A Sedução Do Rodopio

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A SEDUÇÃO DO RODOPIO Tiago Silva Barreto Este texto, que se pretende parte inicial do ambicioso projeto de abordar, hermeneuticamente, Lautréamont e Dalí, tem por base pontos referenciais da obra de ambos. Obviamente, pretende-se superar as dificuldades de comparar literatura e pintura: Lautréamont fazia literatura, também, imagética, tanto quanto Dalí criava, paranóico-criticamente, imagens que embarcavam universos poéticos. Lautréamont, tendo influenciado todo o círculo surrealista, foi ponto vital na construção artística de Dalí, dessa forma, um estudo comparativo entre ambos, mesmo com o empecilho de comparar a imagem enquanto imagem com a literatura. A descrição e delírio onírico se fazem presentes na obra de ambos. Em Lautréamont, são descrições que pairam entre o horror atroz, a reflexão anti-cartesiana e o humor negro ridicularizador das noções ocidentais de lógica, certo, errado, bem, bom e belo. Lautréamont, que convulsionou toda a literatura que o procedeu, foi, segundo Breton, “o único poeta íntegro da história da literatura”. A “integridade” lautréamontiana, completamente contraditória (percebida claramente na auto aniquilação entre Os Cantos de Maldoror e Poesias), a negação completa de alguma ética que não seja a do desejo, foi a

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A SEDUO DO RODOPIO

A SEDUO DO RODOPIO

Tiago Silva BarretoEste texto, que se pretende parte inicial do ambicioso projeto de abordar, hermeneuticamente, Lautramont e Dal, tem por base pontos referenciais da obra de ambos. Obviamente, pretende-se superar as dificuldades de comparar literatura e pintura: Lautramont fazia literatura, tambm, imagtica, tanto quanto Dal criava, paranico-criticamente, imagens que embarcavam universos poticos.

Lautramont, tendo influenciado todo o crculo surrealista, foi ponto vital na construo artstica de Dal, dessa forma, um estudo comparativo entre ambos, mesmo com o empecilho de comparar a imagem enquanto imagem com a literatura. A descrio e delrio onrico se fazem presentes na obra de ambos. Em Lautramont, so descries que pairam entre o horror atroz, a reflexo anti-cartesiana e o humor negro ridicularizador das noes ocidentais de lgica, certo, errado, bem, bom e belo.

Lautramont, que convulsionou toda a literatura que o procedeu, foi, segundo Breton, o nico poeta ntegro da histria da literatura. A integridade lautramontiana, completamente contraditria (percebida claramente na auto aniquilao entre Os Cantos de Maldoror e Poesias), a negao completa de alguma tica que no seja a do desejo, foi a responsvel pela expulso de Salvador Dal do crculo surrealista: Breton, por no ver em Dal um entusiasta da revoluo, expulsou, excomungou Dali, o maldito entre os malditos, do movimento surrealista, que se aderia ao Partido Comunista. Artaud, Dal e outros que estavam mais interessados na rebelio e expresso individual, foram expulsos e auto-expulsados do movimento que comeava a adentrar por moldes pr-estabelecidos do socialismo sovitico, que era uma esperana revoluo externa (Marx) preconizada pelo surrealismo. Acontece que tal revoluo externa, que era atrelada revoluo interna (Rimbaud), era uma contradio (auto-aniquilante, no dialtica) em si prpria: a rebelio interior possibilita ao indivduo a destruio da idia de tica e coletividade, que so chaves para a exteriorizao revolucionria que reza Marx e adotada pelo crculo surrealista.

Na Paris sitiada de 1870 e em vsperas do levantamento da Comuna morre aos 24 anos o desconhecido Isidore Ducasse. No entanto este misterioso homem de letras, do qual no se tem informaes que no sejam a data de nascimento (em Montevido, Uruguai) e bito, no se sabendo a causa de sua morte, nem como viveu, nem sua fisionomia, deixava atrs de si um formidvel empreendimento de demolio de que o romantismo envelhecido e o Segundo Imprio beira do desastre no seriam as nicas vtimas. Os seus Os Cantos de Maldoror, impressos no ano anterior sob o pseudnimo de O Conde de Lautramont, no poupam nenhuma autoridade nem nenhum dogma.

Sob a aparncia de um heri do Mal, negativo dos heris romnticos ento em voga, Maldoror a personagem central da narrativa estruturada em Cantos maneira das epopias clssicas. Mas Maldoror muito mais que um heri do Mal, sobretudo um combatente da liberdade que revela as conseqncias de uma dupla alienao: enquanto a interiorizao dos interditos morais e religiosos nos confisca os desejos, as marcas de uma linguagem imobilizada contrariam-nos a livre expresso.

Se a primeira alienao ganha denncia no combate encarniado de Maldoror contra o Criador e a religio e na natureza obsessivamente ertica dos seus crimes, relembrando a animalidade e a agressividade que a Igreja associa sexualidade, j a segunda exposta pela recorrncia a artifcios literrios, da interpelao do leitor confuso entre narrador e personagem, da ausncia de linearidade narrativa constante sobreposio de formas literrias, como se ao combate encarniado contra o Criador correspondesse estranhamente uma luta da escrita contra uma censura latente. Apesar disso, o texto no perde balano, antes, como uma espiral ou um turbilho, ganha um movimento rodopiante, de reposio e de renovao, de repetio (que leva idia de completo delrio) e de modulao, com novos enredos sempre a arrancarem para logo abortarem, com constantes intromisses e divagaes a impedirem a narrao de avanar, no abordando novos relatos seno para voltar a tropear no mesmo episdio indizvel, deixando entrever o que se segue para melhor o ocultar, tal um segredo que se quer contar mas no se consegue, criando assim uma tenso que vai alimentar toda a obra, que d a impresso de gravitar volta de um centro sempre fugidio.Dali, por sua vez, em furor lautramontiano, ilustrava sua produo pictrica com textos como O Asno Podre, em que expunha uma original tese sobre a parania, o seu mtodo paranico-crtico, que comeava refletindo sobre o fazer artstico e acabava propondo uma inusitada forma de percepo da realidade pelo homem. Em termos gerais, Dal sustentava que "por um processo nitidamente paranico se tornou possvel obter uma imagem dupla: ou seja, a representao de um objeto que, sem a menor modificao figurativa ou anatmica, fosse ao mesmo tempo a representao de um outro objeto absolutamente diferente". Em outra passagem, entende-se por que os surrealistas vibraram com essa "descoberta subversiva": "Creio que prximo o momento em que, por um processo de pensamento paranico ativo, ser possvel (...) sistematizar a confuso e contribuir para o descrdito total do mundo da realidade".

Dal foi um dos responsveis pela valorizao do estado paranico, que era fora motriz do delrio radical de Lautramont, mas no da loucura, apesar de sua fama posterior, que ele soube manipular. Dizia entrar e sair de estados paranicos, mas "a diferena entre mim e um louco que no sou louco". Essa retrica, embasada nas leituras de Freud, tinha tudo para fascinar o jovem estudante de psiquiatria Jacques Lacan, que encontrou-se, tmido, com um Dal bonacho, para substanciar seu primeiro trabalho importante, Da Psicose Paranica em suas Relaes com a Personalidade (Editora Forense Universitria). Com menos soberba, em 1939, Dal procurou o prprio Freud, num ato corajoso, j que corria o risco de ser contraditado pelo vienense. Pois foi o que aconteceu: Freud deixou registrado que "no o inconsciente o que procuro em seus quadros, mas o consciente. Enquanto nos quadros dos mestres (Leonardo ou Ingres) o que me interessa, o que me parece misterioso e inquietante, precisamente a busca de idias inconscientes, de uma ordem enigmtica". A opinio de Freud pode ter sido influenciada pelo realismo detalhista com que Dal descrevia suas paisagens ntimas e onricas. Assim ele prprio justificava esse realismo: "Que o mundo imaginativo e da irracionalidade concreta seja da mesma evidncia objetiva, da mesma consistncia, da mesma durao, da mesma espessura persuasiva, cognoscitiva e comunicvel que aquelas do mundo exterior da realidade fenomnica". Esse ideal de realismo tirado, segundo Dal, at de pr-rafaelitas, o levava a pintar usando lupa nos quadros menores de sua boa fase.

Dal viveu e realizou seu programa inicial de "sistematizar a confuso e contribuir para o descrdito total do mundo da realidade", o que Lautramont expe, com brutalidade, em seus Cantos. As aproximaes entre os extremos do belo e horrendo so iniciados em Baudelaire e radicalizados em Lautramont. Se, em Baudelaire, a beleza era monstro, misto de doura e amargor, em Lautramont, um objeto de venerao triste como o universo, belo como o suicdio e, mais adiante, belo como um lquido eminentemente putrescvel, belo como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecao, de uma mquina de costura e um guarda-chuva.. Essa aproximao de formas, que se repete em Dal em quadros como Virgem casta sodomizada pela prpria castidade so pontos de referncia-parentesco-influncia de Lautramont sobre Dal, que o tem como precursor lrico de sua imagtica absurda, bela como o tremor de mos do alcoolismo.

BIBLIOGRAFIA REFERENCIALBAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. So Paulo: Paz e Terra,

1996.

BRETON, Andre. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora,

2004.

LAUTRAMONT, Conde de. Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas traduo, prefcio e notas de Claudio Willer, Editora Iluminuras, So Paulo, 1997.

DAL, Salvador. Minha Vida Secreta. Sem referncias.