A Sensorialidade Na Clinica Com Autistas

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    Uma pele para as palavras:sobre a importncia dos envelopes

    sensoriais na clnica psicanalticacom a criana autista

    Maria Teresa Melo Carvalho

    O presente artigo parte de um questionamento sobre o uso da

    interpretao na clnica psicanaltica com a criana autista para, em

    seguida, defender a importncia das intervenes apoiadas na esferasensorial, tal como sistematizadas por Tafuri, com sua tese do

    analista no intrprete. Busca, ainda, um aprofundamento da

    fundamentao terica de tal tese.

    Palavras-chave: Clnica psicanaltica do autismo, eu-pele, objetos

    autistas

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    Introduo

    Desde os seus primeiros passos, a clnica psicanaltica com crianas autistas

    tem se guiado pelo recurso interpretao, apesar da ausncia de linguagem damaioria dessas crianas. O caso Dick, atendido por Melanie Klein, hoje considera-

    do o precursor dessa clnica. Dick no se expressava verbalmente, mas esboava

    brincadeiras que foram interpretadas por Klein em termos de contedos edpicos,

    como se estes estivessem atuantes no inconsciente da criana. Tais interpretaes

    mostraram-se efetivas pelos evidentes progressos apresentados pela criana (Klein,

    1930, p. 219-232).

    Relendo esse caso, Lacan (1975) ponderou que a efetividade da interpretao

    proposta por Klein residiu no no fato de ela ter revelado contedos inconscientes

    criana, mas sim no fato de ter promovido o recalcamento, fundando o inconscien-

    te de Dick (p.81-100). Ou seja, o inconsciente de Dick teria se constitudo a partir

    do discurso de Klein que simbolizou, com palavras ditadas pela teoria, aquilo que

    ainda no estava inscrito nele como desejo, no mesmo sentido em que a me ante-cipa o desejo da criana ao interpretar seu choro, seus gestos, seu comportamento.

    Temos ento, com Lacan, uma nova leitura daquilo que se passa entre a cri-

    ana psictica e o analista, mas essa leitura no sugere uma modificao na carac-

    terstica das intervenes. Essas continuariam a ser feitas pela via da linguagem,

    com o carter de interpretaes, ainda que num sentido diferente daquele presente

    em Klein. O que justifica a interpretao do analista, nessa abordagem, no a idia

    de que a brincadeira da criana expressa uma fantasia inconsciente, mas sim a idia

    de que o analista se faz presente ali como suporte do Outro.

    Entretanto, em muitos casos de autismo, e em particular naqueles em que o

    comprometimento da comunicao severo, o recurso interpretao esbarra em

    obstculos enormes, no se podendo vislumbrar um progresso como aquele conse-

    guido por Dick. Insistir na interpretao, em tais casos, pode incrementar a angs-tia da criana ou resultar numa ausncia total de respostas por parte desta, e isso

    por sesses a fio, deixando o analista sem palavras e sem recursos. Foi tal consta-

    tao que levou Tafuri a defender a tese do analista no intrprete na clnica com

    crianas autistas. Baseando-se no caso Maria, que acompanhou por um longo pe-

    rodo de tempo, essa autora sustenta a centralidade da esfera sensorial no incio do

    tratamento de crianas autistas cujo comprometimento da comunicao muito

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    grande. Ressalta, em particular, a funo sensorial da voz e mostra que os jogos de

    sons que se estabelecem entre analista e paciente so cruciais no sentido de criar

    uma possibilidade de comunicao.

    A tese de Tafuri teve importncia decisiva no atendimento de Olvia, paciente

    autista que acompanhei dos quatro aos oito anos de idade. Passo a expor um frag-

    mento desse caso para, em seguida, contrast-lo com o fragmento de um caso en-

    contrado na literatura, o caso de Julin, paciente de Rodulfo, apresentado no seu

    artigo Os modos de representao caractersticos da patologia autista (2001). O

    contraste entre os dois casos possibilitar-me- retomar a discusso sobre a importn-

    cia da tese do analista no intrprete, em contraposio ao uso da interpretao, bus-cando aprofundar a reflexo, j iniciada por Tafuri, sobre seus fundamentos tericos.

    Olvia e a ausncia do no

    Olvia acabara de completar 4 anos quando seus pais consultaram-me por in-

    dicao da pr-escola que passara a freqentar havia dois meses. Vrios elementos

    de sua histria clnica indicavam um quadro de autismo infantil precoce. Dentre es-

    ses elementos, crises freqentes de auto-mutilao eram fonte de grande dificulda-

    de e sofrimento para os pais e para as demais pessoas que lidavam com a menina

    no dia-a-dia. Olvia mordia suas mos e batia a cabea na parede, no cho, ou ondequer que fosse possvel.

    Quando a vi pela primeira vez, essas crises estavam relativamente controla-

    das pela interveno medicamentosa do psiquiatra que passara a acompanh-la, de-

    pois de algumas passagens, sem sucesso, por neurologistas. Esse controle

    possibilitou seu ingresso na escola e a retomada, pela me, de sua vida profissional.

    No entanto, tais crises no desapareceram completamente e, algum tempo depois,

    voltaram com tal intensidade que a rotina familiar recomeava a ficar comprometi-

    da e a permanncia da criana na escola extremamente dificultada.

    Os pais, que j estavam habituados com o estado mais sereno da filha, fica-

    vam se perguntando como agir ante essa nova onda de crises, o mesmo sucedendo

    com os profissionais da escola para os quais essa situao trazia problemas de vri-

    as ordens. Na percepo de todos que lidavam com a menina, tais crises pareciamproduzir-se em situaes de frustrao e teriam o sentido de manipulao; seriam o

    correspondente de uma birra e, como tal, deveriam encontrar o limite do no do

    adulto. De fato, em perodos de maior serenidade, os pais observavam que a crian-

    a, ao aproximar-se de um objeto que j sabia que no poderia tocar, anunciava o

    gesto de bater a cabea na parede e, ao ouvir um solene no do pai, interrompia o

    gesto. Mas nos perodos em que se intensificavam, as crises pareciam caticas,

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    sem qualquer endereamento ao outro, como se fossem reaes imediatas a um

    afluxo de excitao insuportvel. Perguntava-me ento se, nesses momentos, pode-

    ramos responder com a interdio. A interdio, na sua forma do enunciado verbal,

    acompanhada de interpretao, poderia ter o efeito de proporcionar um limite quilo

    que escapava, de forma avassaladora, pela via motora, como auto-agresso? No

    seria o caso de privilegiar intervenes que visassem conteno? Refiro-me aqui

    tanto conteno fsica da criana, sem insistncia na interpretao, quanto con-

    teno psquica da angstia dos pais na medida em que o incremento das crises de

    Olvia, muitas vezes ligado a momentos de conflitos ou de desorganizao da rotina

    familiar, vinha desestabilizar ainda mais essa rotina, provocando um crescendo nassituaes de angstia que, evidentemente, envolviam tambm a criana.

    Com essas questes em mente e buscando apoio na literatura, encontrei o ar-

    tigo de Marisa P. Rodulfo, anteriormente mencionado, que instigou-me s reflexes

    que se seguem.

    Os objetos e as formas autistas de sensao e seu funcionamento como bar-

    reira comunicao

    Em seu artigo, Rodulfo apia-se no conceito de objetos autistas de sensao,

    introduzido por Frances Tustin (1990), para enfrentar o difcil encontro com oscomportamentos pelos quais a criana autista evita o contato com o outro.

    Do ponto de vista de sua fenomenologia, os objetos autistas so familiares a

    qualquer pessoa que lida com esse tipo de transtorno. So os objetos aos quais a

    criana apega-se, utilizando-os de forma estereotipada, uma forma de brincar na

    qual fica evidente o elemento da sensao. Tustin fala tambm de formas autistas

    de sensao, quando no se trata de um objeto, no sentido material, mas de com-

    portamentos ou gestos que parecem cumprir a mesma funo que o manuseio de

    objetos (p. 85-113). Considerado sob o ponto de vista metapsicolgico, o objeto

    autista, embora parea um objeto de apego da criana, no se equipara ao objeto

    transicional, descrito por Winnicott. Diferentemente deste, no insubstituvel e

    isso justamente por no aludir a uma representao ou, mais precisamente, por no

    vincular-se a uma fantasia ou a uma idia. Podemos especular que esses objetosestariam ligados a formas muito primitivas de representao, que so recriadas cor-

    poralmente pelo vestgio da sensao. Carecem de um sentido compartilhado e pa-

    recem ter muito em comum com alucinaes do tipo ttil (Rodulfo, 2001, p. 78).

    No que diz respeito sua funo, esses objetos parecem permitir criana instau-

    rar uma continuidade existencial que se encontra profundamente obstaculizada, por

    meio do restabelecimento de uma sensao corporal, assim como igualar, por con-

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    tigidade, o que deveria ser reconhecido como prprio e o que deveria ser reconhe-

    cido como alteridade (ibid, p. 78-79).

    O caso de Julin, exposto por Rodulfo, poder tornar mais claras as idias acima.

    Os objetos e as formas autistas nas sesses e a exigncia de desativ-los

    Julin estava em atendimento j h algum tempo quando comeou a repetir,

    no incio de cada sesso, o comportamento de sentar-se na cadeira da analista e alipermanecer durante toda a sesso. A situao estabelecia-se com tal naturalidade

    que chamava a ateno da analista, faltando-lhe, todavia, elementos para intervir. O

    processo teraputico, que vinha desenvolvendo-se bem, comeou a dar sinais de

    impasse. Foi ento que Rodulfo recorreu ao argumento de Tustin segundo o qual a

    interveno propriamente analtica deve centrar-se, nesse tipo de caso, em desfazer

    e impedir a utilizao dos objetos ou das formas autistas, na medida em que repre-

    sentam um obstculo absoluto a qualquer movimento teraputico. A criana os utili-

    za para acalmar a angstia do buraco negro, obturando e neutralizando o

    processo analtico (ibid, p. 79).

    Rodulfo percebia que o comportamento de Julin de sentar-se na cadeira da

    analista era muito distinto daquele que caracteriza uma identificao com o analista

    ou uma manobra para deter o poder. Prope, ento, que compreendamos tal com-portamento como o correspondente a uma forma autista. Ela afirma: Minha cadei-

    ra igualava-se a meu corpo, portanto, ao assentar-se nela, captura meu ser como se

    pertencesse a ele, igualando-me sensao que experimentava ao sentar-se (p. 79;

    traduo nossa). Considera ainda que, se esse comportamento o acalmava, era s

    custas do desenvolvimento de sua subjetividade e do progresso do processo tera-

    putico. Ao igualar-me, desconhece-me como uma alteridade oposta sua subje-

    tividade, acrescenta a autora. (ibid., p. 79; traduo nossa).

    Seguindo as proposies de Tustin, Rodulfo assevera, ento, que o analista

    deve impedir a repetio inercial dos objetos ou das formas autistas e, para tanto,

    deve intervir ativamente, porm cuidadosamente, para desativ-los, possibilitando,

    dessa forma, a inaugurao de uma subjetividade desejante (ibid., p. 80).

    Tendo acompanhado essas consideraes, vejamos como Rodulfo formula ainterveno que objetivou desativar a forma autista, no caso de Julin. Ao iniciar

    cada sesso, ela ocupava sua cadeira antes que ele o fizesse e dizia-lhe:

    ... que era minha cadeira, que era eu que me assentava nela e que, alm disso, era

    diferente dele, que era outra pessoa e que tinha descoberto que ele se sentava na

    minha cadeira para igualar-se a mim. Que de forma alguma era assim, que suas n-

    degas eram distintas das minhas, que ramos duas pessoas diferentes e que por

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    todas essas razes, de agora em diante, no iria mais assentar-se em minha cadeira

    porque lhe fazia mal. (ibid., p.80; traduo nossa).

    Segundo a autora, essa interveno foi debulhada ao longo de vrias sesses,

    provocando forte oposio por parte de Julin e uma verdadeira batalha no espao

    do consultrio, mantida com igual tenacidade por ambas as partes. Do lado da ana-

    lista, no entanto, essa batalha no era produzida por um processo de estereotipia

    simtrico ao de Julin, mas buscava marcar os limites entre duas subjetividades

    distintas. Finalmente, o espao analtico foi reorganizado e o impasse superado

    (ibid., p. 80).

    De posse dessa instigante argumentao de Rodulfo, retomo o caso de Olvia.

    Os transtornos da aquisio do no e os movimentos falidos na constitui-

    o da tpica psquica

    Olvia sempre fugia do contato com o outro utilizando seus objetos autistas.

    Tinha preferncia por objetos que podiam ser pendurados e balanados como um

    ioi e, muitas vezes, passava toda a sesso a balan-los. Ela no adquirira a lingua-

    gem e apenas emitia sons prximos a balbucios, choros e risos. Em alguns mo-

    mentos parecia compreender o que lhe era dito, olhava-me nos olhos, mas, logo em

    seguida, afastava-se com olhar ausente e voltava a seus objetos. Seguindo a orien-tao de Tustin, esses objetos deveriam ser desativados, mas como faz-lo, nesse

    caso, se qualquer interveno nesse sentido provocava crises incontrolveis de

    auto-agresso? Insistir nesse propsito de retirar-lhe seus objetos parecia-me, por

    um lado, infrutfero e, por outro, oneroso demais. Infrutfero porque a interdio

    ou a interpretao no surtiam efeito algum sobre ela nesses momentos, a no ser

    incrementar sua excitao motora. Oneroso justamente porque esse incremento de

    excitao desembocava em crises de auto-agresso, difceis de conter, e a afastava

    ainda mais da possibilidade de comunicao. No incio, eu tentava acompanhar

    com palavras os gestos de conteno de suas crises, palavras que pudessem inter-

    pretar sua excitao e assim acalm-la. Notava, entretanto, que tinha mais sucesso

    quando a continha apenas com os gestos, sem nada dizer.

    Parecia-me claro que no teria sucesso em impedir a repetio de seus com-

    portamentos estereotipados utilizando a interdio acompanhada de interpretao.

    Formulei ento a seguinte hiptese: ainda que os objetos autistas de Olvia pudes-

    sem ser equiparados forma autista de Julin - o paciente de Rodulfo do qual trata-

    mos acima - o mesmo no podia ser dito quanto ao momento da constituio

    psquica dessas duas crianas. Se Julin estava a muitos passos atrs de uma crian-

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    a neurtica, que insiste em ocupar o lugar da analista numa manobra identificatria

    marcada pela rivalidade edpica, Olvia encontrava-se em uma posio ainda mais

    primitiva. Ante a interdio e a interpretao, ela no era capaz de manter uma opo-

    sio tenaz, como o fez Julin, sem ser engolfada pela angstia gerada por esse tipo

    de interveno. Talvez faltasse a Olvia, no seu processo de subjetivao, um movi-

    mento que j se concretizara em Julin.

    A hiptese que acabo de formular encontra suporte no trabalho de Bleichmar

    (1993), quando afirma que os movimentos que determinam a constituio do psi-

    quismo vo se produzindo ao longo da infncia e, do mesmo modo que podem ser

    bloqueados por transtornos, podem encontrar vias de resoluo no tratamento.Sendo assim, necessrio levarmos em conta, em nossa hiptese clnica, os movi-

    mentos que fundam a tpica psquica para tentarmos situar os pontos de impasse

    no caso de cada paciente e, em particular, no caso dos transtornos graves (p. 9-

    14). Em se tratando das psicoses precoces e dos quadros de autismo, importante

    lembrar a estreita relao entre o fracasso na aquisio do no, e da linguagem em

    geral, e os movimentos falidos na constituio do recalcamento. Voltemos aos nos-

    sos casos para trabalhar um pouco mais essas idias.

    No nada disso, no quero ser como voc e voc muito chata! Esta ,

    em geral, a resposta de uma criana neurtica que se defronta com a interpretao

    de sua identificao com a analista e de sua manobra para deter o poder, quando se

    obstina em tomar para si a cadeira da analista. A est presente uma negao deter-

    minada, marcando uma posio de sujeito em oposio ao semelhante. Essa negaono um oposicionismo absoluto, um fechamento ao outro, mas sim uma denega-

    o, que possibilita um compromisso, ou uma forma de fazer face excitao gerada

    pela invaso da alteridade. Nesse caso, a funo estruturante do recalcamento j se

    encontra em ao. Podemos dizer que h fronteiras psquicas bem traadas capazes

    de manter, num territrio estrangeiro interno, aquilo que ameaador.

    No caso de Julin, parece que esse passo ainda estava por ser dado. Sua re-

    cusa interdio e interpretao no parecia relacionada competio ou rivalida-

    de, mas sim ao oposicionismo, num movimento de anulao da diferena em

    relao ao outro. No obstante, o gesto de assentar-se na cadeira da analista, ainda

    que repetitivo e obstrutivo do trabalho analtico, parecia indicar sua identificao a

    um envelope continente e talvez tenha sido essa possibilidade identificatria o que

    lhe permitiu resistir, to bravamente, ao seu desalojamento.Quanto a Olvia, penso que os primeiros esboos desse envelope, ao mesmo

    tempo protetor do eu e, por isso mesmo, propiciador do contato com o outro, ain-

    da estavam por ser estabelecidos. Nesse sentido, aproximo-a de Maria, a paciente

    de Tafuri, que levou essa autora a propor a tese do analista no-intrprete no livro

    Dos sons palavra: exploraes sobre o tratamento psicanaltico da criana

    autista(2003). Retomo, a seguir, alguns elementos da argumentao de Tafuri.

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    A constituio de umambiente-holding-sonoro no trabalho de Tafuri

    Ao se deparar com os comportamentos estereotipados e repetitivos de Maria

    no incio do tratamento, Tafuri (2003) no tentou impedi-los pela via da interpreta-

    o. Alm de perceber que sua prpria voz significava uma presena ameaadora

    para a criana, ela no tinha material clnico suficiente para formular uma interpre-

    tao (p. 34-35). Deixou ento em suspenso os significados e as interpretaes e

    ficou atenta aos sons estranhos produzidos pela criana. Comeou a tentar repeti-

    los, e percebendo que pouco a pouco a criana demonstrava esperar por sua repeti-

    o, passou a eco-los regularmente, propiciando a constituio de um

    ambiente-holding-sonoronas e para as sesses. Isso representou uma longa

    fase do trabalho que desembocou finalmente na possibilidade da interveno discur-

    siva (ibid., p. 21).

    Creio que podemos dizer que o incio do trabalho analtico com Maria no se

    caracterizou por intervenes que visassem impedir os objetos ou as formas autis-

    tas de sensao. Foi marcado, ao contrrio, pela adoo da esfera sensorial como

    forma de criar uma aproximao com a criana, como forma de proporcionar-lhe

    um envelope sonoro dentro do qual esta pde sentir a presena da analista, confor-

    me afirma a autora (ibid., p. 25).

    Com Olvia, as intervenes possveis eram igualmente aquelas que privilegia-

    vam a esfera sensorial. O que mais surtia efeitos nos seus momentos de crise era

    uma conteno fsica firme, porm acolhedora e silenciosa. Constatei tambm que

    era cedo para interditar o uso que fazia dos objetos autistas. Ao invs de insistir na

    interdio, eu a acompanhava com o olhar ou com gestos, tentando inserir essas

    sensaes num circuito de trocas, ou tentando propiciar um deslizamento metafri-

    co desses objetos que estavam ligados metonimicamente pelas sensaes. Nomea-

    va-os, convidando-a a iniciar uma brincadeira com eles, propunha-lhe novos

    objetos, associaes entre sons e objetos. Na maioria das vezes, minhas tentativas

    de aproximao no eram correspondidas, mas, ao contrrio das intervenes

    interpretativas, no provocavam movimentos que denotassem intensificao de sua

    excitao ou de seu isolamento. Paralelamente, trabalhava com os pais, acolhendo

    sua angstia e, sobretudo, buscando com eles conferir sentido s crises de Olvia.

    Assim, do lado dos pais, havia um trabalho de interpretao: buscvamos traduzir aexcitao desenfreada da criana como expresso de demandas de um sujeito. Isso

    significa que o trabalho que privilegia o domnio sensorial, com a criana, no nega

    a determinao simblica do sujeito, mas orienta-se pela idia segundo a qual as pri-

    meiras ligaes psquicas so ligaes que se fazem pela via das sensaes corpo-

    rais. Essa idia j foi apresentada por vrios autores e podemos encontrar alguns

    indcios dela no prprio texto freudiano quando este afirma, em 1923, que o ego

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    , primeiro e acima de tudo, um ego corporal (p. 40) ou mesmo em 1895, no

    Projeto para uma psicologia centfica, quando prope elaboraes bastante com-

    plexas sobre a relao dos processos de pensamento e de linguagem com os pro-

    cessos perceptivos primitivos.

    Esse trabalho com Olvia e o acompanhamento com os pais durou aproxima-

    damente dois anos at que ela adquirisse um estado de humor estvel, superando

    suas crises extremas de agitao e de auto-agresso. Somente depois desse tempo

    que os pais adquiriram a confiana de que no seriam novamente surpreendidos

    por elas. Isso me permitiu, tambm, na continuidade do trabalho, tentar um passo a

    mais e considerar a hiptese de desativar seus objetos autistas de sensao, o quelevou outros dois anos para ser efetivado.

    Pelo que foi dito nos pargrafos acima, fica evidente que h uma teorizao

    sobre os primrdios da constituio do psiquismo fundamentando a tese do analista

    no-intrprete. Tafuri destaca, particularmente, a contribuio de Winnicott com seu

    conceito de ambiente holdinge o papel fundamental desempenhado pela me-ambien-

    te no desenvolvimento emocional da criana (Tafuri, 2002, p. 205-220). Sem

    desconsiderar a pertinncia do trabalho de Winnicott, retomarei, a seguir, o conceito

    de Eu-pele, desenvolvido por Didier Anzieu, com o intuito de abrir nova perspectiva

    na compreenso da importncia do universo sensorial na clnica com a criana autista

    esperando, assim, acrescentar alguns elementos reflexo iniciada por Tafuri.

    O Eu-pele como precursor do no e sua importncia na clnica com

    a criana autista

    A noo de eu-pele, introduzida por Anzieu, advm da escuta clnica e vem

    colocar em relevo certas fantasias de pacientes adultos relativas superfcie corpo-

    ral e indicativas de momentos de extrema fragilidade narcsica. Tais fantasias apon-

    tariam para a importncia da superfcie corporal - e do universo sensorial em geral

    - na constituio do eu e remeteriam a formas muito primitivas de ligao da excita-

    o pulsional. Concebido originalmente como uma noo que designa um tipo de-

    terminado de fantasia, o eu-pele vai adquirindo, nas elaboraes de Anzieu, o

    statusde um conceito que pretende dar conta de uma configurao inicial do eu, nointerior de uma metapsicologia das origens. Nesse sentido, ele se apresenta como

    um conceito original e fecundo para situarmos os movimentos precoces da consti-

    tuio do psiquismo que se encontram falidos nos autismos infantis.

    Definindo-o de forma breve, podemos dizer que o eu-pele designa uma confi-

    gurao inicial do eu, constituda nas fases precoces de seu processo de estruturao

    e apoiada nas sensaes corporais, de forma particular nas funes da pele, dentre as

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    quais Anzieu (1985) destaca a funo de invlucro ou envelope. A pele como invlu-

    cro contm e retm no seu interior os precipitados da relao com o outro: a relao

    de amamentao, os cuidados em geral, o banho de palavras etc. (p. 97-108).

    A constituio do eu, como precipitao da imagem especular no momento do

    narcisismo, enfatiza o aspecto visual da relao com o outro. Com o conceito de eu-

    pele, Anzieu salienta a importncia dos vrios envelopes que se constituem na relao

    com o outro, alm do envelope visual: os envelopes sonoros, olfativos, gustativos,

    trmicos, entre outros. Tantas sensaes vividas nessa relao e que incluem, eviden-

    temente, o carter libidinal do investimento do outro no corpo da criana.

    O conceito de eu-pele coloca tambm em relevo o papel da superfcie corpo-ral como lugar de inscrio dos traos deixados pela relao significante do adulto

    com a criana. Ou seja, o registro sensorial est imerso, desde o incio, no universo

    simblico. As mensagens dos adultos, em particular dos pais, chegam at a criana

    e inscrevem-se em sua pele, por assim dizer, e isso que exigir a passagem de um

    eu-corporal para um eu instncia psquica. As sensaes corporais da criana e

    suas percepes em geral so registros de sua relao com o outro e essa relao

    proporciona-lhe conteno, holding, mas, ao mesmo tempo, prope-lhe significan-

    tes que excitam, que instigam o trabalho psquico, instigam a associaes, transpo-

    sies, enfim a simbolizaes.

    O eu-pele uma metfora da conteno e significa, tambm, a ligao dos

    pontos dispersos de um corpo que foi fragmentado em zonas ergenas pela inscri-

    o da pulso. Uma pele para as palavras uma metfora para as primeiras liga-es egicas e alude ao ttulo de outro livro de Anzieu: Uma pele para os

    pensamentos (Anzieu & Tarrab, 1986). Com esta expresso Anzieu indica que a

    configurao inicial do eu, como eu-pele, um requisito necessrio passagem

    para uma configurao posterior, o eu-pensante. Assim, o funcionamento de um

    eu-pele um requisito para o confronto com as interdies, a comear pela interdi-

    o de tocar, ainda num plano muito concreto, passando pelo reconhecimento e

    pela aquisio do no, at s interdies edpicas, j no registro simblico.

    A fecundidade do conceito de eu-pele para a clnica com a criana autista re-

    side, a meu ver, em dois pontos principais. O primeiro deles justamente a defini-

    o do eu-pele como uma configurao inicial da instncia egica, que se faz pela

    precipitao de uma imagem especular, narcsica, mas cujas fronteiras constituem-

    se pela participao de uma gama enorme de elementos sensoriais. Esse ponto indi-ca-nos a importncia do trabalho com os envelopes sensoriais como uma tentativa

    de recolocar em marcha um processo de constituio psquica que teria ficado blo-

    queado, em um momento muito precoce, e em que certas sensaes, que deveriam

    metaforizar-se abrindo a via da simbolizao, ficaram fixadas e estagnadas.

    O segundo ponto o fato de que o eu-pele aponta para a importncia do pa-

    pel do outro na consti tuio do psiquismo, no apenas na sua funo de

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    L A T I N - A M E R I C A N

    J O U R N A L O F

    F U N D A M E N T A L

    P S Y C H O P A T H O L O G Y

    O N L I N E

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    conteno,mas tambm no seu carter excitante, provocador da fragmentao

    auto-ertica. Dito de outra forma, essa noo contempla tanto o papel de holdingque

    o adulto exerce para a criana, quanto o papel de quem inscreve, no corpo desta,

    significantes investidos pela pulso e, portanto, comprometidos com suas prprias

    fantasias inconscientes. Esse segundo ponto indica, por sua vez, a ateno que deve

    ser dada ao trabalho com os pais no atendimento da criana autista, no sentido, prin-

    cipalmente, de proporcionar-lhes um espao de conteno para sua prpria angstia.

    Pois o trabalho, igualmente importante, de recolocar em marcha o seu desejo em rela-

    o criana, visando a superar os pontos de estagnao determinados por conflitos

    passados que so atualizados na relao com ela e com o infantil que esta mobilizaneles, tarefa para a anlise pessoal de cada um deles.

    Referncias

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    Resumos

    El presen te ar ti cu lo pa rte de un cues tion amient o sobre el uso de la

    interpretacin en la clnica psicoanaltica con nios autistas para, en seguida,

    defender la importancia de las intervenciones apoyadas en la esfera sensorial, tal

    como son sistematizadas por Tafuri en su tesis del analista no interprete. Busca,

    adems, profundizar en la fundamentacin terica de tal tesis.

    Palabras claves:Clnica psicoanaltica en autistas, yo-piel, objetos autistas

    Cet article part dune mise en question de lutilisation de linterprtation dans la

    clinique psychanalytique de lautisme pour soutenir, ensuite, limportance des

    interventions bases sur le domaine sensoriel, telles quelles ont t proposes par

    Tafuri dans le cadre de sa thse de lanalyste non-interprte . Lauteur envisage,

    aussi, un approfondissement des fondements thoriques dune telle thse.

    Mots-cls: Clinique psychanalytique de lautisme, moi-peau, objets autistiques

    The present paper raises a question on the use of interpretation in the

    psychoanalytical clinic with the autistic child, in order to defend the relevance of theinterventions based upon the sensory domain as proposed by Tafuri, in the realm of her

    non interpreter psychoanalyst thesis. It also aims to go further regarding the

    theoretical foundations of this thesis.

    Key-words: Psychoanalytic clinic of autism, ego-skin, autistic objects

    Verso inicial recebida em Janeiro de 2008

    Verso aprovada para publicao em maro de 2008

    MARIATERESAMELOCARVALHOProfessora do Curso de Especializao em Teoria Psicanaltica da UFMG (Belo Horizonte,

    MG, Brasil), Doutora em psicanlise pela Universidade de Paris VII, autora do livro: Paul

    Federn une autre voie pour la thorie du moi. Paris, PUF, 1996.

    Rua Bambu 25/1600

    30210-490 Belo Horizonte, M.G.

    [email protected]