudanças que criam oportunidades favoráveis (o equivalente das “mutações ao azar”). O desenvolvimento da capacidade de controle e previsão aumenta as nossas chances de acerto em tal processo mas não o assegura in totum, porque um fundo de ruído, devido ao acaso e ao desconhecido, permanece em relação ao que dominamos bem. Assim, apesar de sua filiação comum a Hegel, o compromisso com uma visão não-determinista da história é mais profundo e nítido no pragmatismo do que o é no marxismo.

Daí se conclui que o conceito filosófico de liberdade (ou de autonomia) acaba sempre, segundo os pragmatistas, por se definir num relacionamento com os mecanismos que as ciências naturais descrevem. Kant, em sua época, tinha que se situar em consonância com a mecânica de Newton na prescrição das suas máximas universais da razão prática. Mas, para salvar a liberdade da vontade de um enquadramento determinista, recorreu ao polêmico argumento do sujeito transcendental. Dewey, mais de dois séculos depois (o artigo que cito foi publicado pela primeira vem em 1928), dispunha de teorias científicas bem mais flexíveis a que recorrer para situar a questão da liberdade. Já podia contar, por exemplo, não só com a teoria da seleção natural de Darwin, mas também com a termodinâmica de Helmholtz. Por isto, era-lhe facultado referir às “leis estatísticas da ciência” que, em sua opinião, não se contrapõem, antes se harmonizam, com o pressuposto de uma liberdade humana de escolha:

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O fato de que todas as coisas mostram viés, preferência ou seletividade de ação é uma condição indispensável de qualquer liberdade humana. A tendência atual entre os homens de ciência é pensar as leis como sendo de natureza estatística - isto é, “afirmações” acerca de uma média encontrada no comportamento de uma imensa quantidade de coisas, das quais nem duas são exatamente assemelhadas. Se esta linha de pensamento é seguida, implica em que as leis ou uniformidades e regularidades entre os fenômenos naturais, as ações humanas incluídas, não excluem minimamente o elemento de escolha como um traço distintivo tendo suas próprias distintivas conseqüências (p. 138).

O que devemos entender por autonomia, na perspectiva pragmatista de Dewey, é o auto-enriquecimento, que é algo que de modo algum se produz de dentro para fora do indivíduo que tem por condição de possibilidade certas formas favoráveis de desenvolvimento social e econômico. A maturidade da capacidade de escolha não vem espontaneamente, por um mero esforço individual, mas tem por base a riqueza de meios materiais que a sociedade seja capaz de prover a cada um. Neste sentido, o pragmatismo entende que o homem econômico que se desenvolveu por meio do mercado é mais livre do que o homem da economia “vernacular” da Grécia clássica e que, portanto, este fornece um exemplo pior de autonomia, ao contrário do que pensa Illich.

Na medida em que assumia a hipótese de que as condições materiais e históricas da liberdade dependem de uma ação inteligente coletiva que favoreça seu pleno florescimento, o liberalismo radical de Dewey sempre foi reativo às doutrinas do mercado auto-regulado:

Tendo em conta que a liberação das capacidades individuais para uma expressão livre e de iniciativa própria é uma parte essencial do credo do liberalismo, liberalismo que é sincero deve querer os meios que condicionam o alcance de seus fins. (...). A noção de que o controle social organizado das forças econômicas fica fora do caminho do liberalismo mostra que o liberalismo é ainda inibido por remanescentes de sua fase anterior de laisser-faire, com sua oposição entre a sociedade e o indivíduo. (Dewey,1993, p. 151)

Coerente com essa posição, a filosofia moral de Dewey recusa admitir que a beneficência pregada pelos utilitaristas fosse entendida, como insinua Illich que sempre o foi, numa forma muito passiva, de recepção de ações de justiça social; ao mesmo tempo, procura chamar atenção para a necessidade de alcançar certas condições sociais que de fato favorecem o desempenho autônomo. Dewey critica

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os benthamistas pela pretensão de saber melhor que ninguém qual é o bem adequado a cada cidadão e que, por isso, estariam autorizados a proceder de imediato as intervenções sociais que tragam aos “pobres e desamparados” toda a benesse que imaginam estar contidas em suas reformas. A sensibilidade moral de Dewey, que se mantém em sintonia com nossas questões contemporâneas, transparece em afirmações como esta, em que rebate a idéia de uma ação governamental de beneficência divorciada da atenção à autonomia dos cidadãos:

Mas o verdadeiro significado do “o maior bem do maior número possível” é que as condições sociais deveriam ser tais que todos indivíduos pudessem exercer sua própria iniciativa num meio social que desenvolverá suas capacidades pessoais e retribuirá seus esforços (Dewey, 1980, p. 108).

Depreende-se de todas essas ponderações de Dewey, que a autonomia não menos do que a beneficência utilitarista é uma invenção filosófica e, ao mesmo tempo, uma conquista da sociedade moderna com base em suas condições sociais e econômicas. A multiplicação e a flexibilização das escolhas (portanto, das decisões) que possibilitam “moldar o porvir” no curso da ação têm uma história filosófica e social que freqüentemente é ignorada pelos que pensam na autonomia de uma maneira abstrata e idealizada.

***

Praticamente todas as versões da autonomia do sujeito produzidas repetidamente pelos filósofos desde Kant têm em comum aquilo que se pode chamar de uma opção pela subjetividade. Autonomia, em muitos casos, quer dizer liberdade para criar seu próprio futuro com base nas escolhas concretas de cada indivíduo, e, portanto, dispensando a referência a um conteúdo moral predeterminado, ditado pela tradição ou por uma autoridade qualquer. É por isso que, na modernidade, autonomia é muito facilmente tomada como sinônimo de subjetividade e criatividade subjetiva.

No entanto, independentemente do que pensaram e preconizaram os Voltaire, os Diderot, os Mill, a autonomia do sujeito na modernidade efetivou-se como um privilégio restrito aos que freqüentam as esferas da produção simbólica da sociedade – as da ciência e da arte. Daqui a oposição entre o refinado “homem de espírito”, que cultiva com plena liberdade as artes e as ciências, e o “homem comum”, que segue cegamente sua “opinião”. De certo modo, o homem de espírito é feito de ciência e arte, enquanto o homem comum é pura natureza.

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Observa Luz (1988, p. 26) que essas e outras estratégias de separação e segregação das esferas da expressão humana foram incorporadas na auto-compreensão mecanicista das ciências médicas e usadas pela ação civilizatória iluminista para

“negar” socialmente o sujeito humano e “neutralizá-lo” epistemologicamente, criando condições históricas para torná-lo como a Natureza, objeto de ciência, isto é, para naturalizá-lo, torná-lo coisa passível de intervenção, de transformação, de modelação, de produção.

A empreitada da primeira e da segunda crítica social da saúde de Illich deblatera contra todas essas segregações que transformam o homem econômico, que é o homem comum, num mero receptáculo dos que sabem o que é o melhor para seu bem. Para determinar a posição exata de Illich, distinguirei aqui três formas de projeção da autonomia a partir do espírito iluminista: o pensar por si, o fazer-se a si, e o fazer por si.

Kant é quem melhor representa o pensar por si. A fórmula kantiana para a autonomia iluminista é sabere aude, ou seja, tentar saber e experimentar por sua própria conta e risco. Para além da autonomia como pré-condição da moralidade, Kant falava de uma outra, que é, em sentido amplo, o da autonomia da razão. O que o pensamento Iluminista vai reter de Kant é menos o pressuposto formal da autonomia na moralidade e mais o sentido geral da autonomia como maturidade da razão. Neste particular, Kant tencionava preservar a autonomia não só como expressão da vontade e da liberdade pessoais mas também como resultado de um acontecimento histórico, uma conquista de um momentum libertário contido no Iluminismo. Ele exaltava no Iluminismo ou Esclarecimento essa conquista do poder e da liberdade de autogoverno da razão, de julgar e decidir o que melhor convém a cada um. Há um texto de Kant, denominado “O Que é o Esclarecimento?” que, no seu início, faz uma apologia da autonomia da razão que relembra em muito a fé autonomista de Illich e diz o seguinte (vale aqui, pela pertinência, a citação um quanto longa):

O Esclarecimento é a emergência do homem de sua auto-imposta imaturidade. Imaturidade é a inabilidade de usar seu próprio entendimento sem a direção de outrem. Esta imaturidade é auto-imposta se sua causa não é a falta de entendimento, mas falta de resolução e de coragem de usá-la sem a direção de outrem. O motto do Esclarecimento é, portanto: Sabere aude! Tenha coragem para usar seu próprio entendimento. Preguiça e covardia

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são razões pelas quais uma grande proporção dos homens, mesmo quando a natureza há muito tempo os emancipou da direção alheia (naturaliter maiorennes), mesmo assim mantêm-se alegremente imaturos para a vida. Pelas mesmas razões, é em tudo muito fácil para outros colocarem-se como seus guardiões. É conveniente ser imaturo! Se eu tenho um livro para dispor de entendimento no meu lugar, um conselheiro espiritual para ter a consciência para mim, um médico para avalizar a dieta para mim, e assim por diante, eu não preciso fazer nenhum esforço próprio, desde que eu pague, outros dar-se-ão logo ao trabalho cansativo por mim .

Veja-se que, por esse trecho, a emergência da humanidade de sua imaturidade prolongada estabelece as possibilidades histórico-sociais e epistemológicas para a realização da razão, que é a autonomia como juízo que dá origem a uma “orientação para si” no mundo prático. O seu contraponto é a heteronomia (“..um médico para avalizar a dieta para mim”); a submissão à direção alheia tem um significado mercantil, tem a particularidade de estar presa à lógica do homem econômico - “desde que eu pague”.

Em Illich a idéia da tarefa da vontade de cuidar-se (will to self-care) tem bem maior parentesco com essa versão de Kant da autonomia da razão do que com sua doutrina específica da moralidade estribada na autonomia do sujeito transcendental. O homem imaturo do pré-Iluminismo é, segundo Kant, o que não sabe agir senão pela direção de outrem - mentor ou cura - é aquele que segue ao pé das letras os mitos e o saber solidificado da tradição e o que lhe foi ensinado. A incapacidade de usar seu próprio entendimento resulta de um vício, a preguiça, por falência de uma virtude fundamental, a coragem para ousar e usar seu próprio entendimento. Neste sentido, o sabere aude certamente não se dissemina como uma máxima de conduta aceita em todas as esferas de ação social na modernidade; por exemplo, as práticas produtivas industriais estarão colocadas sob a égide de valores bem distintos: os da disciplina e da obediência a certas normas universais e racionais da burocracia industrial como foram descritas por Weber (1981) - aqui vale mais a obediência do que a ousadia de duvidar e pensar por contra própria. A máxima anunciada por Kant, na verdade, irá caracterizar restritamente a praxis da produção de conhecimento, aquilo que faz o moderno homem de ciência.

O segundo modelo de autonomia modernista, o fazer-se a si, é fornecido pelo mundo da criação artística: o de criar-se a si mesmo como pessoa, como

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individualidade, cujo paradigma é Baudelaire, que simultaneamente cria para si e para seus personagens um estilo de ser, um estilo modernista (Berman, 1987, pp.127-65). Este é o Homo Aestheticus de quem Luc Ferry diz que representa a culminância do individualismo moderno, surgindo do ímpeto de rompimento com uma ordem jurídica e política antiga, “cósmica, fechada, hierarquizada e finalizada”. A obra do homem estético tem uma particularidade de subjetivação crescente a partir da pré-modernidade, que Ferry (1994, p. 22) descreve pela seguinte tese:

Ao passo que, para os Antigos, a obra é entendida como um Microcosmo - o que permitia pensar que exista fora dela, no macrocosmo, um critério objetivo, ou melhor, substancial do Belo -, para os Modernos a obra só ganha sentido em referência à subjetividade, vindo a se tornar para os Contemporâneos, expressão pura e simples da individualidade: estilo absolutamente singular que não quer ser mais em nada um espelho do mundo, mas sim criação de um mundo, o mundo do interior no qual se move o artista e no qual temos, sem dúvida, permissão para ingressar, mas que de nenhum modo se impõe a nós como um universo a priori comum.

Essa capacidade do autor de criar-se a si mesmo pela produção estética, que se faz junto com os temas e o estilo de cada obra, tem muito de comum com a experiência ética da contemporaneidade, que se caracteriza como um cultivo auto-poiético da subjetividade, fugindo ao naturalismo da concepção do bem do aristotélico-tomismo e às imposições sociais que advêm tanto do utilitarismo quanto do marxismo. A auto-gratificação do fazer-se a si, que na modernidade era um apanágio dos artistas rebelados contra todos os cânones, agora incorpora-se a uma estilística do eu: uma ética não-normativa, marcadamente individualista, que é quase sempre uma experiência estética aberta ao “horizonte do possível”.52 Esta é a concepção de autonomia abraçada por Rorty (1989) como ironia53, que se identifica expressamente com uma auto-criatividade. Para Rorty, a autonomia 52 “A sensibilidade pós-moderna rejeita grande parte do modernismo também, mas está enraizada no ideal modernista dos indivíduos emancipados das convenções, construindo identidades para si mesmos a seu próprio gosto, conduzindo suas próprias vidas, (como Oscar Wilde teria dito) como se elas mesmas fossem uma obra de arte (Lasch, 1995, p. 267)”. Note-se que este trecho de Lasch foi retirado de um contexto em que denuncia o romantismo subjetivante contemporâneo, que é herdeiro da contra-cultura dos anos 60 e do “é proibido proibir”; portanto, que é um individualismo autopoiético conscientemente posicionado de costas para as tradições. 53 Num ensaio sobre Habermas em seu mais recente livro, Rorty diz que a ironia corresponde a um desenvolvimento autonomista daquilo que Habermas chama de “filosofia da subjetividade”: “Desde o tempo de Nieztsche, a filosofia da subjetividade foi assumida pelos ironistas – por pessoas que estão mais interessadas em sua própria autonomia e individualidade do que em sua utilidade social e cuja excursão na política é incidental a seus principais motivos (Rorty, 1998, p. 308)”.

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buscada por muitos filósofos contemporâneos - Foucault e Derrida, entre outros - é nada mais que a expressão de uma dimensão individualista da ética, um cuidar de si e um produzir a si com valores que não são pré-determinados por qualquer referência normativa:

Autonomia não é alguma coisa que os seres humanos têm dentro de si e que a sociedade pode liberar por cessar de reprimi-los. É alguma coisa que certos seres humanos particulares esperam obter por auto-criação e que uns poucos de fato conseguem (1989, p. 65).

Ao retratar a ironia pelo exemplo de seus grandes heróis intelectuais - Heidegger, Nietzsche, Derrida, Freud, Nabokov e outros -, Rorty tenciona unir, num mesmo processo de auto-criação do eu, as experiências estética e ética. A visão profética da autonomia do fazer-se a si é fornecida por Nietzsche, que se rebela tanto contra as virtudes preconcebidas da moral da tradição quanto contra uma autonomia abstrata da razão54, como queriam os kantianos. A revolta de Nietzche faz-se, na verdade, contra toda e qualquer tábua de valores socialmente concebida, inclusive aquela sancionada pela autoridade da razão, monopolizada pelos filósofos modernos. 55 É bem conhecida a passagem (seção 335) da Gaia Ciência, uma das prediletas de Rorty, em que Nietzsche se coloca a tarefa de produzir a nova tábua de valores, ao mesmo tempo em que se produz a si mesmo: “nós, todavia, queremos tornar-nos quem nós somos - seres humanos que são novos, únicos, incomparáveis, que fornecem a si mesmos suas leis, que criam a si mesmos”. MacIntyre (1984, p.114), que, a despeito de todo seu fervor na defesa da moral da tradição, admira a audácia da crítica de Nietzsche à moral iluminista, observa:

O sujeito racional e racionalmente justificado do século do século dezoito é uma ficção, uma ilusão; assim, Nietzsche decide que devemos substituir a razão pela vontade e tornar-nos sujeitos moralmente autônomos através de um ato gigantesco e heróico da vontade, um ato da vontade que por sua qualidade possa nos

54 Sobre o imperativo categórico da moral kantiana abundam troças em Nietzsche, mas talvez uma das mais notáveis seja a seguinte: “ ‘Como? Admiras o imperativo categórico em ti? Esta firmeza que chamas teu juízo moral? Este sentimento ‘absoluto’ que ‘todo mundo tem nesse caso o mesmo juízo que tu’? Admira, antes, teu egoísmo. E a cegueira, a pequenez e a modéstia de teu egoísmo! Pois é egoísmo considerar seu próprio juízo como ‘lei geral’; um egoísmo cego. Mesquinho e modesto, por outro lado, pois revela que ainda não descobriste a ti mesmo, que ainda não criaste para teu uso um ideal próprio que pertença a ti somente – pois este ideal jamais poderia ser de um outro e ainda muito menos o de todos!(Gaia Ciência, seção 335)”. 55 Nietzsche, na seção 333 da Gaia Ciência, antecipa-se a Freud na crítica da hegemonia do consciente (“a maior parte de nossa atividade intelectual se efetua de modo inconsciente e sem que nos apercebamos”), que em Espinosa obedece à idéia da prevalência do “intelligere”.

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relebrar aquela afirmatividade arcaica aristocrática - que precedeu o que Nietzsche considerou ser o desastre da moral da escravidão - e que por sua efetividade possa ser o profético precursor de uma nova era.

O fazer-se a si de Nietzsche56, desvestido de suas conotações aristocráticas, foi tomado como um modelo por muitos filósofos e artistas contemporâneos. Nietzsche inicia essa passagem exaltando a capacidade desenvolvida pela física de observação da natureza e demanda um mesmo escrutínio para o auto-conhecimento. De certo modo, este modelo leva ao extremo a ousadia do sabere aude e inspira um romanticismo ético, que Foucault (1997) deu a conhecer nos artigos e entrevistas da última fase de sua vida. Foucault nutre a esperança quanto a um projeto transformador do eu, que começa pelas práticas ligadas ao cuidado de si, inspiradas pela ascese estóica, e que se conectam à audácia do saber do Kant de O Que é o Esclarecimento? Enxerga aí um prenúncio de novas formas das práticas sociais e de uma nova moral que, emergindo da ética privada do cuidado de si, tomarão a tarefa de limitar a hegemonia das forças opressivas dos micro-poderes expandidas pela ciência e pela técnica. Subjetividade e saber são os motes que comandam em Foucault sua versão particular da autonomia como cuidado de si. A diferença entre Rorty e Foucault, no tratamento reservado a esse tema da autopoiesis ético-estética, é que Foucault quer dar a sua concepção da autonomia uma grande densidade política, de transformação moral dos valores vigentes nas sociedades capitalistas avançadas, enquanto Rorty considera que esta rebeldia é muito particularista para compor o cenário do debate público nessas sociedades e, portanto, a despeito de todos seus méritos, deve ser restrita à esfera privada da ironia.

Em ABC – A Alfabetização da Mente Popular, livro escrito em colaboração com seu dileto amigo Barry Sanders, Illich volta-se explicitamente à discussão dessa autopoiesis que se dá pela via da produção literária. Assim como o bardo, no período da cultura pré-literária e de oralidade vernacular, cantava suas epopéias de uma maneira tão criativa que “inventava” um mundo em que todos começavam a acreditar, o autor moderno conta uma estória do eu pela qual se inventa a si mesmo: “o escritor tece a estória como parte de seu eu” (Illich & Sanders, 1989, p. 71). Mas isto não é apanágio dos autores, porque se estende a

56 Vê-se que Nietzsche pode perfeitamente dividir com Illich o epíteto de “profeta da autonomia”, mas como sua concepção de autonomia é inteiramente individualista (capacidade de forjar e se impor sua própria lei), ele não antevê, ao contrário de Illich, um modo de viver socialmente referido que favoreça a realização de tal projeto.

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qualquer pessoa dotada de capacidade de leitura (literacy). Illich e Sanders, como historiadores, têm uma tese mais geral a apresentar nesse particular - é de que eu na modernidade é produto de um conjunto de narrativas que são superpostas umas sobre as outras como camadas de “textos”, mediante os quais cada pessoa alfabetizada aprende a referir-se a si mesma. O tipo de leitura silenciosa, que se difunde desde o final da época de Hugo de São Vítor e através do texto impresso, irá forjar progressivamente essa capacidade de auto-referência, graças à qual o texto e o eu teriam sido constitutivos um do outro, numa relação de interdependência.

Illich e Sanders tomam as autobiografias de Benjamin Franklin e Henry Adams para ilustrar esse processo de fazer-se a si mesmo através do instrumento da narração. Franklin e Admas escreveram suas biografias posicionados numa situação de diálogo com seu eus anteriores, chegando ao final de suas obras a descrever uma cristalização de um novo eu. As auto-narrativas fornecidas por Franklin e Adams são bem contrastantes. Franklin é retrospectivo: parte de um esquema normativo peculiar à moral da tradição para demonstrar como a prática de certas virtudes domésticas (frugalidade, moderação, sobriedade, honestidade e perseverança) permitiu-lhe a correção dos erros cometidos no passado e finalmente o levou à felicidade plena. Franklin tem em mente não a felicidade no sentido aristotélico da contemplação, mas numa versão já devidamente americanizada, que é a de “sucesso na vida”. A narrativa que apresenta é a de uma superação gradual de um “pobre eu” inicial, que vai transitando de forma incoerente por toda uma série de “eus” equivocados, até chegar a conformar o eu bem sucedido, o eu do famoso Doutor Bem Franklin - inventor, artista, educador, estadista e homem de enorme prestígio em seu país. Para tanto, Franklin afirma ter sido necessário formular sua própria “Constituição do Eu”, coisa que lhe possível espelhando-se na sua experiência como delegado da assembléia constituinte americana.

No caso de Adams, a narrativa não se limita a traçar uma trajetória do eu, com suas diversas encarnações ou versões emergindo de um passado de erros: é a própria narrativa sobre o eu fracassado que faz aparecer um eu “novo em folha”. A Educação de Henry Adams representa o primeiro exemplo de uma autobiografia em que o autor se apresenta no esforço de se recriar a si mesmo a partir de uma posição que reconhece ser de completo fracasso. Adams, ao contrário de Franklin, não trata de contar como lhe possível galgar a escadaria do sucesso, a despeito de todos seus equívocos iniciais; ele conta a constituição de

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seu novo eu pelo ato de contar - não como produto de uma norma auto-erigida a que conseguiu, por grandes esforços, obedecer, mas como resultado de um processo de aprender a se educar através da narrativa sobre si mesmo. A vida do jovem Henry Adams fracassado é contada na terceira pessoa, de tal modo que ao ser projetado como personagem literária, o jovem Adams toma uma vida própria e começa a educar o novo Adams: “Esse é realmente um desenvolvimento extraordinário: a criação literária do eu assumiu uma vida tão peculiar que começa a instruir e educar seu próprio autor” (Illich & Sanders, 1989, p. 79). Nesse obra, Illich e Sanders usam expressões tão assimiladas às que fazem parte do vocabulário de Rorty que parecem estar ministrando uma lição sobre a história da ironia no Ocidente. Isto vem em reforço da suposição já levantada de uma adesão do último Illich ao modelo de autonomia que Rorty denomina de ironia. Illich insiste desde os anos 80 em se entender como um historiador mais do que como um “filósofo”, mas é difícil concluir alguma coisa desse texto que não tenha nitidamente uma implicação moral. A invocação da ironia pode ser identificada na alternativa de um modelo “modernizado” de moral da tradição (Franklin) ou na alternativa mais rortyana de uma “ética sem obrigação moral” (Adams) – mas em qualquer caso, não se pode supor que Illich se volveu um cientista e que agora é capaz de “descobrir” de que modo a subjetividade pode ser moldada pela história da escrita e da leitura. Ele continua, como qualquer cientista ou filósofo, a ser um interpretador de signos – e procura agora retirar da história narrativas que recontextualizam de maneira cada vez mais documentada sua obsessão com a autonomia.

O terceiro - e último - modelo de autonomia que faz parte de minha classificação é o que se põe sob a égide do fazer por si. Esta é a direcionalidade extremamente original da interpretação dada por Illich na Nêmesis, para a qual não cansei de chamar a atenção ao longo deste trabalho. Esta versão não é individualista, nem subjetivista, nem tampouco racionalista. Ela tem a ver, em primeira instância, com uma pragmática social - a do ensino/aprendizagem, os cuidados de saúde, o sistema de transportes, etc. O Illich da Nêmesis, em contraposição a certas fortes tendências iluministas, optou por uma versão do projeto de autonomia que é, por assim dizer, mais pragmática e coletiva. Portanto, o que está em jogo é a produção social e sua capacidade de alcançar os fins a que se propõe em cada momento. Illich problematiza a viabilidade da cooperação social nos termos exacerbadamente racionalistas que foram postos pela modernidade. Em segunda instância, essa autonomia articula-se com dois temas clássicos da política anti-absolutista do Iluminismo: a liberdade civil e a igualdade.

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Em terceira instância, articula-se com o tema muito contemporâneo da recuperação ou recriação do saber e das práticas tradicionais como instrumentos que possibilitam viver melhor.

Os dois primeiros modelos de autonomia - o pensar por si e o fazer-se a si -aparecem e podem ser bem realizados individualmente nas “altas esferas” da produção não-material: na ciência, nas artes e na ética. Nessas esferas, a autonomia modernista realizou-se como uma mudança da subjetividade. A proposta de Illich na Nêmesis não admite essa alternativa porque está voltada para a mudança da lógica mesma de produção material. Seus objetivos de mudança “infraestrutural” são similares aos do marxismo, mas a solução preconizada é muito diferente. O que Illich pretendia alcançar com o equilíbrio entre autonomia e heteronomia (ou com as comunidades vernaculares) é uma mudança social que termine com a unilateralidade do homo oeconomicus, que gradativamente foi deixando de saber fazer, até especializar-se completamente na heteronomia do comprar, do vender e do consumir.

***

Richard Rorty promoveu nos últimos anos uma releitura criativa de Dewey que denuncia e renuncia a muitos dos traços metafísicos de sua filosofia. Mas seguramente uma das coisas que Rorty faz questão de manter a partir de Dewey é seu desagrado com os pressupostos da autonomia do sujeito na forma do antecedente à ação. Neste particular, há de se conceder que Illich e Foucault mantêm um entendimento da autonomia e da subjetividade que busca uma fundamentação no antecedente da ação, ou seja, nas condições de eticidade do sujeito. Rorty identifica essa raiz “idealista” de Foucault tanto na fase da genealogia (que é sobretudo uma crítica da moral “opressiva”) quanto na fase dos estudos do cuidado de si (que aponta para algumas proposições de uma ética individualista contemporânea).

Rorty leva sobre Dewey uma vantagem que é a de poder fazer amplo uso reinterpretativo do pensamento de Freud. Em Rorty, o entendimento sobre a complexidade dos motivos da ação humana pode ser ainda mais enriquecido graças à possibilidade de apelo a forças que vão além do acaso e das individualidades “naturais” que requerem uma descrição estatística. O que Rorty põe em questão, assentado em Freud, é a própria “razão da ação”. Por outras palavras, ele pode agora ultrapassar questões cientificistas que contrapõem determinação versus indeterminação, para entrar no que há de mais polêmico, no

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puramente humano: a contraposição entre o racional e o irracional. Isto vem a significar que não só o acaso dos processos sociais e naturais pode nos favorecer; com sorte, também as pulsões do inconsciente podem levar a resultados superiores aos das escolhas criteriosas. A interpretação da liberdade tem agora de levar em conta a coexistência dos vários “eus”, de seus desejos contraditórios e da “conversa” que eles estabelecem entre si para influenciar o curso de uma dada ação: o auto-enriquecimento ético pode ser figurado não só como uma interrelação entre um eu centrado capaz de lidar (“ to cope”) com as dificuldades do meio, mas por uma narrativa auto-criadora, uma redescrição de nós mesmos, que pode ser um feliz resultado do diálogo interno desses múltiplos eus.

Num artigo denominado A Contingência da Comunidade (Rorty,1989, pp. 44-69), ao mesmo tempo que demonstra sua simpatia com o empreendimento de Foucault (como uma opção meramente de “ironia” privada), Rorty desacredita não só na utilidade do conceito de autonomia como na possibilidade de que possa orientar publicamente uma ética de rompimento com a ordem das sociedades liberais modernas. Foucault, anteriormente reticente em exibir engajamentos, nessa fase de sua vida intelectual debruça-se sobre o tema ético-político da autonomia e, influenciado por Kant e por seu estudo dos estóicos, acaba por coincidir com Illich na esperança quanto a um projeto ético transformador, que começaria pelas práticas ligadas ao cuidado de si. Mas Foucault, nesse ponto, é mais kantiano do que Illich - sua esperança é que essas pessoas sofram um “despertar ético” e passem a ser atores de uma retomada do projeto autonomista do Iluminismo na linha do sabere aude, portanto, do encontro de uma verdade libertária para a subjetividade.

A posição de Rorty em relação aos anseios de autonomia libertária de Foucault já foi antes mencionada, mas retomo-a aqui para melhor entendimento. Rorty considera que esse tipo de projeto é de relevância estritamente privada: é uma narrativa poética fascinante, que merece ser anunciada a todos e desfrutada por nós tal como fazemos com uma peça literária original. Ou seja, através dessas histórias vigorosamente criativas sobre a sexualidade e os usos do corpos, Foucault enriquece nossa linguagem privada pela qual podemos falar mais livre e ricamente de nós mesmos, ou seja, podemos alimentar nossa “ironia”; mas há que negar a essas narrativas um valor especial para o debate público sobre a moral e sobre os rumos da política numa sociedade democrática. Rorty considera que a autonomia de Foucault (e o mesmo diria de Illich) tem um apelo moral mais

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particularista ou intimista do que a noção clássica de liberdade, de tal modo que simplesmente recomenda “arquivá-la” no universo privado de cada um de nós.

Neste particular, Rorty tem sido freqüentemente acusado de buscar dar fundamento a um liberalismo em conformidade com o establishment. Muitas dessas acusações são injustas, mas é evidente que Rorty não mantém, na mesma extensão e profundidade, os compromissos sociais do liberalismo radical de Dewey. Por certo, Dewey reconheceria que a questão levantada pelo anseio de autonomia, por mais intimista que seja num ou noutro momento ou aspecto, é social e politicamente muito relevante. Digo que a posição de Rorty contraria os padrões do liberalismo de Dewey, por que implica no seguinte: os fins aspirados pelos indivíduos isoladamente - digamos, como intelectuais, envolvendo aquelas coisas que estão por assim dizer aquém do bem comum e que se podem expressar por variados nomes tais como autonomia, felicidade, vida plena, etc. - nada têm a ver com o funcionamento das instituições sociais da democracia liberal. Sendo assim, uma rigorosa separação entre moralidade privada (necessariamente múltipla) e moralidade pública (única, portanto, universal) recria uma dicotomia de tipo kantiano que é inadmissível que venha justamente de um crítico ferrenho de todas dicotomias metafísicas.57 Mas Rorty insiste neste ponto, como se vê pela seguinte citação:

..”moralidade” pode significar quer uma tentativa de ser justo no nosso tratamento dos demais quer a busca por perfeição em nós mesmos. A primeira é a moralidade pública, codificável em estatutos e máximas. A última é a moralidade privada, o desenvolvimento do caráter (1991, p. 153).

O que Rorty teme, no fundo, é que uma moralidade de minorias (dos socialistas, dos românticos, dos religiosos, dos perseguidores dos homossexuais e outros assemelhados) possa ser imposta como “a moralidade” da sociedade. Ele quer evitar este risco a qualquer custo, e não lhe importa que a imagem da sociedade liberal que propõe seja tremendamente estática, ao ponto de as doutrinas morais concorrentes parecerem não manter entre si a mínima relação conversacional. Tudo se passa como se a ideologia básica que cimenta as relações políticas e jurídicas das sociedades democráticas fosse um ponto de partida, um requisito de entendimento entre todos, e não um ponto de chegada, mediante um acordo historica ou hipoteticamente retomável entre seus integrantes. 57 Veja-se, a esse respeito, as críticas muito convincentes de Laclau e Derrida a Rorty, em Critchley (1996).

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Não é que Rorty negue a legitimidade do anseio de autonomia de intelectuais como Illich e Foucault. O que ele lhes recusa é a legitimidade política de suas propostas, portanto, a relevância deste tipo de tema para um debate de interesse público:

O objetivo do intelectual Romântico de auto-dominação e auto-invenção parece-me um bom modelo (um entre muitos outros modelos) para um ser humano individual, mas um modelo muito mau para a sociedade. Não deveríamos tentar encontrar uma contraparte social para o desejo de autonomia. (...).A questão da sociedade liberal não é a de inventar ou criar qualquer coisa, mas simplesmente fazer tão fácil quanto possível para as pessoas alcançarem seus fins privados enormemente distintos entre si, sem ferir uns aos outros. Para fazer funcionar os detalhes sempre cambiantes que constituem o discurso político de tal sociedade requer-se um vocabulário banal - um vocabulário que não é mais relevante para a auto-imagem privada de uma pessoa do que para a de qualquer outra. Numa sociedade liberal, não é de esperar que nossas relações públicas com nossos cidadãos companheiros sejam românticas ou inventivas; é de esperar que elas tenham a mesma inteligibilidade rotineira dos mercados e das cortes de justiça (1991, p. 196).

Dos três modelos de autonomia na compreensão iluminista que mencionamos anteriormente, Rorty parece fixar-se somente no que corresponde à concepção estetizante do fazer-se a si. De fato, as concepções éticas do cuidado de si de Foucault, assim com também a da saúde como virtude e dos valores vernaculares do último Illich correspondem melhor a esse modelo mais subjetivo de autonomia. Mas existem certas dimensões da autonomia que já foram definitivamente transladadas desde um mundo privado para o mundo público do funcionamento da sociedade pós-industrial; elas, até em sentido conservador ou liberal, já constituem a contraparte pública da autonomia, numa sociedade que se vê obrigada a valorizá-la para promover coisas tais como o controle dos riscos em saúde, a gerência das empresas, jurisprudência, etc. Adiante pretendo chamar atenção para os múltiplos usos sociais da autonomia que a sociedade pós-industrial cria constantemente – usos que são de alcance público na medida em que se desenvolvem nas esferas da política, das normas profissionais, dos estilos de administração de empresas, etc. Aqui o que me parece pertinente é apenas defender a legitimidade de uma ética radical do fazer-se a si para um debate público, por mais restrito que seja o público que inicialmente possa ser envolvido nesse debate. A ironia é apenas uma das modalidades da autonomia iluminista, mas o fato de ser mais subjetivizante e diminuir o público que lhe pode ser

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sensível não pode exclui-la a priori da arena dos confrontos dos posicionamentos éticos.

A visão privatizante da ironia de Rorty pode ser cotejada com a que se encontra no liberalismo político de John Rawls. Este admite que os defensores de doutrinas antagônicas entre si, desde que sejam amplas e razoáveis (reasonable comprehensive doctrines), sejam atores do consenso democrático, ou seja, de um consenso imbricado (overlapping consensus), do qual se pode dizer que é responsável por dar origem ao “vocabulário banal” das regras democráticas. A questão principal do liberalismo político na forma em que é enunciada por Rawls (1996, p. 133) é justamente a de como é possível inventar tal vocabulário em meio aos conflitos constantes entre doutrinas amplas:

Como é possível existir uma sociedade estável e justa cujos cidadãos livres e iguais encontram-se profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais conflitantes e até incomensuráveis entre si?

A resposta dada por Rawls passa por seu postulado do consenso imbricado entre doutrinas amplas que sejam simultaneamente razoáveis, ou, em outras palavras, que aceitem os princípios básicos de tolerância e convivência democráticas. Sob esta rubrica encontram-se doutrinas tais como o utilitarismo e o kantismo. A construção desse consenso imbricado não é algo fácil de ser imaginado por quem não é um filósofo racionalista e contratualista da mesma estirpe do próprio John Rawls; mais difícil ainda é ver como esse esquema possa aceitar a contribuição de “desviantes” como Illich e Foucault, autores que embora se possa admitir que esposam concepções razoáveis, no sentido de Rawls, não apresentam qualquer “doutrina ampla” legitimada. Na verdade, suas concepções mantêm-se fragmentárias por um essencial espírito anti-doutrinário em geral. Portanto, o liberalismo de Rawls também não consegue enxergar o potencial de contribuição para o desenvolvimento da moralidade democrática que pode estar contido em doutrinas morais mais ou menos minoritárias, mais ou menos “fragmentárias” como as de Foucault e Illich.

Para Foucault e Illich, a questão da autonomia liga-se à tentativa de identificar uma referência adequada para um “despertar ético” na vida social da modernidade tardia - a criatividade e auto-criatividade de cada indivíduo, por fora e contra os esquemas de micro-poderes, ou operando contra a passividade do homo oeconomicus, são exatamente sinônimos de autonomia. Rorty quer limitar o

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alcance desse pleito à vida privada de cada um de nós: a criatividade e a auto-criatividade caracterizam subjetivamente os inventores de linguagens novas tais como os poetas e os filósofos marcantes - um Nietzsche, um Heidegger, um Derrida. Foucault e Illich, ao contrário, apresentam suas teses por uma convicção de minoria que pretende ser reconhecida e aceita de algum modo. São protagonistas de uma política radical que, confrontando-se com a banalização do “vocabulário” das instituições democráticas, querem ser ouvidos no foro público e um dia vir a modificar (se é que isto existe) o próprio conteúdo do “consenso imbricado” de nossas democracias liberais.

***

Como se sabe, o debate intelectual travado pelos primeiros filósofos iluministas consagrou a oposição entre tradição e modernidade como duas interpretações bem distintas acerca do homem e de seu meio social. A modernidade foi associada com racionalidade leiga, e a tradição com conservadorismo religioso. Illich, até onde sei, é o primeiro crítico social contemporâneo a colocar explicitamente as tradições do lado da autonomia e não da heteronomia. A inversão dos termos dessa equação foi obtido no pensamento de Illich mediante uma virada pragmática que implicou em deixar de lado uma concepção muito abstrata de liberdade moral e política: Illich divisou que num mundo totalmente dominado pela máquina industrial e pelo império dos valores de troca, a liberdade só pode brotar onde houver um cuidado especial com a atividade produtora de valores de uso, com a criatividade não-mercantil, cuja inspiração pode ser dada através dos procedimentos consagrados pela experiência secular e pelo conhecimento prático-existencial que existem no seio das famílias e da comunidade. O pressuposto de Illich nesse entendimento já foi antes indicado - o de que as sociedades tradicionais estão melhor equipadas do que as sociedades industriais para enfrentar a enfermidade, a invalidez, a velhice e a morte.

Weber (1981) demonstrou que o capitalismo em seus primórdios no Ocidente nutriu-se profundamente de uma fonte de tradição - a ética calvinista - e foi graças à peculiar ênfase na disciplina e na austeridade de vida ditada por essa ética que pôde passar com sucesso pelo período de acumulação primitiva de capital nos países de influência protestante. Mas o que mais preocupava Weber era entender por que unicamente no Ocidente deu-se uma vinculação tão estreita entre o auto-entendimento da modernidade e o conceito de racionalidade. Da

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maneira como Weber a estudou, a cultura da racionalidade no Ocidente é um processo de desencantamento do mundo das tradições - do mito, da religião e das práticas populares centenárias. A modernidade entendida como racionalidade social estendia-se a três esferas complementares: a do direito, com a aplicação sistemática de princípios legais; a da administração, com a burocracia e suas regras sistemáticas de trabalho eficiente e impessoal; e a economia, com suas formas de conduta sistemática que traduzem a busca persistente e metódica de lucro mediante a organização e a divisão do trabalho. Portanto, segundo Weber, a racionalidade moderna é algo que o Ocidente desenvolveu com particularidade nos planos da política, da economia e até das artes.

Habermas (1990a), no capítulo inicial de O Discurso Filosófico da Modernidade, retoma essa indagação de Weber para pôr em tela de juízo a auto-compreensão moderna e os reclamos teóricos dos “pós-modernismos”. Diz Habermas que, ao criar uma abstração dos termos culturais em que foi posta originalmente a análise de Weber, o conceito de modernização, pareado com a de racionalização, possibilitou que essa categoria pudesse ser estendida, transculturalmente, para além do estreito círculo dos países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos como um processo social. Foi esse distanciamento e autonomização em relação à idéia de modernidade ocidental que permitiu isolar o próprio conceito de modernidade de todo contexto sócio-histórico concreto e compreendê-lo numa forma transcultural, abstrata e universal. Dito de outra forma, passou-se a entender que pode haver modernização sem haver modernidade em sentido weberiano. Mais ainda: doravante pode-se julgar que a modernização social continua, mas a modernidade está esgotada, ou seja, que a modernidade já passou ou perdeu sua força ideológica e, portanto, cultural. Surgem neste ponto os teóricos da pós-modernidade que, na opinião de Habermas, apenas tiram da temática da “modernização sem modernidade” suas últimas conseqüências. Entre os que saúdam a continuidade da história através da descrição de uma ultrapassagem da modernidade, Habermas enxerga os anarquistas (de inspiração estética como Heidegger e Battaille, que negam a modernidade no seu todo) e os neo-conservadores (que, como Gehlen, apenas rechaçam especificamente o lado cultural da modernidade). Portanto, Habermas vê que o desenvolvimento das idéias sobre a modernidade avança através do conceito de modernização para o pleito da “pós-modernidade” mesmo quando continua a seguir em seu curso autônomo o processo de modernização. Ele contesta todas essas posições pois crê que o corte da pós-modernidade é ilusório, ou seja, de que estamos dando

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continuidade ao projeto iluminista por outros meios ou apenas recuperando certas posições anti-iluministas que não constituem nenhuma novidade.

A conclusão de Habermas é de que o “adeus à modernidade” que os autores anarquistas e neo-conservadores sinalizam não é uma superação verdadeira do Iluminismo e da auto-compreensão moderna, mas apenas um disfarce para uma outra forma de pensar que vem de longa data - o contra-iluminismo. O seu principal argumento quanto a esse ponto está fundado na interpretação hegeliana do conceito de modernidade. Para Habermas, os autores pós-modernistas continuam vinculados às formas de auto-certificação da razão que foram indicadas por Hegel: a subjetividade que se pensa a si mesma constitui-se na única fonte de autoridade normativa da modernidade. Hegel desfruta da condição de paternidade da auto-compreensão da modernidade, diante da qual cada uma das gerações posteriores de filósofos (incluindo Nietzsche) terá de se pronunciar:

Foi Hegel que inaugurou o discurso filosófico da modernidade. Foi Hegel que introduziu o tema da certificação autocrítica da modernidade; foi Hegel que estabeleceu as regras, pelas quais se torna possível submeter o tema a variações - a dialética do Iluminismo. Ao mesmo tempo que elevou a história contemporânea ao nível filosófico, Hegel pôs o eterno em contato com o transitório, o intemporal com o atual, e, deste modo, transformou radicalmente o caráter da filosofia (Habermas, 1990a, p. 57)

Se a reflexão que se pensa a si mesma criticamente, na sua apreensão do “nós” e do “mundo”, é a marca registrada do discurso filosófico da modernidade, esta racionalidade impõe uma contínua mudança de forma e de conteúdo do processo quando se transmuta numa racionalidade modernizadora da sociedade. A modernização tem a mudança da técnica e dos recursos como um fim em si mesmo, como “progresso”, no sentido positivista. A tradição inevitavelmente tem que aparecer como conservadora nessa perspectiva. Mantidos os critérios filosóficos de Hegel para caracterizar a modernidade, haverá sempre um antagonismo epistemológico e sociológico entre racionalidade moderna e tradição. Para essa abordagem antropologicamente pouco sensível, razão e tradição são mais do que contrapostas como critérios de legitimidade: com efeito, a tradição está impossibilitada de apresentar-se como legitimada, porque todos critérios de legitimação são açambarcados pela razão moderna.

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Em O Barômetro da Razão Moderna, observa Descombes (1993) que Habermas e outros autores, ao endossarem essa interpretação da modernidade, fazem com que a tradição seja esvaziada de qualquer legitimidade: ela é apenas o negativo da modernidade, o default da razão. Para contornar esse tipo de imperialismo da modernidade e de seus atributos (racional, legítimo, verdadeiro), Descombes sugere que a oposição razão versus tradição (ou racional versus irracional) seja culturalmente relativizada. Isto quer dizer, em termos wittgensteinianos, que se deve entender que razão e tradição são reciprocamente incomensuráveis, na medida em que não fazem parte de uma mesma linguagem que se use para entender e resolver os problemas da vida. Na pendência entre razão e tradição, dadas as condições culturais da modernidade, qualquer argumento ajuizador só pode ser de natureza racional e, por isso mesmo, há de pender com parcialidade para o lado da razão. Nesta situação, entende-se que quando uma pessoa é colocada diante de um problema qualquer, a alternativa de resolvê-lo pela via da tradição ou pela via da razão não se constitui numa opção real, numa opção viva como dizia James (1956). Tal opção inexiste, não é permitida, dentro de uma cultura que seja simultaneamente iluminista e moderna.

No projeto iluminista clássico do sabere aude, a razão funciona sempre do lado da autonomia do sujeito, é o que lhe permite julgar, avaliar e rever suas escolhas a cada momento, em condições em que é livre para conformar ou não sua conduta aos ditames morais ou às conclusões a que lhe conduz o exercício racional. Por outro lado, a tradição é sempre heteronômica na medida em que suas regras de ação são impostas pela força da autoridade tradicional e os que a ela se submetem têm como base de ação a confiança em sua correção. Que o projeto iluminista seja auto-certificador, na acepção indicada por Habermas, e que dite a necessidade de saber a cada momento se nossa exploração do mundo ou nossas atitudes são verdadeiras ou estão corretas, aparece como uma conseqüência inevitável dessa compreensão da autonomia da razão prática.

Outro autor que lança mão dessa relação dicotômica entre autonomia e heteronomia é Castoriadis (1991), que a utiliza para caracterizar alguns dos poderes do imaginário social. A razão política é, em sua análise, uma arma para a ampliação do alcance dos poderes imaginários da sociedade na conformação das instituições e pode ser usada para consolidar a espécie de autonomia que ele denomina de instituinte. Enquanto isso, as tradições instauram um nomos inquestionável que por definição conduz a uma heteronomia instituída: a tradição implica em que sua legitimidade jamais será questionada. Em Castoriadis e em

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outros autores das ciências políticas contemporâneas, a liberdade política e a emancipação social são sempre apresentadas como resultado da ação das forças da autonomia movendo-se em sentido contrário ou ignorando as tradições.

Se aceitarmos essa interpretação – que é a mesma da ótica hegeliana, segundo a qual não é possível ser moderno e fazer uma escolha fundada na tradição -, a opção pela tradição nas condições contemporâneas somente poderia existir numa cultura ou subcultura que se entendesse não-iluminista com uma das duas condições seguintes: a) ou rejeitasse a auto-compreensão da modernidade como racionalidade auto-certificadora hegeliana; b) ou tivesse a auto-compreensão de haver ultrapassado a modernidade (este segundo ponto mistura-se com a polêmica infindável e relativamente estéril sobre a pós-modernidade). O que defendo neste trabalho é a seguinte posição - é menos importante o debate sobre o fim da modernidade do que o debate sobre os preconceitos modernistas em relação a razão e racionalidade. A cultura contemporânea já admite que o conceito de racionalidade possa ser entendido numa forma ideológica minimalista e pragmática, simplesmente como “modo de interpretar e de proceder”. Este fato abre espaço para fazer da tradição um modo de viver tanto quanto um modo de interpretar e de proceder, que põe de lado a auto-certificação compulsiva. Mas a tradição a que refiro já não é mais a mesma, ela é algo reinventado em maior ou menor monta e adaptado a valores e estilos de vida que podem ainda ser denominados de “modernos”. O que permite reinventar a tradição é a persistência de uma crença no projeto de autonomia, qualquer que seja sua escolha final entre os três modelos mencionados. Assim, o mundo contemporâneo, que já assiste o recrudescer das forças da tradição em todos os países, tem de fazer uma opção entre a) um recuo para as tradições como tais, dando origem a um único e tradicional modo de viver (opção monocultural); e b) uma reinvenção das tradições que se assimilam a uma pluralidade de modos de viver (opção pluricultural). Tentei mostrar antes que a apologia que o último Illich faz da cultura vernacular é uma opção do primeiro tipo, enquanto uma leitura pragmatista da Nêmesis reforçaria a segunda alternativa.

É naquilo que Giddens (1991a; 1991b) denomina de setores de estilos de vida onde melhor se evidencia o ímpeto pós-tradicional de recriação das tradições. Aqui o que marca a situação existencial é uma pluralidade de escolhas “livremente” motivadas e não a fixidez de determinação pela autoridade dos costumes, que se vê nas sociedades realmente tradicionais. Tal pluralidade de escolhas combina-se com a força daquilo que Giddenas chama de reflexividade.

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A noção de reflexividade, como uma revisão contínua de conhecimentos que ajudam a monitorar a ação, foi introduzida recentemente na literatura sociológica pelos trabalhos de Anthony Giddens, na Inglaterra, e Ulrich Beck, na Alemanha. Proporei a seguir uma ligeira revisão da noção de reflexividade, a fim de aproximá-la ainda mais de uma visão pragmatista. Segundo uma das muitas definições dadas por Giddens,

A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz da informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter (Giddens, 1991b, p. 45).

Numa perspectiva pragmatista, a reflexividade não é nada mais do que a contínua tecedura da rede de crenças e desejos através da incorporação de novos componentes que se agregam aos antigos (expandindo linearmente a dimensão da rede), ou substituindo uma parte maior ou menor dessa rede (por uma redescrição completa de um campo de atividade ou do próprio eu), tendo como conseqüência que a ação e o monitoramento da ação passam a se realizar de uma outra maneira. A velocidade com que esse processo ocorre acentua-se na modernidade e é uma causa adicional de incerteza; o próprio conhecimento da ciência, por seu caráter provisório ou pelas disputas entre os peritos, tem de ser reconhecido pelos agentes da ciência e pelos próprios leigos como incerto e inseguro. Mas como o pragmatismo não separa conhecimento e desejo, entende que a retecedura dessa rede pode ser motivada por coisas que não correspondem exatamente a “informação e conhecimento”, mas que podem estar relacionadas com a possibilidade de obter maior satisfação. Denomino a isto de reflexividade pragmática. Devido à ação da reflexividade pragmática, qualquer pauta de escolha de curso de ação está submetida a contínua revisão à luz não só do saber científico e das informações da mídia, mas também da experiência individual e da opinião socializada. Assim, porque busca o que dá maior satisfação, a reflexividade pragmática pode questionar até mesmo certas “verdades racionais” da ciência e da técnica. No caso da medicina, tudo se passa como se o conjunto dos seus consumidores houvesse bem assimilado as lições da Nêmesis: diante de seus agentes podem agora reflexivamente levantar suspeitas acerca de sua eficácia, de sua segurança ou conveniência. Ou seja, não aceitam mais que o certificado gratuito de racionalidade conferido a essas práticas, sejam elas high-tech ou não, torne-as legítimas e aplicáveis independentemente da consideração de outros critérios que têm em conta a segurança, a conveniência e a satisfação

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das pessoas. Portanto, o método da dúvida sistemática que estava na origem da auto-certicação hegeliana, como entendido por Habermas, é voltado contra a própria tecnociência, pela aplicação da reflexividade pragmática. Mas esta não questiona a veracidade deste ou daquele conhecimento que sustenta uma dada prática e, sim, sua aceitabilidade em aspectos que tomam em conta a crença e a experiência das pessoas.

A transição cultural atual, que inclui a revivescência das tradições, propicia a disseminação da reflexividade pragmática. Tal transição, que remonta aos anos 60 e aos movimentos de contra-cultura, é vivida hoje de forma globalizada em todo o mundo e tem sido descrita das mais variadas maneiras, independentemente da preferência que alguns autores manifestam pelo uso de termos explicativos tais como “pós-moderno” e “paradigma”. Podemos distinguir esses autores em três grupos:

a) Os que notam a transição cultural como mudança de paradigma mas limitam-se a analisar suas conseqüências para a produção de conhecimento e as formas de produção material e regulação social, omitindo o tema da recuperação das tradições: Lyotard (1993a), Harvey (1993), Sousa Santos (1996).

b) Os que registram a recuperação das tradições mas o fazem dentro de uma ótica política que a interpreta como conservadorismo pós-moderno: Guéhenno (1994), Baudrillard (1992), Guattari (1992).

c) Os que de uma forma mais ou menos explicita “simpatizam” com a recuperação das tradições e o fazem com tonalidades variáveis de anti-iluminismo: MacIntyre (1982), Giddens (1994), Lasch (1995).

Uma das críticas mais acerbas a essa nova conjuntura da cultura mundial vem de Jean-Marie Guéhenno que identifica no conjunto de mudanças mundiais recentes o estabelecimento de uma “era relacional”, que decreta a morte tanto do Estado-nação como da própria democracia. Guéhenno afirma em O Fim da Democracia:

O extremo arcaísmo encontra-se com a extrema modernidade. (...). Na verdade, os extremos progressos da idade científica não nos afastam, mas sim nos aproximam da religião. (...). Nos países pobres onde o Estado-nação não está consolidado, as religiões ambicionam fazer renascer a política, dando-lhe um sentido novo. Os fundamentalismos islâmicos e também hindu insuflam sua energia conquistadora nas sociedades que o choque mal

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absorvido da modernidade econômica vem desorientando profundamente. (...)A política estaria defunta nas sociedades mais ricas, ela renasceria, virulenta, carregada pela religião, junto aos pobres, estes largados na beira da estrada pela integração da era relacional (Guéhenno, pp.97-99).

A reemergência das tradições têm algo de um desencalque violento do reprimido - o que nunca deixou de existir mas foi relegado às regiões obscuras pelas luzes da razão. Há de se contra-argumentar, no entanto, que a cultura contemporânea abriga uma revivescência de formas de tradição religiosa e semi-religiosa as mais variadas possíveis, o que talvez não deva ser considerado como um fenômeno uniforme. O reforço aos fundamentalismos religiosos, sejam cristãos, sejam islâmicos, não pode ser confundido com o recurso difuso, não-organizado e não-fervoroso, aos esoterismos de todos os tipos, assim como esta tendência não deve ser confundida com a retomada das tradições contemplativas do Ocidente e do Oriente. Aqui o que nos interessa sublinhar, acompanhando os estudos recentes de Luz (1997), é que hoje existe uma considerável número de pessoas que se consideram herdeiros ou continuadores do movimento de contra-cultura dos anos 60 e que se dispõem a adotar um ou outro aspecto da tradição, seja no campo das práticas religiosas, seja no campo das práticas de saúde, e que rigorosamente estão apenas promovendo a incorporação da tradição mediante porções mais ou menos fragmentares, mais ou menos “traduzidas”, o que é possível dentro de uma nova concepção de autonomia. Não obstante, tais práticas são adotadas como parte do modo de viver e das convicções duráveis dessas pessoas e não como um recurso ocasional que atenda, num dado momento, a uma necessidade fugaz do corpo ou do espírito.

Na medida em que, neste trabalho, tomo apoio considerável no neopragmatismo, convém advertir que Rorty é um dos que não vêem com bons olhos qualquer dessas manifestações de restauração dos valores da tradição. Rorty preocupa-se sobremodo com a possível disseminação da visão de mundo reacionária, que é típica dos fundamentalismos norte-americanos, com sua indisposição bem conhecida contra os direitos civis e contra certas minorias não-étnicas (como os homossexuais). Diante da necessidade de manter o debate e a tolerância num ambiente de pluralismo democrático, a religião, segundo Rorty (1994) traz sempre a ameaça de ser um “bloqueador da conversação” (a conversation stopper). Rorty quer dar prosseguimento à obra inacabada do Iluminismo, o que pressupõe que a religião deva ser mantida afastada do debate do interesse público. Sendo assim os desdobramento possíveis a partir da idéia de

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autonomia em Rorty (que ele concebe especialmente sob a figura da ironia) só podem ocorrer pela adoção de estilos de vida modernos e secularizados:

Nos dias de hoje os intelectuais dividem-se entre aqueles que pensam que algo novo importante chamado “o pós-moderno” está acontecendo e aqueles que, como Habermas, pensam que estamos (ou deveríamos estar) ainda labutando nas tarefas habituais estabelecidas para nós pelo Iluminismo. Os que, como eu, concordam com Habermas, tipicamente vêem a secularização da vida pública como uma das grandes realizações do Esclarecimento e vêem nosso trabalho como o mesmo de nossos antecessores: fazer com que nossos colegas cidadãos dependam menos da tradição e estejam mais dispostos a experimentar com novos costumes e instituições (Rorty, 1994).

Portanto, para Rorty, os novos costumes e instituições que antevê devem seguir o quadro secular, anti-tradicionalista, indicado pelo Iluminismo. Na interpretação que proponho aqui essa capacidade de experimentar com novos costumes e instituições deveria abranger os elementos da tradição, recondicionados de tal modo que percam seu caráter de fixidez e de autoridade suprema, para poderem ser testados e usufruídos no quotidiano de cada pessoa. O experimento com uma tradição pode ser uma tentativa de ajuste do modo de viver, em que os elementos que não “deram certo” podem ser eventualmente substituídos por outros, coisa que é inimaginável num contexto efetivamente tradicional.

Podemos concordar com Rorty quanto à importância, para o pluralismo democrático atual, de se manter as tradições afastadas da esfera da razão pública - é isto que nos livra da possibilidade de que um ou outro fundamentalismo religioso venha a ditar autoritariamente o dever de conduta do cidadão; é isto que nos previne, portanto, de eventuais fanatismos e ortodoxias cujas regras sejam insustentáveis como argumentos de interesse público. Mas talvez possa ser demonstrado que este tipo de temor é infundado: não há como a tradição reger a escolha de um bem comum numa sociedade democrática pós-industrial, já que as tradições são plurais e reinventadas (ou “adaptadas”), vindo a se somar ao pluralismo de valores que essa própria sociedade exige. Há de se considerar que a escolha de uma dada tradição, nessas circunstâncias, é sempre estabelecida numa base alternativa, isto é, como uma escolha facultada à pessoa e não como a única possibilidade que lhe é oferecida por um dado arranjo institucional - portanto, pode reaparecer agora, como queria Illich, do lado da autonomia e não

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do lado da heteronomia, ou seja, daquilo que não dá margem a escolhas. Seu reaparecimento, ao lado da autonomia, já implica numa concepção mais plástica, em que seu papel social é revisto e modificado. Dentro do sincretismo em que se acomoda, a prática tradicional passa por um processo adaptativo ou de revisão, ou seja, nunca é reinstaurada tal qual existiu ou existe em outros lugares que lhe servem de berço.58

Contra a proposição de Rorty, podemos defender a validade da adoção por parte de certos grupos de pessoas, de condutas tradicionais que, postas como alternativas e sincretizadas culturalmente, já refletem todo um espírito de tolerância que o próprio Rorty tanto insiste em disseminar. Um dado sociologicamente significativo dessa nova cultura sincrética é que ela dissemina um conjunto de práticas corporais e espirituais que conformam um modo individual e coletivo de viver - não só as medicinas do Oriente, como também a Yoga, o Tai-Chi-Chuan e práticas de corpo-mente assemelhadas. Todas essas práticas juntam-se, talvez não de uma forma disciplinada, mas pelo menos eficaz, numa forma de exercício da autonomia, que orienta um estilo de vida sincrético e traduz uma flexibilidade cultural e pessoal que é fortemente contrastante ou até virtualmente conflitante com os fundamentalismos.

Em resumo, essas pessoas começam a encontrar usos novos para a tradição, o que lhes ajuda a viver de uma forma melhor. Nesta acepção, viver melhor quer dizer desfrutar de mais confiança nos outros e em si mesmo, com maior satisfação em suas experiências de fazer-se a si em seu corpo-mente. O reconhecimento da validade e razoabilidade dessas formas de viver, contra todos os velhos juízos de “irracionalidade”, constitui uma atitude compatível com o pragmatismo de William James da “vontade de crer”. É lamentável que Rorty, preocupado em reafirmar sua fé iluminista, deixe de lado essa sensibilidade para o pluralismo das visões de mundo que, embora com um pé nas tradições, são contemporâneas em sua determinação de forjar sentimentos de tolerância, solidariedade e compaixão, sentimentos e virtudes sobre os quais Rorty insiste em construir suas narrativas de comportamento ético exemplar.

A virada pragmática de Illich consiste em propor que essas formas tradicionais ou reinventadas do cuidado de si, como liberdade civil assegurada por

58 Um exemplo simples mas convincente vem dos usos contemporâneos da Medicina Tradicional Chinesa: devido à epidemia da AIDS, sua técnica de acupuntura passou recentemente a ser realizada com agulhas descartáveis - uma adaptação modernizadora imposta pelas políticas sanitárias e facilmente aceita pelos seus praticantes e clientes.

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lei, deveriam passar novamente a ser a meta prioritária no campo da saúde. Nesta visão, o cuidado não é incorporado como um momento de consumo eventual, episódico e alheio, mas é percebido como parte integrante da afirmação dos fins que se almeja alcançar no modo de viver das pessoas, como parte de suas opções, que se conformam numa dada visão de mundo. Nesta perspectiva aberta por Illich, razão e tradição podem dar lugar a uma aliança esclarecida (no sentido de enlightened) ao lado da autonomia - não mais como a razão moderna obcecada com a auto-cerficação quanto ao verdadeiro, mas, como uma reflexividade pragmática, cônscia daquilo que lhe é melhor, quer dizer , mais útil, belo e agradável.

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O Autonomismo Pluralista da Sociedade Pós-Industrial

A história social desse amplíssimo objeto de estudo que é a autonomia atesta que recentemente ele emergiu das esferas privadas da ética e da estética para ser colocado como poderoso instrumento da gestão da economia e das políticas públicas. O contraste entre a sociedade industrial e a aquela em que vivemos hoje – que seguindo a Bell (1991) venho denominando de pós-industrial, pela hegemonia econômica alcançada pelos setores de serviços e de produção de conhecimentos - é bastante ilustrativa a esse respeito. A tese que quero defender a seguir é que autonomia passou a ser tão decisiva para o funcionamento da sociedade pós-industrial quanto o foi antes a norma racional, na forma estudada por Weber, para a sociedade industrial. Mas neste caso torna-se patente que essa palavra passou a ocultar inúmeras formas de conduta para as quais já não é possível formular qualquer definição unificadora, porque tornou-se próprio dessa sociedade uma tendência a multiplicar concepções e práticas, dando origem a um autonomismo pluralista.

Na sociedade industrial, existia uma espécie de universalidade uniformizante pelo que o papel formal de cada pessoas preponderava sobre seu desempenho. Isto se expressa, como observa Bell (1991), pela exigência compulsiva de especificar funções ou cargos nos organogramas das empresas. O que mais interessa é o papel exercido por cada um e não a pessoa mesma. Com um confortável distanciamento histórico, podemos ler essas palavras de Henry Ford:

Não é necessário que uma seção qualquer saiba o que se passa na outra. A quem está seriamente ocupado no seu trabalho não sobra tempo para cuidar do vizinho. É tarefa dos que dirigem a empresa zelar para que cada seção adapte o seu esforço à finalidade comum. E mais, ainda não é útil provocar reuniões que visem estabelecer relações cordiais entre as personalidades e os serviços, como não é necessário que os homens se amem uns aos outros para trabalharem em comum. O excesso de camaradagem pode até redundar em inconvenientes, qual o de levar um homem a encobrir a falta do outro. O que é mau para ambos (Ford, 1967, p. 72).

Essa preocupação com a sobriedade e a disciplina, que afastam do trabalho o gozo da vida e o prazer da convivência, é um forte reminescente do puritanismo que alimentou a arrancada do enriquecimento capitalista, em

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conformidade com a bem conhecida interpretação de Weber. O repúdio ao que podia ser nada mais do que um comprazer coletivo no idle talk e superfluities encontra-se bem explicitado nesse apelo à conduta ascética no ambiente da fábrica, em que a uniformidade da vida coincidia com a padronização capitalista (Weber,1981, p. 121)

A padronização do produto na sociedade industrial parece sempre requerer essa contrapartida que é a padronização e a impessoalidade de cada tipo de trabalho e do próprio trabalhador. Envolve uma drástica norma de divórcio entre saber e fazer, entre planejar e executar, na forma que Taylor sancionou para a organização de cada tarefa e que Ford copiou:

Quem dirige é o trabalho e não o homem. E o trabalho planeja-se na mesa de desenho, onde se subdividem as operações de modo que cada homem e cada máquina só realizem uma coisa (Ford, 1967, p. 264).

Para trabalhar bem no industrialismo fordista, é preciso estar na ignorância da tarefa do outro, mais precisamente, é preciso exercer sua função num automatismo que ignora a presença do outro, o outro como pessoa e colega. A coordenação da ação coletiva transforma-se num encargo da direção, que tem a seu dispor não só o conhecimento necessário para a realização de cada tarefa, mas a técnica de condução do organismo coletivo como o saber da burocracia. Essas duas formas tecnicizadas de saber expressam ambas uma ação voltada para fins que se sobrepõem, no ambiente de trabalho, e reduzem ao mínimo necessário a conversação voltada para o entendimento. Essa supremacia ou parasitismo da razão instrumental em relação às demais formas de manifestação da prática social e da cultura é parte de um processo mais amplo que Habermas (1990a) identifica, acompanhando a Weber, com a modernização, a racionalização e a secularização da sociedade como um todo.

A disseminação das forças heterônomas do industrialismo segue pari passu essa tecnicização das esferas de coordenação das ações e carrega consigo o sentido de um privilégio do saber de vários profissionais e especialistas. Assim é que da qualidade dos insumos na produção sabe o pesquisador no laboratório da fábrica; o que é melhor para o paciente só o médico pode dizer; como deve ser o ensino apenas diz o educador; e assim por diante.

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A padronização dos bens duráveis mantinha-se dentro uma orientação clara que era a de satisfazer necessidades também padronizadas, de tal modo que era garantido um baixo preço dos produtos pelos efeitos combinados da simplificação e da produção em massa:

Todo o meu esforço visa a simplificação, se ao povo falta tanta coisa, se até os produtos de primeira necessidade lhe vêm tão caros (sem falar de certa porção de conforto que deva caber a todos) é porque tudo o que fabricamos é muito mais complicado do que devera ser (Ford, 1967, p. 19).

É o distanciamento doutrinário entre o útil e o belo, entre o conveniente e o prazeiroso, que marcará muito dos bens e serviços produzidos em massa pelo industrialismo até aos anos 50. Pode-se afirmar com tranqüilidade que essa tendência à uniformidade do útil e à recusa ascética do belo e do agradável fez-se presente ainda com mais vigor e auto-consciência nas economias socialistas planejadas.

As décadas de 70-80 viram emergir uma outra racionalidade de produção, calcada na qualidade, sendo esta entendida como variedade e ajuste constante dos processos e dos produtos às demandas dos usuários. Nesta nova etapa, as pequenas e médias empresas teriam mais facilidade de sucesso por serem bastante flexíveis diante das mudanças requeridas pelos avanços tecnológicos e pelas pressões da concorrência em busca da diversificação e da reespecialização. O padrão de competição exige desde então que a produção e a estrutura de qualquer tipo de empresa mudem rapidamente para se adaptarem às exigências de certas vantagens comparativas emergentes e para ocuparem oportunamente os nichos do mercado. Para aumentar a velocidade em que os problemas e as soluções são gerados, para ser mais capaz de negociar internamente esses ajustes constantes, as grandes empresas são levadas a se dividirem em múltiplas subsidiárias dotadas de quase total autonomia administrativa. Não mais a maquinaria e as instalações em geral, mas o estoque dos conhecimentos e das habilidades necessárias a resolver problemas é o que constitui o verdadeiro cabedal das empresas nesse novo ambiente competitivo. As empresas organizadas em rede vêm a deslocar as empresas organizadas de forma piramidal, e o “alto valor”, que está associado ao uso e emprego criativo do conhecimento, ocupa o lugar do “grande volume” (Reich, 1992, p. 110)

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Emergem, assim, organizações que dependem cada vez mais dos conhecimentos e da capacidade criativa dos técnicos e dos trabalhadores em geral. Considerando que a gerência perdeu sua antiga arrogância burocrático-autoritária, o que os economistas da escola francesa da regulação e outros destacarão é a emergência de um modo de produção flexível: o trabalhador deve assumir tarefas mais polivalentes, com maior grau de liberdade para propor ajustes e mudanças, envolvendo maior participação na definição dos rumos da empresa, etc. Em lugar da especialização rigorosa e da monotonia das funções, recomenda-se agora a polivalência e a pluriespecialização. As palavras-chave importantes que aparecem são, entre outras: flexibilidade, inovação, criatividade, autonomia, auto-realização, grupo, cooperação, consenso, ecologia, reciclagem.

Ao contrário das celebrações do maquinismo, tão típicas da gerência do início deste século, o que se difunde hoje é uma preferência pelo soft: expectativas de comportamentos das pessoas no lugar de expectativas em relação a uma função maquinar. O destaque concedido às pessoas em vez dos sistemas, à personalização em vez da padronização, ao pluriforme em vez do monoforme, ao efêmero em vez do permanente, e assim por diante, são preferências que talvez se possam demonstrar existirem em toda parte como traços da nossa cultura contemporânea. A idéia do trabalho "pós-industrial" vem daí, porque se baseia no pressuposto de que a produção social depende crescentemente de um tipo de capacidade relacionada ao conhecimento e à criatividade espontânea, que nada mais tem a ver com a imagem tradicional do trabalho industrial e de seu operariado.

Alvin Toffler em 1970 antecipou em suas análises um número notável de traços conformadores da nova gerência, inclusive daquilo que veio a ser vulgarizado nos anos 90 sob o título de reengenharia. Menciono aqui nada mais que as mudanças na estrutura hierárquica das grandes empresas através daquilo que caracterizou como a revolução da "adocracia" (derivada da expressão latina ad hoc). O advento do novo estilo de gerência "adocrática" das empresas implicaria nas seguintes transformações: a) a estrutura interna das organizações (não só seus departamentos mas também as relações com antigas subsidiárias e outras recém adquiridas) tende a mudar constantemente e num ritmo muito mais rápido do que antes acontecia; as relações de mando tornam-se mais temporárias em suas várias configurações possíveis; b) os grupos de trabalho e as comitês de projetos constituídos "ad hoc" para resolver determinados problemas tornam-se cada vez mais numerosos, mas ao contrário das estruturas hierárquicas clássicas

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seu período de vida é mais ou menos curto e mantêm uma estrutura de poder "horizontal"; c) as empresas passam a privilegiar a comunicação de seus técnicos e gerentes "para os lados" (sideways), intensificando a troca de informações e as análises múltiplas do mesmo problema. Com a "adocracia", anuncia-se a centralidade de novos objetivos e valores situados em torno da necessidade permanente da mudança, em ritmo sempre cada vez mais acelerado e com exigência de eficácia imediata das novas tarefas propostas.

Deste modo, as hierarquias e burocracias que antes se fortaleciam através da sua sensação de "segurança" num horizonte de raras mudanças organizacionais, tendem a ser revertidas e sobrepassadas pela ação rápida e eficaz dos grupos-tarefas e da integração horizontal entre as funções de planejamento, operação, vendas, etc. Toffler faz notar que redesperta nessas "organizações transitórias" o velho espírito empreendedor do capitalista, marcado pela disposição em enfrentar as mudanças e seus riscos: são "almas aventureiras, sequientas de novidade", diz, citando Pareto.

Os economistas regulacionistas situam como epicentro das transformações capitalistas recentes o conjunto de normas jurídicas, técnicas e sociais que regulam o trabalho e a relação salarial. Nas novas estratégias das empresas e dos governos ganharia cada vez mais força um movimento de flexibilização do processo de trabalho e do salariado que estaria levando à instauração do "pós-fordismo". Não posso expor aqui todos os pressupostos teóricos dessa transição que tem de ser entendida, tanto na produção industrial como na política, por um esforço de "pensar ao revés", isto é, contrariando os princípios "fordistas" de padronização do produto, hierarquização dos processos, estabilidade e valorização do vínculo de salário, ênfase nas políticas de bem-estar, etc. Ser flexível significa articular adequadamente as partes para realizar um movimento reposicionador, de readaptação ao meio cambiante, de rápida decisão na iminência de riscos físicos e econômicos, ou, pelo contrário, a capacidade de buscar ativamente os riscos em meio à incerteza da criação de novos produtos e a instauração de novos negócios. Isto envolve alguns princípios da produção fabril, como é o caso da “autonomatização” nas fábricas japonesas estudadas por Coriat (1992, p. 40): é a autonomia do operário para fazer parar toda a linha de produção se por acaso verificar que houve alguma anomalia ou um acidente. 59

59 O enfoque regulacionista tem um lado fortemente pragmático, mas corre sempre o risco de ser legitimador das tendências dominantes do “regime de acumulação” em estudo. Por entusiasmo excessivo com as novidades do mundo industrial ou com a flexibilização e a autonomização do trabalhador, que parecem até

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Um aspecto de interesse particular para este estudo é os das relações com os consumidores. De certo modo, o papel do consumidor, mesmo numa sociedade pós-industrial, continua a ter muito pouco dos atributos de autonomia – no sentido illichiano do fazer por si – que se disseminam nas esferas da produção. A despeito de toda a insistência, na “satisfação do cliente”, a gerência pós-industrial continua a ver o cliente como um receptor passivo; admitidas suas preferências cambiantes e mais ou menos “ocultas”, a gerência pressupõe, na verdade, uma dupla condição de inatividade do cliente: que ele depende, no atendimento de suas necessidades, do provedor de bens e serviços; e que “não inventa nada”, como afirma um dos criadores da gestão da qualidade, Deming (1993, p. 7). A qualidade dos bens e serviços é tratada como um problema de encontrar uma correspondência entre um objeto no mundo e um conceito contido no sujeito da experiência, que é o cliente. Há, assim, uma espécie de kantismo ingênuo, que se encontra nos autores da nova gerência. Muitos deles concebem a satisfação do cliente numa versão de correspondência entre expectativa e experiência empírica, da mesma maneira que para Kant (1980b), o bem tem a ver com o deleite que resulta de um conformação entre um conceito normativo do sujeito e um objeto da experiência no mundo.60 Deste modo, afirma o japonês Kaoru Ishikawa que as preferências e exigências do consumidor constituem “as verdadeiras características” da qualidade; e, portanto, os produtos têm de ser desenhados e manufaturados com essas características em mente e só em função delas se definem as demais características dos produtos (Ishikawa, 1993, p. 47). Esse kantismo ingênuo ignora tudo o que Freud ensinou à modernidade sobre o inconsciente e o desejo, a saber:

- que muito freqüentemente o eu não tem a autoconsciência do desejo, não é capaz de transformá-lo numa “expectativa”; portanto, que os semi-eus que habitam o inconsciente podem desejar coisas contraditórias entre si e até opostas à “expectativa” do eu;

“emancipatórias” em relação ao que fazia o fordismo, a capacidade de juízo político e ético pode ser posta de lado. O economista belga Marques-Pereira (1995) pôs em relevo essa questão de “valores” ao falar da diferença entre "boas" e "más" regulações. O enfoque regulacionista pode ajudar a conferir os meios políticos que permitam uma "boa" regulação por parte do poder público; por exemplo, diante da necessidade de sanar ou "compensar" os problemas do emprego e do bem-estar social internos criados pelo novo regime flexível. Seria preciso erguer as bases de uma avaliação a partir da junção da política com a economia, deixando de crer que a ordem econômica sempre dá origem a condições e limitações determinantes do curso da história e que, portanto, são incontornáveis. 60 Como se sabe, o esforço de Kant na Crítica do Juízo dirige-se a caracterizar diferentemente cada uma das formas de satisfação que se distribuem entre as esferas separadas da ética (o bom), da estética (o belo) e do consumo (o agradável).

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- que os desejos, na forma básica e inconsciente das pulsões, são dinâmicos, desviam-se, transmutam-se e recriam ou redescrevem constantemente os objetos em que se realizam prazerosamente, sem a necessidade de qualquer correspondência pré-definida entre um dado objeto e um dado móvel do desejo;

- que a satisfação que se associa à reflexividade pragmática é algo que resulta daquilo que o consumidor pode “criar” por sua conta e risco em adição ao que já encontra pronto.

Há de se reconhecer que a chamada “satisfação do cliente” é movida por forças tão complexas e sub-reptícias que nenhum estudo racionalista pode ser capaz de indicar-lhe corretamente um caminho de ação metódica. O raciocínio kantiano sobre o bem e o raciocínio gerencial sobre as expectativas dos clientes funcionam numa lógica determinista da correspondência ou harmonia pré-definidas entre conceito e objetos do mundo. Mas a satisfação no consumo de serviços de saúde e numa ação de cuidado autônomo pode ser tão incerta e arriscada quanto outras situações de vida. Outra maneira de dizer isso é afirmar, à maneira de Rorty, que a satisfação depende de como retecemos nossos desejos, novos e antigos, com nossas crenças, novas e antigas; mas que essa operação de retecedura, que por si desperta satisfação, está influenciada por coisas que não controlamos: o inconsciente, as modas, a cultura, a moral da época, etc. E que as chances de uma efetiva satisfação aumentam quando uma margem ampla de contribuição pessoal e de responsabilidade é requerida do cliente.

Algumas correntes da gerência pós-industrial continuam, tal como o fordismo, a ter uma dificuldade em conceber a satisfação do cliente a não ser pela dependência heterônoma, mas com uma diferença que marca seu ímpeto de inovação constante na procura de sobre-lucros: a ampla liberdade de escolha. O cliente é tido como um ente autônomo, quase nada por sua capacidade de inventar e muito porque lhe é facultado escolher, entre uma variedade infinda de produtos e de suas variações, aquilo que “mais lhe satisfaz”. É a partir desta inserção numa liberdade de escolha condicionada pela heteronomia e pelo consumismo do efêmero e da moda, que se estabelecem os “estilos de vida”, que serão tomados doravante como uma referência de vida correta, sem a qual nada pode ser feito em prol da promoção da saúde dos indivíduos. Mas a liberdade dos estilo de vida “saudáveis” é a mesma que se tem diante dos produtos num

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supermercado: há muito entre o que escolher, de tal forma que o gosto do cliente seja atendido, mas qualquer escolha conduzirá a algo já previsível.

***

A ligação entre desenvolvimento econômico-social e autonomia, na forma em que identifiquei anteriormente com base em Dewey, conduz-me a pleitear a hipótese de que existe na sociedade pós-industrial uma situação de auto-consciência e instrumentalização social e econômica da autonomia através de uma infinitude de formas que dão origem a um autonomismo pluralista. Não se trata mais de projetos individualistas - filosóficos, éticos e artísticos - situados em forma isolada e auto-suficiente nas “altas esferas” da produção imaterial, como era característico da modernidade, mas de formas de ação social incorporadas ao funcionamento da nova sociedade no seu todo e integradas entre si. Em termos mais específicos: formas variadas de autonomia são colocadas como instrumentos indispensáveis para que o homem econômico continue produzindo e consumindo – para que continue a ser um bom trabalhador e um bom cliente. As autonomias pluralizadas são tomadas autoreflexivamente e incorporadas aos mesmos domínios de racionalidade que foram estudados por Weber - direito, administração e processo de trabalho.

Interpreto que esse autonomismo pluralista ainda obedece a uma maior ou menor ênfase num dos três tipos ideais herdados do Iluminismo: pensar por si, fazer por si e fazer-se a si. Contudo, essas autonomias não se encontram mais apartadas pela lógica particularista de cada esfera - ética, estética, produção material e ciência - e, portanto, através de critérios que ponham em oposição coisas tais como o belo e o útil, o bem e o prazer, o conhecimento e a opinião. O novo homem econômico é um homem autônomo por excelência, ou, pelo menos, assim nos é apresentado pelos apologistas do neocapitalismo. Não desejo, de todos os modos, passar por alguém que revela uma grande novidade ao enfocar a emergência desse novo homem econômico. Tal personagem, que se notabiliza por juntar alguns excepcionais atributos - sensibilidade emocional e racionalidade na execução de suas tarefas, criatividade de analisador de símbolo e responsabilidade diante dos riscos ambientais, respeito pela vontade de seus clientes e alta capacidade de resolver problemas técnicos - é alguém que, super-estimado em seus dotes intelectuais e morais, está dando origem a uma boa parte dos bestsellers que se encontram em qualquer livraria. Muitas vezes a imaginação

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criadora usada para descrevê-lo é tão vasta que seus autores fazem jus a algum lugar honroso nos concursos de literatura de ficção.

Por tudo isso, talvez fosse dispensável invocar aqui os testemunhos discursivos sobre o novo homem econômico e suas autonomias plurais. Faço-o, no entanto, tão só com o propósito de criar uma referência contextual mais clara para os capítulos seguintes, que tratam dos desdobramentos dessas autonomias em temas mais pertinentes à saúde. Os matizes de linguagem e a retórica são, neste caso, elementos indispensáveis à análise e tenho, por este motivo, que usar recortes de textos mais ou menos extensos.

Começo pelo testemunho dos organismo internacionais, através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD. Em 1990, o PNUD produziu seu primeiro relatório acerca da situação mundial do Desenvolvimento Humano, que se constitui num conceito inovado de desenvolvimento que dá ênfase às oportunidades de realização das aspirações de cada ser humano pelo prolongamento da expectativa de vida, aumento da escolaridade e da renda familiar. Naturalmente, o contraste principal que projeta este novo conceito é com a modernização de Weber e o desenvolvimentismo cepalino dos anos 50 e 60, centrados ambos nas racionalidades econômicas e administrativas (ou de capacidade de planejamento). Para introduzir o conceito, o relatório recorre a uma premissa similar à do mercantilismo do século XVIII: a riqueza das nações está em sua gente. Mas, complementa: “o objetivo básico do desenvolvimento é criar um ambiente para que os seres humanos desfrutem de uma vida prolongada, saudável e criativa”. Aqui aparece um atributo que o mercantilismo jamais poderia haver escolhido - gente criativa -, porque mais lhe importaria simplesmente que toda essa gente trabalhasse e produzisse riquezas para exportação. Gente criativa precisa, naturalmente, de autonomia e, para apoiar sua proposição, o relatório utiliza nada mais nada menos que a autoridade moral de Aristóteles e Kant:

Esta forma de enfocar o desenvolvimento humano não é nova. A idéia de que o os benefícios sociais devem julgar-se segundo a medida em que promovem o bem-estar humano remonta a Aristóteles. Este filósofo também advertiu que as sociedades não deviam julgar-se simplesmente por padrões tais como renda e riqueza, que não se buscam por si mesmos, mas que se desejam para alcançar outros objetivos. “Evidentemente a riqueza não é o bem que estamos buscando já que somente é útil para outros propósitos e por outros motivos”. (...) O ser humano como fim real de todas as atividades foi um tema recorrente nos escritos da

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maioria dos primeiros filósofos. Emmanuel Kant observou: “Assim é que, em cada caso, atue de modo que trateis a humanidade, já seja em vossa pessoa ou de outra, como um fim adicional, nunca como um meio unicamente (PNUD, 1990, pp. 31-32).

O homem tem um telos para além da economia e tem de ser tomado como um fim em si mesmo; nessa declaração dos direitos do homem para além da beneficência, naturalismo aristotélico e ética kantiana juntam-se. Os economistas do PNUD provavelmente leram Polanyi e poderiam tê-lo citado igualmente; mas para destacar o aspecto humanista dessa nova abordagem do desenvolvimento já basta a rememoração da eudaimonia e do princípio de autonomia moral de Kant.

O segundo testemunho vem de Francis Fukuyama, um autor que tem sido alvo de grande polêmica pelo uso que faz da filosofia e da sociologia em proveito de suas idéias identificadas com o que seus críticos chamam de neoliberalismo. Anteriormente (Fukuyama, 1992), ganhara nome e muitas críticas demolidoras por ter posto Hegel a serviço de sua visão de que a sociedade americana e o modelo de sociedade liberal que se difundiu após a queda do comunismo representam a culminância da história da humanidade - tese que faria Dewey roborizar-se. Recentemente, dedicou-se a recuperar o Weber dos estudos sobre o espírito do capitalismo, para argumentar a favor de uma ética da confiança, que considera indispensável para fazer frutificar a criatividade humana (entenda-se, do homem econômico reencarnado):

Se as instituições da democracia e do capitalismo querem operar eficientemente, têm que coexistir com certos hábitos culturais pré-modernos que assegurem seu funcionamento adequado. Lei, contrato e racionalidade econômica fornecem uma base necessária mas não suficiente tanto para a estabilidade e quanto para a prosperidade das sociedades pós-industriais; elas precisam da mesma maneira receber o fermento da reciprocidade, da obrigação moral, dever para com a comunidade e confiança, que são fundados no hábito e não em cálculo racional (Fukuyama, 1996, p. 11).

Fukuyama crê no surgimento de um capital social que tem por referência a sociabilidade espontânea da sociedade civil e que facilmente leva à formação de grupos e de associações de livre cooperação, com base numa relação de confiança e solidariedade entre seus membros. Esta relação espontânea entre os cidadãos é fortemente ameaçada pelas políticas intervencionistas do Estado. O que se pode aprender de novo com essa lição sobre a importância dos valores

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tradicionais, da solidariedade e da ética da confiança? Do volumoso livro de Fukuyama aprende-se alguma coisa nada surpreendente; é que o capitalismo continua a fazer business as usual, mas agora de uma forma que custa menos, pois pode lança mão... da ética:

O capital social tem grandes conseqüências para a natureza da economia industrial que uma sociedade for capaz de criar. Se as pessoas que tiverem de trabalhar juntas numa empresa confiarem umas nas outras, porque estão todas operando de acordo com um conjunto de normas éticas, fazer negócio custa menos (Fukuyama, 1996, p. 27).

A Fukuyama podem ser atribuídos todos os defeitos do mundo, menos o de não ser explícito no que diz e não declarar suas convicções ideológicas. O que quero sublinhar é que esse eminente intelectual orgânico afirma exatamente o contrário do que diz o relatório do PNUD: nas sociedades pós-industriais, o homem não é fim nenhum...Mas talvez seja melhor saltar essa cena de negócios explícitos , em que a ética aparece como ator coadjuvante, e passar para autores menos polêmicos, mas que também tratam das questões da gerência das empresas contemporâneas.

Há uma infinidade de correntes, teorias, paradigmas e quejandos que poderiam ser citados aqui. Limitar-me-ei a tratar de duas formas de conduta autonômica por parte dos trabalhadores, que são altamente estimadas na lógica de operação das novas empresas da economia pós-industrial, duas formas estritamente associadas entre si: responsabilidade e “empowerment”. Veja-se, por exemplo, o que diz o conceituado Peter Druck a respeito de responsabilidade:

A empresa-baseada-no-conhecimento requer, portanto, que todos tomem responsabilidade pelos objetivos da organização, por sua contribuição e também por seu comportamento. (..) Requer, em outras palavras, que todos seus membros ajam como responsáveis tomadores de decisão. Todos os membros têm que se ver a si como “executivos” (Drucker, 1993, p. 108).

Drucker não poupa tinta para descrever a autonomia do funcionário de tais empresas, que por certo se sente meio embaraçado quando se vê de repente promovido ao patamar de liberdade dos executivos, isto é, igualado a seus chefes. Num livro publicado pela Academia Mundial Negócios (Ray & Rinzler, 1993, p. 140), de que fazem parte executivos “progressistas” e “alternativos”, esse tipo de expectativa ilimitada na responsabilização é corrigida pela noção de um meio-

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termo. Pode-se ler o seguinte sobre a relação equilibrada que deve existir entre “empowerment”, como autonomia das pessoas, e os controles internos numa dada organização:

Toda organização tem estruturas que demandam um controle organizativo estrito e limitação, por um lado, e outras que se fundam nas premissas de uma liberdade e autonomia para tomada de decisão e para fazer as coisas. O “empowerment” é freqüentemente considerado de forma errônea como um ambiente onde somente a liberdade pessoal é maximizada. Vejo de forma diferente. Não é uma questão dicotômica do tipo uma/outra. O ambiente de trabalho de “empowerment” é aquele onde todo mundo é levado a um compromisso com a “visão” da organização e aceita o compromisso da necessidade de controle de recursos e troca de informação. Por outras palavras, permite a cada trabalhador, e não somente os do topo, experimentar a liberdade e autonomia de crescer e fazer melhor o trabalho.

Nessa percepção, o jogo entre autonomia e heteronomia é introjetado para dentro da organização e preconiza-se um equilíbrio entre as duas forças. O resultado é que cada trabalhador, por essa combinação, pode desenvolver-se em suas habilidades e, ao mesmo tempo, pode “fazer melhor o trabalho”. O autor poderia ter dito, se houvesse lido Illich, que crescem a efetividade das ações e a auto-gratificação no trabalho.

Quero aportar agora para esta discussão alguns testemunhos provenientes do campo da saúde, começando pela bioética. O que marca o interesse recente pela bioética por parte dos que trabalham com saúde é a consideração do chamado princípio da autonomia, como condição de decisão e consentimento livres do paciente diante dos riscos ponderados da aplicação de meios diagnóstico e do tratamento. Observa Hans-Martin Saas (in OPS, 1990, p. 23) que esse entendimento de autonomia é, contudo, ainda muito limitado, porque é pressuposto de uma forma unilateral, enquanto um mero “consentimento ou decisão informada” do paciente, ou seja, abrange apenas o aspecto de co-decisão com base no que informa o médico, sem jamais estender-se ao ponto de constituir uma atitude permanente ou um hábito de promoção da saúde e prevenção de riscos:

Em nossos dias há cada há cada vez mais enfermidades e riscos para a saúde que se relacionam com o estilo de vida; abandonou-se a sabedoria dietética. Não obstante, desde o ponto de vista moral há que considerar o direito de cada cidadão à saúde tanto

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quanto seu dever e responsabilidade de zelar por ela. Sobretudo isto significa a obrigação ou dever de proteger sua própria saúde por meio da nutrição, o exercício e a moderação, e evitar riscos ocupacionais que o possam prejudicar. Em sentido moral, é difícil aceitar que os frutos que produzem os estilos de vida são para o consumo individual, enquanto os custos com a saúde tenham que ser compartilhados com a sociedade.

A associação entre as idéias de risco e estilo de vida não é nova, mas em muito ajudaram a consagrá-la a epidemia da AIDS e a crescente importância das doenças cardiovasculares e dos acidentes no perfil de mortalidade geral. Pelo lado das novas políticas públicas, essa situação tem sido enfrentada mediante ações que se vinculam a um campo relativamente novo pelo nome, mas antiquíssimo por sua prática: a promoção da saúde, que não é nada mais que o retorno ao que se chamava, na Grécia, de Dietética e, na Idade Média, de Regime do Corpo. Uma revista americana, especializada em promoção da saúde (American Journal of Health Promotion), define o termo como sendo “a ciência e a arte de ajudar as pessoas a mudar seu estilo de vida para moverem-se em direção a um estado de saúde ótimo”.

As próprias definições oficiais do que seja saúde (em reação ao grande grau de generalidade daquela que foi consagrada pela Organização Mundial de Saúde) conforma-se ao espírito autonômico que domina hoje as questões sociais e econômicas. Menciono aqui uma definição particularmente inovativa, produzida pelo departamento de saúde da província de Vancouver no Canadá em 1996:

Saúde é a extensão em que cada indivíduo ou grupo é capaz de realizar suas aspirações, satisfazer necessidades e mudar ou lidar (“cope”) com seu ambiente. A saúde é vista como um recurso para a vida quotidiana e não como o objetivo do viver: é um conceito positivo enfatizando recursos sociais e pessoais tanto quanto capacidades físicas.61

Uma das novidades dessa bela definição é claramente deslocar a saúde da condição de bem supremo – “ não é o objetivo do viver”. Note-se que há diversos pontos de semelhança com a concepção de Illich do “poder autônomo de lidar”, inclusive a idéia dos “ recursos pessoais” que Illich usa na qualidade de um sinônimo para virtudes. É bem possível que tais semelhanças não sejam meramente casuais.

61 Documento da Internet.

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Com respeito a esse conjunto de citações, quero apenas sublinhar a presença de algumas importantes palavras-chave que reaparecerão nos capítulos seguintes de um modo teoricamente articulado: autonomia, estilos de vida, riscos, custos com a saúde, tomada de decisão, confiança, responsabilidade.

Não quero aqui adiantar uma interpretação mais cabal desse conjunto de excertos que pretendo comporem uma breve panorâmica de como a autonomia multiplicou-se em tantas coisas diferentes em nossa sociedade de risco, para utilizar a expressão cunhada por Beck (1992) . De certo modo, já foram preliminarmente comentados pelo que eu disse antes acerca da instrumentalização e pluralização da autonomia pós-iluminista; mas deixam mais claro o que quis dizer quando mencionei a simultaneidade da vitória e da derrota de Illich no contexto social contemporâneo, embora o próprio Illich possa retrucar que “minha idéia de autonomia é outra”.

Esses textos, tomados em sua superfície, alimentam a interpretação de que existe mais um acontecimento globalizado que é o “retorno da ética” no mundo contemporâneo. A interpretação illichiana que sigo aqui é que a autonomia, numa compreensão ética, e a ética, numa interpretação autonomista, tornaram-se pilares fundamentais do funcionamento do capitalismo pós-industrial. Marx, que dizia que tudo tende a se transformar em mercadoria sob o capitalismo, inclusive a própria “consciência” de cada um, certamente não estaria surpreso em ver que a autonomização na sociedade pós-industrial seguiu esse curso. Como diz acidamente Badiou (1995, p. 17), o que há hoje em dia é uma “inflação socializada da referência à ética” que corresponde mais que nada a uma redução da ética à autonomia. A preocupação com a ética mudou de objeto e de consciência - antes chamava-se justiça social, igualdade, emancipação, e estava presente em muito do que faziam os marxistas e os social-democratas que criaram as experiências socialistas e o Estado de Bem-Estar. Hoje, a ética assume os variados nomes das variadas autonomias, e está funcionalmente integrada ao mundo da produção e das profissões. Converte-se, no formato da bioética, numa profissão nova, com seu próprio esoterismo, e que é muito requisitada nos hospitais, nos centros de pesquisa, etc. A bioética tornou-se um modo de vida para “clérigos desocupados”, segundo diz Illich, de maneira não menos ácida do que Badiou. Mas igualmente serve a bioética aos propósitos de uma corrente de esquerda que dela tira partido para novamente propagar a eqüidade social, transformada num princípio menos qualificado sob a sombra que é projetada pela questão da autonomia. Enfim, os clérigos, os economistas, os médicos, os cientistas, os militantes de esquerda –

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todos que um dia foram ardentes defensores do progresso técnico pela via da heteronomia – perfilam-se hoje ao lado da autonomia como uma questão ética.

Foi, de certo modo, essa instrumentalização da autonomia na sociedade pós-industrial que tanto desagradou a Illich, fazendo com que ele lhe virasse às costas e decidisse remexer nos arquivos da história em busca de testemunhos de uma prática da autonomia “autêntica”, aquela que se liga aos valores vernaculares. Que fazer diante da opção adotada por Illich? Creio que os que assimilaram bem suas lições morais, mas não estão muito satisfeitos com o feitio desse novo homem econômico e com seu cenário social, têm duas opções: a) podem ir para trás no tempo em busca de um modelo que corresponda ao avesso do avesso, como fez o próprio Illich; ou b) podem - e eu me incluo entre estes - fincar os pés na cultura pluralista e de tolerância que é própria deste final de século, e lançar mão das armas com as quais fomos municiados pelo conjunto da obra de Illich, a fim de poder dar continuidade a uma crítica pelo lado avesso, criticando os excessos e fantasias que marcam o autonomismo pluralista de nossos tempos.

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A Responsabilidade pelos Riscos

O Illich da Nêmesis poderia hoje ser lido como alguém que diz que a medicina enfrenta continuamente a cura como processo de combinar oportunidades e riscos; alguém que, ao mesmo tempo, defende a responsabilidade pela saúde enquanto uma responsabilidade pelos seus riscos. A idéia de iatrogênese clínica seria assim correlacionada com o conceito contemporâneo de risco tecnológico, enquanto a iatrogênese cultural significaria a perda da capacidade de ser pessoalmente responsável pelos riscos que cercam a saúde de cada um. O conteúdo propositivo da Nêmesis poderia, segundo essa linha de leitura, ser resumido no seguinte dístico:

A recuperação das ações autônomas em saúde criará um equilíbrio sinérgico com as ações heterônomas, o que diminuirá os riscos à saúde e aumentará a autoconfiança e a satisfação das pessoas.

Equilíbrio (balance) é um termo metafórico que o próprio Illich empregou, na medida em que, a seus olhos, um dos braços desse balança estava pendendo excessiva e indevidamente para o lado das ações realizadas pela medicina institucionalizada. Illich também se refere à necessidade de estabelecer uma sinergia entre essas duas formas de ação, considerando que uma aumenta o alcance e melhora os resultados da outra, dando lugar a uma maior confiança em si mesmo e uma maior satisfação. Esse equilíbrio Illich entendia ser resultado de uma recuperação da “responsabilidade pessoal pela saúde” (NM, p. 272), o que pode fazer julgar que responsabilidade perante os riscos que cercam a saúde é algo que bem poderia traduzir, nos termos da linguagem atual, sua preocupação quanto a esse equilíbrio.

Duas objeções importantes podem, não obstante, ser argüidas contra essa leitura “atualizaste” da Nêmesis. Primeiramente, deve ser observado que Illich jamais fez uso explícito do conceito de risco. As três formas de iatrogênese são apresentadas por ele na qualidade de um dano, um prejuízo ou uma destruição; portanto, aparecem subordinadas a um processo de causação e não propriamente como risco, que tem sempre algo a ver com as incertezas do futuro.62 Illich vinha, 62 Não quero dar a entender aqui que Illich não utiliza o conceito de risco; ele o faz, mas de maneira que não desperta um aprofundamento teórico. Aparece, por exemplo, quando diz que “que mesmo os exames simples e de outra forma benignos tornam-se riscos quando multiplicados” (NM, p. 95). As incertezas do processo de cura são por ele relembradas quando menciona a pertinente ambigüidade da palavra phármakon, que “não distingue o poder de cura do poder de matar” (NM, p. 45).

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em sua análise da iatrogênese, de uma concepção nitidamente determinista da contraprodutividade específica, em que o limiar para a eclosão dos resultados paradoxais era tido como definido por condições de tipo físico-social, por um conjunto de variáveis interatuantes tais como as energias, os fluxos, as resistências, etc.

Em segundo lugar, Illich jamais aprovaria o discurso dos riscos em saúde tal como se difundiu nas décadas de 80 e 90. Risco é uma categoria emanada dos sistemas de peritos e conserva na sua origem e difusão a mesma forte conotação heteronômica que ele identificara no conceito de necessidade. É crível que Illich tratasse criticamente de uma sociogênese dos riscos, assim como tratou de uma sociogênese das necessidades, mas apenas para mostrar como agora os peritos “criam” os riscos assim como antes “criavam” as necessidades; na sociogênese das necessidades, o Estado de Bem-Estar sancionava as necessidades básicas a serem atendidas pelo seu aparato, enquanto hoje cabe em grande parte a cada indivíduo responder por seus próprios riscos (uma interpretação com esse cunho pretendo apresentar mais adiante).

Por tudo isso, relendo hoje a Nêmesis, mas tomando em conta a segunda crítica social da saúde, é melhor deduzir que Illich estaria na contramão da corrente de responsabilização pessoal pelos riscos em saúde. É que por essa crítica ele passou a considerar que as políticas públicas de potencialização da ação autônoma pelas vias da auto-ajuda e da ajuda mútua, em obediência a diretrizes das agências internacionais, constituem-se numa colonização do setor informal da economia e num aproveitamento oportunista do trabalho sombra dos pobres. Sobre o conceito de auto-ajuda, nota Illich (1982, p. 54) que

Este termo tornou-se corrente no desenvolvimento internacional pelo amplo uso feito pelas agências americanas para assistência internacional. Através deste termo, a tradicional distinção feita pelos economistas entre atividades de produção e consumo, relações seja de produção seja de reprodução, é projetada diretamente no consumidor: com a sua mão direita ele é ensinado a produzir o que sua mão esquerda supostamente necessita.

Illich talvez não pudesse negar que certas diretivas da Nêmesis, que apontam no sentido de promover uma equilibração entre os modos de produção autônomo e heterônomo, junto com uma ênfase na responsabilização do indivíduo pela saúde e por seus riscos, foram incorporadas ao cerne mesmo das políticas oficiais de saúde. E isto está ocorreu de uma forma que acompanha uma

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tendência geral de desinstitucionalização e desmedicalização das ações de saúde, com uma justificativa explícita de que o aumento dessa dimensão do cuidado autônomo traz mais efetividade às ações de saúde e diminui seus custos.

A dificuldade de reler hoje a Nêmesis está em que essa obra parece muitas vezes ser uma mera antecipação histórica dessas políticas sociais, as quais o próprio Illich veio a combater na sua segunda crítica. Contudo, se não pretendemos seguir Illich na adoção do modo de vida das comunidades vernaculares como corolário de sua segunda crítica, temos que ainda manter alguma proposta para essa ação autônoma, por mais que ela possa ser “colonizada” e “manipulada” pelas novas políticas liberalizantes. Portanto, a dificuldade está em não descartarmos a idéia da efetividade da ação autônoma em saúde, que aprendemos a valorizar com aquela obra, ao mesmo tempo em que realizamos uma crítica das versões atuais da autonomia, mas que não termine num apelo a favor do retorno ao assistencialismo utilitarista que Illich via estar encarnada nos aparatos do Estado de Bem-Estar. Para muitos autores, essa crítica tem que conduzir nos dias atuais a algum tipo de equilíbrio das políticas públicas que tem sido expresso pela associação entre idéias tais como responsabilidade e direitos, “empowerment” e cidadania, auto-ajuda e assistência, solidariedade e eqüidade. Como veremos a seguir, essas teses acabam por conduzir a uma proposta de superação de posições ideológicas entre direita e esquerda na implementação das novas políticas públicas.

As objeções repetidas ao formato paternalista ou assistencialista das políticas de bem-estar do Estado em todo o mundo ocidental tornaram-se um lugar-comum, principalmente entre os economistas, qualquer que seja seu matiz ideológico. É mais raro, no entanto, ouvi-las de vozes intelectualmente muito respeitadas e que não têm quaisquer compromissos com o neoliberalismo, como é o caso de Giddens e Berlinguer, a quem prefiro citar, em vez dos economistas, para caracterizar essa posição.

Em obra que se intitula significativamente Além da Esquerda e da Direita, Giddens (1994, pp. 134-197) observa que, devido a tais políticas, instituiu-se um mecanismo de dependência pessoal nos pobres e nos trabalhadores perante os mecanismos assistenciais do Estado de Bem-Estar e de sua lógica burocratizante. Para comentar essa situação, Giddens lança mão das duas palavras-chave que sempre apareceram na crítica illichiana - autonomia e responsabilidade:

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A “crítica burocrática” do estado de bem-estar social não está limitada aos intelectuais neoliberais; em circunstâncias em que, em numerosos aspectos da vida, não pode deixar de escolher o escolher, sistemas de provisão centralmente organizados podem vir a ser vistos como uma afronta à autonomia mesmo quando conferem benefícios materiais. Inversamente, aqueles que simplesmente aceitam que terão que viver desses sistemas, que continuam apegados às velhas formas de viver, parecem recusar as responsabilidades que outros têm de carregar em seus ombros (Giddens, 1994, p. 142).

Referindo-se a Hans Jonas, um teórico da ética da responsabilidade, Berlinguer diz que os sistemas de welfare viveram uma profunda crise política na medida em que os cidadãos, ao serem transformados em súditos de um império do bem-estar, passaram a agir na base da esperteza e da postulação irresponsável de benefícios. Também sofreu com isso sua funcionalidade devido à perda da eficácia e da qualidade dos serviços prestados aos beneficiados. Berlinguer conclui, analisando especialmente desde a perspectiva italiana, mas que pode ser generalizada, que “a idéia dos direitos raramente foi associada à idéia e à prática dos deveres”. Diante do gigantismo burocrático dos aparatos de Bem-Estar, os cidadãos “perderam ou delegaram sua autonomia moral e prática” (Berlinguer, 1996, p. 41).

É nesse contexto de discussão ético-política, que têm sido invocadas duas vias privilegiadas da autonomização em saúde que, de algum modo coincidem, com as tendências do autonomismo pluralista que prevalecem para a economia pós-industrial como um todo: a) a responsabilização diante dos riscos em saúde e dos custos sociais em que incorrem, sob o signo da prudência, da ética e da regulamentação legal; b) o “empowerment” das pessoas e das comunidades, como encorajamento para enfrentar e dar conta dos seus problemas de saúde, o que abrange simultaneamente a auto-ajuda e a ajuda mútua, sob o signo da solidariedade.

Importantes movimentos sociais – como o ecológico e o feminista – comprometeram-se com idéias que obedecem a esse formato autonomista: é o caso dos conceitos de “ação local” e “empowerment” das mulheres. O “empowerment” das mulheres no enfrentamento dos problemas de gênero e na defesa de seus direitos de saúde, veio a ser um dos marcos teóricos inovadores da conferência internacional sobre população e desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994. Neste caso, foram lideranças intelectuais feministas que,

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abrançando as bandeiras opostas da autonomia (para fazer valer as escolhas reprodutivas e de eqüidade de gênero) e do direito (para acesso a serviços de saúde reprodutiva) produziram sua versão própria de um “equilíbrio sinérgico”.63 O alcance desse equilíbrio ideal é explicitado através de algumas pertinentes perguntas formuladas por Gita Sen et al. (1994, p. 6):

Quais são os direitos e responsabilidades individuais vis-à-vis seu parceiro sexual e a sociedade? O que é decidir “de forma livre e responsável”? Deveria a posição social e biológica da mulher na reprodução dar primazia a suas escolhas e também a suas vozes na definição dos direitos e responsabilidades? Quais sãos as responsabilidades dos homens em relação à reprodução, transmissão da doença e bem-estar de seus filhos? Como podem os homens serem encorajados a assumir maior responsabilidade pelo seu comportamento sem comprometer a autonomia das mulheres?

É evidente que esse conjunto de perguntas atinentes à nova área da “saúde reprodutiva” é colocado num contexto sanitário e social muito específico dos anos 90: um momento em que o planejamento familiar já está amplamente legitimado e difundido e seu uso é tido como uma questão de escolha livre e responsável pelos casais; mas um momento em que a ameaça da AIDS (e de outras doenças sexualmente transmissíveis) traz implicações surpreendentes para a reivindicação feminista da década anterior de que deveriam os casais desfrutar plenamente da sua vida sexual sem preocupação com as contingências da reprodução (o que seria facilitado pelo acesso a meios de controle individual da fecundidade). Na verdade, agora a saúde reprodutiva está definitivamente marcada pela noção de que a sexualidade envolve um risco ainda mais temido do que o de uma gravidez indesejada – a AIDS.64

Por parte das novas políticas sociais, a tendência de reforço à ação autônoma, como compensadora da heteronomia, não pode ser desvinculada da preocupação com os custos globais do cuidado, sobretudo o cuidado hospitalar, cada vez mais tecnificado. O controle dos riscos passa a ser sinônimo de controle 63 Uma apreciação crítica dos resultados alcançados pela associação de interesses entre ONGs e o movimento feminista na Conferência do Cairo e que se dão em torno do conceito de “empowerment”, encontra-se em Lassonde (1997, pp. 37-105). 64 “Empowerment” das mulheres para exercer o controle reprodutivo quer significar muitas outras coisas, mas uma delas é de que a mulher deve desenvolver a capacidade de argumentar e fazer valer sua vontade contra a vontade do parceiro, para proteger-se convenientemente na ocasião do sexo, tendo em vista os riscos de transmissão sexual da AIDS e outras doenças: “Exercer o controle reprodutivo significa realizar decisões não só sobre reprodução mas também sobre outras necessidades reprodutivas e sexuais, e sobre a sexualidade em si mesma” (Sen et al., 1994, p. 9).

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de custos e exige esforços variados para transformar cada cliente e cada família num co-responsável pela saúde. Muitos desses esforços estão dirigidos a se contrapor aos efeitos previstos pela teoria do moral hazard65 (ou seja, do risco moral) que consiste no seguinte: os benefícios de welfare tendem a gerar na população atendida um comportamento conformista ou abusivo que atua em sentido contrário ao do objetivo proposto pela política pública em questão – e.g. o auxílio-desemprego estimula as pessoas a não procurarem trabalho, os serviços de saúde universais e gratuitos provocam sua sobreutilização, o que dificulta concentrar os recursos para os que mais têm necessidade, etc. A responsabilização dos beneficiários, prevista para combater tais “abusos”, passa por compromissos diversos que são agora estabelecidos com quem dispensa os benefícios – e. g. o auxílio-desemprego só é mantido na condição de que se comprove uma busca ativa de novo posto ou uma requalificação educacional; o cliente só é atendido se pagar uma taxa de contribuição ao sistema público de saúde (co-pagamento), etc. Portanto, a fim de contornar os efeitos adversos do risco moral sobre a estabilidade financeira do sistema de bem-estar são estabelecidas cláusulas contratuais específicas de responsabilidade pessoal de parte do beneficiário.

Uma idéia comum é de que a proteção social universal, ao não discriminar os riscos e a capacidade de contribuição de cada indivíduo ou grupo acaba por acobertar o oportunismo dos mais ricos, que se utilizam mais intensamente do aparato e benefícios do Welfare. Entende-se agora que a contribuição ao fundo dos programas de bem-estar tem que ser proporcional aos riscos de cada grupo e inversamente proporcional a sua renda. Como conseqüência, a perspectiva de promoção de um seguro-saúde publicamente administrado ou subvencionado é reforçada pelas agências internacionais como se constata na seguinte diretiva divulgada por um estudo do Banco Mundial de 1987:

Estimule programas de seguro-saúde bem desenhados para ajudar a mobilizar recursos para o setor saúde, protegendo ao mesmo tempo os lares contra grandes perdas financeiras. Um nível modesto de recuperação de custos é possível sem seguro. Mas a longo prazo, o seguro é necessário para aliviar o orçamento governamental dos altos custos do cuidado curativo dispendioso; os governos não podem manter as contas hospitalares próximas de seu custo enquanto o seguro não é amplamente disponível (World Bank, 1987, p. 4).

65 Segundo Epstein, o risco moral “refere-se ao fato de que uma vez um seguro seja provido contra certa contingência, a probabilidade de sua ocorrência aumentará” (Epstein, 1997, p. 56).

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Num recente ensaio sobre a economia da demanda em saúde, Medici (1997, pp. 25-26) resume algumas das tendências internacionais das políticas de saúde mais recentes, dizendo que a idéia principal é “estabelecer mecanismos de pré-pagamento correspondente ao risco atuarial de cada pessoa, segundo suas características sociais, econômicas, demográficas e epidemiológicas”. Quanto à lógica de contribuição das pessoas cobertas por esse sistema, observa que esse subsídio deveria ser

inversamente proporcional ao nível de renda das pessoas. De forma que os mais necessitados nada pagariam (a não ser valores simbólicos a título de taxa de moderação pelo uso dos serviços) e os mais ricos pagariam a totalidade do custo de serviços essenciais de saúde.

A cesta de serviços essenciais seria de acesso universal, enquanto que elementos adicionais de conforto ou de preferência estética teriam de ser subvencionados por pagamentos do próprio bolso do usuário. Para justificar essa tendência a individualizar responsabilidades pelos riscos e custos, de forma que os mais abastados paguem proporcionalmente mais que os pobres, os autores que preconizam essas novas políticas costumam lançar mão de um conceito de eqüidade que está muito próximo do princípio rawlsiano da diferença - que as desigualdades têm de estar ordenadas de forma a assegurar o maior benefício possível aos que estão em posição de menor vantagem na sociedade (Rawls, 1996, p. 6).

Os defensores da lógica de seguridade universal do tipo welfare criticam esse tipo de proposta porque entendem que qualquer discriminação positiva dos pobres e a idéia mesma de “serviços essenciais” acabam por estimular a saída dos mais ricos desse sistema individual de seguro básico mantido pelo Estado, provocando uma “seleção adversa”. Os mais abastados prefeririam, nessas circunstâncias, contratar seguros privados para cobrir a totalidade de seus riscos de saúde. Com isso, os serviços essenciais do seguro básico seriam desfinanciados e oferecidos num padrão cada vez mais precário para os pobres, que têm os “piores” riscos. Comentando essa tendência a individualizar o seguro para saúde (e outros riscos sociais), diz Hutton (1998, pp. 129-30) que

Uma vez mais temos o modelo de contratação individual, condimentado agora com o apelo à responsabilidade pessoal e o desejo de retirar o Estado desse campo. Mas o seguro individual desse tipo de risco coloca o maior ônus sobre os ombros dos que têm maior probabilidade de precisar ajuda, e que são ao mesmo

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tempo os menos habilitados a pagar prêmios de seguro satisfatórios, e por isso terão mais dificuldade em conseguir uma cobertura razoável. (...) Por isso os mais humildes, impossibilitados de adquirir um seguro individual suficiente para cobrir os riscos de saúde, desemprego e velhice, serão obrigados a recorrer ao valor mínimo; e este será menor do que se o sistema funcionasse mediante um seguro coletivo, pois as classes de maior renda não terão interesse em filiar-se ao sistema, e portanto não contribuirão para ele.

Assim, pode-se depreender dessa análise que a igualdade universal do seguro coletivo público e obrigatório poderia ter esse efeito de ocultar, aos olhos dos mais ricos, o fato de que funciona como um mecanismo de transferência de renda para os mais pobres. Enquanto isso, um sistema de seguro individual básico e voluntário torna assaz transparente esse intento redistributivo e afugenta os mais ricos. A livre-escolha pelo seguro individual acaba por penalizar quem não tem outra coisa para escolher que não seja o seguro básico. No mencionado estudo do Banco Mundial, há uma resposta prevista a esse tipo de argumento – o seguro público tem que ser compulsório e não optativo, para impedir essa retirada dos que podem mais contribuir. Mas parece que essa pendência está fadada a se perpetuar nas próximas décadas enquanto se tenta equacionar, do ponto de vista econômico e político, as questões de controle dos gastos, a sociogênese universal dos riscos e a multiplicação dos custos em saúde – o risco em saúde pode ser administrado com a mesma eficiência com que o seguro social administra outros riscos bem delimitados como morte, invalidez, acidente de trabalho, etc.? Como distribuir responsabilidades entre Estado, empresas e cidadãos no controle desses riscos?

Illich, apesar de concordar com as críticas de que o Estado de Bem-Estar Social é apassivador e paralisante do senso de responsabilidade pessoal, teria algo a dizer a favor da rationale do seguro coletivo público porque, para ele, a eqüidade também tem de ser concebida de forma simples e universal, como um sinônimo de igualdade. 66 Na Nêmesis, ele expressa que a plena igualdade de todos cidadãos diante dos serviços heterônomos tem de ser pressuposta mas,

66 A concepção de eqüidade illichiana é bastante clássica e constitui uma réplica daquela que é hegemônica no pensamento da esquerda. Molda-se numa tônica única: a distribuição igual dos recursos entre cidadãos considerados iguais. Este critério de igualdade simples e universalista costuma ser criticado pelas correntes liberais que entendem que não pode dar conta de uma situação social onde haja desigualdades profundas a serem corrigidas. Para alguns pensadores liberais é melhor usar o princípio da diferença de Rawls (1996), segundo o qual uma distribuição desigual se justifica desde que seja feita em benefício dos “membros menos avantajados” da sociedade.

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simultaneamente, contrabalançada pela autonomia. Nesse caso, convém considerar que o Illich dessa obra ocupa uma posição intermediária entre os social-democratas do welfare e os liberais que defendem a lógica dos seguros individualizados. Esse terceiro caminho é assemelhado ao de Giddens, de Berlinguer e de outros autores que estão tentando superar criticamente os impasses criados nas duas últimas décadas entre orientações políticas que costumam ser classificadas de social-democratas e de liberais.67

Berlinguer parte das contribuições teóricas de Rawls e do economista Amartya Sen, discorrendo sobre a necessidade de promover uma igualdade não mais entendida como livre acesso aos benefícios da políticas de bem-estar. Essa igualdade deveria estar referida à liberdade e responsabilidade no uso pleno das habilidades pessoais (capabilities) que contribuam para “fazer um conjunto de coisas” (functioning). Portanto, insere aqui a crítica à liberdade limitada da livre-escolha – aquela votada apenas para decidir entre alternativas que lhe são oferecidas pelas instituições ou pela norma social. Uma autonomia concebida como habilidades para aumentar a capacidade de functioning é algo bem mais amplo do que a decisão informada, ela é, por certo, uma autonomia plena do saber fazer por si. Berlinguer (1996, pp. 88-89) apresenta, a seguir, sua própria versão da crítica à falta de equilíbrio sinérgico entre autonomia e heteronomia, colocada nos seguintes termos:

Isso implica que é útil, mas não suficiente, o direito social de usufruir dos procedimentos terapêuticos que são função específica e tradicional da medicina. Por outro lado, os sistemas sociais públicos atravessam, há algum tempo, crescentes dificuldades que não são apenas financeiras. Nota-se quase sempre uma “perda de objetivo” atestado pelo fato de que seu custo é a única dimensão discutida dos tratamentos; há bem pouco tempo, começa-se a avaliar sua eficácia. Além disso, esses sistemas, nascidos quase sempre por iniciativa dos trabalhadores, tornaram-se sobrecarregados e burocratizados, paternalistas e autoritários, reprimindo e muitas vezes excluindo na verdade a expressão das aptidões, da responsabilidade pessoal e coletiva no functioning.

67 Pode-se dizer, seguindo a sugestão de Bobbio (1994), que, entre liberdade (ou autonomia) e igualdade (ou eqüidade) uma grande parte dos que mantêm uma orientação de esquerda, ao contrário dos liberais, fazem a opção pela primazia da igualdade social. É o caso do marxismo, que não visualizando a possibilidade de uma eqüidade na esfera da justiça distributiva sob o capitalismo, preconiza a solidariedade coletiva no movimento político de transformação da sociedade e antecipa uma sociedade futura de igualdade, com liberdade de autorealização nas esferas da produção e do consumo. O Illich da Nêmesis é diferente; ele insiste em ter a saúde como expressão da liberdade civil, posta anteriormente e como premissa do seu enquadramento como direito, ao mesmo tempo em que não abre mão do princípio da eqüidade, inclusive no acesso aos serviços de saúde. A posição de Illich parece levar a uma proposta paradoxal de conciliação ad hoc do liberalismo com o radicalismo de esquerda, na reflexão teórica e na ação política.

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Mesmo nos simples procedimentos médicos chegou-se, ao máximo, em afirmar que o paciente deve manifestar nas comparações dos tratamentos, um consentimento informado (fórmula usada sobretudo para garantir o médico e a instituição contra contestações e pedidos de ressarcimento dos doentes), descuidando a valorização plena do indivíduo: ao conhecimento, à terapia, à prevenção.

Por sua vez, o pragmatismo admite, quanto a essas questões políticas e morais evocadas pelas noções de autonomia, solidariedade, eqüidade e similares, que elas jamais devem ser tratadas como se sua discussão e aplicação estivessem subordinadas a alguma coisa assim como um princípio universal e abstrato. Neste caso, a imagem illichiana do “equilíbrio sinérgico” tem que ser rejeitada como um intento equivocado de resolver um conflito entre princípios mediante o apelo a um novo princípio. Mas o desejável seria não contar com nada que pareça um princípio: o pragmatismo se limita a recomendar, diante desses casos de renitente antagonismo entre conceitos muito abstratos, que simplesmente se mude os termos do debate, pondo em seu lugar termos novos que não estejam comprometidos com um dada visão ou doutrina que se quer superar. Por exemplo, é melhor falar de “empowerment” em vez de autonomia, porque assim se evita definitivamente que autonomia seja tomada como um princípio kantiano; é melhor falar de acesso do que de eqüidade, porque facilidades de acesso em saúde é algo que ainda pode ser definido de inúmeras maneiras inéditas68 e buscando fazer uma diferença na prática , sem que os debatedores tenham apenas que decidir, numa esfera extremamente abstrata de cogitação, se seguem um princípio illichiano de igualdade universal ou um princípio de diferenciação rawlsiano.

Nessa linha, tudo o que é considerado como princípio, direito universal ou obrigação moral tem, na visão pragmatista, o efeito deletério de provocar a cessação do debate. Uma alegação desse tipo já encontra na audiência, ou presume, um consenso, e, neste sentido, não é suscetível de um exame crítico ulterior, porque se conforma a uma paradigma que o locutor não pretende pôr em questão. Princípios e direitos são coisas que ninguém se dispõe a negar ou criticar – em certo sentido, são matérias de fé, como diz Rorty:

Desde o ponto de vista pragmatista, a noção de “direitos humanos inalienáveis” não é nem melhor nem pior que a “obediência à

68 Acerca dos componentes em que o acesso pode ser desdobrado, veja-se o artigo Universalidade da Atenção à Saúde: Acesso como Categoria de Análise (Giovanella & Fleury in Eibenchutz, 1995).

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vontade divina”. Quando se os invoca como motores imóveis, esses slogans são simplesmente uma maneira de que não se vai mais adiante, que esgotamos nossos recursos argumentativos. Falar da vontade de Deus ou dos direitos humanos, assim como falar da “honra da família” ou da “pátria em perigo”, não é algo que resulte apropriado para a crítica e análise filosófica. É infrutífero tentar olhar para além deles. Nenhuma dessas noções deve ser analisadas porque todas são maneiras de dizer: “aqui eu paro: não posso fazer outra coisa”. Não são razões para a ação, senão anúncios de que a pessoa já pensou bem sobre o problema e tomou uma decisão (Rorty, 1997, p. 95).

Noutro ensaio recente, que trata da contribuição potencial do pragmatismo ao pensamento feminista, Rorty (1998, pp. 202-217) chama a atenção para essa característica do discurso dos direitos que tem sido amplamente explorado pelo movimento internacional das mulheres. Rorty vê que esse discurso pretende fazer aparecer perante o mundo o que as mulheres realmente são, “em sua essência humana”, em sua condição “real” de igualdade de gênero. Ele argumenta que as mulheres perdem assim a oportunidade de se compreenderem “em processo”, ou seja, em luta pela sua auto-criação, pelo domínio progressivo de uma linguagem que lhes faculta forjar uma identidade moral inédita e contraposta àquela que os homens lhes impuseram em sua dominação histórico-social. O pragmatismo de Rorty não deixa de reconhecer nos direitos humanos uma conquista social revolucionária da modernidade, mas considera que essa linguagem dos direitos humanos deixou de ser eficaz a partir desse momento histórico. A reivindicação dos direitos universais desperta hoje um consentimento tácito que é praticamente igual a uma atitude de indiferença. No caso da saúde, fica claro que quanto mais as mulheres aumentam a lista dos direitos tanto menos suas reivindicações tomam a forma de um processo político de confronto com os poderes e a linguagem dominantes entre os homens. O reconhecimento por todos de cada novo direito levantado dissimula a condição de inefetividade social do discurso – ninguém se manifesta contra a petição de um direito que é meramente formal. A proclamação incessante de direitos e princípios põe o movimento das mulheres a falar a mesma língua que se pode encontrar nas conferências internacionais sobre população e desenvolvimento e nos congressos de bioética, a língua encarregada de promover o processamento de um “consenso a frio” que resulta de tudo aquilo contra o qual ninguém tem coragem nem interesse em ser contrário.

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Por certo, o pragmatista terá maiores simpatias para com o uso que o movimento das mulheres vem fazendo da noção de “empowerment”. 69 É que neste caso a referência ao poder (e ao poder ser ) em relação à ordem masculina não precisa ser escamoteda como acontece na apelação aos direitos inalienáveis. Não se trata de um princípio abstrato e universal nem de uma formalidade pseudo-jurídica, mas de um processo de conquista de poder e de aprendizagem, em que o caráter gradual da autonomização é salientado e passa a admitir uma multiplicidade espontânea de possíveis soluções. De um modo geral, “empowerment” pode ser facilmente identificado com a compreensão pragmatista da autonomia - “processo de auto-enriquecimento” e “aumento da flexibilidade de escolhas”. Tem também a vantagem de evitar que se entenda autonomia como encarnação do princípio kantiano do “trate a humanidade em você e noutras pessoas como um fim em si mesmo e não apenas como um meio”. É que o pragmatista não sabe o que fazer com esse mote kantiano, na medida em que tudo lhe parece dever ser utilizado para algum fim, que pode ser correto de acordo com a circunstância e o momento. Assim, por exemplo, entende que uma política social de “empowerment” das mulheres, para ser efetiva, precisa saber de que maneira utilizar a “humanidade no outro” para alcançar um fim perfeitamente justificável que é desenvolver nas mulheres a capacidade do cuidado de si em matéria de sexo, reprodução e riscos de enfermidades.

Para o pragmatista, qualquer forma de autonomia (ou de falar da autonomia) pode e deve ser “usada” tal qual alguém usa um método ou um instrumento qualquer. O que irá distinguir a posição ético-política de cada um são as finalidades e o modo de usar a autonomia, que podem ser justificados de diferentes pontos de vista. Tive ocasião de apontar no capítulo de crítica do crítico, que inexistem motivos para se sobrestimar o valor moral “intrínseco” de uma dada interpretação da autonomia independentemente das questões concretas que se pretenda resolver. Por essa razão, a auto-ajuda, a ajuda mútua, a solidariedade, a responsabilidade pelos riscos, a decisão informada, etc., que são formas de autonomia, não perdem sua utilidade e relevância simplesmente porque são agora apoiadas pelas agências internacionais ou defendidas por uma corporação 69 Uma ética da responsabilidade concebida em termos feministas tem um bom exemplo na contribuição de Baier (1995), que parte da consideração da relação entre cuidado e responsabilidade na relação dos pais com seus filhos. Com base nos estudos de Giligan, Baier afirma que a idéia de que a moralidade resulta dos laços de responsabilidade perante outros é mais comum entre as mulheres, enquanto os homens acentuam mais o aspecto dos direitos que emergem das relações estabelecidas por acordo entre indivíduos “autônomos” (ética contratualista). Neste sentido, o discurso dos direitos pode ser interpretado como mais uma tentativa das mulheres de buscar a igualdade de gênero usando as mesmas armas de que os homens se valeram historicamente.

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profissional.70 Pessoas que usam essas mesmas palavras podem ou não concordar quanto aos meios de levar adiante um dado projeto social, tanto quanto o fazem as pessoas que, para descrever seus problemas, usam palavras moralmente neutras tais como acesso, suprimento de medicamentos, atenção primária, etc. Se reconhecermos isso, teremos pelo menos um ganho que é o de não julgar que os contendores políticos estão definitivamente separados por noções tão abstratas e carregadas de conotação moral tais como a de autonomia. Portanto, podemos assim transformar todas essas noções em questões que dão origem a estratégias diferentes. Se o Estado inventa, por exemplo, um determinado uso para a autonomia através de suas políticas de solidariedade, os movimentos sociais (como o das mulheres) podem inventar outros usos em contraposição – o importante é que o debate já não esteja mais distinguido entre os que supostamente “colonizam” a autonomia e outros que mantêm sobre ela uma concepção “autêntica”.

***

A interpretação que tenho a apresentar sobre a sociogênese dos riscos na sociedade pós-industrial está orientada por essa perspectiva pragmatista que, diante de algo que parece ser um imperativo moral ou um determinismo histórico, trata de mostrar como uma mesma noção pode ser usada como um instrumento estratégico para obter fins muito distintos entre si. Para efeitos da discussão que segue, tomo o risco como sendo um instrumento simbólico à disposição da sociedade e das pessoas e que se presta a lidar com situações nas quais se misturam o que se quer evitar e o que se quer alcançar, em iniciativas voltadas para o futuro que, por definição, é incerto. O risco é visto como incorporado à trama de nossas crenças e desejos, e atuando de maneira tal que, quando se retece essa trama pela incorporação de novos componentes ou descarte de antigos, também muda a forma de manejar o instrumento risco. Sendo assim, a 70 Podemos concordar, então, com Giddens (1994, p. 125) quando acentua que, embora a renovação da solidariedade, em contraposição à consolidação e difusão de direitos social, seja um problema que foi posto originalmente pelos conservadores, não admite hoje em dia uma solução conservadora, nem pode ser tida como um artifício criado por uma intencionalidade malévola com o fim de apagar as contribuições sociais do Estado. Uma política de solidariedade não deveria ser entendida simplesmente como um retorno às “boas tradições do passado”: tem que ser uma reinvenção que inclua o provimento de serviços sociais garantidos pelo Estado, tanto quanto o estímulo à autonomia pessoal e comunitária (pela ajuda mútua) nas condições locais, acomodando, na medida do possível, a tradição preexistente.

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noção de risco é normativa em relação a uma conduta social e pessoal, e tem muito a ver com o plano geral da moralidade. Realizo aqui uma livre adaptação dos trabalhos de Luhman (1993)71, Giddens (1991a; 1991b; 1994), Ricouer (1995) e Bourdieu (1989). A interpretação que adoto, embora influenciada por esses autores, situa-se num quadro filosófico que lhes é totalmente alheio, o neopragmatismo.72

Se o risco induz a certas ações (evita-se algo, acarreta uma medida preventiva, etc.), ele pode agir, individualmente ou em conjunto, na qualidade de um instrumento de mudança de comportamento e de obtenção de certos resultados. E como instrumento pode ser institucionalizado e dar origem a certas formas históricas do risco social. Tratarei do risco em dois momentos históricos distintos. No primeiro momento, atua como instrumento de previsão social e, no segundo, como instrumento de responsabilização social.

A) O Risco como Instrumento de Previsão Social

O desenvolvimento dos sistemas de seguro social dos Estados de Bem-Estar partiu de algo descrito sob o nome genérico de proteção social, que consiste na crença de que há a necessidade de os governos promoverem ativamente uma espécie de proteção contra os riscos da economia de mercado e uma compensação pelos seus danos eventuais à força de trabalho. O que está implícito em seus princípios é um sentido específico da proteção social como uma obrigação do Estado em administrar os riscos da tal modo a trazer alguma compensação “para os mais imediatamente afetados pela ação deletéria do mercado” (Polanyi, 1957, p. 132). No seguro social, que é uma parte específica da proteção social desenvolvida no nosso século, os riscos são tidos como administráveis ou previsíveis (Giddens, 1994, p. 137), a despeito de suas incertezas, e é daí que vem a denominação, adotada entre nós, de previdência social. Neste século, os esquemas de previsão social foram transformados em

71 Luhman (1993) vincula a noção de risco à tomada de decisões, distinguindo-a de perigo, categorias intercambiáveis ou praticamente equivalentes para outros autores. Esta distinção guarda alguma semelhança com a que foi feita mais recentemente por Giddens (1994) entre risco manufaturado e risco externo, após ter trabalhado, em obras anteriores, com uma noção única. Para Luhman (1993, pp. 22-25), o risco é uma condição de potencialidade de uma perda futura, avaliada contra um ganho correlacionado, que pode ser atribuído a uma decisão ou escolha. Já o perigo é uma perda potencial (sempre perda) avaliada por sua externalidade e que, portanto, pode ser atribuída ao ambiente. 72 Luhman, por exemplo, vem há muitos anos desenvolvendo uma sofisticada versão de teoria dos sistemas na sociologia, e, portanto, seu enfoque tem princípios contrapostos ao do pragmatismo, mas inúmeras de suas análises, que mantém um compromisso historicista, podem ser reinterpretadas numa visão pragmatista.

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parte constitutiva muito importante dos Estados de Bem-Estar, sempre na perspectiva de que os riscos podem e devem ser administrados.

Nesse momento histórico, o risco parece atuar como um bom instrumento para controle e previsão dos danos impingidos à força de trabalho, os quais a sociedade se sente na obrigação de reparar por um cuidado ou por uma indenização que sai do fundo de recursos a que contribuem o trabalhador, o empregador e, eventualmente, o próprio Estado. O cálculo atuarial, como elemento de racionalidade desse planejamento, desenvolve-se integrado aos esquemas de administração de riscos. O importante é que se definem os riscos de uma forma limitada dentro de parâmetros demográficos: acidente, invalidez, morte, viuvez, etc. Pode-se dizer que constituem riscos básicos, por analogia com a idéia de necessidades básicas.

Nos esquemas de seguro social está claro qual é a parte que cria os riscos - é o empregador (ou o capital). Como também é claro qual a parte afetada – é o trabalhador. A obrigação do trabalhador é a de contribuir para o fundo geral de cobertura de riscos, e a obrigação do seguro social é reparar ou compensar o dano para esse número bem definido de riscos básicos. O seguro social e o governo crêem na possibilidade de, com corretos cálculos atuariais, administrar a cobertura dos riscos assegurados. As enfermidades raramente foram asseguradas como um risco propriamente dito, mas sempre receberam algum tipo de compensação mediante a prestação de cuidados. A saúde pouca vezes foi tomada como um risco específico dentro desse rol, a não ser nos países que desenvolveram a linha de seguro-saúde: na verdade, para os sistemas clássicos de seguro social, a saúde aparecia como um “risco residual” que era atendido na medida das possibilidades financeiras do sistema e não criava uma obrigação de atendimento, ao contrário dos benefícios. Assim, os riscos da saúde não compunham os objetos do contrato no seguro social clássico – as enfermidades podiam ser “compensadas” pelos serviços de saúde oferecidos mas estes não eqüivaliam legalmente a uma contraprestação referente a um direito contraído com base na contribuição individual ao fundo do seguro.

Nesses sistemas, que são de tipo heteronômico, o risco parece ser calculável e estar sob controle, numa relação regida por uma norma jurídica de “responsabilidade pela falta”: a não contribuição por parte do trabalhador acarreta a isenção do reparo por parte do seguro. Os seguros sociais se fazem acompanhar em sua implantação por essa visão de responsabilidade social pelos

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riscos, entendendo-se que a questão básica da cobertura e da previsão a eles relacionadas é um tema de comum interesse para trabalhadores e empregadores, mesmo quando a contribuição ao seguro por essas partes é imposta em lei. O risco como instrumento de previsão social está adequado a uma compreensão contratualista da justiça social e da justiça em geral, em que as obrigações e os direitos se equilibram e se compensam eticamente, mas sem pressupor uma igualdade universal das partes: naturalmente o trabalhador é tido como a parte mais vulnerável.

O aparecimento da seguridade social, numa fase tardia da previsão social, rompe com essa relação de obrigação contratualista e universaliza direitos desacompanhados de correspondência com obrigações. Embora este seja um acontecimento político de grande importância e que tem a ver com a crise da previsão social em muitos países, não pretendo tratar dele na medida em que, para efeito desta discussão, basta salientar o momento em que a previsão social assumiu sua feição racionalista “clássica”, fundada no controle atuarial dos riscos. O que me interessa sublinhar é que aí o uso dos cálculos atuariais está referido a eventos demográficos (morte, invalidez, etc. ) que são encarados como perigos segundo a distinção adotada por Luhman. O trabalhador não tem como ser responsabilizado por tal tipo de perigo, mas só pelo dever de cobertura securitária que lhe resguarda em relação a ele, do que resulta uma isenção prospectiva da responsabilidade.

Desses arranjos técnicos e administrativo promovidos pelo seguro social emerge uma noção mais ou menos determinista da segurança - como controle factível dos riscos por mecanismos centralizados de planejamento. Por sua vez, as pessoas cobertas pelo seguro também se sentem, pelo lado puramente existencial, mais “seguras”. Como qualquer outra forma de segurança ontológica no mundo, esta é reforçada nas pessoas pela confirmação de que sua crença dá conta de cada nova situação encontrada. As pessoas sentiam que o seguro social respondia de uma maneira relativamente fiel a sua crença de que a aplicação da tecnociência e os serviços prestados por uma permanente burocracia estavam concebidos e agiam em seu “benefício”, palavra que encarna bem o significado moral utilitarista desse tipo de ação social.

B) O Risco como Instrumento de Responsabilização Social

Quando se passa da previsão social dos riscos à responsabilização social pelo riscos, o que muda é mais que um conceito. Muda todo um conjunto de

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crenças e práticas da sociedade, incluindo as políticas governamentais, e, consequentemente, tal instrumento começa a ser usado de outra maneira, ou seja, não mais como um auxiliar na reprodução do contrato social. A relação do contrato social, em que se diferencia positivamente a posição desigual da parte mais débil, deixa de ser o paradigma dos riscos a serem controlados - porque já não se sente que as instituições tenham capacidade de prever e controlar os riscos relevantes. Esse sentimento motiva uma ampla ênfase na desinstitucionalização do controle do risco, que passa a ser entendido como ação preventiva de responsabilidade crescentemente pessoal. As novas políticas públicas procuram não fazer mais a distinção de que o trabalhador constitui a parte frágil da relação de trabalho. Os riscos são convertidos em fonte de uma relação de responsabilidade com o futuro de cada um e de todos, tendência que, pode-se dizer, embora não seja fácil de comprovar, acompanha a crise da relação salarial (Offe, 1989). Na sociedade industrial, a estabilidade e a universalidade da relação salarial tiveram uma exata correspondência na estabilidade e na universalidade da previsão social, ambos assegurados por uma concepção de contrato social. Portanto, não surpreende que ambas formas de relação entrem em crise simultaneamente neste final de século.

Na sociedade pós-industrial contemporânea, o risco foi redefinido em função da responsabilidade, e, por sua vez, a responsabilidade foi redefinida em função do risco. Segundo Luhman (1993), o risco só existe quando um observador legitimado, colocado fora da situação em que se verifica, pode atribui-lo a uma decisão de um agente. Essa maneira de compreender os riscos busca respeitar a própria fundamentação ética e jurídica que a sociedade pós-industrial cria para socializar o ônus dos riscos. A concepção que se difunde na jurisprudência atual, segundo Ricouer (1995, pp. 41-70), resume-se em grande parte nesse aspecto da imputabilidade - a quem e por que motivos se deve imputar os riscos que são constantemente gerados nessas sociedades. O “quem” fica claro agora na figura do tomador de decisão, e o motivo expressa-se numa falta cometida contra o sentido moral da responsabilidade. Neste caso, a responsabilidade não é mais entendida no seu sentido antigo, como dando origem a uma obrigação de reparo ou penalização devido a falta, pelo que alguém (empresa ou indivíduo) pode ser argüido em juízo. A responsabilidade dá lugar agora a uma obrigação de antecipar as conseqüências futuras de cada ato decidido:

A orientação retrospectiva que a idéia moral de responsabilidade tinha em comum com a idéia jurídica, orientação em virtude da qual nós somos eminentemente responsáveis pelo que fizemos, será agora substituída por uma orientação deliberadamente

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prospectiva, em função da qual a idéia de prevenção dos danos futuros juntar-se-á àquela da reparação dos danos já cometidos (Ricoeur, 1995, p. 65).

A prática jurídica da responsabilidade ou liability corresponde a esse conceito de perpetração da ação ou produto inseguro, que envolve um dano prospectivo não advertido. Existe pressuposta aí uma relação de desigualdade entre a parte que tem poder de decisão e a parte que é afetada, mas é avaliada em cada contexto ou situação, portanto, não mais por um princípio universalista que admite a debilidade de uma das partes envolvidas numa relação de contrato social. Por exemplo, no caso da relação consumidor-produtor, o atributo de capacidade técnica para julgar e tomar decisão é em geral pressuposto do lado do agente autônomo, a empresa, e não do lado do agente dependente, o consumidor. O ônus da pena recai sobre a parte suspeita de ter o melhor controle das alternativas ou a melhor capacidade de ajuizar riscos (Luhman, 1993, p. 119), mas isto é relativo a cada situação.

O ajuizamento dos riscos, nesse momento, não pode observar mais a racionalidade das normas jurídicas habituais. Uma norma jurídica estabelece literalmente o que é correto, sendo a falta uma inobservância da norma; no caso do risco, não existe rigorosamente uma falta, já que ela não pode ser deduzida em seu conteúdo a partir de uma dada norma; o padrão é um tipo de comportamento socialmente esperado, ou seja, o correto é a atitude responsável de prever e controlar os riscos. Neste caso, as normas de segurança são estatuídas tecnicamente por algumas entidades civis73 e acompanham a evolução da tecnociência, embora não tenham força de lei. Assim, a responsabilidade pode ser argüida de alguém por imprudência, mesmo que juridicamente não se caracterize uma falta, de tal modo que “uma vez que a idéia de precaução substitui a de reparação, o indivíduo é novamente responsabilizado por apelo à virtude da prudência (Ricoeur, 1993, p. 69)”.

Fora das relações jurídicas e de seu arbitramento, esse apelo à prudência vai junto com um apelo à ousadia do saber por si, tomados ambos como manifestações da responsabilidade. Assim, o risco pode dá lugar, na vida quotidiana, às expectativas de mudança de estilo de vida em busca do saudável, e ao “empowerment”, como exercício de uma autonomia inerente a cada agente ou por produto de uma delegação de poder. Esse amplíssimo processo de

73 À semelhança da International Standardization Organization, ISO.

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responsabilização baseado nas escolhas e na criatividade de cada indivíduo consagra os dois lados da nova noção de risco: poder de perda e poder de ganho numa prospecção do futuro. É pressuposto que a responsabilização ajuda a cada um (indivíduo ou empresa) a mudar para o melhor a fim de evitar o pior. O pior pode ser o enfarte do miocárdio provocado por um estilo de vida inadequado; ou a falência da empresa provocada por um estilo de gerência ultrapassado, que não é capaz de (segundo citação anterior) transformar cada funcionário num “executivo”.

Na transição da previsão social para a responsabilização, os riscos perdem sua referência a um planejamento: dá-se por certo que o futuro é incerto e que os riscos são incontroláveis pelas vias da administração tradicional. Há um novo credo: ninguém controla os riscos se não for capaz de estimular a atitude pró-ativa de cada pessoa ou trabalhador quando posto diante de seus riscos - esta é a crença dos políticos e dos gerentes. Mas o risco é também o ambiente desejado da economia em que as empresas devem doravante se mover, porque sem eles não há ganho num ambiente de alta competição. Peters (1992, p. 145) em uma entrevista com um alto executivo da MCI ouviu a seguinte frase: “não caçamos os que cometem erros; caçamos os que não querem correr riscos”. A nova filosofia gerencial do incentivo aos riscos expressa-se no que afirma o próprio Peters (p. 484) de que o mercado atual é avesso a qualquer tipo de planejamento ou previsão:

Eu amo os mercados. Admito. Amo a descentralização radical. Sou um inimigo de planos sofisticados. Aliado das iniciativas premidas pela pressa. Amigo da desordeira “tentativa e erro” - especialmente do erro.(...) Em resumo, o sucesso ou fracasso de um produto no mercado é devido a uma longa, complexa e frouxamente interconexa cadeia de circunstâncias, totalmente imprevisível no momento em que é tomada a decisão de lançar um produto ou novo negócio.

A face luminosa dos riscos transparece nessa apologia da contingência do mercado. Os riscos, de todos os modos, para o bem ou para o mal, não são mais um instrumento confiável de planejamento - deles espera-se que dê lugar a inumeráveis iniciativas autônomas por parte dos funcionários e dos gerentes: decidir e criar sempre, obter sucesso eventualmente, mas arriscar-se a todo momento. O mercado do novo homem econômico, com sua inerente incerteza, é o modelo dos riscos em tudo o que tem de positivo e negativo, e é essa visão da desordem criativa que permite à empresa, conforme alude o título de outro livro de Peters, prosperar no caos. Esta visão do risco, como instrumento pelo qual a

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gerência pode estimular a criatividade, é contraposta, mas complementar, à visão da responsabilização. Os gerentes perceberam que manejar só o instrumento da responsabilização não é suficiente; em certo sentido e dependendo de sua extensão, ele tolhe a criatividade que se precisa ter em meio ao caos da competição sem limites. Portanto, é preciso que o risco apareça agora com sua face luminosa - irradiando energias que puxam o entusiasmo para as empreitadas de criação de novos produtos e da diversificação de negócios.

No campo da chamada promoção da saúde, a ênfase na adoção dos estilos de vida saudáveis toma os riscos ainda por sua face sombria, daquilo que tem de ser evitado. A moral da responsabilização é totalmente dominante. O risco da AIDS, naturalmente, comanda toda a mobilização atual, mas a lista é extensa e inclui doença coronária, câncer, acidente automobilístico, etc. Considere-se também que cada risco se desagrega em muitos outros que são seus indicadores de probabilidade: o risco do fumo, do colesterol alto, do sedentarismo, etc.

Esses não são mais riscos básicos de natureza demográfica - o da morte, o da aposentadoria, o da viuvez e meia dúzia mais, que se acreditavam controláveis pela antiga previsão social. Os riscos em saúde são agora inumeráveis e específicos, e, na profusão de suas formas, têm de ser usados como armas para a responsabilização. O lado ameaçador desses riscos traz algo que é, no fundo, uma forma potente de coerção social, mas assinala também um ganho potencial: um corpo belo e sadio, a longevidade, a criatividade a ser conquistada pelo desenvolvimento humano, e assim por diante. Estes são os bens ou valores considerados de transcendente importância a serem preservados na obediência ao alerta dos riscos. O risco como instrumento de responsabilização em saúde passa a ter, assim, uma força moral que atua pela evocação constante da autonomia aberta à consciência do Mal. O risco é precisamente esse Mal que ronda nossos estilos de viver.

O novo simbolismo ético e jurídico dos riscos em nossa sociedade pós-industrial presta-se a ultrapassar as limitações identificada nos esquemas da previsão social em que os riscos não tinham responsáveis. É possível perceber agora mais claramente de que modo dá-se a conexão entre o conceito de autonomia, como enriquecimento e plasticidade das escolhas possíveis, e o risco. O risco só é uma realidade para o indivíduo ou para a sociedade quando existe, na decisão envolvida, um bem desejado ou um mal a evitar. O bem e o mal estão ponderados conjuntamente no risco que se corre com uma dada decisão.

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Podemos retroprojetar na história essas idéias e constatar que, no século XIX , a contaminação do meio ambiente pelas indústrias não era ainda um verdadeiro risco porque a realidade social e responsabilização pelos riscos ambientais não existiam nem jurídica nem eticamente. Assim como uma indústria não seria penalizada se lançasse dejetos químicos ao meio ambiente, não havia ninguém para se vangloriar de que sua empresa era politicamente correta por não ser poluente.

Não se pode deixar de reconhecer que as velhas disjunções morais retornam embutidas no simbolismo dos riscos: bem/mal, erro/acerto, virtude/falta. O risco, quer queiramos quer não, tornou-se um instrumento de moralização. Está disponível para ajudar a conferir mais responsabilidade às forças econômicas da sociedade altamente tecnicizada e competitiva em que vivemos; como também está disponível como sinal de alerta a cada indivíduo em relação a suas escolhas de formas de viver. Estamos melhores com o advento desse instrumento? Não creio que se possa dar uma resposta cabal a esta pergunta, porque inexiste um ponto de vista arquimediano a partir do qual se possa julgar um instrumento de moralização: os juízos estão fadados a divergir indefinidamente. Mas se atualmente a problemática dos riscos atravessa nossa cultura de ponta a ponta, o que cabe é deixar de entendê-los como um aviso dos que sabem muito para os que não s bem nada e colocá-los no centro de um debate sobre a moralidade contemporânea.

Esse debate tem que ter em conta o aspecto existencial ou “ontológico” dos riscos que muitas vezes é ignorado. O risco, de acordo com a redefinição aqui empregada, configura-se como uma temporalização da experiência social voltada para o futuro, numa distinção drástica com o passado, e isto afeta crescentemente a vida das pessoas, porque cria e recria expectativas não satisfeitas, dúvidas e angústias. Neste caso, existe um limite claro do alcance da ação racional pelo lado das vivências de cada um. A estimativa dos ganhos e das perdas pode resultar de um cálculo com base em informações acerca do que aconteceu no passado; no entanto, o que acontece em seguida ao risco que se toma é algo que não tem como ser controlado rigorosamente. Mesmo que a probalidade de perda seja uma chance para um milhão, essa perda pode acontecer comigo amanhã quando eu tiver tomado o avião - e eu sei disso... O elemento racional do cálculo não é suficiente para desfazer a angústia de cada um com o que é incerto, nem funciona como um signo apropriado de alerta. A percepção da potencialidade de perda pode ser totalmente falsificada de acordo com o grau de envolvimento pessoal no

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risco: tem-se menos medo de andar de carro do que de avião, porque sobre o carro cada um tem uma sensação familiar e viva de controle, e no avião o indivíduo sente-se afetado por uma forma de controle cuja lógica de decisão lhe é desconhecida: o risco é criado por outrem enquanto um perigo. As sociedades contemporâneas promovem essa marcação do futuro incerto, inseguro e malvado. Mas há o oposto: o deleite com o belo da contingência e com a superação de desafios marcando algumas das novas formas de autonomia. Se os riscos fazem aparecer a angústia com o incerto, estimulam igualmente a audácia ou o espírito aventureiro, pela satisfação que oferece de sobrepujar as perdas potenciais e as dificuldades. É o que diz Dewey (1994, p. 54) com um certo toque metafísico:

A união do arriscado (hazardous) e do estável, do incompleto e do recorrente, é uma condição tanto de toda forma de satisfação quanto de nossas inquietações e de nossos problemas. Ao mesmo tempo que é o sinal de ignorância, de erro, e falência da expectativa, é a fonte de prazer que as realizações acarretam. Porque se não houvesse nada no caminho, se não houvesse qualquer desvio ou resistência, a realização seria imediata e, ao sê-lo assim, não realizaria nada, mas apenas seria. Não estaria em conexão com o desejo ou a satisfação.

Daqui as duas formas básicas de atitude moral diante da ubiqüidade dos riscos na sociedade pós-industrial: a responsabilização, que é sempre cautelar pelo lado da perda potencial; e o “empowerment” que é sempre um estímulo às realizações que dão satisfação, em meio à incerteza e ao não-estável, pelo lado do ganho potencial. Não se tem de escolher entre uma ou outra - elas são dadas numa forma complementar que garante o bom funcionamento dessa sociedade, inclusive em suas políticas de saúde.

As sociedades pré-modernas são menos temporalizadas nesse sentido, menos abertas a um futuro e suas incertezas: os hábitos cristalizados, os rituais e os exorcismos protegem no aqui e no agora, dão segurança ontológica a seus membros. As decisões não são tão individualizadas nem tão multiplicadas. Rigorosamente não há uma consciência de riscos, nesse sentido que os associa a escolhas no universo multiforme da autonomia, mas apenas o terror aos perigos, como ameaças externas. Já nas sociedades da previsão social o risco pôde ser tido como sob controle para a vivência individual, devido à crença mantida nos poderes extraordinários da ciência e da tecnologia. Em vários momentos de sua primeira crítica à saúde, Illich observou que essa situação de entrega aos poderes

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dos médicos e de outros agentes resulta de uma confiança cega, como a que se tinha antigamente diante dos sacerdotes ou dos magos. Na previsão social, o manejo dos riscos pessoais (acidentes, enfermidade, morte) era “confiado” aos agentes do seguro social e sua cobertura certa era fonte de segurança, assim como a saúde podia ser entregue com tranqüilidade nas mãos dos “bons médicos” do seguro. O sistema da proteção social pelo Estado podia funcionar nessas condições apenas evocando uma ação de beneficência utilitarista, ou seja, de atendimento a necessidades convertidas historicamente em direitos dos cidadãos. Mas nas sociedade contemporâneas, todo risco é, por definição, fabricado. Mais que isto: as pessoas já sabem como eles são fabricados, graças à socialização do conhecimento tecnocientífico, ou seja, como diz Giddens, pela reflexividade. O que é importante é que, nessas circunstâncias, a sensação de segurança tem de ser constantemente produzida por outros tipos de esquemas criadores de confiança: a fé simples e gratuita que depositávamos na tecnociência e em sua capacidade de prevenir e controlar as situações de risco tem de ser substituída por alguma forma de testemunho mais direto, freqüentemente mais “pessoal” ou “personalizado”, sobretudo mediante a interação comunicativa com quem continua a agir sob a égide da tecnociência. Para ainda confiar na tecnociência como um sistema eficiente de controle e prevenção de risco, seus agentes constantemente têm que nos reforçar essa confiança, mediante uma demonstração de sua perícia e de seus conhecimentos “certos”, e de sua preocupação com nosso bem-estar, tal como o piloto que transmite sua mensagem corriqueira sobre a temperatura externa e a velocidade da aeronave, quando de fato quer significar apenas isto: “mantenham-se tranqüilos, sei bastante, estou controlando tudo desde aqui da cabine”.

Até recentemente (podemos escolher os anos 60 como demarcação simbólica), os riscos podiam assim orbitar livremente em torno dos controladores dos aparatos heterônomos, que Giddens denomina de sistemas de peritos: era um problema dos engenheiros da fábrica, dos médicos em suas clínicas, dos planejadores de toda espécie.74 O que mudou desde então? A mudança substantiva em parte vem da crescente difusão da alta tecnologia em todos esses

74 Nas suas últimas obras, Giddens anuncia uma concepção renovada da segurança ontológica que tem mais em conta esses efeitos de incertezas e noção de riscos que a reflexividade introduz. Aproximando-se mais de uma visão pragmatista, Giddens acentua que a confiança nos sistemas abstratos, nas condições de uma democracia dialógica, deve tender ao estreitamento dos laços de solidariedade entre os que estão dos dois lados dos sistemas de peritos, mediante o que chama de confiança ativa. Em vez de uma simples aceitação da autoridade de perito, a confiança ativa “presume a transparência e a responsabilidade dos dois lados” (Giddens, 1994, p. 129).

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campos de atividade; mas vem sobretudo da reflexividade pragmática que se tornou um processo cada vez mais difuso e intenso na sociedade, dando a todos a conhecer os efeitos da contraprodutividade e das externalidades negativas de que nos fala Illich: a medicina que produz doença, o transporte que paralisa, a indústria que transforma a natureza em lixo, etc. A sociedade de risco nasce por essa reflexividade para a qual figuras como Illich deram, na época, sua contribuição. Com isto, há uma perda drástica de confiança em relação aos graus de segurança com que se movem os sistemas heterônomos. A partir desse momento, os riscos já não podem ser tidos como manejáveis “internamente”, ou seja, já não podem ser mantidos entre os segredos esotéricos de algumas profissões e dos especialistas em atuária: difunde-se a crença de que seu controle e sua prevenção têm de ser agora compartilhados com os “clientes” e com os cidadãos de um modo geral, através de uma autonomização induzida. A bioética, a biossegurança e muitos outros saberes disciplinares nascem desse movimento. Por outro lado, toda a vida social do novo homem econômico, como evidenciei antes, passa a necessitar da crescente capacidade de tomar decisões por conta própria. A abertura dos sistemas de peritos (portanto, a abertura da heteronomia em sentido illichiano) para a socialização do controle e prevenção dos riscos coincide com o advento do novo homem econômico, que precisa de autonomia para produzir mais e melhor ou para garantir sua auto-imagem de liberdade. A socialização da responsabilidade pelos riscos segue pari passu o processo de autonomização dos clientes e consumidores, não mais numa lógica utilitarista - geração de necessidades, que dão lugar a direitos, que clamam por beneficência; mas numa lógica quase kantiana - autonomização da vontade como poder individual de decisão, que gera riscos, que gera obrigação de ser responsável, e tornar-se responsável é ser virtuoso, tendo a virtude como um fim em si mesmo.

Mas aqui reaparece a contradição que Illich não previra em sua teoria da iatrogênese: a autonomia é que se coloca como a origem dos riscos, na medida em que é ela que sustenta a tomada de decisão. Isto vale para autonomia dos peritos em seus sistemas e para a autonomia dos clientes e das pessoas em geral que entram no autonomismo pluralista da sociedade pós-industrial. Assim, por exemplo, o paciente passivo apenas se submete aos riscos criados pelos médicos, como algo que lhe é imposto; mas se ele se torna um co-decisor junto com o médico, passa a ser responsável em certa medida pela geração conjunta de riscos na interface com a medicina. A autonomia do paciente torna-se o melhor seguro contra o risco de iatrogênese; com efeito, a iatrogênese passou a ser um ônus por demais pesado para o médico, inclusive em sentido financeiro, a partir do

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momento em que o público tem ciência da capacidade iatrogênica da medicina. Fala-se agora em gerenciamento dos riscos na prática clínica, envolvendo um duplo compromisso do médico: promover o “respeito aos direitos do paciente de decidir livre e esclarecidamente sobre sua submissão aos procedimentos de saúde” e uma “completa e precisa documentação dos procedimentos realizados ( Ferraz, 1997)”. Acredita-se que a autonomização do paciente pode ajudar a desarmar o ciclo vicioso da malpractice que leva a processos na justiça, contra o que tem de haver mecanismos de seguro, que alimentam os ganhos dos advogados, e assim por diante.

Há, no entanto, um salto da imputabilidade dos riscos que não pode ser captado por essa descrição da evolução social mais ou menos lenta da autonomização. Seria errôneo pensar que os riscos só fossem cobrados de quem já se autonomizou de uma maneira ou de outra. O ethos da responsabilidade leva a que a imputabilidade dos riscos estenda-se indiscriminadamente a todos. Do mesmo modo que ninguém pode justificar uma falta por desconhecimento da lei, ninguém pode ser inocentado de um risco que criou ao alegar que suas condições sociais não são a de um agente efetivamente autônomo - a responsabilidade pelos riscos tornou-se uma obrigação social.

A questão essencial quanto a isso é saber até que ponto a autonomização pós-industrial que cria seus próprios riscos, mediante a difusão da toma de decisão “responsável”, é compensada pelo aumento da capacidade de controlar e prevenir riscos (e custos) por parte dos indivíduos assim autonomizados. Os especialistas, adotando uma visão epidemiológica, têm uma opinião cabal a esse respeito: acreditam que sim, desde que a orientação para o futuro, inerente à visão de risco, seja assimilada às práticas e hábitos quotidianos de cada um, incorporada como marca distintiva de seus estilos de vida. Neste caso, o que aparece como traduzindo a autonomia é uma espécie de “conversão” do indivíduo para os novos valores que sustentam o controle e prevenção de riscos através dos estilos de vida, ou seja, da promoção da saúde.

Para uma interpretação da sociogênese dos riscos, as coisas não são tão simples assim. Os riscos são criados e recriados indefinidamente, tal como acontece com as necessidades, de acordo com a crítica de Illich. A difusão da autonomia faz-se na esperança de obter um controle social mais eqüitativo dos riscos (aliviando, de certo modo, as costas dos profissionais), mas por sua vez prende os indivíduos a uma malha que vai tecendo ad infinitum novos riscos que

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os especialistas identificam, diante dos quais é suposto que cada indivíduo tenha que se precaver e se responsabilizar por medidas pró-ativas no seu estilo de vida.75 Mas é o próprio estilo de vida que paradoxalmente cria a realidade social de tais riscos76, pela via simbólica da decisão legitimada socialmente, da mesma maneira que a necessidade cria o consumo, que cria a necessidade.

Segundo esta interpretação da sociogênese dos riscos, se alguém se limita a obedecer ao comando de outrem (do médico ou do engenheiro-chefe da empresa) ainda não é capaz de criar riscos. Mas quando é capacitado para controlar e prevenir riscos, por sua própria conta, é que começa a ser um criador de riscos. Ou seja, ele tem de adotar a orientação para o futuro, que é própria da autonomia, a fim de ser uma fonte “eficiente” de ações que pretendam controlar os riscos, mas que ao, entrar numa lógica de circularidade, dá origem continuada aos próprios riscos enquanto uma realidade social. Assim, quem faz exercícios diários e segue uma dieta hipocolesterólica está simbólica e existencialmente criando o risco do enfarte ao mesmo tempo que se protege contra esse risco do ponto de vista do epidemiológo. Se temos em conta um número restrito de riscos em foco, a autonomização pode provavelmente funcionar a contento, nos limites e possibilidades de cada indivíduo. Mas, ao se multiplicarem os riscos que cada um tem de dar conta no seu quotidiano, tantas são as condutas e regras que se vê obrigado a obedecer, que sua autonomia é estreitada e virtualmente as escolhas deixam de ser plásticas e livres. A obsessão com os riscos, no limite, engessa a autonomia que é pressuposta para seu controle e prevenção.

É preciso captar um pouco mais do espírito do risco no sentido novo antes de prosseguir nesta discussão. O risco surge de uma atitude pró-ativa. Tal atitude implica em decisões e ações que tomam em conta os ganhos e perdas potenciais

75 A esse respeito observa, com muita pertinência, Luis David Castiel: “É preciso levar em conta que o risco é um construto da contemporaneidade, que participa do clima de tensão e ansiedade vinculado aos nossos tempos, onde a idéia de "estilo de vida" passou por um processo de reificação, tornando-se "parte" dos elementos constituintes da identidade (inclusive sexual) dos indivíduos. Assim, esta noção passou a carrear, além das determinações genéticas, biológicas, ambientais, sua carga de patogenicidade potencial. Ou seja, o adoecer não é mais uma questão do destino, das contingências que podem escapar ao controle, mas, que pode ser prevenido a partir de escolhas intencionais baseadas em ações racionais bem informadas.” (ver Moléculas, Moléstias, Metáforas, O Senso dos Humores, texto disponível na home-page da ENSP, FIOCRUZ, especialmente o capítulo IV, onde Castiel reelabora, a respeito do risco em saúde, a temática dostoievskyana do crime e castigo). 76 O problema aqui é que se o risco é a condensação social da dúvida sobre a possibilidade do ganho futuro, as medidas adotadas para controlá-lo partem de pressupostos que a tecnocência põe constantemente em dúvida e promove revisões. É fato bem sabido que há vinte anos, as corridas a pé eram tidas como adequadas à melhoria do desempenho do sistema cardio-respiratório e na prevenção do enfarte e hoje já não o são. Mas muita gente continua a correr porque adquiriu esse hábito - fabricando o risco do enfarte no sentido do simbolismo social e no sentido técnico da medicina.

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postos no horizonte de acontecimentos futuros. Devo ponderar, por exemplo, o que ganho ou o que perco em fazer exercícios diários como ação preventiva do enfarte. Perderei tempo que poderia estar dedicando a coisas mais agradáveis e perderei até algum dinheiro por causa disso. Mas posso ganhar em sobrevida e, simultaneamente, fazer exercícios em companhia agradável, etc. Portanto, ao fazer exercícios diários estou criando o risco de enfarte como elemento simbólico, disjuntivo entre o bem e o mal da sociedade de risco, e ao mesmo tempo tentando conjurar o perigo do enfarte que é uma mera ameaça. Se não faço nada disso, mantendo-me sedentário, não contribuo ao simbolismo dos riscos, mas assim mesmo a responsabilidade pelo risco pode ser a mim imputada, simplesmente pelo fato de que esta é a norma social. Portanto, o risco é de minha responsabilidade desde o início, quer queira quer não, quer faça alguma coisa quer apenas espere quietistamente os acontecimentos.

Se aceitamos a lógica do risco social no novo sentido, o ônus já vem junto: por definição quem cria o risco é responsável por ele. O risco social não é mais sinônimo de perigo, algo que ameaça desde fora ou desde um âmbito ao qual a parte afetada não tem acesso. O risco e suas repercussões não são mais considerados tecnicamente calculáveis e controláveis. Agora o risco está democratizado pela presunção de que todo mundo é um ser autônomo, que pode e deve decidir sobre cada tarefa em sua alçada, adotando as indispensáveis medidas preventivas e de controle. Crê-se que uma atitude pró-ativa diante dos riscos tem uma eficácia que nenhum comando centralizado pode ter a aspiração de superar em matéria de eficácia.

Se o ônus vem junto com o risco, aonde vai parar a justiça? A invocação da justiça nesse contexto teria, contudo, de adotar um referencial mais claro, o que pode ser lembrado com base no título dado por MacIntyre (1988) a um de seus livros: justiça de quem? A justiça nesse caso tem a ver com a ação beneficente do velho liberalismo benthamista, que promovia suas reformas e programas de bem-estar na perspectiva do “maior bem para o maior número possível” ? Se sim, o que é justo é compensar os riscos e recuperar a capacidade de trabalho; mas este é o mesmo referencial que sustenta a antiga proteção social e a visão do risco como instrumento de previsão social, e o argumento continua ininteligível para as correntes autonomistas.

A crítica à sociogênese dos riscos passa pelos mesmos caminhos da crítica à sociogênese das necessidades, mas chega a conclusões contrapostas. A

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primeira nos conduz a ver os limites do utilitarismo e das concepções da proteção social, pelo predomínio que acaba por conceder às ações heterônomas, alocando o ônus dos riscos de uma forma unilateral aos agentes da tecnociência; a segunda nos leva a ver os excessos e os limites da responsabilização pela via de uma autonomia quase kantiana, que é pressuposta para melhor controle e prevenção dos riscos, mas que se vai estreitando em suas bases de liberdade de decisão pela profusão dos riscos e pela imputação indiscriminada de sua responsabilidade aos cidadãos.

Ao ligar dúvida com incerteza, na sua teoria dos riscos, a epidemiologia quer nos fazer acreditar que certos estilos de vida são melhores do que outros, desde que cada hábito “sadio” traduza a percepção de um dado risco. Mas isto dá partida ao círculo vicioso da produção simbólica dos riscos e nos deixa com estilos de vida padronizados e engessados pela ciência, enquanto a própria ciência, por viver atrás da dúvida, rapidamente muda de opinião e contradiz o que antes prescrevia.77 O controle dos riscos depende de uma responsabilização que tem que, pelo menos temporariamente, de pôr as dúvidas entre parênteses, isto é, necessita de um certo clima de segurança ontológica, de certeza e confiança, para que possa dar lugar a hábitos enraizados na vida de cada um. Disto resulta uma contradição entre a natureza sempre mutável da informação científica sobre o risco, de um lado, e as práticas de controle e prevenção pelas pessoas, práticas que têm de obedecer a um ritmo mais lento de adaptabilidade, por mais reflexivas que sejam essas pessoas.

A passagem que se faz do estudo epidemiológico dos riscos para a prevenção e controle dos mesmos implica sempre num salto para o plano da moralidade, pelo que a escolha do paradigma do bom hábito tem de tomar por referência o que vale na cultura hegemônica de certos países e de alguns grupos sociais. O aspecto da normalização autoritária das regras dietéticas foi bem salientado por Luc Boltanski no seu estudo do processo de transmissão das normas de puericultura para populações pobres na França, da década de 60. O contexto social atual das regras de riscos é bem distinto, mas a velha higiene renasce sob as vestes dos estilos de vida e convém citar, para efeito de comparação, um pequeno trecho desse do estudo de Boltanski quando trata do autoritarismo do médico e do automatismo de suas regras higiênicas:

77 Por exemplo, as pessoas continuam a fazer jogging quando os especialistas já voltaram atrás em seu parecer anterior e agora afirmam que andar é mais salutar (isto é, causa menos riscos de enfarte na tentativa de prevenção desse risco...).

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Nas clínicas de lactentes freqüentadas por essencialmente por membros das classes populares, aquilo que deveria ser transmitido em prioridade, ou seja, as razões e fundamentos que dão sentido às regras de criação ordenadas pelo médico, fica sempre implícito, enquanto o médico age como se a mãe fosse iniciada na lógica da higiene pasteuriana, ao pedir-lhe que ferva a mamadeira antes de cada refeição (Boltanski, 1984, p. 45).

Hoje o desconhecimento da fundamentação das regras dos estilos de vida já não é problema. As pessoas são capazes de saber minúcias da relação entre colesterol e formação da placa ateromatosa: reportagens sobre esse tipo de assunto saem na imprensa todo dia. O problema agora é que as pessoas têm a certeza que sabem porque estão bem informadas, enquanto a ciência continua a alimentar suas dúvidas infindas.78 No entanto, deve-se sublinhar que cada norma de prevenção e controle de um dado risco de saúde é apenas um entre muitíssimas outras formas culturais adaptáveis a esse mesmo fim: por exemplo, diante de um problema de hipertensão, um médico pode sugerir que seu paciente faça exercícios físicos ou pratique meditação transcendental. A despeito da crescente tendência atual a adotar práticas culturais do oriente para fins terapêuticos, é muito pouco provável que ele tome a liberdade de recomendar a segunda alternativa sem que seu paciente se identifique como simpatizante dessas práticas. Para cada tipo de risco, a tendência mais forte é determinar um único padrão de procedimento de tal modo que o estilo de vida acaba tendo muito pouco de estilo individual: é o tipo de risco que o comanda e impõe o comportamento-padrão. Para cada risco identificado é arbitrada uma mudança incremental nas práticas já adotadas, de tal modo que o estilo de vida torna-se uma somatória interminável de medidas e precauções. O habitante da sociedade pós-industrial enfrenta os riscos de saúde (e outros) como geradores de deveres infinitos de boa conduta, que vêm a constituir as novas formas de obrigações morais.

Nessa interpretação é realçada idéia de que o risco não é um conceito sobre a “essência” de uma situação que invoca um perigo. Por sua ligação com as

78 Tome-se o caso exemplar da AIDS, que para a vida quotidiana das pessoas foi transformada num risco equivalente ao da guerra atômica nos tempos da guerra fria, e que ajuda a mobilizar uma economia de bilhões de dólares anualmente. Existem cientistas que põem em dúvida a existência do vírus HIV e questionam sobre sua via de transmissão sexual, por onde contestam também os meios correntemente adotados em sua prevenção. Mesmo que continuemos apoiando a visão ortodoxa da etiologia virótica dessa enfermidade, a própria eclosão de uma tal polêmica entre os cientistas é signo certo de que a ciência não pode viver sem a dúvida, enquanto as pessoas comuns fiam-se na reflexividade “científica” que lhes parece fornecer certezas sobre o que fazer em contextos de grande risco.

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escolhas, é possível demonstrar de que modo os riscos estão entrelaçados em nossa trama de crenças e desejos. Assim, uma mudança substantiva nessa trama propicia encontrar novas fontes de risco e, às vezes, esquecer ou passar por cima de outras que eram antes consideradas importantes. Como disse, foi isto o que aconteceu na transição dos esquemas de previsão social para os esquemas de responsabilização. Ainda numa retroprojeção histórica desse conceito, pode-se ver que um bom exemplo não é, como se poderia pensar, algo assim como as grandes explorações marítimas do século XV - porque essas referem-se apenas ao enfrentamento de condições do meio ambiente, são façanhas que desafiam perigos. O melhor exemplo, na verdade é o do pecado no cristianismo medieval. O pecado introduziu uma preocupação social similar com o futuro de cada pessoa, a partir da possibilidade de dano (ou ganho) de um ato deliberado. Neste sentido, o risco é o pecado da sociedade pós-industrial. 79

Em síntese, penso que o risco em saúde está sendo levado muito rigorosamente ao pé da letra em sua função moral de instrumento de responsabilização. A consciência do risco, tal como acontecera antes com a consciência do pecado, acentua desproporcionalmente a presença e a ameaça do Mal. Ela impede que as pessoas desenvolvam com espontaneidade, material e espiritualmente, seus esforços para alcançar objetivos outros na vida que não seja o de cuidar compulsivamente de seu próprio corpo.

79 Luhman (1993, p. 8) nota essa associação possível entre as noções de pecado e risco, mas não tira daí nenhuma inferência geral em termos de uma interpretação moral dos riscos. Tratando da “religião da cultura” na sociedade pós-industrial e do declínio do sentimento religioso entre suas elites, Lasch (1995, p. 248) afirma que “o vácuo deixado pela secularização foi preenchido por uma cultura permissiva que substitui o conceito de pecado pelo conceito de doença”. Todo esse capítulo do livro de Lasch é extremamente esclarecedor sobre as questões da responsabilidade versus dependência heteronômica na sociedade americana da época do New Deal.

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*** O grande movimento de controle e a prevenção dos riscos em saúde, que

descrevi anteriormente, é empreendido sob a suposição de que a longevidade é um valor transcendente para todas as pessoas. Creio, no entanto, que existe um número considerável de pessoas para quem mais lhes importa viver melhor do que viver longamente - qualquer que seja a concepção que possam ter de “viver melhor”. De outra parte, se a longevidade é importante para muitos talvez seja porque consideram que encontrarão uma forma de viver melhor, coisa que lhes parece ser mais provável se uma longa existência lhes for garantida. Há de se considerar igualmente a opinião daqueles para quem as enfermidades não devem ser avaliadas só pelo seus efeitos de incapacitação física ou mental mas também enquanto oportunidades importantes de revisão e progressão moral, não importando se, para essa interpretação, utilizam um credo religioso ou uma convicção leiga. São estes os que ousam infligir a norma social contemporânea da higiomania. Para esses desviantes, entre os quais se encontra Illich, a obsessão com o corpo e com sua higidez constitui-se numa forma de escravidão intelectual e espiritual que nos faz retornar ao estágio de narcisismo das elites gregas ociosas, que eram postas sob as ordens permanentes e minuciosas do regime de corpo. 80 A diferença com a Antigüidade, é que, na situação contemporânea, a medicalização da vida sob o signo dos riscos precisa cada vez menos do comando direto dos médicos - os estilos de vida são moldados de acordo com o que as pessoas lêem sobre os resultados das pesquisas clínicas e epidemiológicas, que são prontamente veiculados pela mídia e pelos manuais de auto-ajuda.

“Saúde para quê?” é a pergunta que, por certo, Illich gostaria de fazer a milhões de nossos contemporâneos que se esmeram em “produzir seus próprios corpos. “Saúde para ser feliz” é a resposta mais freqüente que se pode antecipar, em que ainda se expressa, de forma disfarçada, a aspiração cartesiana da saúde como verdadeiro bem supremo. “Saúde para quê?” é o tipo de pergunta que não parece sequer preocupar mais os profissionalis da bioética, porque lhes é evidente que a saúde (assim como a vida) é um “bem em si” ou “um valor em si”, garantido com fundamento num direito humano. “Promover a saúde para todos é fazer a felicidade do maior número possível de pessoas”, diz o utilitarista fora da moda, identificando saúde com felicidade; ”saúde porque é justo”, afirma o utilitarista de esquerda, ansiando por um novo Estado de Bem-Estar; “saúde para que as 80 A palavra grega que corresponde ao conceito medieval de regime do corpo é díaita, que dizer exatamente maneira de viver, ou seja, estilo de vida.

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pessoas sejam criativas”, diz o defensor da autonomia do novo homem econômico, querendo significar apenas “criativo para produzir idéias rentáveis para as empresas-baseadas-no-conhecimento”. O que diria o pragmatista a Illich diante de tais respostas? Diria que cada uma delas é útil não em forma absoluta ou permanente, mas apenas no que se refere a determinados contextos ou sob determinados aspectos. De fato, em alguns momentos, ou para algumas pessoas, é importante saber produzir seu próprio corpo, bem como é importante para a história dos avanços de bem-estar social que a saúde tenha sido tornada uma questão de direito e justiça social. Para o pragmatista, o equívoco é entender a saúde de uma maneira só ou como um fim absoluto, não porque a saúde do corpo seja algo que deva estar subordinado à felicidade contemplativa da alma ou a qualquer outra coisa sublime – como quer a moral da tradição - mas porque a diferença entre fins e meios é puramente circunstancial. Para quem está enfermo não há como negar-lhe a possibilidade de que veja a saúde como um fim ou até como seu “supremo bem”. Mas não há nada de muito elogiável no comportamento de quem, em circunstâncias usuais, ocupa-se continuamente apenas consigo mesmo, seja com seu corpo, seja com seu intelecto.

No entanto, para essa visão pragmatista, é descabido o esforço para realizar um enquadramento moral da saúde tal como o que foi patrocinado pelos filósofos gregos. Se entendermos a moralidade por referência aos mores, aos costumes, constatamos que nossa cultura, ao contrário da cultura da polis, não favorece esse esforço. Não parece tampouco que os filósofos atuais ou os beioeticistas tenham condições de tentar imitar Aristóteles nesse papel. O que podemos fazer hoje com proveito é multiplicar as descrições da saúde de tal modo que a predominância da higiomania e de suas manifestações em nossa cultura possa ser mais facilmente criticada. Esta foi minha intenção neste trabalho ao invocar os testemunhos da moral da tradição, do Iluminismo, de Foucault e do próprio Illich. Favorecer a multiplicidade das descrições da saúde é definitivamente recusar que qualquer suposta autoridade científica, protegida eventualmente sob o manto da ética, ou qualquer invenção dos manuais de auto-ajuda, legitimada pela maré autonomista, tenha o direito de dizer em que consiste exatamente a saúde e como ela se relaciona com a nossa felicidade.

Tratarei, para encerrar este trabalho, de certas práticas terapêuticas que esboçam outras descrições da saúde em consonância com a cultura pluralista deste final de século. O que há de comum entre as descrições que apresento a seguir é o fato de que a saúde não deixa de ser objeto de uma atenção prudente,

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mas do que se cuida com prioridade é da possibilidade de viver melhor, a partir da totalidade das crenças e desejos que orientam a relação do homem com seu ambiente e consigo mesmo. A esta opção designo de estilos existenciais de contornamento e redescrição de riscos. A idéia básica aqui é que o discurso dos riscos nos enreda de tal modo numa trama obsessiva de auto-cuidados e de uso de instrumentos e atos de segurança, como uma espécie de moralismo da sociedade pós-industrial, que o melhor que temos a fazer diante de sua difusão universal é adotar uma das seguintes estratégias totalmente opostas: a primeira consiste em contornar ou passar ao largo desse discurso81; a segunda, é redescrever ou conceber os riscos em saúde de acordo com um paradigma totalmente distinto.

Muitos riscos podem ser, no nível social ou individual, contornados, com o que podemos simplesmente deixar de nos preocuparmos com o problema que invocam. Foi um contornamento o que aconteceu com a noção do pecado quando do advento da modernidade. Mas os riscos podem também ser redescritos, com o que passamos a lidar com seu problema de uma maneira diferente. A redescrição dos riscos pela via individual do cuidado é mais fácil de ser entendida e adotada do que pela via coletiva das políticas públicas. Que os riscos em saúde precisam ser urgentemente redescritos também por essa via coletiva é algo de que não tenho dúvidas, mas no que segue limito-me a abordar a questão individual.

Quero tratar de duas formas desses estilos existenciais, que são variações do cuidado de si - para usar a expressão estoicista de Foucault. A primeira forma vem em associação com as medicinas alternativas holísticas, e para sua análise inspiro-me nos trabalhos de Luz (1996; 1997). A palavra holístico já perdeu seu sentido filosófico e está desgastada por uma vinculação com os esoterismos mercantis de toda espécie. De todo modo, para os fins desta discussão, é justamente esse aspecto das medicinas alternativas que realmente tem maior relevância ao permitir formar um contraste com a fragmentariedade dos estilos de vida que a medicina ocidental inventa para incutir em todos nós a consciência do Mal dos riscos. A segunda forma de estilo existencial tem a ver com as práticas da psicanálise de dois autores do Instituto de Medicina Social, Joel Birman e Jurandir Freire Costa. 82 Embora Birman (1996) realize uma releitura direta de Freud,

81 Ver a esse respeito a discussão de Rorty (1991a, pp. 85-106) sobre as diferenças que marcam a abordagem de contornamento (“circumvention”) e a “desconstrução” de Derrida e seus discípulos americanos. 82 Os exemplos que tomo para análise são todos derivados dos estudos e/ou práticas terapêuticas de professores do Instituto de Medicina Social da UERJ. Devo esclarecer que isto não é nem uma coincidência fortuita, nem resultado de um intento de manter meu discurso dentro de um determinado marco institucional

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enquanto Costa (1994) o faça pela ajuda do neopragmatismo de Rorty, entendo que esses dois autores convergem para projetos muito parecidos de redescrição dos riscos psíquicos pelo seu lado luminoso, devido ao que falarei da psicanálise das pulsões e do auto-enriquecimento. Advirto, entretanto, que nenhum desses autores ocupa-se com a categoria risco, sendo esta uma recontextualização proposital que faço para inseri-los nesta discussão.

A) O Exemplo das Medicinas Alternativas Holísticas

A demanda pelas formas “não-oficiais” de consumo de bens e serviços de saúde intensificou-se nas últimas décadas e, como sublinha Luz (1996), seu sucesso não pode ser explicado senão pela presença de um “mal estar cultural” que tem muito a ver com aquilo que Illich na introdução à Nêmesis denominava de “crise de confiança” na medicina moderna. Mas, observa essa pesquisadora, outros fatores motivaram essas pessoas, de diferentes camadas sociais, a buscarem recursos terapêuticos holísticos, mesmo que seja de maneira misturada com o uso da medicina moderna. Havia, já nos anos 80, toda uma nova sensibilidade cultural, que, de uma forma menos radical do que preconizara a contra-cultura dos anos 60, procurava instaurar modalidades mais “naturais” de consumo, nas esferas da alimentação, das práticas de corpo e das terapias:

Esses sistemas terapêuticos e práticas de medicação tinham originalmente em comum uma posição anti-tecnológica em relação à saúde e, nesta perspectiva, tendentes ao naturismo. Defendiam formas simplificadas e não invasivas no tratamento de doenças, o consumo de medicamentos oriundos de produtos naturais (não “químicos”), e uma proposta ativa de promoção da saúde (distinta do preventivismo médico), ao invés da postura tradicional de combate às doenças, característica da medicina científica hegemônica (Luz, 1996, capítulo VII, p. 305).

Poder-se-ia acrescentar a essa observação que o tipo de promoção da saúde a que dão lugar nada tem a ver com a obsessão atual com os riscos. De fato, trata-se de terapias que, além de raramente serem iatrogênicas, não apontam para a necessidade de empregar o risco como instrumento de responsabilização. Luz enfoca nesse capítulo da história da homeopatia no Brasil um fenômeno de fundo mais amplo que vem alimentando a demanda pela

acadêmico - a razão, na verdade, é que são todos eles pesquisadores que, de uma forma ou de outra, desde os anos 70, foram fortemente influenciados em seus trabalhos pela contribuição dos mesmos dois autores que me orientam nesta interpretação, Illich e Foucault.

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homeopatia e outras modalidades holísticas de racionalidade médica: a crise cultural que aflige os usuários da medicina moderna. Há uma atitude de reflexividade pragmática por parte dos seus clientes, que pode ser assim sistematizada: a) maior consciência quanto à possibilidade de iatrogênese ocasionada pelos procedimentos de diagnóstico e de terapia; b) desconfiança no poder de cura dos agentes oficiais da medicina; c) insatisfação no relacionamento médico-paciente e no contato com a instituição de saúde, e insatisfação, de um modo geral, com os resultados obtidos através do cuidado institucional.

Essa reflexividade pragmática, estendida ao conjunto das práticas de saúde, faz com que muito da medicina contemporânea possa ser vista como frustrante e insatisfatória - o que ela dita, o que ela faz e pede em sua pretensão terapêutica e com seu aparato tecnológico não tem mais sentido para as crenças que hoje guiam a vida de muitas pessoas. Por que uma prática não-ortodoxa como a homeopatia (que rigorosamente não é tradicional) pode alcançar tanto sucesso nesse contexto? Os motivos apontados por Madel Luz só são convincentes se adotamos uma perspectiva cultural. É a perspectiva de que o ritual da razão médica e os pronunciamentos do seu sumo-sacerdote, o médico, deixaram de ser legítimos. Por muito tempo, como denuncia Illich, eles foram aceitos e foram obedecidos na medida em que portavam os símbolos da modernidade. Mas agora não despertam mais confiança, porque a técnica perdeu sua aura mágica. Em relação a essa crise cultural da medicina, aludida por Luz, as práticas de medicina holísitca dão um bom exemplo porque mostram de que modo as pessoas hoje estão menos interessadas no ritual simbólico da tecnologia e mais no que lhes é satisfatório, no que faz parte do seu quotidiano e de suas crenças fundamentais.

Como se repara esse elo de confiança entre as crenças das pessoas e as práticas terapêuticas com seus agentes fora do caso da medicina holística? O neoprofissionalismo de inspiração bioeticista tenta dar uma resposta a esta questão nos limites que lhe são permitidos pela medicina ocidental “reformada” e que busca estabelecer suas próprias bases éticas e técnicas para dar maior lugar à autonomia do seus clientes. Mas creio que as medicinas holísticas têm avançado mais, pois não estão em meio de uma reforma desesperada para se adequarem aos novos tempos: na verdade são seus clientes que, tendo mudado a si mesmos, em suas crenças sobre o que querem na vida, buscam o que está de acordo com essas crenças reformadas.

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A maioria dessas formas de prática e saber, sobretudo as de origem oriental, está inserida numa cultura que sustenta uma cosmovisão de harmonia entre corpo, mente e universo, incorporada a uma forma de viver milenar. A homeopatia e muitas terapias holísticas ocidentais também estão fundadas em sistemas de crenças similares, embora mais recentemente formados, e dos quais seu sistema terapêutico é visto como uma parte. Portanto, a terapia já está integrada existencialmente a uma forma de viver e de ver o mundo, com ênfase nessa harmonia da ordem cósmica para qual a prática terapêutica deve estar voltada em seus propósitos de cura ou prevenção. O exercício daquilo que é o equivalente das virtudes nesses sistemas assume uma expressão energética e vitalista, de tal modo que a ênfase na harmonia não eqüivale a uma concepção quietista nem estática dessa relação corpo-mente-cosmo. Não há como associar a idéia de risco a cada doença como uma “entidade” específica, numa relação inequívoca e individualizada. Aqui, a concepção sobre como as doenças são originadas não serve para alimentar o círculo vicioso da sociogênese dos riscos. Se existe uma preocupação com algo similar a um risco é esta: que o homem, por suas escolhas em seu modo de viver - sua nutrição, seu ritmo somático diário, suas emoções e desejos - perturbe essa harmonia, não de uma maneira leve e corriqueira, o que logo é superado pelas forças vitais internas, mas por causas que atuem de forma drástica e prolongada. A obsessão com os riscos não encontra aqui um terreno fértil nem na figura da iatrogênese nem na figura da imposição de uma mudança de vida para cada risco identificado. Em outras palavras, o holismo desses sistemas terapêuticos, decorrente de sua crença básica na harmonia de uma totalidade cósmica a que se subordina a saúde, contorna os riscos das enfermidades individuais e os redescreve como ruptura global de uma relação com uma ordem do macrocosmo ou da “natureza” do qual o indivíduo faz parte. Ora, esse risco único e global, que não é parte de uma fortuna, nem produzido pelo caos do universo, mas decorre do destino escolhido pelo indivíduo para o seu modo de viver, chama atenção apenas para uma única e básica responsabilidade do indivíduo para consigo mesmo.

O paciente da medicina holística não tem necessidade de fazer a mágica de acreditar no médico descrendo da medicina. Médico e paciente estão desde o início entrelaçados pela mesma crença fundamental, a despeito de ser reconhecido que um tenha acumulado maior saber do que o outro. A satisfação com essa relação e com o curso terapêutico não depende de nenhuma surpresa ou artifício técnico ou comunicacional - vem com a espontaneidade dos que falam a mesma língua numa mesma aldeia. A satisfação é construída na relação e não

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por uma correspondência abstrata com expectativas anteriores do cliente. Este modelo, por razões óbvias, é difícil de ser imitado pela medicina alopática ocidental:

As medicinas alternativas sobressaindo nesse caso a homeopatia, tendem a ver a relação médico-paciente como um elemento importante da cura , um guia seguro de indicação de evolução do tratamento. O aspecto psicológico, além do simbólico, é aqui evidentemente importante, e coloca para a medicina convencional uma questão crucial face à eficácia médica e resolutividade de questões de saúde da clientela de serviços públicos: grande parte dessa eficácia e resolutividade resultam da satisfação que os pacientes encontram no seu tratamento. Tal satisfação deriva, por sua vez, de uma relação socialmente complexa (em que estão presentes elementos simbólicos e subjetivos) estabelecida entre os dois termos. A satisfação, portanto, não deriva apenas de uma racionalidade técnico-científica, que tende, aliás, a ignorar a dimensão humana envolvida na relação terapeuta-paciente. O sucesso das medicinas alternativas deriva em grande parte da maneira como essas medicinas estabelecem a relação com seus pacientes. Esta relação poderia servir como um parâmetro de discussão para a medicina institucional na atualidade, colocando-se em pauta a importância do aspecto simbólico em qualquer sistema terapêutico (Luz, 1997).

O conceito de satisfação avançado por essa análise tem de ser destacado como totalmente distinto de um atendimento a uma expectativa de consumo na forma em que aparece nas teorias gerenciais contemporâneas. Não se trata de um “serviço” que corresponda a uma imagem antecipada pelo desejo do cliente. O que se pretende implicar por essa virtualidade de satisfação é a situação em que a totalidade do relacionamento médico-paciente faz sentido para a totalidade das crenças embutidas no estilo existencial escolhido pelo indivíduo que momentaneamente se apresenta como paciente. Não é uma questão de consumo de um artigo qualquer, mas de saber se o que cada um obtém das práticas de saúde é algo realmente relevante e gratificador dentro do seu modo de se ver no mundo. A pergunta fundamental é: confio o suficiente nessa relação, para que eu possa fazer também a minha parte, e para obter na relação um bem conveniente para minha saúde? Posto de uma maneira mais geral: esta relação tem para mim o mesmo significado de minhas outras escolhas dentro de meu modo de existir e para as minhas mais caras crenças? Estas perguntas costumam ser respondidas positivamente pelos que aderiram às medicinas holísticas. Mas, para muitas situações, essas pessoas continuam a recorrer em forma suplementar à medicina

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ocidental. O que surge daí é um certo sincretismo moderno/tradicional que não obedece a uma concepção unitária da vida. Tal sincretismo não se constitui, no entanto, num novo dualismo cartesiano onde, por exemplo, a problemática religiosa seja mantida num mundo espiritual separado da cosmovisão mecanicista. No caso, nada obedece a uma separação rigorosa nem gera esferas estanques, já que uma mesma pessoa sincretiza, sem nenhum critério claro, muitas formas de viver, formas que podem parecer antagônicas para a modernidade clássica. A adoção das práticas holísticas tem a ver com uma interpretação do mundo e do corpo, prescreve certas condutas, mas não se submete a uma auto-certificação racional com a verdade de cada crença embutida nessas condutas como tampouco dá origem a uma vontade de evitar todos os riscos. Por certo é prudente considerar certas advertências (como no caso da AIDS), mas elas podem ser resumidas a um mínimo que não perturbe tanto a vida do indivíduo. Para os demais riscos, basta confiar na atitude existencial básica de harmonia que seguramente já por si contorna o que os médicos consideram um dos maiores fatores de risco à saúde no mundo contemporâneo - o stress.

Assim, submetendo-se essas práticas a uma revalorização dentro de um ecletismo cultural, desaparece a exigência de racionalidade unificadora: o que unifica é o modo de viver. O conflito entre razão e tradição não é resolvido por via da argumentação ou do diálogo, mas por via da convivência pacífica, em que um lado pode questionar o outro, mas a fonte de tradição não é considerada ilegítima simplesmente porque contraria a ciência. As pessoas esperam com a adoção das medicinas holísticas trocar a certeza que se tornou incerta, ou seja, o saber científico da medicina moderna, por uma autosatisfação e uma confiança que resultam de uma microcultura compartilhada, portanto, contam com a cumplicidade dos que lhes prestam cuidados, na reação conjunta à cultura dos riscos que a medicina estimula através dos seus estilos de vida ditados pela chamada promoção da saúde.

B) O Exemplo da Psicanálise das Pulsões e do Auto-Enriquecimento

A psicanálise das pulsões e do auto-enriquecimento é uma vertente terapêutica que se estriba na forma de autonomia do fazer-se a si. Por motivos óbvios, essa forma de autonomia é arriscada por definição – jamais pode ser entendida na forma disciplinar da tarefa de paz que o aristolelismo/tomismo pressupõe para o alcance da perfeição moral. É, antes, como disseram os

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estóicos, uma tarefa de guerra, onde a coragem é a virtude principal e a segurança não pode ser um bem que se almeja obter de imediato. A imagem agonística da luta contra hábitos pessoais arraigados e preconceitos sociais impositivos é a que melhor responde a essa empreitada do eu que os estóicos foram os primeiros a descrever como um processo terapêutico de mente-corpo. Neste caso, a temporalização existencial tem um vetor fortíssimo voltado para um futuro que se cria pelo operar dessa mesma obstinação do fazer-se a si; por isso traz consigo todas as incertezas de escolhas ainda não realizadas e de resultados ainda não conferidos. Portanto, ao contrário do exemplo anterior, os conteúdos prévios da cultura - seja da tradição seja de uma fonte qualquer - não constituem delimitantes necessários do espaço da experiência, nem uma garantia de segurança ontológica para mover-se no contornamento dos riscos. Neste caso, o indivíduo move-se consciente e voluntariamente em direção aos riscos e, em geral, encontra-se muito pouco armado para essa batalha, a não ser de seus impulsos básicos - da coragem de ser, como dizia o neoestóico Tillich, ou das forças das pulsões, como dizem os psicanalistas contemporâneos.

Segundo Birman (1996, pp. 39 e ss. ), as pulsões tornaram-se, a partir de um determinado momento da evolução do pensamento de Freud, a categoria central da psicanálise, em substituição ao papel amplamente destacado que ocupava a categoria inconsciente nas suas formulações iniciais. Freud entende que as pulsões não são nem conscientes nem inconscientes, mas constituintes do sujeito por seu dinamismo num “percurso genealógico”. Podem passar da atividade à passividade, podem dar lugar a fixações tópicas no organismo, a recalques e sublimações (p. 40). Podem também voltar-se para objetos de satisfação inesperados e inventados através da própria experiência de análise. A situação caracterizada por Birman é de uma inevitável incerteza ou de indeterminismo no manejo dessas forças pulsionais, nas formas em que se apresentam tanto para o paciente como para o analista. E o desafio de ambos é o de “encontrar destinos para as forças pulsionais”, mais precisamente, destinos que levem a uma satisfação das representações, ou seja, das formas particulares do desejo originado pelas pulsões. A crítica à psicanálise tradicional dá-se porque está presa a certo cientificismo ou determinismo quando se atribui a tarefa de desvendar ou descobrir os eventos traumáticos e certas fixações tópicas das pulsões, deixando de considerar que as pulsões estão sempre disponíveis para se realizarem em novos representantes e objetos. Mais que descobrir essas relações cristalizadas numa insatisfação que pertence ao passado do sujeito (até porque a “verdade”

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dessas cristalizações pode ser posta em questionamento), a tarefa importante é inventar novas formas de realização para essas relações:

Reler de maneira crítica o discurso freudiano implica então interpretar o sentido teórico da psicanálise a partir do conceito de pulsão como força, para se surpreender com a descoberta de que os objetos de satisfação e os representantes não são dados imediatamente e de uma maneira originária ao sujeito, e que devem, pois, ser inventados por este a partir de um fundo indeterminado (Birman, 1996, p. 48).

Birman acentua noutro artigo (in França, 1996, pp. 34 e ss.) que essa leitura da passagem do determinismo para o indeterminismo pode ser feita a partir da metapsicologia freudiana, que fez com que a psicanálise migrasse do campo da ordem científica, com seus pareceres definitivos sobre as verdades enterradas no inconsciente, para um campo dinâmico, que é o da unificação das experiências ética e estética. As imagens que retira do próprio Freud para descrever essa experiência são também agonísticas, as de uma guerra - envolvendo defesa e ataque contra as forças pulsionais. Por isto, nunca se sabe exatamente “como acabará a aventura psicanalítica”.

Agora é o paciente, com sua estilística da existência, que, com maior ou menor apoio do analista, deve inventar os destinos a serem dados a suas forças pulsionais. Esta auto-compreensão do processo analítico tende a promover uma relativa desprofissionalização do cuidado, na medida em que o analista é que se incorpora ao estilo existencial de um cuidado de si, assumido na sua integridade pelo seu cliente.

A diferença com a medicina somática da promoção dos estilos de vida, quanto à questão do enfrentamento dos riscos, é que a psicanálise das pulsões e do auto-enriquecimento busca ajudar a enfrentar os riscos através da consciência do Bem e não da consciência do Mal. Os riscos são tomados como ganhos potenciais para a reformulação dos projetos de cada um - são revirados ou redescritos pelo seu avesso de positividade, convertidos em sinais atraentes para uma aventura com as forças das pulsões. Portanto, o esforço dessa psicanálise está concentrado em redescrever os riscos puramente negativos dos traumas, das fixações libidinais e dos seus correlativos emocionais do medo e da culpa. O saudável é doravante identificado na capacidade de correr riscos para escolher uma melhor descrição de si mesmo, para se auto-enriquecer.

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Jurandir Freire Costa também analisa a passagem do determinismo ao indeterminismo no processo analítico, mas a descreve de outra maneira sob a influência de Rorty: é a substituição de uma via terapêutica de purificação por uma via de auto-enriquecimento. Costa admite, seguindo a Rorty, que não existe um centro ou uma essência do sujeito, nem um eu verdadeiro, mas apenas uma estrutura reticular que mescla, no psiquismo de cada um, crenças, desejos e causas - estrutura que se faz e desfaz continuamente pela adesão de novos componentes e descarte de outros, já antiquados. É com fundamento nesta plasticidade das escolhas, cada vez mais diversificadas e sem uma predeterminação de qualquer ordem, que o sujeito pode aproveitar certas oportunidades favoráveis para lançar uma redescrição de si mesmo, em princípio uma descrição melhor, que libere sua capacidade de reagir e agir. Este é o ideal do auto-enriquecimento, que se realiza por um esforço consciente de remanejamento das crenças embora suas causas ou motivos “originais” - ou os que se vão manifestando ao longo desse processo - possam ser inconscientes e incontroláveis.

O sujeito que se descreve a partir deste ideal esforça-se por imaginar como novas descrições podem orientar, de um modo mais satisfatório, aquilo que vive como insatisfação, mal-estar, angústia, medo, desespero, sofrimento ou simples vontade de expandir a capacidade de ser feliz. Não pretende “conhecer-se a si mesmo”, conhecendo os fundamentos últimos da linguagem, da verdade e do sujeito; quer “afirmar-se”, nietzscheanamente, como alguém que vive melhor sem fazer mal aos outros (Costa, 1994, p. 21).

As descrições de si podem e devem ser múltiplas, seja no referente ao passado seja em projetos de futuro, de tal forma que a autonomia de escolha estende-se, neste caso, ao ponto de encontrar, entre elas, as imagens que melhor satisfazem ao indivíduo, no sentido de ser uma “boa crença” que produz efeitos desejáveis sobre seu estilo existencial, reportando-se ao que “já foi” e ao que “pode ainda ser”. Kehl (in França, p. 111) refere-se a uma declaração de uma paciente sua que bem representa o valor pessoal de uma adequada redescrição do passado biográfico: “nunca é tarde para se ter uma infância feliz...”

Essas breves descrições talvez sejam suficientes para caracterizar o quanto de autonomização do sujeito está subentendido na realização desses processos ligados a estilos existenciais ético-estéticos, na forma em que foram retratados por esses dois psicanalistas. Em ambas interpretações, o abandono

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das explicações causais definitivas dá lugar ao indeterminismo e ao relativismo das crenças e das escolhas, constituindo-se o processo analítico num instrumento adicional (não único, portanto) de responsabilização do indivíduo pelo destino de suas pulsões e pelo uso conseqüente de suas auto-descrições.

Entendo que esse é um estilo psicanalítico que está em consonância com as tendências contemporâneas da ética da responsabilização pelo reforço da autonomia do sujeito. Não há dúvidas, tampouco, que se trata de uma responsabilização pelos riscos, com tudo o que acarreta de possíveis ganhos e perdas; é uma responsabilidade aberta ao vir-a-ser incerto e para o qual o psicanalista não mais se imagina dispor de um método seguro para guiar o processo até suas últimas conseqüências - ou seja, tudo pode acontecer. Mas a própria autonomização faz acender a esperança de que o melhor acontecerá - uma maior satisfação consigo mesmo, já que a “cura” não costuma mais estar em cogitação. Em que isso difere da responsabilização pelos riscos na promoção da saúde a que venho fazendo referência e críticas sucessivas? Difere no ponto em que a audácia iluminista da autonomia é assumida de uma forma plena e que se pode resumir no seguinte dístico: tenha a audácia de saber e de fazer por si - ao término de sua tarefa, você poderá ver que se fez a si mesmo. Portanto, nesta linha de prosseguimento da projeção iluminista/estoicista da autonomia de Foucault, a liberdade de saber e a liberdade da ação são prometidas de saída, contando com a audácia ou a coragem de cada um; mas a conversão ao novo eu, a autopoiese, é sempre incerta. O processo terapêutico deve ser tido como uma aventura ou uma guerra num terreno minado pelos inimigos.83 Portanto, a cura não pode ser prometida, mas a possibilidade de viver melhor é antevista em meio a todos esses riscos...

Na interpretação do conceito de saúde enquanto uma “capacidade autônoma de lidar” ressaltei a insistência de Illich em compreender a saúde pelo que é sadio, ousado e lutador em cada ser humano e não pela imagem negativa do enfermiço, do enfraquecedor, que agora domina por inteiro a noção de risco na chamada promoção da saúde. A saúde humana é auto-mantenedora, porque resplandece nessa capacidade de lutar, desafiar e enfrentar o que lhe é adverso.

83 Guattari (1992) desenvolveu uma espécie de teoria ampliada da autopoiese como paradigma ético-estético que abrange praticamente todo o universo da vida social contemporânea; mas, ao produzir uma linguagem perpassada pelas teorias semióticas, informacionais e da complexidade (“caos”), Guattari está sujeito à crítica feita por Illich ao emprego do termo “entropia” para descrever certos problemas do empobrecimento cultural contemporâneo, pelo que a figura do Mal acaba por ser escamoteada: “quando termos técnicos são incorporados a um discurso ético, eles inevitavelmente extinguem seu significado moral (Illich, 1992, p. 73).”

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Ora, os riscos dos estilos existenciais ético-estéticos, analisados aqui em seu formato psicanalítico, são invariavelmente vistos pelo lado positivo, através de uma ótica de desafio agonístico que retroalimenta a autonomia. Não há nenhuma precaução excessiva e nada induz ao medo, embora o medo possa surgir como surge em qualquer tipo de batalha. Mais ainda: o processo não sugere estilos padronizados ou predizíveis de comportamento, porque não há riscos específicos a serem observados já que o estilo existencial é uma totalidade do ser no mundo. Um resultado negativo, como observa Birman (1966, p. 46), pode ser obtido quando o paciente desenvolve reações que o levam a se refugiar no masoquismo ou o lançam no sentimento de desamparo, mas estes são incidentes que não podem ser antecipados nem supostamente prevenidos.

Para comparar a ação heterônoma tradicional com uma ação autônoma reinventada como a que é defendida por esses psicanalistas creio que é muito útil retomar a distinção entre autopurificação e auto-enriquecimento que Rorty aplica na crítica a uma certa variante do freudismo. Mas, pode-se agregar, não só a psicanálise, não só a psiquiatria, mas toda a ação heterônoma em saúde está marcada por tal obsessão de promover a purificação dos corpos (como atestam inumeráveis textos de Foucault). Não é outro o alvo da crítica de Illich à medicina moderna: é essa obsessão de limpar as máculas, de evitar a qualquer preço os vestígios da doenças, do sofrimento e da morte, e dos traumas psíquicos que os acompanham. Essa temática das estratégias médicas de purificação e normalização é bem conhecida da medicina social e não pretendo repisá-la aqui. O que não se costuma observar nesse tipo de abordagem de inspiração foucaultiana é o quanto os rituais de purificação dos corpos, que impõem um limiar de dor para supostamente evitar sofrimentos maiores, obedece da parte de cada paciente, a pulsões que se fixam em mecanismos de satisfação autodestrutiva, e, portanto, masoquista. A dor da dependência heteronômica é preferida aos enfrentamento dos riscos da autonomia. O Illich da Nêmesis mimetiza o estilo pós-estruturalista e definitivamente omite essa linha de interpretação, pressupondo que é a dominação heteronômica o único obstáculo ao florescimento da autonomia. Mas, como relembra Freire Costa, se a liberdade do cuidado autônomo é uma oportunidade de crescimento pessoal, de novos papéis, de auto-enriquecimento através de descrições mais nobres do “que somos” e “o que fazemos”, para cada pessoa e para a comunidade, ela também é fonte de riscos e de incertezas para todos. O auto-enriquecimento pode ser festejado como uma vitória de Eros sobre Thanatos, mas não convém esperar dos pacientes que sejam os novos superhomens nietzscheanos, que possam continuamente refazerem-se

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no seu entusiasmo e energia vital pelo cultivo de uma vontade de potência. A questão novamente colocada aqui é a de um equilíbrio sinérgico entre satisfação heteronômica e autosatisfação, em que a primeira funcione como uma retroalimentação positiva para a segunda. O trabalho de cura tem que ser entendido não como a busca de uma resolução final de problemas: curar é cuidar, estar atento para “encontrar destinos para as forças pulsionais” (Birman, 1996) e isso deveria valer não só para a psicanálise como também para a medicina em geral.

Quero realçar, em conclusão, que esses dois modelos estilísticos (o da medicina holística e o da psicanálise das pulsões e da redescrição) levam a encaminhamentos muito distintos da autonomização. O primeiro tem uma parte substantiva de seu conteúdo predeterminado pelas crenças ligadas a uma forma qualquer de tradição; o outro tem como limite a cultura contemporânea, mas nenhum conteúdo predeterminado. O primeiro leva a dar um adeus aos riscos em saúde como realidade existencial angustiante; o segundo promove a ousadia do indivíduo em se pôr face a face com as incertezas e o padecimento psíquico, mas os riscos que o cercam são manejados na qualidade de alavancas que desentravam as energias engastadas em algum lugar. O primeiro mantém uma plasticidade de escolhas a partir de uma base de autonomia previamente dada: é esta base que permite incorporar maiores ou menores partes da tradição ou até a mudar de referencial - buscar uma tradição que pareça melhor; no segundo, a própria base da autonomia tende a se ampliar progressivamente pela plasticidade cada vez maior das escolhas e de seu conteúdo indeterminado. Nos dois casos, as certeza antes prometidas pela ciência, e agora cada vez mais incertas, são deslocadas para que se valorize em seu lugar o grau de satisfação com seu próprio estilo existencial. Portanto, não é mais a medicina que determina e padroniza o estilo de viver da pessoa, mas, ao contrário, a terapêutica constitui parte de um modo singular de estar no mundo, sendo um verdadeiro estilo, marcado não mais pelo aspecto do consumo, mas pelo aspecto existencial, que ergue, acima da saúde, objetivos mais caros a cada pessoa.

Antes era a confiança cega no médico e em seu saber esotérico - uma figura pretensa de sumo-sacerdote - que garantia a satisfação. Agora, é o estilo existencial tenazmente buscado que se ergue em padrão de julgamento do próprio médico. Chegando pelo lado avesso das práticas de saúde, o estilo existencial torna-se um instrumento de responsabilização do próprio médico. Exige que o médico seja responsável pelo seu cliente não em termos de um cuidado

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heterônomo, em que seu saber do profissional dita o que é melhor a quem dele depende, mas em termos de um ajuste de suas próprias crenças àquilo que o cliente pode vir a ser. Isto significa que o cliente tem o direito de se dirigir a seu médico doravante com estas palavras: se você não age de acordo com o o que creio e com a maneira como eu desejo viver, não há nada que possa fazer por mim.

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CONCLUSÃO

Uma recontextualização – tal como a que este trabalho pretendeu fazer a

respeito do pensamento de Illich – tem por objetivo multiplicar e diversificar o número de textos e contextos com os quais o tema é posto em relação - e sempre restam inúmeros outros textos e contextos que poderiam ser invocados e com os quais novas relações poderiam ser estabelecidas. Assim, não se há de esperar que a recontextualização leve a uma conclusão sobre o tema escolhido; com efeito, para ser coerente com sua via de interpretação, a recontextualização tem de ser prosseguida indefinidamente.84

O que pretendo que sirva de fecho a este trabalho é uma recapitulação dos reparos que fiz ao pensamento illichiano quanto a um conjunto de aspectos ético-políticos presentes naquilo que denominei de primeira e segunda crítica social da saúde. Esta parte final complementa, deste modo, a crítica ao crítico, desde a perspectiva filosófica aqui adotada, que se identifica, em linhas gerais, com o neopragmatismo, pelo que pretendo chamar atenção para as diversas coincidências e as muitas dissonâncias entre Illich e Rorty.

A extraordinária densidade moral da questão da autonomia do sujeito no pensamento de Illich faz dele alguém que, como dissemos, bem pode ser caracterizado pelo cognome de profeta da autonomia. A união excêntrica entre ideais da tradição e do Iluminismo que ele sustentou, primeiramente contra a sociedade industrial e, depois, contra a pós-industrial, jamais se limitou a uma mera rejeição ou condenação do mundo, porque, em cada caso, tinha a propagar uma noção bem definida de qual seria o melhor modo de viver. As alternativas para viver melhor de que fala Illich não dependem de uma série de eventos incertos e de etapas preliminares tal como era pressuposto no pensamento socialista, mas são enunciadas para um “hic et nunc”. Embora, na primeira crítica social da saúde, ele tenha em conta o que denominou de revolução institucional, o modo de viver que indica estava, em princípio, ao alcance de todos. Illich entendia, na Nêmesis e noutras obras do mesmo período, que, dadas as condições sociais e técnicas do industrialismo, as cidades ou, pelos menos os grupos humanos, podiam ser organizados a fim de trabalhar e consumir de uma maneira melhor, ou 84 Pode-se dizer que é precisamente através desse tipo de exercício, muito similar ao de uma crítica literária, que Rorty e Derrida têm-se destacado no cenário da filosofia contemporânea.

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seja, de uma forma mais satisfatória para todos. Ele acreditava que o aumento da liberdade de cada um, para agir e fazer o que lhe cabe, com a tecnologia adequada, podia gerar valores de uso de consumo individual e comunitário que tornassem menos caras, mais eficazes e menos arriscadas as tarefas quotidianas dos cuidados com a saúde, da educação e do transporte. Essas eram condições necessárias a um uso convivencial das ferramentas baseado no incremento da produção comum de valores de uso produzidos diretamente por seus consumidores. Posteriormente, tomando consciência de que essa tese facilmente se adaptava aos objetivos da acumulação capitalista nas sociedades pós-industriais, através da exploração do trabalho sombra ou informal, ele propõe a adoção de um modo de viver vernacular que é o único capaz de conservar a produção de valores de uso restrita a um círculo doméstico, portanto, voltada para os objetivos de auto-subsistência da família e da comunidade. As propostas de Illich acerca da sociedade convivencial, do equilíbrio entre autonomia e heteronomia nas ações de saúde, da prática das virtudes no cuidado de si e da comunidade vernacular apresentam-se a título de variantes de uma mesma preocupação essencial que Illich sempre manifestou quanto à necessidade de que as pessoas encontrem formas coletivas de viver melhor.

Entendo que tal preocupação com as dimensões práticas e existenciais do trabalho e da vida quotidiana, sua busca obstinada por certos modos de viver melhor numa dada sociedade, é algo que Illich compartilha com Rorty. Mas o que há de comum entre Illich e Rorty restringe-se ao formato dessa pergunta. De fato, a pergunta ética fundamental em Rorty sobre como viver melhor não se prende a uma preocupação com o telos ou o dever de cada cidadão, conforme está presente na questão aristotélica sobre a boa vida. Essa pergunta não implica numa obrigação moral qualquer, dada a priori, nem a abrangência universal de um desempenho virtuoso esperado de todos os membros da sociedade. Rorty imagina que há uma pluralidade de formas de viver que podem ser inventadas no futuro e justificadas por nós, individual ou coletivamente, por terem se revelado melhores do que aquelas que adotávamos antes. Para esses eventuais modos de viver ele não tem qualquer prescrição a oferecer. O que entende fazer parte dessa visão da esperança moral é o desejo de ir progressivamente ignorando certas diferenças que antes faziam as pessoas estarem em campos opostos e competitivos, certas diferenças de credo, de raça, de gênero, de orientação sexual e assim por diante. Assim, espera-se que um número cada ver maior de pessoas, vivendo de forma muito diferentes entre si, entendam que há coisas importantes

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que os congregam numa comunidade moral básica, que pode ser local, nacional ou transnacional.

Illich, ao contrário, pensou suas alternativas aos estilos de vida das sociedades industrial ou pós-industrial na condição de quem tem uma resposta única e cabal a oferecer. Externa ainda a preocupação modernista com o encargo de “descobrir” e de “revelar” às pessoas o que lhes é melhor. Não tenta arbitrar dentro de um quadro de múltiplas soluções possíveis, mas simplesmente ditar o que considera ser, em cada caso, um “best way of living”. Portanto, Illich age como quem indica ou prega um único caminho salvífico. Ora, esta forma de entender o que é moralmente adequado retira-o da companhia dos pragmatistas para pô-lo junto dos profetas e dos pregadores religiosos. Não surpreende, portanto, que Illich opere uma transição extremamente questionável quando passa da defesa do convivencial à defesa do vernacular. É este o ponto que melhor ilustra as deficiências do profetismo moral de Illich e quero evidenciá-lo a partir de suas idéias sobre a interação entre autonomia e heteronomia na Nêmesis.

Quando, nessa obra, Illich abandona a tarefa, que havia antes divisado para si, de encontrar um ótimo de equilíbrio entre forças meramente técnicas, ele passou a compreender que esse ponto só pode ser fixado como resultado de um embate que é simultaneamente ético e político. Tal formulação naturalmente leva a que se cogite de uma pluralidade de pontos possíveis de equilíbrio e não de uma solução única, um perfeito ponto de equilíbrio. Com base nessa afirmação poder-se-ia esperar que Illich estivesse preparado para criticar os atores sociais que exagerassem na interpretação do quanto de autonomia ou do quanto de heteronomia é necessário para uma dada situação e prática. A pluralidade de pontos de equilíbrio poderia ser justificada em função das diferenças entre os atores ético-políticos de acordo com: a) o tipo de ação técnica considerada; b) o entendimento particular que cada agente pode ter em relação ao quanto de autonomia e de heteronomia é desejável ou possível em cada situação; c) o grau de correlação de forças entre esses agentes. Daqui que quem sustenta a tese do equilíbrio sinérgico entre autonomia e heteronomia deva ser sensível ao curso da história do confronto entre esses atores; se não se admite uma definição a priori quanto ao ponto ótimo de equilíbrio, através de uma definição cabal por parte da ciência ou da moral, esse ponto tem de ser matéria de confronto ou de convenção entre os atores. Sendo assim, não deveria constituir surpresa para Illich que a retomada da bandeira da autonomia viesse, como veio a acontecer nos anos 80 e 90, da parte de atores que nos anos 70 ele havia considerado serem refratários a

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sua concepção sobre o uso convivencial da ferramenta: o Estado, as agências internacionais e os grupos profissionais.

Isto quer dizer que a noção de um ponto de confluência de opinião entre os atores ou de permanente querela, no debate sobre autonomia e heteronomia, nos planos ético e político, não foi levada a suas últimas conseqüências por Illich, pela simples razão de que, embora não o dissesse claramente, ele gradativamente, no período posterior à Nêmesis, foi assumindo que a produção autóctone e humanizada de valores de uso seria uma espécie de fonte definitiva de valores morais. A autonomia do viver acabou por ser transformada num paradigma moral em si, que agora Illich buscava traduzir numa versão renovada mediante a cultura e o modo de ser vernaculares, para se diferenciar daqueles que pretendiam instrumentalizar a autonomia com o propósito de atingir o que o próprio Illich havia antes defendido, ou seja, que a ação autônoma é mais efetiva, capaz de proporcionar resultados melhores e maior satisfação para as pessoas. A defesa da cultura vernacular como única alternativa autêntica de autonomia e de modo de viver autônomo consagra certa intolerância moral que já anteriormente se podia observar em Illich. O modo de viver vernacular vem para substituir a convivencialidade enquanto “one best way of living”. Contra este traço de intolerância do pensamento de Illich, quero mais uma vez sublinhar a abertura ao plural que está presente na noção equilíbrio ético-político entre autonomia e heteronomia; portanto, saliento que esse equilíbrio, desde que não seja convertido num “princípio”, é matéria para discussão constante e que admite uma quantidade inesgotável de formas de realização para melhor nos modos de viver dos indivíduos e dos grupos sociais. Assim, o autonomismo pluralista das sociedades contemporâneas constitui não o adversário ideológico face ao qual precisamos inventar uma forma única e autêntica de viver, mas uma base de discussão que devemos reconhecer como mais favorável do que a que prevalecia há trinta anos, quando ser eficaz em medicina era tido como sinônimo de usar técnicas avançadas, sem saber o que os pretensos beneficiários pensavam ou queriam. Se a bioética contribuiu de algum modo para que esse estágio de legitimação da autonomia dos pacientes fosse alcançado, isto tem de ser reconhecido, embora este seja um mérito que não a transforma em autoridade definitiva sobre o tema, de tal modo que nos sentimos autorizados a continuar a debate-lo fora dos marcos “profissionalistas” em que se move essa disciplina. Por outro lado, se um programa oficial de governo invoca a solidariedade e a ajuda recíproca das populações pobres para a melhora de suas condições de saúde, não precisamos, numa crítica feita em nome da sociedade, contrapor essa iniciativa com alguma

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outra forma de autonomia bem mais transcendente ou “autêntica” – bastaria indicar de que modo ou em que circunstâncias o apelo à autonomia traz mais benefícios.

A receita que nos vem da mídia hoje sobre a promoção da saúde é também algo que se constitui num “one best way of living” – é o que pretendeu mostrar a análise feita sobre a sociogênese dos riscos. Os estilos de vida que almejam evitar os riscos de enfermidade acabam altamente padronizados – constituem descrições monotônicas sobre como viver melhor, em que a saúde é tomada como a fonte última dos valores morais e um corpo sadio, a ser obtido através dos esforços pessoais de cada um, transforma-se no objetivo da existência humana. A higiomania não é, entretanto, um retrocesso – seguramente estamos melhores do que há cinco décadas quando não havia nenhuma noção socialmente difundida de que cada um tem o dever de cuidar de seu corpo. Mas se reconhecemos que existe um avanço das formas de comportamento social no sentido da ação autônoma em saúde, não há motivos, de outra parte, para admirarmos os rituais de somatolatria celebrados pelo afã narcisista das classes abastadas da sociedade pós-industrial. O que inquieta nessa modalidade de atitude pró-ativa é que seja descrita como a única alternativa de conduta zelosa que nos resta. É preciso reagir a esse modelo de “autonomia engessada” e a reação, numa visão pragmatista, começa pelo esforço de relembrar a partir da história intelectual muitas outras descrições da saúde e da autonomia, em que o cuidado responsável com o corpo não se converte numa obsessão auto-centrada. Os exemplos que dei acerca dos estilos existenciais de contornamento e redescrição dos riscos tiveram esse propósito. Mas outro exemplo de extraordinária expressividade está descrito na Nêmesis, no trecho sobre a saúde como virtude. Se não lermos esses exemplos como uma obrigação moral, mas como uma ilustração de como se pode ser responsável pessoalmente pela saúde, mantendo outros objetivos importantes na vida (não importa quais sejam), estamos reunindo descrições que ajudam a pluralizar nossa interpretação sobre como viver melhor e contrapondo-nos ao domínio universal alcançado pela higiomania. A higiomania é deixada de lado na medida em que multiplicarmos as descrições da autonomia que são alternativas que podem ser escolhidas para viver melhor, cuidando atentamente de nossa saúde, porém sem transformá-la no alvo último da existência.

A dificuldade de Illich em reconhecer que a multiplicidade de descrições da autonomia nos coloca em condições melhores é devida, no fundo, a sua crença numa autoridade do saber revelado, que é a única capaz de anunciar uma

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verdade moral última. Quando fundiu a racionalidade da autonomia com a autoridade da tradição, Illich esperava que cada uma de suas obras trouxesse uma mensagem dessa natureza para as pessoas. Na medida em que assume o que há de profético e normativo no espírito da religião cristã, Illich, ao tratar da convivencialidade e, especialmente, da cultura vernacular, jamais poderia se conceber como alguém que apenas aponta um bom exemplo. Mas para um entendimento moral pluralista, como é peculiar ao pragmatismo de Rorty, o que Illich anunciou é exatametne isso – algo que pode ser imitado por alguns, mas que para outros é falho, incompleto ou inacessível, de tal modo que é plenamente justificável que busquem exemplos bem distintos alhures.

Lendo a Nêmesis com essa preocupação, percebemos que é próprio da heteronomia que realize uma instrumentalização da razão e dos recursos técnicos por meio de certos profissionais; mas que a autonomia alcança fins similares realizando uma igual instrumentação a partir da iniciativa de cada indivíduo e dos que lhe são próximos. Esse par de categorias não é concebido segundo a velha dialética dos fins e dos meios, a autonomia como fim e a heteronomia como meio. A autonomia tanto quanto a heteronomia são aí tidas como vias de obtenção prática de certas condições que redundam em resultados melhores desde que combinadas de outra maneira do que a usual, com total predominância da heteronomia. Illich não estava preocupado em fazer da autonomia um objetivo emancipatório mas um instrumento para conferir mais segurança e permitir resultados melhores a cada ato social de educação, transporte ou cuidado de saúde. Pode-se dizer que nessa obra e noutras do mesmo período Illich está motivado pelo significado pragmático da autonomia – por exemplo, suas possibilidades de contribuir para a efetividade do processo de cura ou de aprendizagem. A autonomia não aparece como um fim moral a que se deve subordinar o uso da tecnologia; nem a ferramenta é tida como algo separado e distinto da tradição. Illich pensa como um baconiano que acredita que a ciência precisa das pessoas para saber melhor fazer as coisas. Oposições tais como a que Habermas criou entre razão estratégica, voltada para um fim, e razão voltada para o entendimento são estranhas a essa interpretação. Naquilo que nos descreve Illich como o melhor uso dos medicamentos e da prática profissional, fins e meios são alternados tal como acontece na visão pragmatista de Dewey. A tradição pode ser “manipulada” e a autonomia pode ser “instrumentalizada” para que se obtenham melhores resultados para as pessoas, sem que isto seja motivo de pejo moral por não se as tomarem como um fim em si mesmo.

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Mas Illich vai progressivamente abandonando essa interpretação pragmática da autonomia e, ao aprofundar sua crítica do homem econômico, chega a um ponto em que admite ser a autonomia da cultura vernacular a única legítima para fundamentar uma proposta de viver melhor. Então a autonomia já não aparece como manipulável para um fim justificável. Na sua peroração acerca do modo de vida vernacular, a autonomia é convertida num telos moral, vem a ser o próprio fim último a que se deve aspirar nesta existência. Illich retorna e reafirma um certo aristolelismo que está presente desde a origem no seu pensamento moral. Através do modelo de vida vernacular, sustentado na produção doméstica que resiste à invasão das relações mercantis, ele quer restabelecer algo assim como as condições sociais ideais para a prática das virtudes. Mas essas condições ideais olham para trás na história e não para frente, para algo que nos possa unir no futuro a despeito das divergências intransponíveis atuais.

Para uma perspectiva pragmatista, o que Illich quer mostrar na sua apologia das comunidades vernaculares é apenas mais um entre muitos outros bons exemplos de como um grupo de pessoas pode viver com dignidade e se auto-enriquecer moralmente. Que isso possa ser feito por negação dos estilos de vida consumistas predominantes em nossa sociedade é um aspecto interessante, mas não se constitui em nenhum apanágio: muitos grupos religiosos fizeram algo parecido, conseguindo mais ou menos se isolar do “mundo profano” e manter sua integridade moral. De fato, o que Illich nos oferece na sua crítica vernacular é um modelo de conduta talvez por demais difícil de ser seguido pela maioria das pessoas. Trata-se de um modelo com características não-inclusivistas, que pode ser tido como tradicional laicizado. Neste caso, a autenticidade é concebida não por referência a certas crenças e práticas ancestrais que procuram manter uma pureza de espírito diante do mundano, mas como resultado de uma forma moderna e específica de produzir e consumir “em casa”, com um mínimo de dependência em relação ao mercado. Quando Polanyi concebeu a expressão “moinho satânico” não deixou de estar influenciado pelas mesmas suspeitas e reservas que algumas religiões tradicionais mantêm diante da economia mercantil. Mas a opção pela cultura vernacular como modo de vida instaura valores que são exclusivistas porque marca uma virada radical de modo de viver que a maioria das pessoas não logram realizar ou, mais decisivo ainda, consideram dispensável. Neste sentido, adiciona diferenças presumidas entre a minoria dos autênticos, que aderiram à cultura vernacular, e a maioria de todos os demais, que passam a ser vistos como não-autênticos. São diferenças instransponíveis mesmo para aqueles que, por diversos meios possíveis, criticam e querem pôr limites ao domínio e

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fascínio que as forças do mercado exercem sobre a vida pessoal de cada um, em nosso tipo de sociedade.

Não há nenhuma evidência de que uma vida melhor possa ser construída pela rejeição completa do mercado; as próprias comunidades vernaculares não pensam desta maneira, já que admitem que necessitam de meios tecnológicos e insumos para garantir uma alta produtividade do trabalho (sem o que não há tempo livre para cultivar outras dimensões da vida intelectual e moral). Por outro lado, há muita gente que, sem aderir à cultura vernacular, não deseja que suas vidas sejam guiadas pelos donos do mercado. Sabem que tendências tais como a veneração pela saúde do corpo e a veneração pelo mercado são coisas que vão em par nos rituais da higiomania contemporânea. Uma crítica pragmatista procuraria juntar esse dois grupos de pessoas e acentuar o que há de comum entre elas; ou seja, buscaria mostrar o que une o grupo que faz a opção pela vida vernacular e o grupo que, mantendo-se do “lado de cá”, em meio aos valores de troca mercantis, ainda acha que nem a saúde nem a riqueza devem ser objetos de veneração. O pragmatista diria que os dois grupos estão unidos pelo mesmo desejo de contornar o culto da saúde e da riqueza – não porque os considerem “mundanos” ou “satânicos” mas porque os enxergam como meros instrumentos para obter outros fins, capazes de instaurar formas individuais e coletivas de viver melhor.

Aqui tem pertinência lembrar uma vez mais o conceito illichiano de saúde como “a capacidade autônoma de lidar”. Este conceito expressa o que há de instrumental e contingente na saúde, ou seja, o fato de ser algo que serve permanentemente a outros fins, com fundamento em certos ”recursos internos”. O anti-essencialismo de Rorty acolheria facilmente essa concepção: a saúde não é nem uma substância nem uma “coisa em si” mas uma capacidade de fazer coisas numa lide permanente contra as dificuldades do próprio organismo e do meio ambiente. A saúde nada mais é que a capacidade de gerar hábitos de “fazer por si”, de tal modo a instalar e manter processos mais ou menos automáticos e inconscientes de adaptação aos ambientes mutáveis. Tem a ver, portanto, de um lado, com os ajustes que qualquer animal opera em relação a seu meio, e, de outro lado, com a criatividade espontânea do ser humano socializado, que é sempre capaz de inventar formas de viver melhor. Quando transformamos a saúde e seus riscos em objeto de excessivas ou obsessivas preocupações – pela hipocondria ou pela higiomania – e vamos acumulando os mil cuidados e zelos dos chamados “estilos de vida saudáveis”, estamos eliminando justamente a força

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desses hábitos e subtraindo da saúde alguma coisa de sua capacidade de lide. Dentro do espírito das lições que Illich nos ensinou, convém lembrar sempre que ser saudável significa não só ser capaz de criar e dominar os riscos como também controlar as angústias que os riscos despertam em nós - a saúde “inclui a angústia assim como os recursos internos para conviver com ela.”

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