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A SEMENTE E A SEIVA

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Dedico este livro aos meus Amigos Paulo Quintela, Luís Albuquerque e

Joaquim Namorado.

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Neste momento, que desejaria solene pela veemência do meu voto, chamo à consciência a humildade da minha origem, na certeza de que a ascensão à mais alta dignidade académica mais fundo me enraizará na fidelidade à condição de que provenho: evoco a lembrança de todos, presentes e ausentes, nacionais e estranhos, vivos e mortos, que con-tribuíram, pela beleza do seu exemplo ou pela seriedade do seu saber, para que se não apagasse a luz natural que acaso em mim existia [...]

Paulo Quintela (Extracto de algumas palavras proferidas aquando da sua

investidura no grau de doutor em Letras, na Sala Grande dos Actos da Universidade de Coimbra, em 7-11-1948.)

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O dia de cozedura de Vavó Luzia calhava sempre à sexta-feira; o chão da cozinha, revestido de tijolos vermelhos, que nos outros dias da semana se podia varrer com a língua, ficava, nesse dia, num verdadeiro esparrame: os molhos de lenha de ramada e de tremo-ceiros atados com um baraço de tabuga, emedados ao pé do talhão da água, os alguidares de barro da Vila em cima da amassaria, a massa levedando que era um louvar a Deus (ela nunca se esquecia de a benzer e encomendar no fim da amassadura, ao acrescentar-lhe o fermento) e Vavó, lenço pela testa e amarrado atrás, na nuca — a cova do ladrão —, numa dobadoira viva, as faces tintas do lume, ora tendendo o pão já lêvedo, ora botando lenha no forno para o es-quentar. Todas as manhãs que Nosso Senhor botava ao mundo, no meu caminho para a escola do senhor professor Anacleto, o Caniço, por ser acrescentado em tamanho e escanzelado de carnes, era certo como a Igreja que tinha paragem obrigatória na tenda de tanoeiro de meu avô José dos Reis, à ilharga esquerda da casa, pedia-lhe a bênção, Vavô subença, Deus te abençoe, meu rico home, e, enquanto o diabo esfregava um olho e coçava o rabo pelado, dava eu meia volta pelas traseiras e ia direito à cozinha, onde seria milagre não se encontrar Vavó Luzia na lida das panelas, da lavação ou, se era dia azado, no cerimonial da cozedura do pão trigo e do pão de milho, dos bolos de rala e dos biscoitos feitos da rapadura dos alguidares, rijinhos, famosos para se migar na tigela de barro vidrado, da La-goa, cheia de chá com leite. Em chegando à sexta-feira, e mal bulia a luz na telha de vidro do meu quartinho, erguia-me de um pulo da barrinha de ferro, Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a

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graça do Senhor e do Divino Espírito Santo, ia numa aragem a casa da Ti Filomena das Areias buscar a meia canada de leite do costume (às vezes três quartilhos), acrescentava dois ou três risquinhos, a giz, na porta de tábuas de forro de criptoméria do armário grande da cozinha, a fim de meu Pai poder somar os quartilhos de leite que a gente ia gastando e não ser depois levada, nunca fiando, nas contas do fim da quinzena, deitava uma mancheia de serralhas e de funcho no caixote dos coelhos e, findas as tarefas da manhã, escapulia-me numa carreira, a malinha da escola de papelão castanho-escuro, a bom chocalhar na mão direita, o fura-bolos servindo de tramela para o tampo se não abrir e não ficar tudo espalhado no meio do chão, ia direitinho como uma roqueira do Milhomens foguista em direcção da casa de Vavó Luzia, ao cheirinho da tigela de chá com biscoitos migados.

Ao ver-me assim infernizado, minha Mãe ficava toda delida, Não sejas ardido, rapazinho, e toma-me assento nessa cabeça, que hoje não é a fim do mundo; eu fazia de conta e ala bote; com meu Pai, é que o caso mudava de figura; se ele se erguia do quente com o ventinho da porta, o que não era muito raro por aí além, obrigava-me a pôr o frenesim nos varais, e bico caladinho, que podia cair um bocado de céu velho em riba do toutiço; ocasiões havia em que era mesmo de se ficar cego de génio, uma criatura já preparadinha para dar guita ao pião das pernas (que gostosura apanhar em cheio, de chapada, o ar leve e perfumado da manhã vindo do mar das Calhetas), prantava-se ele à cancelinha da porta do caminho, a boina bem puxada sobre os olhos (sinal de temporal a esborralhar-se), espiolhando-me o porte e o andamento; nessas alturas toldadas, está quieto, ó Fernando, não havia outra escapatória senão caminhar a passo de boi, as miudezas revolvendo-se cá dentro e os nervos entisicando-me, estava cansado de o saber, era assim e viva o velho, o troço de caminho entre casa e o Canto da Fonte tornava-se mais comprido que alqueire de terra de vara grande, só podia estender as pernas em pensamento, isso então ninguém me podia proibir, nem meu Pai, nem o regedor da freguesia, cheio de nove horas, nem o polícia de Rabo de Peixe, sempre de cara

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feita e testa franzida por via da autoridade, eu era senhor, por exem-plo, de dar a minha espreitadela para trás, como quem não quer a coisa, mas meu Pai, mais malino que o diabo mais velho, continuava de plantão à cancela e, enquanto eu não virasse a esquina para a Rua Direita, dali não arredava um palito; em me apanhando no canto da venda, mercearia e líquidos, do senhor Luís Vieira, ai pernas, batia com os calcanhares no traseiro, e só estacava à porta da tenda de Vavô José dos Reis, já às voltas com as aduelas e os arcos das pipas, selhas e quartolas, que me dava a sua bênção, Deus te faça um santo, rica cara, os olhos escorrendo de ternura e aquela voz macia como uma viola da terra, de doze cordas e dois corações entrelaçados, em noites de cantoria aos três Reis do Oriente ou à Senhora das Estre-las, que morava umas casas adiante no calendário litúrgico...

Andar a passo como as pessoas grandes e de juízo na cabeça era o pior castigo que me podiam dar; bem bastavam os momentos de martírio em que não adregava outro expediente que não fosse o de fazer das tripas coração e pôr um freio no instinto, puxava o motor das pernas, sempre na mira de uma ocasião mais tal e coisa para se lançarem à desfilada por esses caminhos e canadas adiante; nem mesmo quando acompanhava meu irmão mais moço, o gorgulho da casa, era capaz de levar a bom porto, sem me desmanchar, o meu papel de rapazinho obediente e de cabeça no devido lugar; borrava quase sempre a pintura, o vício espicaçava, e quando as guinadas se tornavam mais endiabradas, umas comichões fervilhando nas solas dos pés e marinhando por aqui acima, até à boca do estômago, tal e qual um formigueiro, largava a mão de meu irmão Anselmo, pregava uma corrida de cão de caça, meu irmão iniciava nesse instante um berreiro de bezerro desmamado, havia de mijar menos, na cama, à noite, então eu, condoído, voltava no mesmo calcanhar, vinha de novo agarrar-lhe pela mão, trazendo agora o vício mais acomodado nos fundos de mim... O melhor era a desforra que eu tirava, quando, nas pachorrentas tardes dos dias grandes, acabada a prisão da es-cola, meu Pai me mandava vigiar a praga dos melros no cerradinho

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de cinco quartas de terra que ele fazia de meias com Vavô Samuel, ali para as bandas das Quatro Canadas, quase paredes meias com o cemitério; tirante a corrida desalmada que dava, pejado de sus-to, ao passar em frente do portão da terra dos mortos, o que não deixava de não ser natural, gente havia na freguesia que jurava por tudo quanto tinha de mais sagrado que no silêncio da noite se ou-viam, saindo das campas e jazigos, os gemidos das almas penadas. O Ti Mariano Bufão, que de cagarola nada tinha, viu-se e desejou-se para conseguir fazer andar a mula, as patas firmes rente ao portão forjado do cemitério, nem para trás nem para diante, umas luzinhas tremelicando nas imediações do alpendre da carreta, à ilharga da ermida consagrada à Senhora da Boa Morte, e um vulto enrolado no quer que era branco, num balho furado, por entre as cruzes das campas, umas sombras negras de breu; se o Ti Bufão se não se ti-vesse persignado, ainda lá estaria com toda certeza às chicotadas na mula endemoninhada, que se empinava, desenseivada, nos varais da carroça.

Afora o medo que sentia num novelo desenrolando-se cá por den-tro, ao passar de repelão ao longo da frontaria escaiolada do ce-mitério, mal saltava o portal do cerradinho, amassava-me rente à parede de pedra solta que estremava as terras semeadas de milho e de trigo e, ao sentir-me mais aquietado dos tremores, dava com um porrete de marmeleiro uma vergastada na tampa ferrugenta de um bidão da tropa; afugentava assim os melros que enchiam o bandu-lho, rindo-se às gorjeadas dos espantalhos de palha, enrolados em trapos velhos e semeados aqui e ali por entre o trigal; cumprido o dever de que meu Pai me incumbira e certificando-me da debandada provisória da praga, pegava então em mim e encaminhava-me para a coroa do outeiro, ouvia-se o silêncio do descampado, apenas ferido pelo dlim-dlão dos chocalhos das reses pastando à corda nos pastos das cercanias, tomava balanço, queria lá saber do milho espreitan-do já dos torrões, deixava deslizar as pernas pela encosta abaixo, o resto de mim acompanhando a velocidade desenfreada, sentia-me afrouxando à medida que a ladeirinha se ia desfazendo, sorrateira,

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de encontro à chã de milho de vassoura, e só estancava o endiabrado sangue da correria, o corpo meio dormente, resvés à barbacã virada ao mar das Calhetas, aonde se chegava num comenos, tomando o caminho da Canada Grande.

Batiam as Trindades na torre da igreja, ouviam-se mui ao longe, o Sol com o escarro da agonia na garganta da serra de Santo António--além-Capelas, e eu descarregava então a última vez a consciência e o porrete na chapa amolgada de tantos vexames, metia dois dedos na boca para assobiar aos melros mais lazeirentos, salvava de um pulo o portalinho de pedra solta, e zunia pelo caminho do cemitério a cima, fechava os olhos enquanto passava ao longo da fachada da terra dos santos defuntos, não fosse eu, na minha inocência, presen-ciar algum balho furado com almas do outro mundo, ou dar de caras com a alma deambulante do Ti Manuel Joaquim, tocando trombone nos degraus da ermida, como quem já houvera visto, tão real e ver-dadeiro como Nosso Senhor está na hóstia depois de consagrada...

O Ti Manuel Joaquim era o que se chamava nalgum tempo um bom homem, cordato e manso, não desfazendo, mas morreu de re-pente, quando andava sulfatando a vinha do quintal; nem tempo teve de receber os últimos sacramentos, e vai daí a sua alminha não expiou os pecados cometidos desde a derradeira desobriga pascal, o que significava que, enquanto os não expiasse a todos, andaria ela vagueando por este Vale de Lágrimas, gemendo e soprando no bocal do trombone, o seu instrumento na Música Nova, e do qual se havia servido, no domingo antes de morrer, para desinquietar o juízo à cunhada, viúva e alfeira, dona de umas pernas de meter cobiça ao mais biqueiro e ao mais santarrão, segue-se que, naquele domingo, enquanto a Ti Alzira, sua mulher aos olhos de Deus e do altar, tinha ido ao meio alqueire, no fim da freguesia, apanhar uma saca de lona de erva de galinha, o Ti Manuel Joaquim pôs-se na sua inocência to-cando um ordinário que haviam ensaiado, na véspera, na sociedade da música, quando a Almerinda lhe entra pela porta dentro em cata da irmã, vai daí o cunhado começou a mostrar as suas vantagens musicais diante da cunhada, de mais a mais andava há que tempos

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com o luminho do olho canhoto em riba dela, e toca então de en-carreirar um vibrante solo, os olhos arregalados para a partitura e as bochechas inchadíssimas de alma, ficou a Almerinda fora do sério com tantas lindezas e harmonias, derretendo-se toda por den-tro; palavra ternurenta puxa palavra ternurenta, a Alzira estava no meio alqueire e ia-se demorar com certeza, segue-se que acabaram por ir ambos os dois para a casinha da burra, nos fundos do quintal, e o resto já vossas senhorias muito bem adivinharam: o Ti Manuel Joaquim apagou como soube e pôde aquele lume ateado, saindo às labaredas do corpo viçoso da Almerinda, há muito pedindo uma consolação na sua desaurida viuvez.

Eis aí a razão por que a alma do Ti Manuel Joaquim continuava em andanças por este mundo, sempre agarradinha ao instrumento do seu pecado mortal, só poderia ter parança no momento em que o Juiz Supremo entendesse que já bastava de tanta erfancia; se porven-tura tivesse confessado o seu pecado e recebido os santos óleos, nada disso teria sucedido; livrai-nos, Senhor, de uma morte repentina; caso tivesse a alma seguido, confortada, para a sua última viagem, estaria agora no eterno descanso, entre o resplendor da luz perpétua; teria entrado pelos portões doirados do Céu, tal como a gente entra no paraíso do Parque das Furnas, mas sem pagar cinco réis furados, e apresentava-se, depois, na barra do Juízo Final sem grande pitafe, branquinha como a cal das paredes da nossa igreja paroquial, pe-nugem leve de um penacheiro que de um sopro se desfaz em faúlhas alvas e sedosas.

Vavó Luzia cobria-me com a sua bênção, Nosso Senhor te aben-çoe, rica cara, mas o seu tom era um tudo-nada sacudido e carre-gado, muito longe da maneira amorável e aveludada com que Vavô José dos Reis me abençoava em nome de Deus, ao entrar-lhe de rom-pante pela tenda dentro logo de manhã; não admira, ele era poeta repentista, músico dos finos ao longo de mais meia vida, e cantador de serenatas aos Reis do Oriente e à Senhora das Estrelas — A Se-nhora da Estrela/No meu peito estremece,/Quem me dera conhecê-la/

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Como ela me conhece! — mas, tirante esse pitafezito do seu génio e feitio arrebitado, Vavó Luzia não deixava por isso de não ser aquela santa, daimosa e ternurenta à sua maneira, tirando muitas vezes da boca para dar aos filhos e à ranchada dos netos, que, nos dias de festa e de matança, lhe acuculavam a casa e a paciência, Eh pingos do demónio, sumam-se, sumam-se já daqui para fora, que não tenho aço e estou hétega de tanto vos sofrer...; no fundo do peito batia-lhe um coração do seu tamanho, ali toda a família tinha o seu poleiro, São Mateus, primeiro os meus, não se cansava ela de proclamar aos rapazes e raparigas de Rabo de Peixe que vinham seringar a porta e a paciência, Eh minha rica senhora, dê-me um bocadinho de pão pelas almas do prigatório, Hoje não pode ser, perdoa-me pelo amor de Deus...

No que a mim dizia respeito, nem é bom estar para aqui abrindo o bornal das lembranças e ternuras, até as línguas mais destrameladas esbugalhavam a torto e a direito, uma afeição e arreigamento de tal qualidade passavam das marcas, e tudo quanto era de mais nem aos olhos de Nosso Senhor caía bem, muito menos aos das criaturas de carne e osso, sujeitas às fraquezas e tentações do mundo, do diabo e da carne, tivesse a Ti Marquinhas santa paciência, mas os outros ne-tos também eram filhos de Deus, com direito às mesmas mimalhices, mas o Fernando que era o ai-jesus da casa, ponto final-e-disse; Vavó Luzia, porém, não prestava três vinténs furados de atenção a tais vozes mexeriqueiras, o que elas queriam, estava ela mais que farta de saber, largueza, largueza, que o aço andava muito gastinho e não havia tempo nem vagar para lhes dar conversa fiada.

Só a santaneira da tia Gilda, sempre roda das saias do senhor padre e a tomar a Nosso Senhor todas as manhãs em jejum natural desde a meia-noite até comungar, por razões que só Deus e eu sa-bemos é que meteu a relha da língua no rego que não lhe pertencia, meu Pai declarou logo, de venta afiada, que ela tinha mijado fora do testo; eram irmãos, mas não se podiam sofrer um ao outro, é da usança nos ódios fraternais; com o mesmo sangue alterado corren-do-lhes nas veias, as suas relações restringiam-se aos bons-dias, haja

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saúde e pouco mais; com minha Mãe, não chegava a esses pontos, sempre muita festa para a festa, basta que sim e muito me contas; o pior é que, por trás, tia Gilda não tinha ponto na língua, enfiava a agulha até onde podia e às vezes fazia sangue; era solteirona muito contra a sua vontade; a Providência e Vavó Arminda não foram pe-los ajustes, que rapazes não faltavam, Vavô Samuel também nunca foi de acordo que houvesse casamentos em casa, e estas contrarieda-des deixam as suas marcas e umas certas comichões naquilo que nós sabemos, segue-se que uma bela ocasião, noitinha, fui acompanhá-la ao passal do senhor padre, onde titia era perdida e achada, vai daí, sem mais nem para quê, toca de pôr às escâncaras a vida de nossa casa, que meu Pai era frito e cozido, um maniado custoso de se so-frer, que minha Mãe tinha as mãos pequeninas de mais para educar os filhos, quem tinha peguilhas no juízo não se devia casar, e tanto assim era que eu estava sendo criado ao deus-dará, apelo eu se não fosse a avó Luzia, virava vagabundo como os rapazes da esmola ou como o Cabral Gadelha, carregado de esterco e de pecados mortais, sem um venial sequer para amostra, com quem eu era unha com carne, consolava-me a escutar-lhe os versos da comédia de D. Inês de Castro e da Imperatriz Porcina e outros casos de algum tempo; tia Gilda fez a barrela completa, enquanto eu, encolhidinho num banquinho da sala, o assento forrado de veludo cor de vinho, estava que nem uma cera, mudo e quedo, mas, depois, em chegando a casa, não me aguentei, e fiz mal, meti tudo no bico de meu Pai, tintim por tintim; um pouco mais tarde, foi um verdadeiro alevante em casa de Vavô Samuel; tia Gilda, amarela de cidra, esbracejava e espumava pelos cantos da boca como uma possessa, Vavó Arminda, aos asso-pros, punha as mãos à cabeça, valeu Vavô Samuel estar no botequim do Ti Chico Duarte passando um pedaço de serão, caso contrário, seria o cabo tormentório, e quando meu Pai acabou a parlenga já tia Gilda se encontrava estendida a todo o comprido no ladrilho da co-zinha, mas, antes de lhe dar o fanico, tivera o cuidado de olhar para o sítio para onde tencionava deixar-se emborcar, não fosse dar-se o caso de ficar maltratada com o trambolhão arremedado, malina

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como o Sol não cobria esperteza igual, segue-se que meu Pai, que não embarcava em imposturas, não esteve com meias aquelas, proi-biu-nos a todos cá de casa de olharmos para semelhante estafermo, e nada de lhe pedirmos a bênção, antes a pedíssemos ao mafarrico, que seríamos mais bem abençoados, e tudo quanto lhe saía da boca, estávamos cansados de o saber, podia lavrar-se em escritura, ao mais pequeno descuido, resmungo ou franzimento de testa, podiam cair bocados de céu velho com tal violência, que uma pessoa poderia ser tentada, perante o desconcerto, a benzer-se com a mão canhota, o diabo seja surdo!

A matança do porco, o Natal estendido pelo Janeiro dentro; a tra-balheira mais custosa principiava na véspera, ainda antes do meio--dia, ia pela tarde adiante e raro não era terem as mulheres de fazer serão — aquilo era trabalho de saias — sentadas no capacho da noi-te velha; minhas tias, alguma vizinha mais de casa e minhas primas, já espigado tas, picavam cebola e cebolinho para servir de recheio às morcelas de sangue e aos chouriços mouros; Vavô José dos Reis, no seu laricd, desauridinho de todo, parecia andar com bicho-carpin-teiro nas solas dos pés resguardados pelos tamancos de madeira de castanho e gaspeados de pano grosseiro entretelado, na cara duas acesas lâmpadas de satisfação, sempre à roda das filhas e das netas, perguntando se não ia mais um calzins de abafado ou de aguardente da terra por via do terral e do excomungado mata-vacas, sopran-do do nordeste, muita cautela com as resfriagens, vissem lá bem se apanhavam alguma maúça; Vavó Luzia era a mestra daquela ban-da afinada, mangas arregaçadas e uma ligeireza de mãos de se ficar pasmado, palavras poucas, ou, se não podia deixar de ser, conversa decidida, sem rodeios de qual-quer natureza, ficava fula com pessoas de falas meladas e palavras peganhentas, às voltas e voltinhas, como se a meada estivesse enriçada; o genro mais velho, o Ti José Pascoal, a quem eu bebia as palavras pachorrentas, não passava no joeiro de malha apertada de Vavó Luzia, chamava-lhe sequista e macista da quinta casa, para dizer uma bagatela, rodeava e tornava a rodear, fi-

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cava para ali horas esquecidas moendo e remoendo, tal qual uma rês na manjedoura, Nosso Senhor me perdoe; em certa ocasião, fez-se encontrado com o senhor Inácio das terras, das bandas dos Aflitos, e, vai daí, principiaram ali mesmo, no sítio do encontro, uma lenga-lenga mais comprida que a Vista Grande, estavam bem um para o outro, e ficaram tempos infindos naquela morrinha de palavras bem chovidinhas, só deram por si quando a madrugada estava mesmo à bica de inundar o mundo da Ilha, apelo eu se não fosse Verão, uma noite coalhada de estrelas e um luaceiro de se enxergar tudo como se dia porventura fosse...

Apesar de Vavó Luzia chamar ao genro sequista e macista, eu es-quecia-me, embevecido, nas esquinas soalheiras das suas estórias, ao longo dos serões das noites grandes, estórias de algum tempo, do trabalho excomungado para o Sul, a mais de légua e meia de lonju-ra, pé descalço, para ganhar uma cascarrilha de dois ou três mil réis por dia, se não chovesse; foi nesses serões que fui aprendendo que a vida de campónio, na Ilha, era um destino caipora, e principiei a dar as primeiras tragadelas nos cigarros feitos que o Ti José Pascoal me ia dando sem moleste de qualidade nenhuma; com Vavó Luzia, era pão-pão, queijo-queijo, não lhe sobrava tempo nem feitio para a conversa fiada; se chegava à porta com o fito de mercar uns charri-nhos ou bliguéis, Eh charro grado e frê..., ou entregar a saquinha da moenda ao Lourinho moleiro e alguma vizinha mais janeleira estava de caso pensado para dar à tramela, Vavó arrepiava-se por dentro, mas não deixava de não mostrar boa cara e bons modos, toda a gente estava cansada de saber que a Ti Marquinhas do mestre José dos Reis não era criatura para tocar com o dedo mindinho em quem quer que fosse, mas, se percebia que a vizinha estava mesmo com ín-dole de não arredar, Vavó então virava-se para trás, para o corredor, Já lá vou homem de Deus, como se estivesse respondendo a alguém nos fundos da casa, e dizia para a vizinha, Até logo, se Deus quiser; o meu José anda desaurido em cata de mim...

A matança do porco era mesmo uma folia de tirar a barriga e o espírito de misérias; o quinhão que me tocava resumia-se a ficar de