À SOMBRA DO LIBERTADOR

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À SOMBRA DO LIBERTADOR Hugo Chávez Frias e a transformação da Venezuela R ICHARD G OTT

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À SOMBRA DO LIBERTADORHugo Chávez Frias e a transformação da Venezuela

RICHARD GOTT

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EDITORAEXPRESSÃO POPULAR

À SOMBRA DO LIBERTADORHugo Chávez Frias e a transformação da Venezuela

RICHARD GOTT

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Copyright © 2004, by Editora Expressão Popular

Título original: A LA SOMBRA DEL LIBERTADOR - Hugo Chávez Frías y latransformación de Venezuela

Tradução: Ana CorbisierRevisão: Orlando Augusto Pinto e Geraldo Martins de Azevedo FilhoProjeto gráfico, capa e diagramação: ZAP DesignFoto da capa: VenpresImpressão e acabamento: Cromosete

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: dezembro de 2004

EDITORA EXPRESSÃO POPULARRua Abolição, 266 - Bela VistaCEP 01319-010 – São Paulo-SPFone/Fax: (11) 3112-0941Correio eletrônico: [email protected]

Gott, Richard

À sombra do libertador: Hugo Chávez Frías e a

transformação da Venezuela / Richard Gott ; tradução Ana

Corbisier. –-1.ed.-- São Paulo : Expressão

Popular, 2004.

304 p.

Título original: A la sombra del libertador: Hugo Chávez

Frías y la transformación de Venezuela.

Livro indexado em GeoDados-http://www.geodados.uem.br

1. Frías, Hugo Chávez – Político. 2. Venezuela –

Política. 3. Venezuela – Golpe militar. I. Título.

CDD 21.ed. 320.987

Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

G685s

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)

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Sumário

REPORTAGEM ENVIADA DE CARACAS ........................................................ 7

DEBAIXO DE CHUVA ....................................................................................... 21

PRIMEIRA PARTEPREPARANDO-SE PARA O PODER1. JOGO DE BEISEBOL EM HAVANA ............................................................ 492. AS PROMOÇÕES MILITARES DE HUGO CHÁVEZ ............................. 593. A REBELIÃO EM CARACAS, O CARACAZO ............................................ 714. O PACOTE ECONÔMICO QUE PÔS FIM À PRESIDÊNCIA DE CARLOS ANDRÉS PÉREZ ..................................................................... 795. DOUGLAS BRAVO E O DEBATE ENTRE CIVIS E MILITARES .......... 896. A INTERVENÇÃO MILITAR DE CHÁVEZ ............................................... 977. O GOLPE DO VICE-ALMIRANTE HERNÁN GRÜBER ..................... 1078. LUIS MIQUILENA E A FRENTE PATRIÓTICA DE 1989 .................... 1159. TORRIJOS E VELASCO, TRADIÇÃO DA REBELIÃO MILITAR NA AMÉRICA LATINA ................................................................................ 123

SEGUNDA PARTEREVIVENDO O PASSADO11. O LEGADO DE SIMÓN BOLÍVAR .......................................................... 13512. ROBINSON CRUSOE E A FILOSOFIA DE SIMÓN RODRÍGUEZ ............................................................................................... 14912. EZEQUIEL ZAMORA CLAMA POR “HORROR À OLIGARQUIA” ......................................................................................... 159

TERCEIRA PARTEPREPARANDO A DERRUBADA DO ANTIGO REGIME13. A PRISÃO DE YARE - À PROCURA DE ALIADOS POLÍTICOS ...... 16914. CAUSA R, PÁTRIA PARA TODOS (PPT) E A POLÍTICA EM GUAYANA ............................................................................................. 17715. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1998 ............................................... 189

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QUARTA PARTECHÁVEZ NO PODER16. A FORMAÇÃO DE UMA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE .............. 19917. MANUEL QUIJADA E A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO ..... 20718. ALÍ RODRÍGUEZ ARAQUE E A NOVA POLÍTICA PARA O PETRÓLEO ................................................................................... 21119. O PROGRAMA ECONÔMICO DO GOVERNO DE CHÁVEZ ....... 22120. UM NOVO FUTURO AGRÍCOLA PARA A VENEZUELA ................ 22921. JOSÉ VICENTE RANGEL E A POLÍTICA EXTERNA ......................... 24322. A GUERRA CIVIL NA COLÔMBIA E O FUTURO DO SONHO BOLIVARIANO ................................................................... 25523. NOVOS DIREITOS PARA OS POVOS INDÍGENAS ........................... 26524. TEODORO PETKOFF E A OPOSIÇÃO A CHÁVEZ ........................... 273

EPÍLOGOOS MILITARES E A SOCIEDADE CIVIL ...................................................... 281

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maravilhosa cidade de Caracas se espraia sob inumeráveiscolinas cujos cumes aparecem sobre as nuvens que se espa-

lham no vale em períodos de chuva. Milhares de pessoas vivem emladeiras íngremes, nos barrios, um termo comumente traduzidopara o inglês como ,* pouco adequado à realidade, visto não se-rem simplesmente favelas. Embora sobras de madeira e zinco se-jam muito usados, ali também existem casas de alvenaria. Suaprincipal característica é a proximidade, com os barracosempilhados uns sobre os outros, lutando pelo espaço.

Uma vasta massa de pessoas vai e vem, em constante movi-mento. Alguns são brancos, mas a grande maioria tem a peleescura, sejam negros ou de origem indígena. A Venezuela situa-se geograficamente entre o Brasil e as ilhas do Caribe, e os filhosde escravos e indígenas superam em número os descendentes doscolonos europeus. As pessoas são alegres e dispostas, mas, em um

MAIO DE 2002REPORTAGEM ENVIADA DE CARACAS

RICHARD GOTT

A

* Cabana, choça... urbana. (N. do E.)

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dos países mais ricos da América Latina, vivem em constante eabsoluta pobreza. Faltam educação e saúde. É assim. Muita genteconsegue sobreviver como camelô, lá embaixo, no vale.

O ar é claro e a paisagem, imponente, de tirar o fôlego. Aatmosfera é a de uma cidade de montanha da Europa medieval,ainda que os serviços sejam mais modernos. A água e a energiaelétrica chegam a todo o país, mas o serviço de coleta de lixo éprecário e, com freqüência, os resíduos amontoam-se nos despe-nhadeiros das encostas e ao longo das estreitas calçadas que li-gam esses imensos conglomerados urbanos.

São bairros não planejados, portanto, nem os ônibus, nem oscarros podem manobrar nesses morros. A insegurança é a prin-cipal preocupação: grades de metal e portas de segurança são osobjetos mais caros e mais importantes das construções.

Dos morros, os pobres vêem abaixo os bairros dos ricos. Umapequena minoria de venezuelanos brancos vive em grandes exten-sões urbanizadas, com empregados e piscinas, lojas e supermerca-dos e vai para seus escritórios em automóveis com ar-condiciona-do, por avenidas sem fim. A imagem da África do Sul nos vem àcabeça. Soweto contra os subúrbios brancos de Johannesburgo. Oapartheid não está legalizado na América Latina, mas existe,mesmo assim. Os colonos brancos comandaram o continente desdeos tempos da conquista e, em países como a Venezuela, o fluxoconstante de imigrantes europeus, nos séculos 19 e 20, reforçarama elite branca e seu inerente racismo; um fenômeno que dominahoje o cenário político do país.

Há três anos, depois de uma década de crise política e docolapso dos velhos partidos políticos corruptos, o sistema demo-crático levou à Presidência um homem do povo. Com ancestraisnegros e indígenas, e a enfática retórica de um provinciano, HugoChávez começou a organizar uma revolução. Um tenente-coro-

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nel carismático e popular identificou as semelhanças que haviaentre os soldados e o povo que era a sua origem. Com a suaformação a partir de diversos idealistas do século 19, assim comode revolucionários nacionalistas, incluindo Simón Bolívar, o li-bertador da Venezuela e de metade da América Latina, entregou-se à tarefa de romper as barreiras entre a Força Armada e o res-tante da sociedade, utilizando soldados como ponta-de-lança deseus projetos de desenvolvimento. O Plano Bolívar foi posto emação, utilizando quartéis como escolas, dividindo com o povo osserviços de saúde reservados aos militares, tentando pôr parafuncionar, novamente, com ações mais dinâmicas, um setorpúblico moribundo.

O descontentamento com a revolução de Chávez por parte daelite branca do país, de generais do Exército e de homens denegócio conservadores, ficou evidente desde o começo. E foiassim que, em abril, os contra-revolucionários deram um golpede Estado no mais puro estilo Pinochet. Aboliram a Constituiçãoe a Assembléia Nacional e enviaram batalhões armados paraperseguir, dar busca e assassinar famílias de destacados seguido-res de Chávez. Mas o golpe foi tão violento que entrou em colapsoem apenas um par de dias, destruído unicamente pela aliança queChávez vinha construindo, com tanto empenho, entre os solda-dos e o povo.

Chávez é agora reconhecido como a figura mais causa interesseda América Latina, desde o apogeu de Fidel Castro. Sua experiên-cia política é o projeto latino-americano mais realista, desde aRevolução Cubana. No continente, as pessoas observam com aten-ção o que se pode aprender com seu modelo, enquanto para o restodo mundo é o primeiro chefe de Estado que se integra abertamenteao movimento contra a globalização. Em seu discurso na cúpulaentre a Europa e a América Latina, em Madri, no mês de maio, e

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com uma linguagem antiglobalização, deplorou a falta de liderançapolítica e condenou aquele tipo de reunião como uma perda detempo: “Os líderes vão de cúpula em cúpula” – reclamou – “en-quanto seus povos vão de abismo em abismo”.

O projeto de Chávez é mais político do que econômico, e sedeve tanto a seu estilo e retórica quanto a políticas concretas.Seu objetivo político é minar as bases do poder das elitesentrincheiradas que nunca se preocuparam em implementar re-formas econômicas moderadas para melhorar o nível de vidados setores populares.

Sua principal inovação interna, o Plano Bolívar, envolve maisformalmente a Força Armada nos projetos de desenvolvimento,especialmente em escolas e hospitais. Nas questões internacionais,o propósito do governo foi aumentar a receita de seu maior ge-rador de divisas, Pdvsa, empresa petrolífera estatal, o que foiobtido graças à renovação da Opep e à estabilização dos preçosdo petróleo em níveis razoavelmente altos – uma importantevitória de Chávez – assim como ao aumento dos impostos dire-tos e não dos indiretos, bloqueando o caminho das privatizações,uma das grandes, e nem tão secretas, ambições dos empresáriosde direita.

Em outras áreas, o modelo de Chávez continua apoiando aeconomia mista. Tradicionalmente, o Estado venezuelano desem-penhou um papel muito importante na economia, e essa realidadefoi incorporada à Constituição de Chávez. Grande parte do setorprivado beneficiou-se tradicionalmente de relações próximas esolidamente estabelecidas com o Estado e o entusiasmo pelaprivatização, notório nas elites comerciais de outros países daAmérica Latina, não se verificou na Venezuela, com exceção docaso da empresa petrolífera. Ainda assim, nada permite supor quea Venezuela seguirá o modelo estatal de Cuba. Chávez reiterou em

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várias ocasiões seu afeto por Castro e por Cuba, mas no planopolítico, estritamente, e não no plano econômico.

As propostas atuais do governo Chávez no que se refere àsaúde, educação e segurança social não diferem das de outrospresidentes socialdemocratas do Chile e do Brasil. Chávez preten-de injetar mais recursos em todas essas áreas e, diferentementeda situação do Chile e do Brasil, a grande maioria acredita em suapalavra. Essa é a sua força.

Para medir a força popular na Venezuela, percorri duran-te alguns dias os morros de Caracas e visitei pela primeira vezum dos barrios mais organizados da cidade. Uma rua estreitae sinuosa nos leva ao alto do morro, atravessando um territóriodesolado com barracos e carros velhos destroçados. Em certomomento, chega-se a uma plataforma elevada, de onde se temuma vista panorâmica do vale. Meio milhão de pessoas viveali, algumas em casas de alvenaria, outras em grupos de ca-sas parede-meia, outras em barracos. Em uma escola, ondequinze professores enfrentam diariamente 1,5 mil crianças,perguntei a um dos supervisores o que acontecera durante osdias do golpe de abril.

“Temos aqui uma rádio comunitária” – disse-me – “e noprimeiro dia convocamos as pessoas a descer para o Palácio deMiraflores. Alguns foram de ônibus, outros de caminhão, outroscaminhando.” No segundo dia, “a polícia fascista – as forçasrepressivas do Estado – veio nos intimidar, mas logo se foram”.Ao entardecer, as pessoas do lugar novamente desceram para acidade, para o quartel militar de Forte Tiúna. “A polícia fascistaainda rondava, mas uma multidão de gente desceu. Algumasmães ficaram no morro, para cuidar das crianças, enquanto outraspreparavam a comida.”

“Aqui não somos chavistas” – disse meu articulado informan-

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te. “Somos revolucionários. Devemos defender este governo, massomos mais libertários do que ele. Defendemos Chávez porque émelhor do que qualquer outro presidente que já tivemos. Acre-ditamos que ele seja o resultado de nossa luta. O povo o reconhececomo um igual. Obviamente, ele é índio e negro e, talvez, tam-bém um pouco branco...”

“Muitos dos que foram resgatar o presidente nunca tinhamfeito nada. Agora ficaram mais politizados e estão tentando seorganizar, mais do que nunca antes.” Em todos os morros apóia-se a revolução. Num pequeno barraco de uma favela, do outrolado da cidade, encontrei um encanador que expressou seu des-contentamento com o governo. “Votei em Chávez” – disse-me –“mas agora me arrependo. Sinto-me completamente frustrado.Não vi nenhuma melhora. Além do mais, não me interessa quehaja conflito entre ricos e pobres porque, se isso acontece, comoconseguirei trabalho?”

Fazendo eco com o ponto de vista da oposição, argumentaque não houve golpe de Estado em abril. “Foi um golpe do go-verno contra a sociedade civil. Os militares estavam protegendoos civis. Houve um vazio de poder. Pode ser que eu me engane,mas Chávez deveria ter renunciado. Este governo não deu osresultados que se esperavam.”

Ao descer dos morros, fui ter com o “comandante”, comocostumam chamá-lo, em seu apartamento particular no segun-do andar do Palácio de Miraflores. Chávez estava sentado, sozi-nho, com alguns papéis sobre uma discreta mesa da sala de jan-tar, voltada para um pátio ao ar livre. Um homem de quarenta etantos anos (quase cinqüenta), com calças folgadas e camisamarrom de colarinho aberto; parecia relaxado e consideravel-mente mais magro do que quando o vira em Paris, seis mesesantes. Sou um visitante privilegiado: eu o vi e entrevistei várias

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vezes, e escrevi sua biografia. Recebe-me como a um velho co-nhecido, com um abraço fraterno.

Apesar de ser um presidente acostumado a passear tranqüi-lamente no meio das multidões que solicitam sua atenção, ativi-dade que ele próprio aprecia e considera politicamente compen-satória, Chávez confinou-se no palácio desde o golpe de abril,enquanto seus guarda-costas – homens de terno preto, aparen-tando violência, carregando sinistras maletas, que se convertemem escudos antibalas – praticam novas táticas. Está sob sériaameaça de magnicidio, palavra que os hispano-americanos usampara descrever o assassinato de uma pessoa importante. “Assas-sinato” é uma palavra usada tão comumente nos barrios daAmérica Latina – pelo menos duas dezenas a cada semana, emcidades como Caracas ou São Paulo – que se tornou sinônimo dehomicídio puro e simples.

O próprio Chávez está pouco otimista. “Qualquer coisa épossível, Richard” – diz-me, quando lhe peço para relatar suasações no combate às diversas estratégias que a oposição deve ter.“Estou certo de que ainda pensam no magnicidio e, aos maisdesesperados, esta deve parecer a única saída.” Há alguns anos,Chávez foi advertido por Fidel Castro da seriedade da ameaça,mas só agora começa a tomar precauções.

Outra possibilidade é o “golpe institucional”, que consiste emuma solicitação que deve ser feita à Assembléia Nacional, paraassegurar sua renúncia. O assunto foi amplamente tratado naimprensa, tendo sido utilizado no Equador, na década de 1990,e na Venezuela, em 1993, quando um dos predecessores deChávez, Carlos Andrés Pérez, foi destituido do cargo, acusado decorrupção.

“Bem, você viu a pressão feita pela imprensa e pela Assem-bléia Nacional” – diz Chávez – “mas acho que vai ser difícil para

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a oposição. Falei outro dia com um grupo de parlamentares re-volucionários e, depois do que aconteceu durante o golpe, quandomuitos deles foram perseguidos e ameaçados em suas casas,outros se juntaram a eles. “Antes eram 63, agora são 90”. Chávez,por enquanto, conta com uma nítida maioria.

“Eles falam de um ‘chavismo light’, ou de um ‘chavismo semChávez’, ainda que eu creia que isso é um mito; mas continu-am insistindo em minha renúncia” – diz o presidente com umsorriso.

Pergunto quais são as possibilidades de um golpe econômi-co, chamando sua atenção para a ameaça de Henry Kissinger, de“fazer tremer a economia”, quando planejava a derrubada deAllende.

“É bastante provável que tentem criar problemas econômicos”– diz Chávez – “e fazer com que o país seja ‘ingovernável’, comodizem eles, como ocorreu no Chile. Estou certo de que essa é umasaída que estão tentando. Não podemos ignorar a possibilidadede um segundo golpe.”

Em resposta a tal ameaça, Chávez busca contra-atacar:“Estamos analisando detidamente todos esses cenários” – “e ten-tando recuperar a ofensiva para assim neutralizar a oposição”.

O projeto revolucionário em que Chávez se envolveu compre-ende, antes de mais nada, uma estreita aliança entre a ForçaArmada e o povo. Perguntei-lhe se suas estratégias básicas ha-viam sido afetadas pelo golpe de abril, em que oficiais de patentesintermediárias haviam claramente se envolvidos. Cerca de sessen-ta almirantes e generais passaram para a reserva.

Chávez alega que não houve nenhuma mudança de estraté-gia, mas admite que deverá haver uma revisão da velocidade edo ritmo do desempenho militar nos projetos de desenvolvimentodo país. A estratégia, afinal, vem de trás para frente. Simón

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Bolívar criou uma aliança entre a armada e o povo no começo doséculo 19, tornando possível a independência. Apesar de haverum punhado de contra-revolucionários no grupo dos oficiais,Chávez prefere destacar o extraordinário apoio do povo aosmilitares que se mantiveram firmes, a favor da Constituição.

“Foi dada uma resposta rápida ao golpe, tanto por parte dosmilitares quanto dos civis. Centenas de milhares de pessoas, emtodo o país, foram para as ruas, para resistir. E foram para onde?Postaram-se diante dos quartéis, fazendo isso em função da rela-ção que se consolidou entre oficiais e civis graças ao Plano Bolívar.Por causa do contato estabelecido entre os militares e os setoresmais pobres da sociedade, o povo apoiou a Força Armada”.

Durante algumas semanas, os canais de televisão transmiti-ram, todos os dias, os dramáticos acontecimentos na AssembléiaNacional, em que uma procissão de generais e almirantes, impli-cados no golpe, apresentou-se frente a uma subcomissão parla-mentar. Não posso me lembrar de outro momento na AméricaLatina em que altos oficiais tenham sido obrigados a passar portão humilhante processo, apesar de os políticos mostrarem-seextremamente comedidos durante os interrogatórios, enquantoos generais mostravam-se arrogantemente indiferentes. Todosestão agora nas listas da reserva, mas continuam pensando quevão voltar.

Observei como um oficial de bom porte, aspecto singular ecerca de cinqüenta anos de idade, cabelo quase raspado e unifor-me cinzento coberto de condecorações e insígnias, explicava que,durante o golpe, agiu à margem de suas obrigações para com anação e a Força Armada. Fez um discurso claramente oposicio-nista e denunciou a forma como os militares haviam sido arras-tados para a política e a vergonha que isso significava para elese suas famílias. Recordou a maneira como as pessoas batiam nos

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copos quando um oficial entrava em um restaurante, não paraaclamá-lo e, sim, em sinal de desprezo. Isso tinha acontecido comele, segundo disse, com ele e com sua esposa.

Enquanto falava com Chávez, lembrei-me do caso do gene-ral Prats, comandante-em-chefe do presidente Salvador Allende,do Chile, em agosto de 1973, cuja casa, situada em um confor-tável bairro de subúrbio, fora cercada por mulheres de classemédia que batiam em panelas. Foi obrigado a renunciar para darlugar ao general Pinochet. No ano seguinte, ele e sua esposaforam assassinados por um carro-bomba. Não haverá perigo deeste modelo se repitir na Venezuela?

Chávez concordou em que “um número significativo de al-tos oficiais alcançou um nível de vida comparável ao da classemédia alta. Foram submetidos a esse tipo de pressões e ataquesnos lugares que freqüentam e inclusive entre seus próprios pa-rentes, e isso certamente contribuiu para minar as bases da uni-dade e da força da liderança militar”. No entanto, assinalou que“um grande número de altos oficiais não sucumbiu diante dessapressão social. Recusou-se a permitir que fossem neutralizados.Pondo em risco suas vidas e suas carreiras militares, mantiveram-se firmes nos momentos mais críticos, manifestando-se a favorda Constituição”.

Diante do alerta de Chávez sobre a possibilidade de um novogolpe, e buscando observadores independentes, decidi tomar umavião para a terra do petróleo, Maracaibo, na parte ocidental dopaís, para entrevistar um dos poucos proprietários de jornal naVenezuela que se negaram a fazer parte da campanha da mídiapela renúncia de Chávez. Esteban Piñeda Belloso é dono do jor-nal Panorama. Um rico e bem estabelecido herdeiro do jornal dafamília, que tem a segunda maior circulação no país. É fácil saberpor que o Panorama teve tanto êxito. No dia do contragolpe,

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quando os jornais de Caracas saíram de circulação, perplexosdiante do fracasso do golpe que haviam promovido, o Panoramacontinuou saindo, com nada menos do que quatro edições dife-rentes, as quais faziam uma crônica de cada nova etapa da vol-ta de Chávez ao poder.

Piñeda é um dos mais destacados e bem-sucedidos empresá-rios de Maracaibo. Contou-me como os proprietários de outrosmeios de comunicação impressa tentaram arrastá-lo para a cons-piração, visando derrubar o presidente. Negou-se a apoiá-los. Defato, depois do golpe de abril, decidiu se retirar do Grupo daImprensa, a associação nacional de editores de jornais e revistas,em sinal de protesto pelo entusiasmo que demonstraram duran-te o golpe de Estado.

Ainda que seu jornal, muito lido pela Força Armada, não façacampanha a favor de Chávez, Piñeda afirma acreditar na disposi-ção verdadeira do presidente de trabalhar pelos mais desfavo-recidos, disposição esta que é compartilhada por 80% da popula-ção. É uma das poucas pessoas que conheci que se mantém otimistacom relação ao futuro. Pensa que os esforços da oposição para selivrar de Chávez pela via constitucional estão destinados ao fra-casso e acredita que um “golpe econômico” seria provavelmentemais prejudicial para os empresários envolvidos do que para opróprio Chávez. No caso dos militares, Piñeda garante que o quemenos lhes interessa é se ver novamente envolvidos em um gol-pe de Estado. Seu único desejo é voltar a suas tarefas habituais.

É certo que os setores políticos tradicionais rearticularam-se,de certa forma, depois de sua contundente derrota nas váriaseleições posteriores a 1998, mas ainda carecem de apoio popu-lar. Isso poderia ser atribuído ao inesperado poder de convoca-ção que demonstraram ter sobre boa parte das classes média e altanas diferentes ocasiões em que foram chamadas para se manifes-

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tar contra o governo nas ruas de Caracas, mas ainda falta con-ferir qual é, verdadeiramente, sua força eleitoral. A oposição estádividida em uma dúzia de partidos e de modo algum representauma verdadeira força eleitoral. Ainda não apareceu nenhumverdadeiro líder de oposição e tampouco está sendo elaboradoqualquer plano para um governo de coalisão.

O golpe de abril trouxe a público um triste personagem domundo dos negócios, Pedro Carmona – mais conhecido agoracomo “Pedro o Breve”. Um homem sem a mínima fibra de polí-tico em seu ser. Seu único plano de governo foi a dissolução daAssembléia Nacional e da nova Constituição, que foi amplamentedebatida em uma assembléia eleita por votação popular eratificada posteriormente por um plebiscito. A intenção dosgolpistas era reintroduzir um programa de governo neoliberal,que incluía a privatização das empresas do Estado, no estilo doque foi feito em quase todos os demais países da América Lati-na. Estava prevista, além disso, a privatização da empresa petro-lífera, assim como a retirada da Venezuela da Opep e o aumentoda produção de petróleo.

É como se a oposição acabasse por acreditar em sua própriapropaganda, pois as marchas de protesto contra o governo sãomuito concorridas e as pesquisas de opinião do começo do anoindicavam uma aparente queda no apoio popular a Chávez. Aeuforia que tomou conta da classe média alta, dos radialistas,apresentadores e colunistas dos meios de comunicação fez comque acreditassem que bastava um pequeno empurrão para der-rubar o presidente.

Na prática, a partir de minha própria experiência na Améri-ca Latina, as pesquisas de opinião nunca serão verdadeiras, en-quanto os pesquisadores não conseguirem chegar aos lugareshabitados pela grande maioria da população. A mesma coisa

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acontece com as marchas e protestos: não são uma referênciaconfiável. Podem ser muito concorridas, mas isso não significaque esse sinal de descontentamento se transformaria depois emvotos a favor. Aqui os jornalistas e comentaristas esforçam-se portirar suas próprias conclusões, sempre desatualizadas, sobre oestado da opinião pública.

Minha impressão pessoal é que o sólido apoio popular aChávez, baseado na classe social e na raça, permanece intacto.Pela primeira vez na história da Venezuela, a grande maioria dopaís, até agora oculta – negros, índios e mestiços – tem um pre-sidente com o qual se identifica. As coisas podem não ter melho-rado muito nesses três anos, talvez alguns setores estejam atémais pobres, mas diante do evidente racismo demonstrado pelaclasse dirigente tradicional, Chávez é o único presidente em quepodem acreditar e que vão defender.

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s montanhas da Venezuela se elevam por quase toda a costado mar do Caribe, com manchas de argila vermelha por

baixo, matas de um verde forte por cima e cumes que se perdementre as nuvens. Da janela do avião, sempre imaginei ser esse olugar em que os indígenas se encontraram com Colombo quan-do este chegou a suas praias em 1498. Naquela época, comoagora, eram escarpadas e inóspitas, úmidas e cálidas – embora,como se sabe, Colombo realmente tenha ancorado a uns quinhen-tos quilômetros a leste, na península de Paria, diante de Trinidad.

O avião costuma sobrevoar a costa antes de aterrissar, passan-do por Naiguatá, Macuto e La Guaira até chegar a Maiquetía eCatia La Mar, um punhado de pequenos e sujos complexos turís-ticos, com edifícios altos e dispersos aqui e ali e um par de ruasentre as montanhas e as praias poluídas. As companhias de avi-ação costumavam reservar os hotéis do lugar para os viajantesque passam apenas uma noite, porque ficam mais perto de Ca-racas – embora alguns viajantes às vezes se queixem de roubo...

DEBAIXO DE CHUVA

SÓ UM DEUS BRUTAL PODERIASE VINGAR NAS PESSOAS MAIS POBRES.JOSÉ VICENTE RANGEL, DEZEMBRO DE 1999

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Tive a oportunidade de saborear excelentes peixes em um restau-rante na beira da estrada, ao ar livre, suspenso sobre a praia.

Quando o avião chega roncando em terra, aterrissa por sobreuma minúscula saliência ao pé das montanhas, paralela à costae, às vezes, não é possível avistar as favelas penduradas nasescarpas. Acostumado a vir para cá há trinta anos ou mais, sur-preendi-me com a infinidade de barracos que, antes aglomera-dos entre as colinas e a costa, começavam a subir pelas encos-tas, até formar uma paisagem urbana quase vertical.

Em princípio, a temporada de chuvas termina no fim de novem-bro, de modo que, quando tormentas fortes, porém intermitentes,caíram sobre essa zona costeira, em meados de dezembro de 1999,ninguém se preocupou muito, acreditando ser a última chuvaradada estação. As tormentas tropicais e os fenômenos meteorológicosincontroláveis são comuns no Caribe, freqüentemente causandoimportantes danos em certas regiões, mas raras vezes os desastresregionais chegam a criar uma emergência nacional. Precisamen-te naquele dia, quarta-feira, 15 de dezembro de 1999, todos os olha-res do país convergiam para as cabines eleitorais, onde ocorria oplebiscito para aprovar ou não a nova Constituição.

Todo o mundo sabia que o “sim” seria majoritário, pois con-tava com o apoio do popular e carismático Hugo Chávez, o te-nente-coronel da reserva eleito presidente no ano anterior. Aúnica dúvida era a participação, que parecia só poder ser preju-dicada pelo mau tempo. O povo já fora convocado a votar cincovezes, desde novembro de 1998 e, até em um país que um dia foiconsiderado (talvez facilmente demais) apegado às práticas de-mocráticas, um plebiscito cujo resultado era previsível deviaparecer desnecessário. Além do mais, estava chovendo.

Ainda assim, o presidente Chávez convocou eleições e aspessoas, felizmente, responderam a seu chamado. Em torno de

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71% dos inscritos votaram “sim” e 28%, “não”. Era um bom re-sultado para o presidente que, além disso, encerrava um ano deação intensa, dando a seu governo os instrumentos para dirigiro país em uma nova direção.

Então o céu veio abaixo. Novas tormentas trouxeram chuvasfortes que se somaram às águas acumuladas nas semanas anteri-ores, causando enchentes incontroláveis. Na madrugada de quin-ta-feira, 16 de dezembro, o monte Ávila, situado ao norte de Ca-racas, que domina os complexos turísticos costeiros próximos aoaeroporto, explodiu de uma vez por todas. Em sua encosta norte,as torrentes de barro e água formaram um maremoto em terrafirme. “Paredes de água de até sete metros de altura varreram seusinclinados barrancos” – escreveu Phil Gunson para o jornal inglêsThe Independent – “arrastando árvores inteiras e rochas do tama-nho de um carro.” Ao longo de toda a faixa costeira, desde Macutoaté Catia La Mar, passando pelo aeroporto de Maiquetía, os mor-ros desceram para o mar, trazendo consigo uma quantidade ines-timável de pessoas e casas. Em Caracas, as inundações tambémcausaram morte e destruição em escala sem precedentes.

Milhares de pessoas morreram e dezenas de milhares perde-ram seus lares. O aeroporto permaneceu fechado durante sema-nas e o porto de comércio de La Guaira foi totalmente destruído.“Dezenas de containers eram sacudidos como caixas de papelãoe agora jazem amontoados” – escreveu Gunson. “Alguns flutu-avam no mar outros foram saqueados, assim como a maioria daslojas.” Apesar da grande probabilidade de tempestades naquelazona, as autoridades haviam permitido que a cidade se estendesseperigosamente, sem contar com mecanismos de escoamento daságuas, o que agravou a catástrofe natural.

A avalanche de lodo foi descrita como a pior catástrofe na-tural do século na Venezuela. Um irreverente bispo católico in-

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sinuou que se tratava de um castigo de Deus para o governo; masfoi repreendido pelo ministro de Relações Exteriores, José VicenteRangel, o qual afirmou que só um deus brutal poderia se vingarnas pessoas mais pobres. Outros lembraram que a Igreja católi-ca, antigamente favorável aos espanhóis, aproveitara-se do ter-remoto de 1812, nos tempos de Simón Bolívar, para denunciar osatos dos primeiros líderes da independência.

A Assembléia Nacional, eleita para redigir uma nova consti-tuição e em grande parte composta por seguidores de Chávez,fortalecera-se com o resultado do plebiscito e, assim, outorgouao presidente poderes especiais. Retomando o uniforme de camu-flagem e a boina vermelha que vestira oito anos antes para lide-rar uma rebelião militar contra o governo de então, este encar-regou-se das operações de resgate. Ter um ex-militar na direçãodo país parecia agora uma vantagem.

Os campos de futebol e os estádios foram transformados emrefúgios provisórios para as vítimas e os terrenos de diferentesinstalações do Exército encheram-se de barracas. Os soldadosprovidenciaram comida e começaram a construir casas para osrefugiados, em terrenos do Exército. Embora fosse possível con-seguir lugar para os refugiados nos espaçosos terrenos do Cara-cas Country Clube, lugar de lazer da elite venezuelana, Chávezevitou pôr em perigo a unidade nacional criada em função datragédia e não fez pedidos políticos a quem não os aceitaria deboa vontade.

O número de vítimas mencionadas nos primeiros relatórios foialarmantemente elevado; mas, um mês depois da tragédia baixarapara de quinze a vinte mil mortos, além de cerca de cem milrefugiados. As cifras eram inevitavelmente imprecisas porque,como na maioria dos países do Terceiro Mundo, na Venezuelanunca se realizou um censo adequado, nem existe um registro de

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terras apropriado, além de que era impossível contar as vítimasarrastadas para o mar ou soterradas pela lama.

O que sabemos é que o governo agiu com rapidez e com muitoacerto. Quando os Estados Unidos enviaram dois navios, emmeados de janeiro, com soldados e equipamentos para remoçãode terra, os venezuelanos alegaram que duas ou três escavadeirasnão cairiam mal, mas que as várias centenas de soldados eramdemais. Ninguém disse o que muitos pensavam: como conceberque um regime que se auto-intitula revolucionário permita quesoldados imperialistas realizem um exercício de desembarque empraias situadas a apenas meia hora da capital?

O fato é que o terremoto político que estremecera a Venezuelaapenas um ano antes, seguramente causou um impacto maisduradouro nesta parte do mundo do que a catástrofe de dezem-bro. Quando Hugo Chávez, um militar radical confesso, chegouà Presidência, em fevereiro de 1999, obtivera uma maioria con-siderável e contava com o apoio de um atrofiado Partido Comu-nista da Venezuela (PCV) e de seis grupos de esquerda maisimportantes de matizes e trajetórias diversas. Um revolucionáriode esquerda pode parecer um conceito anacrônico para os prin-cípios do século 21, mas é exatamente o que Chávez é: um sol-dado no estilo de Cromwell, que aspira a reconstruir seu país deacordo com um modelo totalmente novo.

A vitória eleitoral de Chávez anunciava uma nova era nahistória da América Latina. Ao entrar no Palácio de Miraflorescom a promessa de acabar com a corrupção arraigada durantedécadas passadas, esboçava um projeto alternativo para aVenezuela – e para a América Latina – que rompia com as po-líticas econômicas neoliberais exportadas pelos Estados Unidos.Garantiria seu novo regime convocando a eleição de uma As-sembléia Nacional Constituinte, que acabaria com o velho Con-

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gresso e redigiria uma Constituição nova e mais moderna.Buscaria associar os países vizinhos a uma nova interpretaçãodo 19o sonho bolivariano: a criação de uma América Latina in-dependente e “original”, que unisse suas forças contra o mun-do exterior.

Quanto à política interna, o governo de Chávez concentrar-se-ia em projetos agroindustriais e na produção de alimentos, assimcomo no desenvolvimento endógeno do país, com que a esquer-da nacionalista latino-americana sonhava há quase meio século.Em vez de confiar nas forças do mercado e da globalização, oEstado buscaria promover o desenvolvimento interno do país parabenefício da grande maioria de seu povo, utilizando seus própri-os recursos e os mecanismos de planejamento que fossem neces-sários.

Em questão de um ano, Chávez e seu programa receberam umapoio maciço em cinco eleições sucessivas. No processo, fechouo Congresso e a Corte Suprema, aboliu a Constituição de 1961 epresenciou o suicídio dos dois principais partidos políticos tra-dicionais. Ao mesmo tempo, fundou a V República, redesenhandopela primeira vez o modelo institucional vigente desde 1830,suscitou a redação de uma nova constituição, outorgou novosdireitos aos povos indígenas do país; reformulou o sistema judi-ciário e instaurou uma Assembléia Nacional de uma só câmara.

A nova redação da Constituição é menos importante do queparece, embora entretenha os constitucionalistas. Os governoslatino-americanos regularmente procuram dar legitimidade a seusregimes, convocando uma Assembléia Constituinte para que redijauma nova constituição. Na Venezuela, a Constituição não muda-ra desde 1961, embora o assunto fosse debatido nos círculos po-líticos por mais de uma década. A versão de 1999 foi fruto de umdebate que durou três meses e, sem dúvida, terá defeitos em alguns

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aspectos, como resultado da precipitação. No entanto, quase todomundo ficou impressionado com a seriedade do trabalho realiza-do. Certos artigos dão peso à descentralização política e reforçamos mecanismos de controle no âmbito local, embora o sentido geraldo texto aponte para um sistema mais presidencialista. Tambémreforça a idéia de que Petróleos da Venezuela S. A (Pdvsa)., a com-panhia petrolífera nacional, deve permanecer em mãos do Estado,o que indubitavelmente é um anseio partilhado pela maioria dosvenezuelanos.

Em boa medida, Chávez convenceu a Assembléia NacionalConstituinte a mudar o nome do país, para chamá-lo de “Repú-blica Bolivariana da Venezuela”, como uma homenagem ao maisilustre antepassado venezuelano e libertador da América Latinae como demonstração de que sua política externa pretende setransformar em modelo para o restante do continente. Tambémcomeçou a examinar diferentes formas de integração dos mili-tares à sociedade civil.

A reorganização da superestrutura política do país foi vistacomo um requisito prévio à reativação de uma economia queainda permanece no lamentável estado em que se encontravaquando Chávez chegou ao poder. O desemprego ultrapassa os20% e a inflação, os 30%, enquanto o investimento estrangeiroestá paralisado. O presidente Chávez pretende se afastar do quecostumava chamar de neoliberalismo selvagem, imposto peloFundo Monetário Internacional.

Embora Chávez ainda não tenha sido capaz de encaminhar opaís nessa direção, uma luz brilha na penumbra econômica atu-al. Conseguiu (com alguma ajuda de seus parceiros da Opep)aumentar o preço do barril de óleo cru em três etapas, levando-o de nove a 27 dólares. Conseqüentemente, ainda que com asinundações de dezembro, mantém certa margem de manobra.

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Chávez deu também alguns sinais altissonantes para que aspessoas saibam de que lado está. Durante seu primeiro ano degoverno, em outubro de 1999, foi à China, onde assegurou aopresidente chinês, diante do maosoléu de Mao Tse-Tung, que aVenezuela estava começando a se levantar, tal como a China selevantara 50 anos antes, sob a liderança do Grande Timoneiro.Em novembro, durante uma visita oficial a Cuba, jogou beisebol,em Havana, contra uma equipe dirigida por Fidel Castro e expli-cou que os povos cubano e venezuelano dançavam no mesmocompasso e se banhavam no “mesmo mar de felicidade”. Tambémconvidou estadistas do mundo, do porte de Sadam Hussein,Muamar Kadhafi e Mohamed Khatami, para participar da confe-rência de países exportadores de petróleo, em Caracas, realiza-da no ano 2000, com o objetivo de traçar uma estratégia conjuntapara o futuro.

Esses êxitos podem parecer obra de um excêntrico, de um D.Quixote que desafia os moinhos de vento do mundo. No entan-to, Chávez é um verdadeiro revolucionário que busca traçar umnovo programa para a América Latina. Alguém que quer tornarrealidade o mundo multipolar, de que falam, freqüentemente, osfranceses e os chineses, e demonstrar que existe alternativa parao consenso econômico que causou um impacto tão devastador naparte mais pobre da população do Terceiro Mundo. Sua mensa-gem começa a ser ouvida em outros países da América Latina,especialmente no Equador, onde uma junta cívico-militar radi-cal tomou o poder durante cinco minutos em janeiro do ano 2000para depois cair, sob a forte pressão dos Estados Unidos.

Chávez chegou a ser uma pedra no caminho dos imperialis-tas. Impediu os aviões estadunidenses de sobrevoar o espaçoaéreo venezuelano durante sua cansativa perseguição aosnarcotraficantes colombianos. Recentemente, a Força Aérea

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estadunidense teve de abandonar suas bases no que foi outroraa zona do canal do Panamá, como resultado dos compromissosassumidos no tratado assinado há mais de vinte anos com ofalecido general Omar Torrijos. Esse militar esquerdista, que erao comandante da Guarda Nacional panamenha, sempre foi ummodelo para Chávez. Os militares estadunidenses tiveram de secontentar com suas outras posições no Caribe, inclusive emCuraçao, nas Antilhas Holandesas, uma ilha muito próxima dascostas venezuelanas.

A negativa venezuelana à solicitação de sobrevôo estaduni-dense causou grande irritação. Em um momento em que os Es-tados Unidos estavam a ponto de conceder à Colômbia 1,6 bilhõesde dólares como ajuda militar, a Venezuela dava sinais eviden-tes de que desaprovava a política estadunidense na região. Nocontexto das negociações de paz que o governo colombianomantém com o exército guerrilheiro de Manuel Marulanda – oveterano líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia,Farc – os estadunidenses apóiam o governo; Chávez, por sua vez,acredita que o interesse da Venezuela é a consolidação do pro-cesso de paz na Colômbia e aposta nas negociações entre as duaspartes.

Nas últimas décadas de um século 20 de que poucos sentemsaudades, um comportamento tão “irresponsável” por parte de umgoverno latino-americano – como na Guatemala, em Cuba, naRepública Dominicana e no Panamá, para não falar da Nicará-gua – teria merecido uma invasão militar estadunidense, umesquadrão da morte, uma equipe de contra-insurgência, ou pelomenos uma conspiração para desestabilizar a economia. Noentanto, até o momento nada no gênero aconteceu na Venezuela,ainda que ignoremos que planos podem estar sendo tramados nosmeandros do poder, em Washington. Com o fim da guerra fria,

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tornou-se mais difícil para os estadunidenses chamar seus críti-cos latino-americanos de títeres de Moscou.

O presidente Chávez é um especialista em gestos surpreenden-tes e em retórica floreada, possuindo um grande senso dramático.Em janeiro de 2000, quando o encontrei pela primeira vez, em LaCasona, a residência presidencial que suas tropas rebeldes tentaramtomar em 1992, estava em pé no meio do jardim, dando-me ascostas, contemplando o pequeno bosque de bambu e de palmeirasque limita a grama. Todo o mundo sabe que aparência tem porqueaparece na televisão quase todos os dias, pronunciando discursosimprovisados, recebendo visitas oficiais no Palácio de Miraflores, ouatravessando, sorridente, um bairro inundado. As pessoas estãofamiliarizadas com sua cara de pugilista, seus lábios generosos, seusorriso radiante e com esse tique de asmático, na boca, quase imper-ceptível, quando aspira ou procura uma palavra em meio ao fluxoretórico. Sempre parece decidido, irradiando confiança e otimismo.Mas só, no jardim, parecia mais vulnerável, como uma esculturamonocromática e ambígua, vestida de cinza, no meio de um painelverde. Permaneceu absolutamente imóvel durante vários minutos,como que juntando forças para enfrentar o novo dia ou houvesse es-quecido a chegada de um estranho. Finalmente voltou-se e atraves-sou o gramado para cumprimentar-me.

Por um momento pensei em Yo el Supremo, o magnífico contodo grande escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, sobre JoséGaspar Rodríguez de Francia, o místico e robespierriano presiden-te do Paraguai do começo do século 19, que isolou seu país,durante 30 anos, das correntes globalizadoras da época paraassentar as sólidas bases de seu desenvolvimento econômico.Chávez também tem essa tendência messiânica.

A cálida umidade da manhã, as cores exuberantes do jardimtropical, as colunas do portal de um edifício que é a réplica de

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uma casa de fazenda colonial do século 18, tudo conspirava paracriar a ilusão de uma distorção no tempo. Nossa longa conversa– em boa parte dedicada a seu plano para reverter o deslocamentodas pessoas do campo para os bairros urbanos – parecia ter algode atemporal, pois se tratava de um assunto com o qual presiden-tes e vice-reis coloniais vêm lidando há séculos.

Eu sabia que a catástrofe de dezembro tornara evidente aurgência com que devia ser executado o programa do presiden-te, uma vez que, além do mais, lhe dava a oportunidade de ini-ciar seu audacioso plano de deslocamento de centenas de milha-res de pessoas das abarrotadas cidades do Norte da Venezuelapara novos centros econômicos, situados em zonas menos povoa-das, do Sul e do Leste. Nessas zonas desertas pretendia-se desen-volver projetos agroindustriais integrados, capazes de captargente das favelas para começar uma nova vida no campo. En-quanto os primeiros relatórios indicavam que a maioria dos so-breviventes se apegava ferrenhamente a seus barracos destruídos,outros indicadores sugeriam que havia gente entusiasmada coma idéia de receber um pedaço de terra e um novo lar – além decontar com a possibilidade de um novo começo. Eu estava an-sioso por lhe perguntar onde estava a verdade.

Políticos e planejadores urbanos têm discutido durante anossobre o que fazer com os gigantescos conglomerados urbanos daAmérica Latina. As antigas capitais abrigam milhões de pessoas,para as quais há poucas soluções habitacionais reais, pouca co-mida e quase nenhuma oportunidade de trabalho. Transferir aspessoas das cidades para o campo é uma tarefa difícil, nacontracorrente da experiência histórica e do que hoje é conside-rado possível, já que poucos aspiram à vida de camponês.

Durante as entrevistas, Chávez oscila entre o conversador desobremesa e o catedrático universitário; por vezes, conta longas

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histórias e, às vezes, analisa problemas da atualidade. Lembrei-me de que José Vicente Rangel dissera-me que era um “chefe deEstado muito diferente dos outros. Enquanto, habitualmente, estesse expressam de forma lacônica e desatenta, Chávez faz exata-mente o contrário: aceita o desafio em relação a qualquer assunto,tem real prazer com o confronto, é extrovertido e excelentecomunicador e gosta da polêmica a ponto de provocá-la”. Então,perguntei-me se seria um jornalista suficientemente provocador.Rangel também me dissera que Chávez era um homem muito maisintelectual do que as pessoas pensavam, dotado de uma grandecriatividade. “É um romântico pragmático, uma mescla de pai-xão e de cálculo.”

Hoje, Chávez está de ótimo humor e, para meu grande pra-zer, mergulha na história da Venezuela do século 20, para explicarcomo a exploração do petróleo nos anos de 1920 provocou ocolapso da economia rural, acabando com “o modelo equilibra-do e harmônico” da Venezuela de antigamente, quanto o culti-vo do café, do açúcar e do cacau caminhava junto com o desen-volvimento industrial das cidades. “O governo simplesmenteabandonou o campo e, então, começou aquilo que os livros deHistória chamam de êxodo rural”. Chávez assinala que “isso nãoaconteceu porque os camponeses queiram sair do campo, masporque as zonas rurais foram abandonadas pelo governo”.

Como ilustração, ele usa um exemplo de sua própria experi-ência: “Foi algo que sempre senti, desde que eu era menino.Nunca quis deixar a minha terra, mas fui obrigado: uma forçacentrífuga levou-me para a cidade”. O objetivo de suas políticas,afirma, é “fazer com essa força aja em sentido contrário”.

Quando terminou a 6a série no vilarejo de Sabaneta, viu-seobrigado a partir. “Se eu quisesse continuar estudando, o que fiz,teria de ir para Barinas, a capital do Estado.” Mas, no momento de

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dar continuidade aos seus estudos, em Barinas não havia univer-sidade. “Todos os meus irmãos foram obrigados a ir para Mérida,para cursar a universidade e eu, para Caracas, para cursar a Aca-demia Militar. Aqueles que ficavam, paravam no tempo.”

As mesmas forças que prejudicavam a educação tambématuavam com relação à assistência médica. “Quem precisava deatendimento médico tinha que ir a Barquisimeto ou a Caracas. Atéos esportistas tinham de fazer isso. Os camponeses tiveram demigrar quando perderam suas terras para as grandes fazendas. Oêxodo foi em massa.”

Os militares estavam submetidos à mesma força centrífuga.Quando estava no Exército, diz, “sempre havia problemas com osrapazes que vinham das zonas rurais para fazer o serviço mili-tar obrigatório. Eram levados para a cidade, para os quartéis deCaracas e, obviamente, quando viam a cidade – nos dias de fol-ga – e viam tudo o que a cidade oferecia, não queriam regressarao campo. E, mais, se regressassem, não teriam terra nem traba-lho. Nada. Apenas um lar que, geralmente, era apenas um case-bre. O serviço militar foi outro pólo de atração das pessoas emdireção às cidades”.

Chávez acrescenta que os venezuelanos deslocaram-se duran-te anos para a estreita faixa costeira da parte central do Norte dopaís. “Hoje, 80% da população está concentrada ali”, diz. A únicacoisa que deseja fazer, alega, é inverter a tendência. O objetivocentral de sua revolução “é ocupar o espaço geográfico do paísde forma mais harmoniosa e equilibrada”.

A tragédia de dezembro não tinha nada de novo, além de suaamplitude. “Morrem cem pessoas por ano quando chegam aschuvas, e agora foram quinze mil. Estamos alertando o povosobre isso há anos.” A região superpovoada do Norte, explica, nãoapenas é uma “zona sísmica de características preocupantes”,

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mas, além disso, “ali se acumulou um enorme número de pessoas– e de crianças – nos barracos” que cobrem os morros. “Em Ca-racas, deve ter havido milhares de vítimas nos últimos vinte outrinta anos e, ainda assim, nenhum governo pensou em fazer umplano de desenvolvimento integral para o país.”

Essa é a idéia básica de Chávez, à qual dedicou muito tempoe reflexão.

“Já tínhamos um projeto para o país, relacionado aos proble-mas sociais, políticos e economicos. Fora debatido na prisão, e atéantes da prisão. Nossa idéia básica era descentralizar o país edispersar as pessoas para reverter o fluxo migratório – e isso é oque estamos tentando pôr em prática atualmente. A idéia consisteem reforçar os ‘caminhos da migração inversa’ para que ajude ajustificar e a estimular a estratégia de descentralização. Obvia-mente, isso não é fácil. Não se pode chegar em um bairro e dizeràs pessoas que devem mudar-se para o Sul, e depois deixar queelas resolvam os problemas, e sobrevivam como puderem. Não,não, não, cabe ao Estado estabelecer esses ‘caminhos da migra-ção inversa’, que, na realidade, são iguais aos que, no princípio,motivaram a migração centralizadora.”

Entusiasmado com seu assunto predileto, pediu que nos trou-xessem um mapa em que firmou decididamente sem lápis: “Va-mos simplesmente reverter tudo. Haverá educação lá, haveráatendimento médico lá, haverá esporte lá, haverá terra para sertrabalhada lá”.

“Os governos anteriores” – disse-me – “fizeram esforços nessesentido. Quando eu era capitão do Exército, no Sul, na época dopresidente Jaime Lusinchi, implantou-se um assentamento no suldo rio Arauca, próximo da fronteira com a Colômbia, que rece-beu o nome de “Pueblo Bolívar”. Muitos de nós afirmamos quenunca iria funcionar. Fundaram o vilarejo às margens do Arauca,

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em pleno verão, e levaram gente de todos os lugares. Quase queo obrigaram a ir, foram pagos para viver lá. Mas era um lugarartificial: não havia nenhum tipo de atividade econômica. Veja,se aquilo era o assentamento, e se tudo em volta era latifúndio,onde as pessoas iriam trabalhar? No inverno, as estradas ficaminundadas; as pessoas não tinham gado, nem terras, nem aces-so ao crédito... Uma escola foi construída, mas não havia profes-sor. Pouco a pouco, as pessoas começaram a ir embora, em bus-ca de uma vida decente em outro lugar.”

A solução proposta pelo governo do presidente Chávez, es-perando que tenha mais êxito, consiste em criar centros integra-dos de desenvolvimento.

“O ‘Projeto País, Comunidades Agroindustriais Sustentáveis’é um dos projetos que estamos executando atualmente. Começa-mos há um ano, mas a catástrofe de dezembro deu-nos a opor-tunidade de fazer algo mais ambicioso. Para ser honesto, no anopassado, poucas pessoas queriam deixar as cidades. Então eu lhesdisse que tinham razão para duvidar, pois haviam sido traídasmuitas vezes no passado. Então, no primeiro ano, o governocomeçou a trabalhar com algumas experiências-piloto em vári-as regiões do país, algumas muito próximas de Caracas. Precisá-vamos de terras onde pudéssemos construir casas e estabelecerpequenas propriedades rurais – um sítio aqui, uma casa ali, umaoficina ou uma microempresa mais adiante, um lugar para aspessoas trabalharem, uma escola para as crianças, um hospitalcom médicos e medicamentos. Queríamos um lugar onde pudés-semos reunir tudo isso e onde as pessoas pudessem criar raízes...”.

Então, veio a catástrofe de dezembro: “Agora, temos pelomenos cem mil pessoas que a natureza obrigou que se mudassem.Desta vez, sabem que não se trata de palavrório. Perceberam que,na verdade, estavam correndo um grande risco. Viveram na pró-

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pria pele a experiência da morte, tiveram que enterrar seus pa-rentes...”.

O governo acelerou os planos existentes, que Chávez descrevedurante nossa conversa: “Ontem, estivemos em Cumaná, entre-gando casas. Todas as praias da região estão poluídas, cheias delixo; estamos elaborando um plano para recuperá-las. Destina-mos 10 milhões de dólares para limpar a costa. Essa região émuito mais adequada do que a costa próxima a Caracas paraabrigar uma população numerosa. Há muito mais espaço entre amontanha e o mar. É boa para a pesca, para o turismo e para aagricultura”.

Um dos locais identificados é a vasta região da represa hidre-létrica de Guri, ao sul do Orenoco. Ali existem casas abandona-das pelos trabalhadores que construíram essa grande barragemsobre o rio Caroni. “Fui falar com as vítimas das inundações,acampadas no estádio de Caracas. Eram dez mil e eu lhes falei deGuri. Tive de começar explicando onde fica. Dois deles – quetalvez estivessem bêbados – disseram imediatamente: ‘vou paraGuri’. Depois de duas semanas de campanha promocional, comfotografias e vídeos, um grupo foi dar uma olhada. Disse-lhes quefossem, que dessem uma olhada e que depois voltassem. Nãoprecisavam ficar se não quisessem”.

A visita foi um êxito. “Criamos ali uma comunidade de cer-ca de 2 mil pessoas. Eram tantas as pessoas que queriam ir quetivemos de pisar no freio. Depois de ter vivido tragédias pessoais,essa gente está pintando suas casas e remodelando os velhosapartamentos que pertenceram aos trabalhadores que construí-ram a barragem. Trabalham lá e estão até fabricando seus pró-prios móveis com a madeira do lugar, pois essa região tem mui-tos recursos. As crianças agora estão estudando na escolasecundária que já existia. Como na maioria das escolas da região,

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havia salas de aula vazias.” Construíram-se oficinas e o gover-no está se encarregando de conseguir terras. “Em torno dessascasas, há dez mil hectares propícios para a agricultura e para apesca, já que há um enorme reservatório, formado pela barragem.Ali se pode fazer turismo de aventura, aliás, qualquer tipo deturismo, pois há cascatas muito próximas e há também a GranSabana. Há espaço em quantidade e é muito saudável.”

Todos são planos de emergência, mas se encaixam nos pro-jetos maiores que Chávez tem para o país. Ele sabe como é im-portante que as coisas dêem certo, já que Caracas é um barril depólvora que ainda pode explodir a qualquer momento, se algo dererrado. A Venezuela viveu em meio a uma crise permanente:modelo exemplar de certo tipo de democracia na América Lati-na durante três décadas e, graças a seus poços de petróleo, um dospaíses mais ricos do continente, a distribuição desigual de suasriquezas transformou-a em um dos países mais explosivos. Ointenso êxodo do campo para a cidade, na década de 1970, so-mado à estagnação econômica e ao desemprego dos anos de1980, levaram à explosão social dos anos de 1990.

Quando fui pela primeira vez, à Venezuela, há muitos anos,Caracas era uma pequena cidade, cercada de morros, em cujasencostas havia barracos de aspecto relativamente amigável. Ànoite, as luzes dos pobres brilhavam como velas. A riqueza e oluxo do centro da cidade e a pobreza e a miséria dos barracos erauma dramática visão de uma das mais célebres características daAmérica Latina: a desigualdade de renda e de oportunidades,baseada em atitudes racistas muito arraigadas, mas nunca admi-tidas.

A classe média já não é tão numerosa como foi no passado(um milhão de pessoas pagam conta de luz em Caracas) e aque-les que não foram sufocados pela crise econômica são pessoas

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informais e amistosas, que têm um nível de vida compatível comos padrões internacionais. Almoçando em um sábado em umadas cervejarias de El Rosal ou de Sabana Grande, qualquer umpoderia pensar que está em Barcelona, Turim ou Frankfurt.Visitar o Centro Sambil, um novo centro comercial, é como estarem qualquer cidade do Meio Oeste estadunidense. Mesmo nomomento mais profundo de uma crise econômica e política pro-longada, esse grupo social continua vivendo extraordinaria-mente bem, importando sua alimentação e seus bens de consu-mo de todas as partes do mundo, principalmente dos EstadosUnidos, e preferindo o importado ao nacional. Um país queantes exportava chocolate e agora importa tabletes da marcaHershey.

Nos anos mais recentes, a situação mudou, e os perigos ine-rentes à vida urbana tornaram-se cada vez mais evidentes. Hojeem dia, Caracas é uma metrópole espetacular, no estilo estaduni-dense. O visitante adentra uma selva urbana de grandes aveni-das e de edifícios de concreto, de vias para pedestres e centroscomerciais. Uma selva de gigantescos arranha-céus de todos osestilos arquitetônicos que reflete quase cinco décadas de desen-volvimento urbano desenfreado.

Alguns dos bairros pobres foram reurbanizados; outros, delonge, agora têm o encanto aparente de um vilarejo italiano nacolina. No entanto, mais no alto e mais longe, nas encostas do Sule do Leste da cidade, barracos de madeira ou de alvenaria continu-am surgindo, formando em novas áreas mais e mais subúrbiosmiseráveis, representando uma ameaça permanente, e aparente-mente impossível de erradicar, para a boa vida da parte baixa dovale.

Houve uma época em que os barracos localizados nos mor-ros podiam utilizar sua altura para lembrar aos ricos que existi-

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am, mas agora, com a construção de arranha-céus, a simbologiafoi invertida. Os grandes e altos edifícios em plena cidade podemostentar a riqueza da sociedade de consumo ante as pequenascolinas da miséria, enquanto os pobres foram expulsos para aindamais longe do centro.

Como muitas outras grandes cidades da América Latina,Caracas caracteriza-se pela total ausência de lei e de ordem. Éuma cidade em estado de sítio, onde cada centro comercial estáprotegido por grades de ferro, cada rua residencial bloqueada poruma guarita de vigilância e uma barreira, e cada edifício deapartamentos protegido por guardas armados. Os ricos vivematrás de paredes altas e têm sua própria guarda particular; osjovens pobres sobrevivem organizando seus próprios gruposarmados. A classe média, presa entre ambos, vive temendo, cons-tantemente, por seus bens e por sua vida.

Há mais de uma década, em fevereiro de 1989, o pior de to-dos os pesadelos tornou-se realidade. Os pobres dos morros pró-ximos desceram, saqueando indiscriminadamente a cidade, du-rante uma semana. Centenas de pessoas morreram durante operíodo seguinte, de feroz repressão militar, como se fosse paraninguém esquecer quão fragilizada estava a capacidade de tole-rância mútua entre as classes. O acontecimento, que em seguidafoi denominado Caracazo, teve uma causa simples: o preço dagasolina aumentou, o preço da passagem de ônibus aumentou eo descontentamento acumulado transformou-se em rebeliãoativa. A polícia estava em greve naquele momento, reclamandoaumento de salário, e não estava preparada para conter os dis-túrbios urbanos. Quando a televisão começou a mostrar as pes-soas saqueando em Caracas e a polícia imóvel, deixando queaquilo ocorresse, os moradores de outras cidades interpretaramo fato como um chamado para aderir ao saque. A partir de en-

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tão, e mais de uma década depois desses dias extraordinários eaterradores, ninguém mais se sente “a salvo” em Caracas.

O ancien régime, assim como o da União Soviética em sua épo-ca, experimentava às cegas novos modelos, e a revolta urbana defevereiro de 1989 foi provocada em parte pelo processo de reformas.Desde o final dos anos de 1950, a Venezuela possuía todas as carac-terísticas de um estado de partido único, não muito diferente dospaíses comunistas da Europa do Leste. Sua peculiaridade, compar-tilhada com a vizinha Colômbia, era de haver partidos, em lugar deum, com possibilidade de controlar o Estado, alternando-se no poder.A Ação Democrática (AD), o maior e mais importante partido, pre-dominava e exercia a hegemonia, mas, para salvar as aparências“democráticas”, permitia-se que um partido democrata-cristão al-ternativo, o Copei (Comitê Pró-Eleições Independentes), ganhasse aseleições de vez em quando. Os dois movimentos políticos consagra-ram esse acordo cínico no chamado Pacto de Punto Fijo, assinadoem 1958, com o que conseguiram excluir do poder os demais par-tidos, tanto de esquerda, quanto de direita.

A AD e o Copei eram, ambos, partidos de massas. As pessoasse filiavam ao partido para conseguir trabalho e para mantê-lo.Os líderes do partido, e os caciques dos sindicatos que lhes eramsubordinados, acostumaram-se cada vez mais às vantagens dopoder, principalmente tirando vantagens ilícitas das florescentesempresas do Estado, criadas graças aos recursos do petróleo. Acorrupção, em escala quase inimaginável, converteu-se em malendêmico, que piorou com o passar dos anos, em particular nasfileiras da AD, ainda que também no setor comercial e bancário.A corrupção e o consumismo notório da elite política daVenezuela tornaram-se famosos em todo o continente, provocan-do descontentamento nas camadas mais pobres da população eum desejo insaciável de desfora.

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No auge dos anos de 1970, parecia que tudo ia bem. O pre-sidente Carlos Andrés Pérez, da AD, um arquétipo de líder doTerceiro Mundo com objetivo de pilhar o Estado, governou en-tre 1974 e 1979, aplicando o intervencionismo estatal que esta-va na moda naquela época. A Shell, a Exxon e outras companhiaspetrolíferas estrangeiras foram nacionalizadas e o dinheiro doEstado foi investido no desenvolvimento da indústria, para sa-tisfação das esquerdas nacionalistas do mundo inteiro. O fluxode capitais alcançou tamanha magnitude que ainda hoje seusfrutos são perceptíveis, principalmente na região de Guayana:indústria de mineração, fundições, indústrias de alumínio e side-rurgia, complexos industrias e a gigantesca usina hidrelétrica deGuri, sobre o rio Caroni, capaz de abastecer a Venezuela inteira– e parte do Norte do Brasil.

Não obstante, com o passar dos anos, o setor estatal come-çou a entrar em decadência. Terminou sendo ineficiente e pou-co competitivo, gigantesco e corrupto. Por falta de novos inves-timentos, as grandes empresas industriais começaram adeteriorar-se. Os projetos iniciados eram rapidamente abandona-dos. Como no resto da América Latina, seguindo o conselho dosbanqueiros internacionais ávidos de lucros, o país acumulou umadívida externa imensa que fez recair sobre as gerações futuras ocusto de vida brutal de hoje. No transcorrer dos anos de 1980, opaís caiu na espiral do desastre econômico e político.

Finalmente, em 1989, um plano neoliberal de reestruturaçãoda economia foi posto em prática. De volta ao poder, com amissão de reviver o ambiente dos velhos tempos de sua presidên-cia anterior, o presidente Pérez mudou surpreendentemente detática. Sem aviso prévio, seu governo mergulhou a economia naságuas turbulentas e perigosas do mercado livre, do liberalismoeconômico e da concorrência internacional.

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O novo programa econômico não tardou em solapar as basesdo sistema político e despertou a resistência das ruas e dos par-tidos dominantes. Os povos da América Latina, apesar da opu-lenta fachada das classes médias urbanas, estão muito mais pró-ximos dos limites da pobreza do que seus semelhantes da Europado Leste. Os caciques dos partidos tradicionais, por razões óbvi-as, opunham-se firmemente a essa perestroiska em estilovenezuelano. Além de que já era bastante difícil fazer com queo país fosse mais competitivo, era preciso desmantelar uma imen-sa estrutura de benefícios adquiridos.

Em fevereiro de 1992, três anos depois do Caracazo, o tenen-te-coronel Chávez fez sua estrondosa aparição. Um oficial doExército de 38 anos prometia derrotar os políticos corruptos,melhorar as condições de vida dos pobres e dar um novo rumoao país. Já naquela época comandava um regimento de pára-quedistas em Maracay, a uma hora de Caracas por terra, estan-do bem localizado para desafiar o ancien régime, fomentando umgolpe de Estado.

Embora vitoriosa em outras partes do país, a tentativa detomar o palácio presidencial em Caracas fracassou. Chávez ren-deu-se e apareceu na televisão para incitar seus cúmplices a deporas armas. “Companheiros” – disse – “desafortunadamente, nomomento, os objetivos que havíamos fixado não foram alcança-dos na capital”, embora talvez, insinuou, tivessem melhor sorteda próxima vez. Depois pediu que depusessem as armas.

A expressão “no momento” cativou a imaginação popular. Ospropósitos da rebelião não haviam sido alcançados, mas a mai-oria das pessoas recebeu essa mensagem com otimismo, como umsinal de que Chávez voltaria à luta no futuro. “No momento”converteu-se em seu lema pessoal e a boina vermelha de pára-quedista transformou-se em seu logotipo. José Vicente Rangel

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tocou no assunto para afirmar que estava convencido de queChávez sempre seria um fervoroso defensor da liberdade deimprensa.

Ele sabe que a palavra é muito mais poderosa do que as ar-mas. Fracassou quando usou as armas, e triunfou quando teveacesso aos meios de comunicação. Passou dez anos preparandoum golpe de Estado que fracassou; o único minuto de televisãoque lhe deram bastou para que conquistasse o país.

O efeito de sua intervenção, em um momento de desintegra-ção nacional, da noite para o dia, converteu-o em um herói ce-lebrado em poemas e canções. Em um país onde as seitas evan-gélicas cresceram exponencialmente durante os últimos vinteanos, a ponto de chegar a desafiar o poder, e onde é grande ainfluência da Igreja católica, o aparecimento do tenente-coronelChávez no cenário político foi acolhido como o regresso doMessias.

Chávez passou dois anos na prisão, mas os boatos sobre oprojeto revolucionário em que estaria trabalhando com seuscolegas oficiais espalharam-se. Depois de ressuscitar três heróissul-americanos do século 19 – Simón Bolívar, Simón Rodríguez,mestre revolucionário de Bolívar, e Ezequiel Zamora, líder doscamponeses contra a oligarquia latifundiária durante a GuerraFederal das décadas de 1840 e 1850 – Chávez começou a esbo-çar um nacionalismo revolucionário de caráter popular. Do paísque estivera profundamente mergulhado na cultura e na políti-ca estadunidenses, lançou um feroz contra-ataque contra o pro-grama de globalização imposto ao mundo pelos Estados Unidosdepois do fim da guerra fria. Em pouco tempo, estava em primeirolugar nas pesquisas de opinião.

Chávez é um comunicador magistral. Fala todo domingo pelamanhã, em seu próprio programa de rádio, e todo o mundo co-

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nhece seu tom pedagógico. Fala e ouve como um professor quedecifra as perguntas implícitas e ao mesmo tempo as devolve aointerrogador. Filho de dois professores, o mundo do ensino lheé familiar, e não é por acaso que Simón Rodríguez, que elaborouum programa radical de educação destinado aos pobres, aosíndios e aos negros, converteu-se em um de seus heróis do pas-sado. Não podemos superestimar o impacto que seus programastêm nos maiores e mais pobres contingentes da populaçãovenezuelana.

Na televisão, freqüentemente aparece falando para um públi-co convidado, sentado diante dele. De repente, vira-se, como quese dirigindo a outra câmara, e fala ao verdadeiro púbico, que estálá fora, nas zonas rurais e nos bairros pobres. Suas apresentaçõessão sempre eletrizantes, pois fala como se estivesse em perma-nente comunhão com sua gente, o povo que entende o que eleestá tentando dizer e fazer.

A classe média abastada de Caracas e um grande número decolunistas hostis queixam-se de sua linguagem simples e rústi-ca, reclamando de seu tom monótono e provinciano. Não con-seguem entender que ele fala com um povo com quem mantémuma relação íntima, e que gosta do que faz, além de estar naexpectativa de que algo vai acontecer, de que algo será feito e deque as coisas vão mudar. Transmite esse entusiasmo de umaforma que a classe média é incapaz de entender porque seusinteresses são outros. Ao longo de seu primeiro ano de governo,a velha e corrupta elite política e cultural, que emergiu graças aospetrodólares, fugiu apavorada e horrorizada, como que hipnoti-zada por esse oficial messiânico com cujos interesses e preocu-pações não compartilhava.

Quem apóia Chávez é a fração empobrecida e politicamentedesarticulada da sociedade, nos bairros de Caracas e nas vastas

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regiões esquecidas do interior do país. Ele fala com essa gentetodos os dias, com palavras que ela entende, com a linguagemvibrante e freqüentemente bíblica do pregador evangélico. Deuse o diabo, o bem e o mal, a dor e o amor são algumas das com-binações que costuma utilizar. Afinal, a grande massa do povoestá com Chávez, assim como esteve, em outros países da Amé-rica Latina e em outros tempos, com Perón, com Velasco, Torrijos,Allende e Fidel.

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PRIMEIRA PARTE

PREPARANDO-SE PARA O PODER

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m uma noite quente de novembro de 1999, o comandanteChávez, com 43 anos de idade, entra correndo no campo do

estádio latino-americano de Havana, seguido de sua equipe. A seulado está o comandante Fidel Castro, de 73 anos de idade, capi-tão da equipe cubana. Chávez, o lançador que abre pelaVenezuela, veste uniforme laranja, azul e vermelho vivo. A seulado está sua esposa Marisabel, uma formosa mulher loura comum sorriso deslumbrante. Fidel veste um abrigo azul e usa umaboina vermelha; acompanham-no seu vice-presidente, CarlosLage, e seu ministro de Relações Exteriores, Felipe Pérez Roque.Ambos usam o uniforme cubano.

O evento da noite é uma partida amistosa, destinada a estreitaros já estreitos laços que se estabeleceram entre os dois coman-dantes. Previamente ficou estabelecido que os jogadores seriamveteranos de mais de quarenta anos, embora Fidel tenha avisa-do que preparava “uma pequena surpresa”. Para os milhares deespectadores que foram ao estádio de Havana – e para os milhões

NOVEMBRO DE 19991. JOGO DE BEISEBOL EM HAVANA

EM NOME DE CUBA E DA VENEZUELA, FAÇO UM CHAMADO À UNIDADEDE NOSSOS DOIS POVOS, E DAS REVOLUÇÕES QUE AMBOS DIRIGIMOS.BOLÍVAR E MARTÍ, UM PAÍS UNIDO!

HUGO CHÁVEZ A FIDEL CASTRO – HAVANA, NOVEMBRO DE 1999.

E

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de telespectadores da América Latina – tratava-se de um encontroesportivo histórico entre dois gigantes da política. Fidel Castro éo mais velho e famoso herói revolucionário latino-americano doséculo 20. Hugo Chávez é visto como o jovem novo da quadra,que tem tudo pela frente, um militar radical da reserva cuja re-tórica antiimperialista faz eco à de Fidel. Seus planos para aVenezuela e para a América Latina são tão ambiciosos como oforam em sua época os do líder cubano.

Por um acidente histórico, o beisebol, que é o esporte favo-rito dos dois presidentes e o esporte nacional de seus dois países,é também o jogo preferido nos Estados Unidos, a grande potên-cia imperial da região e o campeão do neoliberalismo contra oqual os dois presidentes empregaram sua retórica. Os marinesestadunidenses ensinaram beisebol aos cubanos durante sualonga ocupação da ilha, enquanto os estadunidenses que desen-volveram a indústria do petróleo no lago de Maracaibo e seusarredores fizeram o mesmo com os venezuelanos.

Ironicamente, Che Guevara costumava afirmar que a revolu-ção cubana jamais iria longe na América Latina se os cubanos nãoaprendessem a jogar futebol, enquanto Henry Kissinger, de ori-gem alemã, acreditava que o futuro da hegemonia estadunidenseno continente dependia da capacidade que teriam os EstadosUnidos para adaptar-se a esse jogo. O fato é que cubanos evenezuelanos (assim como os nicaragüenses) são felizes pratican-do esse esporte, tão evidentemente imperialista, que é o beisebol– o que, aliás, fazem muito bem.

O beisebolista Hugo Chávez, eleito presidente da Venezuelaem dezembro de 1998, logo apareceu como a figura mais inte-ressante e significativa que tenha surgido na América Latinadesde que Fidel entrou na história, quarenta anos antes. Apesarda diferença de idade, as carreiras dos dois homens têm muitas

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semelhanças. Enquanto Fidel entrou em Havana em 1959 à frentede uma guerrilha subversiva, o outrora tenente-coronel Cháveztambém chegou ao poder de uma maneira pouco usual. Seu golpede Estado fracassado, de fevereiro de 1992, contra o governo civilde Carlos Andrés Pérez, projetou-o imediatamente no cenárionacional. Assim como Fidel converteu-se em um herói nacionalem Cuba depois do fracasso do assalto ao quartel Moncada, emSantiago de Cuba, em 26 de julho de 1953, o tenente-coronelChávez surgiu como salvador nacional depois de sua fracassadatentativa de golpe. O assalto ao Moncada, vale lembrar, parailustrar o intervalo de gerações que separa os dois homens, ocor-reu um ano antes do nascimento do Chávez. Fidel tomou o po-der em Cuba em 1959, depois de um período de prisão, exílio ede uma guerra de guerrilha de dois anos; seu predecessor,Fulgencio Batista, fugiu do país, uma vez deposto. Chávez tam-bém passou um tempo no cárcere, dois anos na prisão de SanFranciso de Yare; mas trilhou um caminho menos espetacular,embora não menos inteligente, para chegar ao cume. Tendo for-mado seu próprio movimento político – o Movimento V Repú-blica (MVR) – assim que foi posto em liberdade, sua candidatu-ra presidencial no ano de 1998 foi apoiada por oficiaisnacionalistas radicais e por um bom número de conhecidos jor-nalistas e intelectuais de esquerda, muitos dos quais tinhamapoiado o movimento venezuelano de guerrilha castrista nosanos de 1960. O regime “democrático”, então existente naVenezuela, era tão corrupto e tão detestado que Chávez construiusua avassaladora vitória eleitoral de dezembro de 1998 sobre ascinzas de um ancien régime desmaiado e sem ânimo. Seu prin-cipal opositor civil nos anos de 1990, o ex-presidente Pérez,culpado de corrupção, viu-se forçado a trocar a casa pela prisão,ainda que não pelo exílio.

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A grande amizade entre Chávez e Fidel, forjada durante anose celebrada com uma visita de Estado a Havana e um jogo debeisebol, proporcionou a Chávez credenciais revolucionáriasincomparáveis – que são apreciadas nos bairros da Venezuela, alionde vive a maioria da população. Mas tais credenciais não sãotão calorosamente aceitas pela minúscula e opulenta elitevenezuelana, cujos amigos cubanos vivem em Miami, não emHavana, e que passam a vida em um permanente estado de aler-ta e preocupação por suas propriedades e contas bancárias.

Durante a maior parte da década, Chávez estimulou o senti-mento nacionalista da população com uma dose de retórica re-volucionária muito fora de moda, tanto na América Latina quantono resto do mundo. Tentou lutar contra a aceitação inconteste doneoliberalismo e da globalização, fazendo reviver o nacionalis-mo radical, retomando as palavras e os atos dos heróis do sécu-lo 19 do panteão venezuelano. Exaltou a figura de Simón Bolívar,assim como Fidel utilizou o exemplo do patriota cubano JoséMartí. Tanto Bolívar quanto Martí lutaram contra o império es-panhol, durante o século 19; Fidel e Chávez reavivaram a memó-ria daquelas lutas, no contexto da luta contra a intenção doimpério estadunidense de dominar o mundo.

Chávez destacou esse assunto durante sua visita a Havana, nomomento da partida de beisebol. “Venezuela e Cuba estão nave-gando pelo mesmo mar” – disse, surpreendendo o público daUniversidade de Havana – “um mar de felicidade e de verdadei-ra justiça social e paz.” E, então, voltando-se para Fidel, a quemchamou de irmão, tratou em detalhes de um de seus assuntosprediletos: a indivisibilidade da revolução latino-americana.

“Aqui estamos, mais atentos do que nunca, Fidel e Hugo,lutando com dignidade e coragem para defender os interesses denossos povos e para tornar realidade as idéias de Bolívar e de

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Martí. Em nome de Cuba e da Venezuela, faço um chamamentoà unidade de nossos dois povos e das revoluções que ambosconduzimos. Bolívar e Martí, um país unido!”

Castro, que passou quarenta anos em busca de aliados nocontinente latino-americano, estava mais do que satisfeito como discurso. No entanto, não tinha a mínima intenção de deixarque essa incipiente amizade interferisse em seus planos paraganhar a partida de beisebol. Já no estádio, no início da sextaentrada, a “surpresa” prometida tornou-se realidade. Dois dosreservas cubanos aproximaram-se, por acaso os dois mais famo-sos jovens profissionais do país, Orestes Kindelan e Luis Ulasia.Estavam disfarçados com perucas e barbas postiças, que os faziamparecer veteranos, embora todos já tivessem percebido... Chávez,no entanto, pareceu ter mordido o anzol. Graças a essa táticaguerrilheira, Cuba ganhou a partida sem muita dificuldade: cin-co corridas contra quatro.

A visita de Chávez a Cuba não se limitava ao âmbitobeisebolístico. Assuntos mais sérios estavam na ordem do dia. Ovelho acordo de troca de açúcar por petróleo expirava em 1999e os cubanos esperavam obter petróleo venezuelano a preçospreferenciais. Já existia um precedente – acertado no Pacto de SanJosé, Costa Rica – assinado anos antes e mediante o qualVenezuela e México comprometiam-se a fornecer petróleo baratoaos onze países da América Central e do Caribe. Cuba aspiravapertencer a esse seleto grupo.

Ao mesmo tempo, em outro lugar do país, Héctor Ciavaldini,o então presidente da Pdvsa, a companhia petrolífera estatal,avaliava o que se poderia fazer com a refinaria cubana deCienfuegos, construída pelos russos na década de 1960 e hoje emruínas. Os cubanos tinham esperança de que a Venezuela inves-tisse 200 milhões de dólares na refinaria, mas no acordo final

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estipulou-se uma soma menor. A Pdsvsa e a Cupet, a empresapetrolífera estatal cubana, criariam uma companhia mista paraoperar a refinaria de Cienfuegos, que a Venezuela abasteceria com70 mil barris diários.

Os jornalistas interrogaram Ciavaldini sobre o efeito que esseacordo teria nos Estados Unidos. “Não fazemos perguntas quandoos Estados Unidos compram da China – respondeu. – Trinta porcento dos artigos de consumo de massa que os Estados Unidosimportam vêm da China. Se eles mantêm esse tipo de relações,não vejo porque haveríamos de nos abster de estabelecer relaçõescom quem nos interesse – China, Malásia ou Cuba.” Uma sema-na mais tarde, Alí Rodríguez Araque, então ministro de Energiae Minas da Venezuela, visitava Sadam Hussein, em Bagdá.

Venezuela e Cuba mantiveram longas e turbulentas relações nodecorrer do último meio século. Assim, parece adequado começarum livro sobre Hugo Chávez explicando a reconciliação entre osdois países e seus respectivos governos. O fato é que o programaradical que Hugo Chávez defende hoje tem suas raízes nosconflituosos acontecimentos que ocorreram na América Latina nosúltimos cinqüenta anos. Ao longo desse período, os movimentosrevolucionários venezuelanos, inspirados e diretamente assesso-rados por Fidel e Che Guevara, tentaram divulgar a mensagemrevolucionária da revolução cubana, da ilha para o continente. Em1959, mal conseguia sua vitória sobre Batista, Fidel visitou Cara-cas para agradecer aos venezuelanos seu apoio moral. Naquelemomento, era o homem mais popular do país e foi acolhido espon-taneamente por milhares de pessoas que se dirigiram para a extensazona de El Silencio, no centro da cidade.

Em janeiro de 1958, um ano antes da vitória da guerrilhafidelista, houve um levantamento popular em Caracas. Uma re-volta em uma base militar de Maracay (que foi a base a partir da

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qual Chávez lançou seu golpe em 1992) fora seguida de distúr-bios urbanos na capital e da constituição de uma Junta Patrió-tica de esquerda, que convocou, com êxito, uma greve geral. Oditador venezuelano, Marcos Pérez Jiménez, foi forçado a demi-tir-se. Venezuela e Cuba pareciam avançar então, juntas, namesma direção.

Foi Rómulo Betancourt, o fundador da AD, que colheu osfrutos dessa rebelião. Era um político reformista, insensível ehábil, que contava com o apoio estadunidense. Os estadunidensesconsideravam a Venezuela de Betancourt como um modelo paraa América Latina, em oposição a Cuba de Castro. Quando Fidelfoi a Caracas para agradecer ao povo venezuelano o apoio queproporcionara a sua causa, foi recebido com intensa aclamação.Mas, para Betancourt, de pé ao lado de Fidel, tratava-se apenasde uma desordem. A Venezuela de Betancourt não tardou em setransformar no baluarte da causa anticastrista na América. Osserviços secretos foram entregues aos exilados cubanos de Miami.

Essa evolução desgostou muitos dos esquerdistas venezuelanosque se opunham a Betancourt. Seguindo o exemplo da revoluçãocubana, subiram as montanhas e organizaram uma luta insurrecio-nal que se prolongou por toda a década. Alguns grupos guerrilhei-ros surgiram de cisões da AD, outros do PCV. Outros, ainda, tra-balharam junto com grupos do interior da Força Armada – detalhemuito importante, em relação ao que aconteceu depois. Ativistascivis do PCV, entre outros, tomaram parte nos importantes levan-tamentos militares contra o governo da AD, em 1962, em Carúpanoe Puerto Cabello. As revoltas fracassaram, mas deixaram umalembrança permanente. Em uma declaração posterior ao levanta-mento de Carúpano, Guillermo García Ponce, um dos líderes co-munistas, qualificou o programa político dos oficiais rebeldes de“transcendente, nacionalista e patriótico”, estimulando-os a cha-

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mar “todos os venezuelanos para trabalhar pela reconstruçãodemocrática”. O PCV, afirmou Garcia Ponce, considerava que osoficiais rebeldes “tinham prestado um grande favor à Venezuela”.Quase quatro décadas mais tarde, em 1999, ele foi membro daAssembléia Nacional Constituinte que apoiou Chávez.

Hugo Chávez não surgiu do nada. É o herdeiro da tradiçãorevolucionária da esquerda venezuelana. Muitos dos sobreviven-tes da insurreição guerrilheira, hoje todos com quase setenta anos,ainda participam da política, junto com Chávez, ou na oposição.Durante muito tempo, Chávez articulou-se com a esquerdavenezuelana, enquanto planejava seu golpe de Estado e, uma vezno governo, rodeou-se de gente talentosa, pertencente à correntepolítica radical dos anos de 1960.

Alí Rodríguez Araque, seu ministro de Energia e Minas, pontade lança do renascimento da Opep, combateu na guerrilha, noEstado de Falcón, durante os anos de 1960, antes de participarda Causa Radical, um importante partido de esquerda. LinoMartínez, o ministro do Trabalho, também foi guerrilheiro. Épossível encontrar uma meia dúzia de ex-guerrilheiros chavistasna Assembléia Nacional Constituinte.

Chávez apóia-se particularmente em dois civis, Luis Miquilenae José Vicente Rangel. Ambos são seus amigos íntimos e seusmais próximos conselheiros políticos. Ambos são referênciashistóricas na esquerda venezuelana, com cerca de 50 anos deexperiência, adquirida, por vezes, na prisão e no exílio. Rangel,ministro de Ralações Exteriores,* de 70 anos de idade, foi trêsvezes candidato presidencial da esquerda. Porta-voz e defensordo governo, Rangel tem um grande poder de persuasão na polí-tica latino-americana. Miquilena, que foi presidente da Assem-

* Desde então, Rangel tornou-se o primeiro civil venezuelano a ser ministro de Defesa.

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bléia Nacional Constituinte, foi líder do sindicato de condutoresde ônibus de Caracas, nos anos de 1940, e co-fundador de umpartido comunista antiestalinista, em 1946. Homem perspicaz,com seus 83 anos, Miquilena foi o primeiro ministro do Interiorde Chávez. Ainda guarda resquícios da linha dura estalinista, quefoi útil no momento da constituição do movimento político cí-vico-militar – o MVR – que apoiou Chávez em sua campanhaeleitoral.

Ignacio Arcaya, ministro do Interior,* é afilhado de Miquilenae filho de um ex-ministro de Relações Exteriores, que foi desti-tuído em 1960 por ter se oposto a uma moção anticubana deorigem estadunidense em uma reunião da OEA. Jorge Giordani,o ministro do Planejamento, foi no passado assessor econômicode outro partido de esquerda, o Movimiento para o Socialismo,que surgiu da rebelião guerrilheira.

Nem todos os revolucionários sobreviventes dos anos de 1960apóiam Chávez. Pela direita, na oposição, há um grupo de ex-guerrilheiros encabeçado por Teodoro Petkoff, que foi líder co-munista de grande importância e ministro influente no governoanterior ao de Chávez. Petkoff também teve oportunidade de sercandidato presidencial da esquerda e, em 1999, era o influenteeditor de um jornal vespertino, El Mundo, de oposição a Chávez,tendo sido despedido pelo dono do jornal em dezembro daqueleano.* Entre os colunistas, havia alguns guerrilheiros que passa-ram do socialismo cubano para a socialdemocracia.

Entre os que se opõem a Chávez, pela esquerda, estão DouglasBravo, o líder da guerrilha em Falcón durante os anos de 1960

* Arcaya foi nomeado embaixador na ONU.* Em março de 2000, Teodoro Petkoff lançou, junto com o falecido empresário Hans

Neuman, um novo vespertino, Tal Cual.

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e talvez o mais conhecido dos esquerdistas intransigentes dopassado. Bravo colaborou com o projeto revolucionário deChávez durante os anos de 1980, supondo que se tratava de umaautêntica operação cívico-militar; mas afastou-se depois de 1992,quando sentiu que os civis estavam sendo deixados de lado e queo programa de Chávez não era suficientemente radical.

Em 1968, passei umas duas semanas em Caracas, esperando umtelefonema que me permitiria entrevistar Bravo na montanha. Comocostumava acontecer, o encontro nunca ocorreu; uns 30 anos maistarde, em novembro de 1999, consegui, enfim, localizá-lo e ele veiome ver no apartamento de um amigo. Com quase 70 anos, Bravocontinua sendo um revolucionário entusiasta, embora não perten-ça ao campo de Chávez. Diz conhecê-lo muito bem, desde a épocaem que o futuro presidente era um suboficial que conspirava con-tra o governo. “Chávez é um homem inteligente” – diz Bravo –“audacioso, conversador, carismático. É um líder natural.”

Mas o velho guerrilheiro também tem algumas críticas.“Chávez costuma fazer mudanças bruscas. Essas mudanças po-dem ser positivas ou negativas, levando-o a estabelecer, porexemplo, acordos com uma força e os anulando quando os fazcom outra; isso é um perigo gravíssimo, não para o Chávez cons-pirador, mas para o Chávez presidente da Venezuela.”

Rangel, que é da mesma geração política de Bravo, é menoscrítico nesse aspecto. “Satanizar Chávez é um erro tão grandecomo santificá-lo. Se ele não tivesse aparecido, seguramenteoutro teria surgido. Felizmente, ficou demonstrado que esta é amelhor forma de efetuar as mudanças, pela via pacífica e comcivis. Afinal, facilmente poderíamos ter tido um Pinochet.”

O debate, na esquerda venezuelana, sobre a tática revoluci-onária e sobre a aliança entre civis e militares prolongou-sedurante o chavismo: sem fim e sem solução definitiva.

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pequena e calorenta cidade de Barinas situa-se entre asúltimas colinas dos Andes e é a porta de entrada para as vas-

tas planícies da bacia do Orenoco. Levei 8 horas para vir deCaracas de ônibus, percorrendo a boa estrada que costeia osmorros e atravessa Maracay, Valencia e Acarigua. Aqui começao extenso território de los Llanos, uma planície pantanosa, terrade criação de gado, ao sul da zona central do país, onde correminúmeros rios, dos Andes para o Orenoco. As planícies chegamà fronteira com a Colômbia e a ultrapassam, aproximando-se dosafluentes do rio Amazonas, no Brasil.

Barinas se espraia, a partir do concorrido terminal de ônibus,com seus pequenos pontos comerciais. Instalo-me em umhotelzinho da praça Zamora, que limita com o rio Santo Domin-go. A praça tem o nome de Ezequiel Zamora, o líder revolucio-nário das forças federais da década de 1850, que obteve umagrande vitória, em 1859, na batalha de Santa Inés. Zamora foi umdos líderes que inspiraram o presidente Chávez. As planícies

2. AS PROMOÇÕES MILITARES DE HUGO CHÁVEZ

O QUE ELES CHAMAM DE SISTEMA DEMOCRÁTICO NESSES ÚLTIMOS ANOS NÃOSE DIFERENCIA, NA ESSÊNCIA, DO QUE CHAMAM, POR EXEMPLO, DA DITADURADE MARCOS PÉREZ JIMÉNEZ, O GOVERNO DO TRIÊNIO DE 1945 A 1948, OU OGOVERNO DE ISAÍAS MEDINA, LÓPEZ CONTRERAS E ATÉ O GOVERNO DE JUANVICENTE GÓMEZ, PARA NOS DEFENDERMOS EM 1908. CREIO QUE, NO FUNDO, ÉESSENCIALMENTE A MESMA COISA, O MESMO ESQUEMA DE DOMINAÇÃO, COMOUTRA CARA, SEJA UM GENERAL GÓMEZ OU UM DOUTOR RAFAEL CALDERA.

HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM JUNHO DE 1995.

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foram cenário de muitas das lutas fratricidas do século 19. Nes-sas latitudes, Simón Bolívar, outro dos heróis de Chávez, recru-tou homens que participaram de sua corajosa e vitoriosa ofen-siva contra as forças espanholas, na Colômbia, em 1819.

Esta é a América Latina provinciana que me agrada, a ape-nas oito horas de ônibus da capital, mas a anos-luz, se foremutilizadas outras medidas. “Há muito pouco a ver ou a fazer nestelugar” – diz o guia turístico, e é assim que deve ser. Encontrei umrestaurante ao ar livre, que serve frango na brasa, mandioca e acerveja regional de Maracaibo. As paredes estão cobertas commurais utópicos, de cores avermelhadas, compostos de pássarosexóticos emergindo da selva e voando sobre águas extensas. Davelha vitrola saem canções da música regional.

No entanto, a modernidade não está de todo ausente. Atrás daimensa estátua de Bolívar, na praça central, ergue-se uma gigan-tesca antena de telecomunicações, implantada atrás do relativa-mente humilde palácio do governador do Estado. Projetada paradominar tudo o que pudesse ser visto de sua grande altura, a es-tátua parece um anão ao lado desse elemento essencial do mun-do contemporâneo. Até o meu hotel, chamado adequadamente deHotel Internacional, recebe dezenas de canais de televisão, capta-dos do ar, dos quais apenas quatro são venezuelanos. A defasagementre o respeito que se tem à figura histórica de Bolívar e a reali-dade do século 21 e seus artifícios tecnológicos, inimagináveis hádois séculos, é uma das razões para que alguns dos venezuelanosmais preparados tenham dúvidas quanto ao rumo pelo qual optouo presidente Chávez. Invocar os pensamentos e as ambições deBolívar, hoje, pode parecer uma esquisitice arcaica.

Precisei vir a Barinas porque é o Estado de origem do presidenteChávez. Seu pai, Hugo de los Reyes Chávez, foi eleito governadorem novembro de 1998, com apoio do movimento político de seu

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filho. Na realidade, o presidente nasceu em Sabaneta, um grandevilarejo que está a alguns quilômetros, mas estudou em Barinas,aqui permanecendo, já como membro do Exército, por alguns anos.Parece o lugar apropriado para começar.

Chávez nasceu em 28 de julho de 1954. Seus pais, Hugo delos Reyes Chávez e Elena Frías, foram, ambos, professores, em-bora também participassem da vida política. Seu pai esteve pormuito tempo envolvido com a política educacional do Estado efoi membro, em algum momento, do partido social cristão, oCopei. Parece que eles têm a política no sangue, porque, assimcomo o pai de Chávez foi governador do Estado, seu irmão maisvelho, Adán Chávez, professor na Universidade dos Andes, emMérida, foi membro da Assembléia Constituinte de 1999, comomembro do movimento político de seu irmão. Esse tipo de vín-culo familiar, quase tribal, é característico das altas esferas dapolítica na América Latina.

A história recente está ainda à flor da pele nesta região e aprópria família Chávez representa a herança de algumas das tra-dições rebeldes do século 19. O bisavô do pai de Chávez era ocoronel Pedro Pérez Pérez, um chefe guerrilheiro da década de1840. Ezequiel Zamora convenceu esse coronel Pérez Pérez aunir-se a seu Exército do Povo Soberano e a lutar a seu ladocontra a oligarquia latifundiária. O filho do coronel Pérez, por suavez, foi outra figura legendária. Trata-se do general Pedro PérezDelgado, conhecido como Maisanta, que se rebelou contra aditadura de Juan Vicente Gómez. Casou-se com uma mulher dopovo, Claudina Infante, e juntos tiveram duas filhas. Uma delas,Rosa, foi a avó de Hugo Chávez.

Maisanta organizou depois um movimento guerrilheiro con-tra Gómez, na planície, mas foi capturado e suas terras foramconfiscadas. Morreu na prisão, mas seu filho continuou sua luta.

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Chávez ouviu histórias de sua avó, de como os soldados chega-ram a sua fazenda com facões para massacrar os camponeses equeimar os estábulos e as casas. Também ouviu dizer, pois tal eraa inflexibilidade dos ódios políticos na região, que Maisanta eraum assassino que, por sorte, caíra no esquecimento. Só quandose tornou adulto, Chávez compreendeu que seu bisavô fora umguerreiro da liberdade.

A história local, assim como a sua própria, exerceu um im-pacto considerável sobre Hugo durante sua adolescência. A elashaveria de voltar anos mais tarde, durante sua permanência emBarinas e em outras partes da planície, como jovem oficial.Maisanta e Ezequiel Zamora, arquétipos do soldado revolucioná-rio, permaneceram até hoje, junto com Bolívar, como seus prin-cipais heróis.

Chávez alistou-se como soldado em 1971, aos 17 anos.Freqüentemente, garante que foi seu entusiasmo pelo beisebolque o convenceu a entrar no Exército. Tornou-se logo um dosmelhores jogadores do Exército, embora manifestasse mais inte-resse pela política do que pelo esporte. Ingressou na AcademiaMilitar da Venezuela, quando da presidência de Rafael Caldera,o fundador do Copei, num momento em que alguns dos queviriam a ser os pilares de seu governo abandonavam a luta guer-rilheira nas montanhas. De fato, Caldera abriria caminho para apacificação do país, pondo fim à insurreição revolucionária dosanos de 1960.

O pensamento político do jovem Chávez foi influenciado porseu precoce interesse pela História e iluminado pela experiênciaparticular de sua família, ainda que bem depressa se familiarizassecom os assuntos contemporâneos. Em 1974, sendo cadete, foi aoPeru, com uma dúzia de jovens soldados. Viajaram com a inten-ção de participar da comemoração internacional dos 150 anos da

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batalha de Ayacucho, que ocorrera no campo andino situado naperiferia da antiga cidade colonial. Com essa batalha de 1824, osexércitos de Bolívar e Sucre selaram a independência do Peru dodomínio espanhol. Em anos mais recentes, desde 1968, o Peru erao cenário de uma experiência radical de governo, conduzida pelasForças Armadas. O general Juan Velasco Alvarado, um oficialprogressista, tomara o poder em Lima, lançando um ambiciosoprograma de reformas, com apoio de revolucionários no seio dasForças Armadas e dos partidos de esquerda peruanos. Esse foi oprimeiro contato de Chávez com um regime militar progressis-ta. Para ele, o Peru era um país onde o nome de Bolívar continu-ava sendo honrado.

Chávez e seus companheiros receberam do presidenteAlvarado um folheto, com uma seleção de discursos, intituladoA Revolução Nacional Peruana. O presidente Chávez ainda selembra da visita, do folheto, do apoio entusiasta que os cadetesperuanos davam a seu presidente. A experiência peruana deixoumarcas duradouras em seu pensamento político.

Em 1975, um ano depois de sua viagem a Lima e Ayacucho,Chávez formou-se na Academia com o grau de subtenente erecebeu sua espada de comando das mãos do presidente CarlosAndrés Pérez, durante um desfile anual de 5 de julho, aniversá-rio da independência da Venezuela. O presidente Pérez foi ohomem que ele tentou derrubar, 16 anos mais tarde, em feverei-ro de 1992.

Chávez passou os dois anos seguintes em Barinas, em umbatalhão de contra-insurgência que estava ali desde o início daguerrilha, em 1960. Em 1976, o batalhão foi enviado a Cumaná,com o objetivo de ajudar a esmagar um recente foco guerrilhei-ro organizado por um grupo pertencente à Bandeira Vermelha,um dos grupos ultra-esquerdistas que haviam permanecido fiéis

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à velha estratégia da guerrilha dos anos de 1960. Tendo chega-do a esse ponto, segundo ele próprio relata, Chávez começou asentir certa simpatia pelas guerrilhas que, supostamente, deviacombater. Também tomou consciência, diz ele, de como acorrupção generalizada do mundo político estava penetrando naForça Armada. Certos oficiais desperdiçavam o orçamento, rou-bando equipamentos para seu próprio uso.

Em 1977, com 23 anos de idade e dois anos de experiênciacomo tenente, Chávez decidiu formar seu próprio grupo armado,o Exército de Libertação do Povo da Venezuela (Elpv). Reuniualguns amigos e juntos sonharam com a revolução.

“Com que objetivo?” – perguntou-lhe, anos mais tarde,Gabriel García Márquez. – “Muito simples” – respondeu-lheChávez. – “Fizemos isso para nos preparar para o caso de algoacontecer.” Era, sem dúvida, o entusiasmo de um jovem de 23anos; e como ele mesmo lembra, “naquele tempo não tínhamosa menor idéia do que íamos fazer”. Mas era um indicador impor-tante para o futuro.

Pouco tempo depois, conheceu outro jovem oficial com ati-tudes radicais semelhantes, de quem se tornou rapidamenteamigo: Jesús Urdaneta Hernández. Chávez falou-lhe da forma-ção de seu grupo e comentou como estava decepcionado com suaexperiência no Exército, que não era o que esperara. “Não voucontinuar no Exército, assim, toda a minha vida” – afirmouChávez.

Chávez sugeriu a Urdaneta que talvez devessem tentar algodiferente. “Por que não criamos um movimento dentro do Exér-cito?” – disse. – “Não vamos nos unir à guerrilha, isso acabou e,de toda a forma, nossas idéias não combinam com as deles”.

O que tinha em mente, como revelou a Urdaneta, era total-mente diferente, “um movimento dentro da Força Armada”. O

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tenente-coronel Urdaneta foi, durante muitos anos, um fiel ali-ado de Chávez, desempenhando um papel central no aparelho deEstado, como chefe da polícia secreta, a Direção de Serviços deInteligência e Prevenção (Disip). Urdaneta renunciou, em janei-ro de 2000, depois de revelações sobre a implicação da Disip naexecução de saqueadores durante as catastróficas inundações dedezembro de 1999.

Chávez foi transferido, em 1978, para um batalhão de tanquesem Maracay e, dois anos mais tarde, dado o seu interesse pelobeisebol, foi enviado de volta à Academia, em Caracas, comochefe instrutor esportivo. Ali permaneceu durante cinco anos, queo influenciaram muito, de 1980 a 1985, durante os quais dividiuseu tempo entre o esporte e a cultura, convertendo-se emorientador de história e política. É difícil subestimar o impactoque esse inteligente e carismático orientador teve sobre seusalunos, na Academia.

Durante esse período, as ambições políticas de Chávez forta-leceram-se até chegar à firme convicção de que sua geração deoficiais seria, em algum momento, chamada a governar o país.No princípio dos anos de 1980, os anos gloriosos da “VenezuelaSaudita”, haviam terminado. Esses anos da década de 1970,durante os quais os venezuelanos chegaram a pensar que logoviveriam em um país ocidental, rico e desenvolvido, foram final-mente substituídos pela áspera realidade da desvalorização e doendividamento, que levaram a uma espiral de pobreza cada vezpior. Os líderes civis começaram a parecer, cada vez mais, incom-petentes e vulneráveis. O governo de Carlos Andrés Pérez, duranteos anos de 1970, vivera o imenso crescimento da renda do petró-leo, em seguida ao auge petrolífero de 1973 e aos empréstimosem petrodólares que ela permitia; seus sucessores nos anos de1980 nunca tiveram nada tão substancioso em seu poder.

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Finalmente, em 1982, Chávez começou a preparar, seriamen-te, uma conspiração. Com outros dois oficiais, que também eramorientadores na Academia Militar, criou uma célula política den-tro do Exército, chamando-a de Movimento Bolivariano Revo-lucionário-200 (MBR-200). O MBR-200 foi acrescentado paramarcar as celebrações em curso durante o ano todo, para come-morar o bicentenário do nascimento de Simón Bolívar, em 24 dejulho de 1783. Os outros dois oficiais eram Felipe Acosta Carlese o velho amigo de Chávez, Jesús Urdaneta Hernández. EnquantoUrdaneta sobreviveu, para desempenhar um papel importante nogoverno de Chávez, em 1999, Acosta faleceu durante o Caracazode 1989.

Em 17 de dezembro de 1982, os oficiais revolucionários fize-ram um juramento sob o Samán de Güere, perto de Maracay,repetindo as palavras da promessa que Simón Bolívar fizera emRoma, em 1805, jurando dedicar sua vida à libertação daVenezuela do jugo espanhol: “Juro, diante do Senhor, juro peloDeus de meus pais, que não darei descanso a meu braço nemrepouso a minha alma, até ver rompidas as cadeias que nosoprimem...”.

O MBR-200 começou mais como círculo de estudos políticosdo que como uma conspiração subversiva, mas assim que os jo-vens oficiais examinaram a História e os problemas contemporâ-neos de seu país, começaram a trabalhar com a hipótese de algu-ma forma de golpe de Estado. Sabiam que deviam derrubar osistema político existente, acreditando que a versão venezuelanada “democracia” era uma impostura. Entrevistado por AgustínBlanco Muñoz, em junho de 1999, Chávez explicou suas reservas:

“O que eles chamam de sistema democrático, nesses últimos anos, não

é diferente, na substância, do que chamam, por exemplo, de ditadura

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de Marcos Pérez Jiménez, o governo do triênio de 1945 a 1948, ou do

governo de Isaías Medina, López Contreras e até do governo de Juan

Vicente Gómez, para parar em 1908. Creio que, no fundo, é essencial-

mente a mesma coisa, o mesmo esquema de dominação com outra cara,

seja um general Gómez ou um doutor Rafael Caldera. Mas, por trás

dessa figura, desse caudilho, com boné ou sem boné, a cavalo, de

Cadillac ou Mercedes-Benz, por trás dessa pessoa, desse senhor, desse

presidente, está o mesmo esquema que domina a economia, a políti-

ca, a mesma negação dos direitos humanos, do direito dos povos a

protagonizar seu destino.”

Chávez e seus amigos, de sua posição na Academia Militar,estavam bem situados para recrutar outros jovens oficiais descon-tentes, que se uniriam à causa. Em março de 1985, uniu-se a elesFrancisco Arias Cárdenas, um ex-seminarista que voltava de umcurso de pós-graduação na Colômbia. Arias Cárdenas é originá-rio de Táchira e estava destinado a desempenhar um papel im-portante na tentativa de golpe de fevereiro de 1992. Tinha mui-tos amigos na esquerda civil, o que o levaria, na década de 1990,a se aproximar da Causa R, um pequeno partido radical. Com oapoio desse partido, seria eleito governador do Estado de Zulia,em 1995. É freqüentemente considerado o intelectual mais des-tacado no movimento de Chávez, embora não tenha nem suaautoridade, nem seu carisma.*

De acordo com o preceito de Chávez, os membros do MBR-200 buscaram o apoio histórico de sua doutrina no pensamentode três figuras relevantes e conhecidas, ainda que superficialmen-

* No princípio do ano 2000, Arias Cárdenas rompeu com Chávez e, depois, foi candi-dato, sem êxito, à presidência da República. A partir de então, Arias fundou um par-tido de oposição, denominado La Unión.

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te, por todos os venezuelanos, desde a escola primária. EzequielZamora, o líder das Planoícies, com quem Chávez se familiarizaradesde a infância; Simón Bolívar, o Libertador; e Simón Rodríguez,lembrado freqüentemente como o mestre de Bolívar, apesar de serum homem cuja carreira foi infinitamente mais interessante doque esse simples fato deixa supor.

Desde o princípio, os conspiradores deram a seu programa umtom esquerdista. Rapidamente passaram a usar a linguagem daesquerda civil, que alguns aprenderam estudando na Universida-de Central da Venezuela, em Caracas. Durante os anos de 1980,a Força Armada venezuelana distinguiu-se por enviar seus jovenspara estudar ciências sociais nas universidades, junto com oscivis. Convivendo com a sociedade civil, muitos desses jovensoficiais puderam entrar em contato com os sobreviventes dosmovimentos guerrilheiros dos anos de 1960.

À medida que os oficiais revolucionários foram escalando ahierarquia militar, começaram a considerar que, em algum mo-mento, poderiam estar capacitados para fomentar o golpe revo-lucionário. O ano de 1992 parecia ser o mais apropriado e pró-ximo, já que naquele momento receberiam comando de tropas.Enquanto isso, foram sendo conhecidos como organizaçãoMacate, abreviatura de majores, capitães e tenentes, e depoiscomo Comacate, quando comandantes aderiram a suas fileiras.

Manter a existência de tal organização em segredo era tare-fa difícil e, de fato, chegou aos ouvidos da Direção de Inteligên-cia Militar (DIM). A DIM teve conhecimento de que eram minis-tradas palestras de conteúdo radical na Academia Militar, mas nãosabia que tipo de conspiração estava se preparando, ou quãoextensa poderia ser. Tinha consciência de que se tratava de algunsdos jovens oficiais mais competentes, populares e promissorescom que contava a Força Armada: assim, impor-lhes medidas

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disciplinares ou expulsá-los implicaria em graves perdas parasuas fileiras.

Hugo Chávez era claramente identificado como um perigo-so subversivo e, assim, foi transferido para longe de Caracas. Em1986, foi afastado da posição influente que tinha na AcademiaMilitar, sendo transferido para Elorza, no Estado de Apure, umlugar afastado, próximo à fronteira com a Colômbia.

Fui a Elorza em um pequeno ônibus, cujo trajeto durou dozehoras. O pavimento dessa estrada apavorante desintegrou-se hámuito tempo. Elorza está quase exatamente ao sul de Barinas, ea estrada atravessa dois dos principais afluentes do rio Orinoco:o Apure e o Arauca. Uma ponte sobre o Apure liga a cidade deNutrias a Bruzual; o presidente Chávez prevê que algum dia essesremotos vilarejos irão se transformar no coração de um grandeprojeto de desenvolvimento para os llanos.

Elorza está ainda mais ao sul; do outro lado do rio Arauca,depois de atravessar outra ponte. Um hotel, a rua principal e umabase militar na periferia: essa é a Venezuela rural. Os donos daslojas são sírios, os dos restaurantes colombianos, enquanto osgrupos indígenas cuivas e iaruros vivem nos arredores do vilarejo.Sentei-me em um restaurante que servia carne e mandioca e pus-me a conversar com o dono, que casualmente era um refugiadoda violência que, alguns quilômetros adiante, golpeia a Colôm-bia. Veio até aqui de Tolima e pareceu-lhe que a Venezuela eraum lugar relativamente pacífico, em comparação com os horro-res da Colômbia.

Aqui, Chávez é lembrado com grande afeto pelas pessoas, porter dado realce no mapa ao nome do vilarejo. Além de coman-dar uma das divisões da base situada na rua, um pouco maisabaixo, Chávez aproveitou aqueles anos para colocar em práti-ca algumas das idéias que hoje integram seu programa político

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e social para o país. Ao estimular o uso de esquemas experimen-tais de cooperação entre civis e militares, o tenente radical deElorza rapidamente transformou-se em uma figura tremenda-mente popular em todo o Apure. Além de proporcionar ajudamilitar para o desenvolvimento social e econômico da região,ampliou o quadro de suas atividades. Em pouco tempo, integrou-se à vida da comunidade, organizando celebrações históricas epromovendo a recopilação de arquivos da história oral.

Alguém deve ter esquecido ou extraviado seu expediente, poisem 1988, no final da presidência de Jaime Lusinchi, da AD,Chávez foi levado de volta a Caracas, ao Palácio de Miraflores.Foi designado assistente do Conselho Nacional de Segurança eDefesa. Por fim, caminhava em sentido ascendente. Naquele ano,foi enviado à América Central, quando a guerra dos “contra” naNicarágua e a campanha de contra-insurgência na Guatemalachegavam ao auge.

Em Elorza, Chávez permanecera isolado de seus companhei-ros revolucionários do Exército. Uma vez em Caracas, estavamelhor situado para continuar planejando a conspiração de seuMBR-200. O momento não era prematuro, já que, no ano seguin-te, em fevereiro de 1989, a cidade de Caracas seria cenário de umaexplosiva e inesperada rebelião espontânea. Chávez sempre es-perara que alguém se “levantaria”, mas, quando isso aconteceu,os conspiradores ainda não estavam preparados.

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uarenas é uma cidade satélite, sem alma, situada a 30 qui-lômetros a leste de Caracas, onde residem milhares dos tra-

balhadores do setor de serviços da capital. Os primeiros sintomasde desordem apareceram na madrugada de segunda-feira, 27 defevereiro de 1989. As pessoas que se dirigiam à cidade descobriamque as tarifas das passagens tinham dobrado de preço em rela-ção à véspera e começavam a protestar, espontaneamente. Emseguida, os distúrbios esquentaram em Petare, pouco depois, e,no meio da manhã, haviam se estendido, influenciados pela te-levisão, para as principais cidades do país. Maracay, Valencia,Barquisimeto, Ciudad Guayana e Mérida.

As pessoas viravam e queimavam os ônibus, mas isso eraapenas a fase inicial da revolta. Em questão de horas, a rebeliãose generalizara, com saques por toda a parte, destruição de lojase supermercados. Bandos de jovens dos subúrbios invadiam,enfurecidos, a zona comercial do centro de Caracas, dirigindo-se para as zonas residenciais burguesas, situadas nas encostas do

FEVEREIRO DE 1989 – I3. A REBELIÃO EM CARACAS, O CARACAZO

REUNI ENTÃO TODO O PESSOAL MILITAR QUE ME ACOMPANHAVA E LHES DISSE:LEVANTEM A MÃO OS QUE PERTENCEM AO COUNTRY CLUB! OBSERVEI OOLHAR DE ASSOMBRO DOS PRESENTES, QUE PERMANECERAM IMÓVEIS E EMSILÊNCIO. REPETI: LEVANTEM AS MÃOS OS QUE SÃO DE ALTO PRADO,LAGUNITA COUNTRY CLUB, ALTAMIRA! NINGUÉM LEVANTOU A MÃO. DISSE,ENTÃO: ISSO QUER DIZER QUE, AQUI, TODOS PERTENCEMOS ÀS FAVELAS OUBAIRROS HUMILDES COMO ESTE; AS PESSOAS QUE VIVEM AQUI SÃO COMONÓS, NOSSOS IRMÃOS DO POVO. QUERO DIZER COM ISSO QUE NINGUÉMDISPARA CONTRA O POVO SEM AUTORIZAÇÃO, AQUI SOMENTE SE DISPARAQUANDO NOS ATAQUEM COM ARMAS DE GROSSO CALIBRE.

MAJOR FRANCISCO ARIAS CÁRDENAS, FEVEREIRO DE 1989.

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monte Ávila, perto do coração da cidade. Distúrbios e saquescontinuaram sem freio algum durante a noite e o dia seguinte,transformando-se em uma rebelião prolongada e poderosa – oCaracazo, como foi chamado depois – que logo seria seguido dedias de brutal repressão militar.

O major Chávez estava na cama, naquela quarta-feira pelamanhã, com uma doença contagiosa. De fato, o médico do Pa-lácio de Miraflores ordenara que fosse para casa, a fim de evitaro contágio de todo o gabinete presidencial. Ao longo dos anos depreparação da conspiração, os jovens oficiais haviam discutidoa possibilidade, se houvesse uma mobilização popular, deaproveitá-la para seus próprios fins. Mas, quando isso aconteceu,não estavam preparados e alguns foram obrigados a participar darepressão.

O impacto dessa revolta urbana, tanto na população quantonos soldados envolvidos, teria um efeito devastador no aconte-cer político da década seguinte. A história contemporânea daVenezuela começa realmente com esse acontecimento fundamen-tal, já que convenceu os oficiais bolivarianos de que deviamacelerar seus planos.

O ano de 1989 também foi importante para o resto do mun-do. A queda do muro de Berlim no outono e o conseqüente co-lapso dos governos pró-soviéticos da Europa do Leste foramrapidamente percebidos como presságios do fim de toda uma eracomunista. Da mesma maneira, o Caracazo marcou o início do fimdo ancien régime venezuelano. As pessoas tinham ido para a ruaexatamente 30 anos antes, em janeiro de 1958, e aberto o cami-nho, sob a direção da Junta Patriótica, para a derrubada da di-tadura do general Marcos Pérez Jiménez. Agora, faziam a mes-ma coisa, quase acidentalmente, para mostrar seu desejo de selivrar de um governo corrupto e burocrático com fachada demo-

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crática. Mas enquanto o levantamento de 1958 fora organizado,politicamente orientado e com objetivos específicos, o Caracazode 1989 era anárquico, caótico e não tinha liderança.

Foi um acontecimento tão espontâneo que tomou totalmen-te de surpresa os organismos de inteligência do governo. Todosos esforços da polícia secreta, a Disip, estiveram dirigidos para ainfiltração em grupos políticos de ultra-esquerda, apesar de que,no final dos anos de 1980, a maioria desses grupos havia desa-parecido, não tendo desempenhado nenhum papel no desenca-dear do Caracazo. A Disip não tinha se dado ao trabalho demonitorar a possibilidade de que se desencadeasse uma rebeliãoautônoma nos barracos das áreas suburbanas da cidade. Já a DIMestava melhor informada em todos os aspectos. Sabia que algoestava acontecendo e advertira o governo de que segunda-feirapoderia ser um dia difícil. Apesar disso, é provável que essasadvertências não tenham chegado ao Palácio de Miraflores ou quetenham sido simplesmente ignoradas.

“Houve distúrbios na cidade de Guarenas no primeiro dia” –diz Heinz Sonntag, professor de sociologia no Cento de Estudosde Desenvolvimento em Caracas, autor de um estudo sobre oCaracazo, “e a polícia não interveio.” Também não o fez no diaseguinte. A Guarda Nacional recebeu ordens para agir, mas re-cusou-se a entrar nos barracos. Então, o governo apelou aosmilitares.”

Os soldados entraram, portanto, nas favelas e cercaram osconjuntos de casas “de interesse social” (ironicamente, foramconstruídos no governo Pérez Jiménez, na década de 1950).Dispararam em tudo o que se movia. “O número oficial de mor-tos foi 372, mas é provável que sejam mais de 2 mil, apenas emCaracas.” Milhares de pessoas ficaram feridas. Sonntag acreditaque “a repressão era uma espécie de ‘advertência’ aos pobres, para

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que não reincidissem”. O que, diz ele, funcionou durante muitotempo. “As pessoas cresceram no meio do medo.” Esse aconteci-mento encheu de sombras boa parte dos anos de 1990, criandoum ambiente de desesperança e de apatia política que apenascomeçou a se dissipar com a eleição de Chávez, em 1998.

O presidente Carlos Andrés Pérez assumira o cargo no prin-cípio do mês de fevereiro. Era seu segundo mandato e tinhaexperiência – fora presidente durante os anos de 1970 – mas nãoestava preparado para essa explosão popular. Durante uma reu-nião de seu Conselho de Ministros, ao meio-dia de terça-feira, 28de fevereiro, decretou o estado de emergência, um procedimen-to constitucional que implicava na suspensão das liberdades civis.O Exército impôs o toque de recolher durante a noite.

A causa imediata da rebelião foi o aumento do preço dagasolina, como parte do novo pacote econômico neoliberal quePérez anunciara dias antes, em 16 de fevereiro. Fora previsto queo preço da gasolina aumentaria 100% no domingo, 26 de feve-reiro; mas, precisamente para evitar os distúrbios que ocorreram,o governo anunciara um aumento escalonado dos preços dotransporte público. Os proprietários de ônibus estavam autoriza-dos a aumentar suas tarifas em 30% no primeiro dia útil depoisdo aumento do preço da gasolina, ou seja, na fatídica segunda-feira; um aumento adicional de 30% lhes seria permitido três me-ses mais tarde.

Evidentemente, muitos dos proprietários de ônibus repassa-ram o aumento da gasolina a seus usuários desde o primeiro dia,com o objetivo de cobrir seus próprios custos. Essa foi a causa dainevitável erupção do ódio entre os usuários mais pobres, acos-tumados a não ter dinheiro no final do mês. Uma carga particu-larmente pesada caiu nos ombros dos estudantes, de quem reti-raram o tradicional benefício da meia passagem. Em questão de

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dias, os apavorados habitantes da cidade tinham voltado a umavida aparentemente normal. Os bairros mais pobres curavam seusferidos, sentindo-se terrivelmente prejudicados pelo governo,enquanto centenas de cadáveres eram enterrados em valas co-muns. As zonas mais ricas reforçaram suas grades de aço e seussistemas de segurança, congratulando-se por ter tido sorte.

No entanto, em longo prazo, foi na Força Armada, encarre-gada da repressão, que o impacto do Caracazo teve mais conse-qüências. Enquanto os soldados envolvidos na execução de seusconcidadãos sentiam remorso e vergonha pelos atos que tinhamsido forçados a cometer, o grupo, politicamente orientado, deoficiais ligados a Chávez e ao MBR-200 lamentava-se ao ver queo momento e a oportunidade, que, de certa forma, haviam esta-do esperando, haviam passado a seu lado sem que fossem capa-zes de entrar em ação. Seus contatos com os grupos civis, inclu-sive os partidos de esquerda e alguns dos sobreviventes daguerrilha dos anos de 1960, não lhes tinham sido de nenhumautilidade para prever o que estava a ponto de acontecer.

Muitos dos principais conspiradores militares estavam em Ca-racas durante o Caracazo, embora cada qual tenha tido um desti-no diferente. Chávez estava fora de serviço, na cama, mas dois deseus companheiros mais próximos, Francisco Arias Cárdenas eFelipe Acosta Carles, tinham sido enviados às favelas, para parti-cipar da repressão. Durante um incidente inexplicável, Acostarecebeu uma bala mortal. Há quem acredite, inclusive Chávez, quea Disip sabia de sua participação na conspiração militar, o que tornaplausível que tenham sido eles os responsáveis por sua morte, e nãoos saqueadores. As mesmas pessoas pensam que Chávez teve sor-te de ter permanecido em sua casa, durante aquela semana.

Arias Cárdenas tomou parte na repressão à rebelião. Maistarde, em uma entrevista a Ángela Zago, deu a conhecer sua

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imensa frustração pelo fato do movimento revolucionário em queestava envolvido não estar pronto para “levantar-se, junto como povo, em uma rebelião cívico-militar”. Sentiu que o Exércitoestava do lado errado da guerra, e teve que fazer esforços sobre-humanos para tentar garantir que suas tropas não disparassemna multidão. O que viu aterrorizou:

“Quando cheguei ao lugar que seria meu centro de operações, verifi-

quei que o oficial que me antecedera, de forma desumana e irrespon-

sável, disparava contra os conjuntos de casas. Reuni testemunhos sobre

os desmandos cometidos pela polícia política, a Disip.

Reuni então todo o pessoal militar que me acompanhava e lhes disse:

levantem a mão os que pertencem ao Country Club! Observei o olhar de

assombro dos presentes, que permaneceram imóveis e em silêncio. Re-

peti: levantem as mãos os que são de Alto Prado, Lagunita Country Club,

Altamira! Ninguém levantou a mão. Disse, então: isso quer dizer que,

aqui, todos pertencemos às favelas ou bairros humildes como este; as

pessoas que vivem aqui são como nós, nossos irmãos do povo. Quero

dizer com isso que ninguém dispara contra o povo sem autorização, aqui

somente se dispara quando nos ataquem com armas de grosso calibre”.

Semanas depois, Chávez voltou a seu trabalho, no Palácio deMiraflores. Na entrada, os guardas do palácio, ainda que nãofizessem parte da conspiração, pediram-lhe que se detivesse, poistinham ouvido certos boatos. “Ouça, major” – perguntou um deles– “é verdade essa história do MBR-200? Gostaríamos de sabermais sobre o assunto; não estamos dispostos a continuar matandogente.” Esses soldados pertenciam à guarda presidencial, lembraChávez, eram de confiança do governo. Estava claro que a cons-piração ganhava espaços e que o momento da ação definitiva nãopodia esperar mais.

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Mas, agora, as autoridades seguiam sua pista. No fim do ano,em 6 de dezembro de 1989, dia das eleições para o governo dosEstados, Chávez e outros majores foram convocados para seapresentarem diante do Estado-Maior do Exército. Eram acusa-dos de conspirar contra o governo e de preparar o assassinato dopresidente e de oficiais de alto escalão para o dia de Natal. Ainformação era falsa e, como ninguém pôde prová-la com pre-cisão, as autoridades não puderam tomar medidas disciplinares.Chávez obteve uma licença para se inscrever na UniversidadeSimón Bolívar, em Caracas, e começou a preparar um mestradoem ciências políticas. Qualquer tentativa de golpe de Estado ti-nha de ser adiada.

Ano e meio mais tarde, em agosto de 1991, depois de terseguido um curso preparatório, Chávez foi encarregado de umbatalhão de páara-quedistas, em Maracay, cidade próxima deCaracas. Enfim, com tropas sob suas ordens, encontrava-se emposição favorável para empreender a ação para a qual se prepa-rara durante tanto tempo.

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m uma tarde de 1990, um ano depois do Caracazo, fui vi-sitar o presidente Carlos Andrés Pérez, no modesto edifício

branco do século 19: o Palácio de Miraflores. Pérez gostava de seencontrar com jornalistas estrangeiros, com os quais era sempremuito cordial. Perguntei-lhe como alguém tão identificado comuma forma específica de desenvolvimento econômico conduzi-do pelo Estado, na década de 1970, podia ter dado uma guinadanos anos de 1990, tornando suas as doutrinas de um FundoMonetário Internacional a que se opusera durante tanto tempoe, em particular, sabendo que os cortes drásticos que a institui-ção impusera em 1989 haviam levado diretamente ao Caracazo.

Pérez admitiu que o Caracazo fora uma comoção desagradá-vel e concordou que sua nova política acarretara sérios problemas.Também reconheceu que produzira um aumento no custo de vida:

“As decisões que tomei foram extremamente difíceis e, no geral, ain-

da são impopulares. As pessoas estão ressentidas pela severidade das

FEVEREIRO DE 1989 – II4. O PACOTE ECONÔMICO QUE PÔS FIM ÀPRESIDÊNCIA DE CARLOS ANDRÉS PÉREZ

AS PESSOAS EXPRESSAM SUA ANGÚSTIA MANIFESTANDO-SE E PROTESTANDO,MAS TEMOS QUE ENTENDER QUE ERAM INEVITÁVEIS. NÃO HAVIA OUTRASAÍDA.

PRESIDENTE CARLOS ANDRÉS PÉREZ, 1990.

E

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medidas que tomamos. As pessoas expressam sua angústia manifestan-

do-se e protestando, mas temos de entender que eram inevitáveis. Não

havia outra saída... Os tempos mudaram bastante, nos últimos quinze

anos. A economia tornou-se mais globalizada e mais organizada e as

relações econômicas têm de ser concebidas de outra maneira. Com a

globalização da economia, nossa gente entenderá melhor a necessidade

dos investimentos estrangeiros”.

A Venezuela necessitava desesperadamente de tais investi-mentos, afirmava o presidente, posto que a renda do petróleo jánão era suficiente para impulsionar a economia. Chegou-se atéa considerar que o refino do petróleo, um setor tradicionalmen-te reservado exclusivamente aos investimentos estatais, precisavada “participação do capital estrangeiro”.

Pérez mostrava-se igualmente pessimista sobre o própriofuturo do papel do Estado. “Aprendemos a lição” – garantiu –“sobre a tendência das instituições estatais a degenerar.” Seugoverno previa a abolição de “todos aqueles elementos em quepudesse existir corrupção”, apesar de que não fez nenhum co-mentário sobre seu próprio papel no assunto. Com uma taxa decâmbio flutuante para o bolívar e a abolição das autorizações paraoperações comerciais no estrangeiro, pensava que a corrupçãosimplesmente desapareceria. “O melhor para nós” – afirmou, como entusiasmo de um convertido – “seria reduzir o papel do Esta-do a sua expressão mínima.”

Ao longo dos anos de 1990, boa parte da retórica do coman-dante Chávez arremeteu contra o “neoliberalismo” e contra osprogramas de reformas impostos na América Latina pelo gover-no de Washington, que Pérez aceitara com tanto entusiasmo. Emboa parte, tais programas haviam sido possíveis graças ao con-trole dos estadunidenses sobre instituições como o FMI e o Banco

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Mundial, mas, também, porque um bom número de economistase políticos latino-americanos fora doutrinado com êxito acercadas novas teorias econômicas estadunidenses.

Embora Chávez se oponha, em geral, a tais programas – falasempre em neoliberalismo “selvagem” – seus argumentos retomaminevitavelmente a funesta experiência da Venezuela depois de1989. Seu alvo principal sempre foi a guinada política de Pérez, quelevou ao Caracazo e, depois, em 1993, à queda do próprio Pérez.

A causa imediata da rebelião foi, como dissemos no capítuloanterior, o aumento do preço da gasolina e, conseqüentemente,o das passagens de ônibus, o que levou os passageiros caraque-nhos a se rebelarem da única maneira que sabiam se rebelar. Maso aumento de preços em si fazia parte de uma mudança maior depolítica econômica que rapidamente ficou conhecida como “agrande guinada”.

As políticas neoliberais postas em prática na América Latina(e em outras partes do mundo) durante os anos de 1990 sãoconhecidas e corretamente definidas como Consenso de Washing-ton, um programa de dez pontos, formulado e codificado noinício por John Williamson, que fora assessor do FMI na décadade 1970. Esse programa, que Washington considerava adequado,fora projetado especialmente para os países com maior endivida-mento externo; endividamento a que os bancos internacionais oshaviam levado, durante as décadas de 1970 e 1980. Seu objeti-vo era reformar os mecanismos internos de regulamentação eco-nômica dos países endividados da América Latina (e de outraspartes do mundo) de forma tal que estivessem em condições depagar as dívidas que haviam contraído, em geral com bancosestadunidenses.

A Venezuela acumulara uma grande dívida, contraída impru-dentemente, a juros altíssimos, por sucessivos governos corrup-

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tos e incompetentes, o que a transformava em alvo privilegiadodas reformas do Consenso de Washington. É óbvio que era ne-cessário realizar certas reformas, se se pretendia manter o fluxode investimentos estrangeiros. Mas acompanhava essas reformasespecíficas o outro lado da moeda: levava em consideração asexigências dos bancos estrangeiros, mas deixava passar as neces-sidades dos habitantes mais pobres dos países devedores. Naprática, claro, as reformas incluíam aspectos muito mais amplosdo que a simples solvência para com um punhado de bancosinternacionais.

John Williamson, o artesão do Consenso de Washington, ex-plicou suas propostas em uma conferência sobre o assunto, reali-zada em 1994. Afirmava ter identificado “dez áreas sobre as quaispolíticos e acadêmicos de Washington poderiam, razoavelmente,chegar a um consenso relativo às características das reformaseconômicas que os países devedores deveriam pôr em prática”.

Posto nos termos suaves dos economistas imperiais, seu pro-grama podia parecer bastante inofensivo. Mas, na prática, asexigências feitas aos países devedores constituíam uma novaforma de colonialismo. Os benefícios que o programa neoliberalgarantiam às companhias multinacionais estadunidenses iammuito além da simples política de cobrança da dívida.

As 10 áreas do Consenso de Washington definidas porWilliamson exigiam que os governos que o assinassem levassema cabo as seguintes reformas:

1. Garantia de disciplina fiscal e redução do deficit fiscal.

2. Redução dos gastos públicos, em particular no setor militar e na

administração pública.

3. Reforma fiscal e criação de um sistema com base tributária ampla

e arrecadação eficaz.

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4. Liberalização do sistema financeiro e fixação das taxas de juros pelo

mercado.

5. Taxas de câmbio competitivas, para possibilitar um crescimento

baseado nas exportações.

6. Liberalização do comércio, junto com a eliminação das autorizações

de importação e a redução dos impostos que incidem sobre elas.

7. Promoção de investimentos estrangeiros diretos.

8. Privatização das empresas estatais para que sejam geridas com efi-

cácia e aumentem seu rendimento.

9. Desregulamentação da economia.

10. Proteção da propriedade privada.

Este foi o programa de reformas econômicas que o governode Pérez considerou conveniente adotar em fevereiro de 1989. Opresidente, que, em matéria de ideologia, orienta-se por umapágina em branco, aderiu ao modelo do momento sem o menorescrúpulo. Depois de ter se cercado de um batalhão de jovenseconomistas formados nos Estados Unidos, seguidores da Esco-la de Chicago, Pérez anunciou seu inovador pacote econômico,duas semanas depois de ter assumido o poder.

Os termos do Consenso de Washington eram o pão e o vinhodas duas principais figuras do governo, no que se refere a refor-mas econômicas. Moisés Naím, ministro do Desenvolvimento, eMiguel Rodríguez, ministro do Planejamento, eram meninos-prodígio egressos do MIT e da Yale. Haviam saído do mesmomolde que o checo Václav Klaus e o polonês Leszek Balcerowicz,os economistas que traçaram o caminho do livre mercado naEuropa do Leste, durante a década de 1990.

Todos esses homens haviam bebido até a saciedade da fontedo neoliberalismo e compartilhavam certa familiaridade com omundo dos think tanks acadêmicos, os salões de conferência

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universitários e as instituições financeiras internacionais. Eramas tropas de elite do novo fundamentalismo econômico. Mas, aomesmo tempo, tinham seu calcanhar de Aquiles. Careciam com-pletamente de conhecimento ou de compreensão do mundopolítico de seu próprio país. Quanto à política econômica, con-sideravam-se auto-suficientes e diziam saber o que fazer; ospolíticos, segundo eles, deviam ocupar-se de seus assuntos.

Durante os últimos meses da presidência de Lusinchi, que foide 1984 a 1989, todo o mundo em Caracas sabia que uma criseeconômica se aproximava, o que ficou confirmado em janeiro de1989. A última decisão tomada por Lusinchi foi suspender opagamento da dívida externa. Depois de vinte anos de desperdícioe de corrupção sem precedentes, as reservas internacionais esta-vam a ponto de se esgotar. Uma vez tomada a decisão, cada qualespeculava sobre a política que implementaria o governo dePérez, ao começar seus trabalhos em fevereiro. Lembravam-se dePérez como o homem que estava no cargo durante os temposgloriosos da “Venezuela Saudita”, nos anos de 1970, quandoparecia que o país não podia ser mais rico. As pessoas haviamvotado nele para que voltasse ao palácio presidencial, em gran-de parte porque acreditavam que usaria sua improvável magiapela segunda vez.

Pérez manteve o país na expectativa. Como presidente elei-to, passou semanas visitando países da Opep – a Arábia Saudita,o Kwait e a Argélia – o que fazia supor que talvez pretendessereativar o papel da Venezuela na política petrolífera internacio-nal. Quando finalmente regressou a Caracas, já tinha tudo orga-nizado. Para surpresa de todos, decidira aderir à política da re-volução neoliberal em voga, que naquele momento ainda não setransformara na nova ortodoxia dos anos de 1990. Pérez prova-velmente não via outro caminho a seguir.

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Era preciso rever drasticamente o papel e o tamanho do ve-lho Estado venezuelano, que dominara durante meio século avida política e econômica do país. As empresas estatais seriamprivatizadas. O governo já não procuraria gerar emprego e cres-cimento econômico sozinho, mas, sim, pela “a expansão acele-rada do setor privado”. Também liberalizaria os preços e as taxasde juro e eliminaria as taxas de juro variável.

Miguel Rodríguez, o ministro do Planejamento, era o artífi-ce desse programa de mudanças estruturais. Alguns anos maistarde, quando já se afastara do cargo, falaria com orgulho do quefizera. Satisfizera as exigências do Consenso de Washington atéa última vírgula, a ponto de executar um programa totalmenteoposto a tudo aquilo em que a maioria dos venezuelanos acre-ditava e que mais lhe importava:

“O programa fora concebido como algo integral. Incluía uma reforma

completa do sistema comercial, a eliminação de todas as restrições

comerciais e uma redução das taxas de importação a níveis baixos; a

eliminação de todos os controles sobre o câmbio e a adoção de um

câmbio flutuante que levasse a uma taxa de câmbio compatível com

o desenvolvimento das exportações não tradicionais; a liberalização

dos preços; a reestruturação do setor público graças à descentralização

e à privatização das empresas paraestatais; uma reforma fiscal global,

uma nova política para fixar os custos do setor público em níveis com-

petitivos; a reestruturação do setor financeiro pela liberalização, maior

competitividade e fortalecimento do índice de regulamentação; a

modernização das leis trabalhistas, incluindo a criação de fundos de

pensão e a reestruturação do sistema de seguridade social; a elimina-

ção das restrições ao investimento estrangeiro; a reestruturação da

dívida externa, uma revisão da política de financiamento externo e uma

nova política social para eliminar o sistema generalizado de subsídi-

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os maciços (muitos dos quais beneficiavam os ricos), substituindo-o por

subsídios específicos para os segmentos mais pobres da população”.

Essa foi a nova estratégia econômica adotada na Venezuelaem fevereiro de 1989. Para coroá-la, o presidente Pérez anunciou,com satisfação e alívio, que sua equipe econômica obtivera emWashington alguma coisa em troca: um empréstimo do FundoMonetário Internacional de 4,5 bilhões de dólares, a se efetivarem 3 anos. Em um passado mais feliz, quando pretendia ser umlíder do Terceiro Mundo, nos anos de 1970, Pérez denunciava oseconomistas do FMI como “genocidas mercenários, pagos pelototalitarismo econômico”. Agora, tinha de ir de joelhos, mendi-gar dinheiro a uma instituição que antes descrevera como umabomba econômica, “assassina de gente”.

O Caracazo serviu para frear seus ambiciosos planos. Duranteo primeiro ano, nenhuma das empresas estatais foi privatizada.Pérez assinou um decreto para permitir as privatizações, emagosto de 1989, mas o Congresso não conseguiu chegar a umacordo sobre a definição das empresas básicas e estratégicas quedeviam permanecer no setor público. Muitos parlamentares de-dicavam-se a ganhar tempo. No entanto, o tempo perdido não foiaproveitado por Pérez para preparar o país para as mudanças queviriam. Em 1990, fossem quais fossem os obstáculos temporári-os do processo, era evidente que a Venezuela participava total-mente da revolução global do pensamento econômico. A recei-ta era a mesma em Praga ou em Varsóvia, embora as condiçõeslocais fossem totalmente diferentes.

Quando entrevistei Miguel Rodríguez naquele ano, achei umministro em mangas de camisa, sob o retrato oficial de Bolívar,falando em dois telefones ao mesmo tempo. Os jovens economis-tas talvez não tenham experiência política, mas Rodríguez obvi-

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amente estava gostando do exercício do poder, de sua superio-ridade intelectual e de sua capacidade de não temer o ridículo.Pensava que era uma pena que o país tivesse se acostumado comgasolina e energia elétrica baratas, “vendidas ao consumidormuito abaixo do preço de custo”. Seu programa de ajustes, dis-se, “conseguiria preços eficientes no setor público em um perí-odo muito curto”. Acreditava – com o elegante desdém dostecnocratas – que havia chegado o momento de ser forte. Quan-do murmurei algo sobre o Caracazo, descartou-o de um golpe:“Não é o povo na rua que se queixa do aumento do preço dagasolina, são os políticos e dois ou três agitadores nas universi-dades e nas escolas. O povo entende essas coisas”.

Sua principal preocupação era a lentidão com que o gover-no negociava seu programa no Congresso. A demora tirava ainiciativa do governo, afirmava, deixando que a oposição serearticulasse e que se instalasse a inércia. Sabia que Naim e elenão eram muito populares entre os dirigentes da AD, e que a faltade apoio político para seu programa, por parte do partido dogoverno, representava um freio para o ímpeto das reformas eco-nômicas. Os “jovens turcos” queriam agir rápido; os “caciques”pediam prudência.

Em longo prazo, sua falta de prudência política criou as condi-ções para um golpe de Estado e precipitou a queda de seu presiden-te. A crise política desencadeada por seu programa econômico teveduas conseqüências que ninguém, nem remotamente, previra.

Estimulado pelo horror do Caracazo, o tenente-coronelChávez intensificou os esforços para preparar seu MBR-200 paraa ação. Em fevereiro de 1992, tentou fazer o que os “caciques” daAD conseguiram no ano seguinte: derrubar o presidente.

Chávez não teve êxito, mas, no ano seguinte, antes que operíodo de Pérez chegasse ao fim, os “caciques” da AD decidiram

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desfazer-se dele e lançá-lo aos leões. Em 1993, o Congressodestituiu Pérez por corrupção, decretando sua prisão domiciliar.

Em fevereiro de 1996, quando ainda estava detido, fui denovo falar com ele. Perdera o aparato oficial, mas, de sua propri-edade em Los Guayabitos, nos arredores de Caracas, ainda davaa impressão de que esperava o chamado de um povo que ansi-ava por seu regresso.

“A Venezuela está passando por uma crise estrutural muitograve” – disse, do lado oposto de sua enorme escrivaninha. “Umdos motivos da crise é que os partidos estão em crise – há algumtempo. No Copei, o aparelho do partido está nas mãos de umhomem – Rafael Caldera – que não deixará que ninguém, a nãoser ele mesmo, seja candidato à Presidência.”

Pérez mostrava-se igualmente crítico em relação a seu pró-prio partido, a AD, “um partido que infelizmente foi corroído peloclientelismo e pelo aparelhismo. Fui excluído, mas continuocontando com o apoio dos que votam nele. É por isso que memantém recluso neste lugar: para manter-me isolado de minhabase política. Isso representa uma limitação muito grave paraminha ação, já que não posso intervir diretamente nos aconte-cimentos”.

Pérez tinha razão em dizer que a Venezuela estava em crise.O que era incapaz de reconhecer, era que tinha uma boa parte deresponsabilidade no que sucedera. O povo não clamava por seuregresso, ao contrário, pedia sua cabeça e, em fevereiro de 1992,quase a perdeu…

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estrada que liga Barinas a Mérida tem uma das melhoresvistas panorâmicas da América Latina; vai ondulando desde

o calor das planícies do Orinoco até a límpida atmosfera dos valesandinos, ziguezagueando entre bosques e cascatas. Encontrei umpor puesto* no terminal de ônibus de Barinas e esperei que ficassecheio. O por puesto é um táxi ou micro-ônibus que não sai en-quanto não está cheio. Pouco depois da partida, o motor domicroônibus entregou sua alma e nada do que fez o motoristaconseguiu trazê-lo de volta à vida. Descemos todos e esperamoscerca de uma hora até que outro microônibus chegasse para nosajudar, pelo meio das nuvens e sobre as montanhas, até Mérida.

Mérida é uma cidade andina, que se estende por um amplovale, rodeado de montanhas verdejantes. Já não resta quase nadada velha estrutura colonial; no entanto, preserva o encanto deuma pequena cidade universitária, com suas ruas abarrotadas dejovens estudantes pela manhã, ao meio dia e à noite. É o cora-ção intelectual da Venezuela, um oásis de paz e de tranqüilida-

5. DOUGLAS BRAVO E O DEBATE ENTRE CIVIS EMILITARES

CHÁVEZ NÃO QUER A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL ATUANDO COMOFORÇA CONCRETA. QUER QUE A SOCIEDADE CIVIL O APLAUDA, NÃO QUEPARTICIPE...

DOUGLAS BRAVO, ENTREVISTADO EM 1999.

A

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de depois do pesadelo urbano de Caracas. As pessoas vão paraMérida em férias, para carregar as baterias. Os professores daUniversidade dos Andes costumam se fixar na cidade, pois con-sideram Caracas uma babilônia.

Mérida sempre foi um centro esquerdista e, depois do colap-so dos movimentos guerrilheiros dos anos de 1960, muitos ex-guerrilheiros vieram morar na cidade e em seus arredores. En-quanto alguns dos sobreviventes da guerrilha se agruparamdurante os anos de 1970 no Movimento para o Socialismo (MAS),outros se uniram ao Partido da Revolução Venezuelana (PRV),uma organização fundada por Douglas Bravo, o líder da guerri-lha no Estado de Falcón, que rompera com o PCV em 1966. O PRVera uma organização política e um de seus membros em Mérida,Adán Chávez, é irmão mais velho do comandante e tambémprofessor na Faculdade de Ciências. No princípio da década de1980, Adán Chávez achou conveniente organizar um encontroentre Bravo, seu amigo revolucionário, e Chávez, seu irmão re-volucionário.

Douglas Bravo lembra-se do encontro, que deve ter ocorridoem 1982 ou 1983: “O movimento que discutia naquele momen-to com Chávez era o PRV”. Bravo afirma ter falado com Cháveze com “todos os oficiais” que estavam participando “da estrutu-ra revolucionária que estávamos preparando”. Seu objetivo eraconstruir um “movimento cívico-militar que se preparasse, emlongo prazo, para uma insurreição revolucionária”.

Em uma entrevista recente com Alberto Garrido, Bravo des-creveu em detalhes o que estava sendo considerado. “O PRV nãopropunha um levantamento imediato. Tínhamos clareza disso,tanto os militares quanto nós…” Ambas as partes concordaramque, a menos que houvesse um acontecimento político importanteno país – “uma tensão das massas” – não se podia fazer grande

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coisa, até que os conspiradores tivessem patentes suficientes paracomandar tropas.

O Caracazo de fevereiro de 1989 acabou sendo esse aconte-cimento de massas que estavam esperando, embora nem os ci-vis nem os militares estivessem preparados.

Durante a crise política e econômica dos anos de 1980, gru-pos civis e militares foram se formando, estabelecendo contatoseventuais. Um amplo espectro de civis hostis ao sistema políticocorrupto e inadequado existente na Venezuela dedicou-se a es-tabelecer contatos com oficiais subversivos da Força Armada.

Naquele tempo, o MBR-200 era, sem dúvida, o único grupocom consciência política, estruturado no seio da Força Armada.Havia uma célula subversiva na Marinha, sobre a qual poucochegou ao conhecimento do público, e que não tinha conexõescom o grupo liderado pelo vice-almirante Hernán Grüber, queorganizou o segundo golpe de 1992. Havia também um grupo naForça Aérea, organizado pelo tenente William Izarra, um oficialrevolucionário de linha trotsquista, formado em Harvard.

No começo dos anos de 1980, enquanto Chávez organizavaseu movimento bolivariano no Exército, Izarra formara umacélula revolucionária na Força Aérea, chamada Aliança Revolu-cionária de Militares Ativos (Arma). Assim como Chávez, parti-cipou de reuniões com políticos civis, entre eles Teodoro Petkoff,do MAS, e José Vicente Rangel. Ambos haviam sido candidatospresidenciais de uma esquerda mais ou menos unida, mas nadaconcreto resultou de suas reuniões com Izarra.

Izarra se uniria a Chávez depois do golpe de 1992, sendoencarregado das relações internacionais do partido político desteúltimo, o MVR. Em novembro de 1998, foi eleito senador. Depoisde desacordos com Luis Miquilena, em dezembro de 1998, sepa-rou-se de Chávez, renunciou a seu posto no Senado, em maio de

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1999, e fundou seu próprio partido, o Movimento DemocraciaDireta.

Tudo indica que Chávez sempre esteve convencido da neces-sidade de incorporar civis ao projeto. Fora influenciado nos anosde 1970 pela revolução militar no Peru e concluíra, a partir de suaprópria trajetória, que a derrota do governo do general VelascoAlvorado fora fruto da falta de participação civil e de apoiopopular. Tanto Chávez quanto o vice-almirante Grüber conside-ravam o apoio dos civis necessário para que suas “intervençõesmilitares” tivessem êxito e, assim, desde o princípio, deviamincorporar grupos políticos civis bem escolhidos.

Chávez não limitara suas discussões com os civis ao grupo deDouglas Bravo. No começo, também estabelecera contatos comos líderes políticos da Causa R, uma organização esquerdista comatividades em Caracas e no Estado de Bolívar. Conversou com seufundador, Alfredo Maneiro, pouco antes de seu falecimento, emnovembro de 1982. Maneiro era outro dos revolucionárioscarismáticos, revelados pela luta guerrilheira dos anos de 1960.

Os militantes da Causa R, entre outros, estavam prontos parase envolver em uma rebelião militar e Chávez tinha sua idéia decomo utilizá-los. As organizações criadas pelo governo esquer-dista militar de Omar Torrijos, no Panamá, intrigavam-no.Torrijos, e depois Manuel Noriega, havia organizado uma espé-cie de grupo paramilitar civil, conhecido como o Batalhão daDignidade, com capacidade para dar apoio aos militares.

Chávez observara esse batalhão durante seu treinamento noPanamá, ficando impressionado com sua aparente capacidadepara agir como unidade irregular, bloqueando estradas e reali-zando outras tarefas junto com forças insurgentes de perfil maisclássico. Aproximou-se dos líderes da Causa R com este obje-tivo:

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“Durante anos, sugerimos a esse pessoal que formasse ‘batalhões da

dignidade’ com civis dos bairros pobres, dirigidos por verdadeiros lí-

deres comunitários. Fornecemos-lhes matéria sobre diferentes armas

e ministramos cursos de manipulação de armas, embora não pudemos

fornecer-lhes armas, por razões óbvias. Estávamos sob vigilância per-

manente”.

Esses contatos embrionários entre Chávez e a Causa R nãoderam muitos resultados e, aparentemente, deixaram-no comdúvidas sobre sua capacidade de agir. Chávez temia que algunsdos grupos esquerdistas apostassem numa aliança tática com osmilitares, com o simples objetivo de chegar ao poder, enquantoos outros se sentiam profundamente incomodados com a idéia dese apoiar em militares para fomentar a revolução.

Qualquer discussão entre civis de esquerda e oficiais poten-cialmente revolucionários punha na mesa temas que geravamdiscórdia. A questão do papel que os civis desempenhariam nodesenvolvimento do golpe militar era menos importante que a desaber que tipo de participação teriam no eventual governo resul-tante. A discussão não era apenas acadêmica. Muitos dos mili-tantes de esquerda na Venezuela sentiram-se historicamente tra-ídos pelo que acontecera depois do levantamento cívico-militarorganizado pela Junta Patriótica, em 1958. Na época, as pesso-as tinham se sentido profundamente decepcionadas. Depois,muitos deles tomaram parte na guerrilha dos anos de 1960 paratentar recuperar o que pensavam que lhes fora roubado.

Depois do Caracazo, Douglas Bravo reatou o contato comChávez, embora Bravo garanta que Chávez logo começara a des-ligar-se dos “elementos revolucionários” com os quais estava emcontato. Depois de vários desentendimentos, o último encontroentre os dois homens ocorreu em outubro de 1991, quatro meses

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antes do golpe que Chávez daria em fevereiro de 1992. Tentaramaplainar suas diferenças, segundo o relato de Bravo:

“Fomos conversar sobre os planos da insurreição... Dizíamos que, pri-

meiro, devia haver uma ação civil, como a greve geral da Junta Patri-

ótica de 23 de janeiro. Depois viria a ação militar. Isso, para que a

sociedade civil tivesse uma participação ativa no movimento revolu-

cionário. Mas era precisamente o que Chávez não desejava. De maneira

alguma. Não queria. De maneira alguma. Chávez não deseja a partici-

pação da sociedade civil agindo de maneira concreta. Deseja que a

sociedade civil o aplauda, mas não que participe, o que é outra coisa”.

Bravo conta a história, razoavelmente prejudicial, de umincidente que ocorreu naquele tempo:

“Reúnem-se 20 ou 25 guerrilheiros, e Chávez traz um plano de ação

para um golpe militar. Mas o plano não tem nada a ver com o que leu

o companheiro de seu vilarejo e que havíamos discutido com ele em

relação a uma greve geral e à participação ativa do povo para gerar uma

ação de massas... De tal maneira que, quando anunciou esse plano,

apenas uma pessoa presente à reunião lhe disse: ‘José Maria – que era

seu nome na clandestinidade – vejo que aparecem todas as unidades

mobilizando-se. De Maracaibo, de Valencia, de Carora, de Barquisimeto,

de Yaracuy, de Maracay, de Caracas. Mas nós, os civis, onde estamos,

nesse plano?’ E Chávez, categoricamente: os civis atrapalham; depois

que estivermos no poder vamos chamá-los”.

Bravo garante que não se tratava apenas de uma tática deChávez, mas, sim, de uma concepção política.

Depois de romper relações com Bravo, Chávez continuourealizando reuniões com outros velhos revolucionários do PRV,

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especialmente com Kleber Ramírez, um ex-guerrilheiro que setornara assessor do tenente-coronel Arias Cárdenas. Os doishomens haviam se formado em um seminário católico e tinhammuito em comum. Ramírez estava implicado na preparação dogolpe de fevereiro de 1992, mas foi acusado, provavelmente semrazão, de trair involuntariamente o plano anterior para dar ogolpe em dezembro de 1991.

Um problema associado à estratégia de permitir a participaçãocivil em um golpe militar, problema que Chávez não havia perce-bido em etapas anteriores, o de que os revolucionários civis rara-mente possuírem a disciplina rigorosa que caracteriza as conspi-rações militares. Quanto maior a implicação de civis nos planos doMBR-200, maior o perigo de serem descobertos. Com o tempo,Chávez desiludiu-se com muitos dos velhos esquerdistas, e estescom aquele. Depois, refletiu sobre os efeitos negativos que a estra-tégia dos anos de 1960 tivera sobre o acontecer político do país:

“Um dos efeitos negativos da guerrilha na Venezuela foi o isolamento de

líderes políticos que de outra forma teriam contribuído para o desenvol-

vimento de outra mentalidade e de outra atitude no país. Muitos deles

permaneceram nas montanhas, no meio dos camponeses, nos bairros

pobres e no conjunto da sociedade. Dada tal situação histórica, tínhamos

de nos dedicar a transformar a consciência coletiva por meio da ação.

Tínhamos de preencher o vazio, convocando uma nova liderança...”

Essa análise, com sua acurada descrição de boa parte da es-querda venezuelana, diferenciava-se muito pouco da análise deAlfredo Maneiro e da Causa R. Embora Chávez delegasse pou-co à liderança da velha guerrilha, no que se refere à ação e aoapoio, não há dúvida de que ela exerceu influência sobre seupensamento.

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a madrugada da terça-feira, 4 de fevereiro de 1992, 5 uni-dades do Exército, dirigidas pelo tenente-coronel Hugo

Chávez, deslocaram-se por terra até Caracas. Naquele momento,Chávez comandava um batalhão de pára-quedistas aquarteladoem Maracay, cerca de oitenta quilômetros da capital. O objetivoprincipal dos insurrectos era deter o presidente Carlos AndrésPérez e prender todo o Alto Comando da Força Armada. Depoisseria dada ordem a todos os comandantes de guarnições do paíspara obedecer as orientações do novo governo.

Uma unidade atacou o Ministério da Defesa, outra avançoupara La Carlota, aeroporto militar situado dentro da cidade, en-quanto uma terceira se dirigiu para o Palácio de Miraflores.Chávez, por seu lado, dirigiu-se de carro para o Museu HistóricoMilitar, nas imediações do palácio, local previsto instalar osequipamentos de telecomunicações. Dali deveria dirigir a opera-ção de envergadura nacional que foi desencadeada.

O presidente Pérez estava no exterior, mas os conspiradores

4 DE FEVEREIRO DE 19926. A INTERVENÇÃO MILITAR DE CHÁVEZ

COMPANHEIROS: INFELIZMENTE, NO MOMENTO, OS OBJETIVOS A QUE NOSPROPUSEMOS NÃO PUDERAM SER ATINGIDOS NA CAPITAL... OS QUE ESTÁVA-MOS EM CARACAS NÃO PUDEMOS TOMAR O PODER.

TENENTE-CORONEL HUGO CHÁVEZ, 4 DE FEVEREIRO DE 1992.

N

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souberam, por contatos dentro do palácio, que ele voltaria naque-le dia, e que chegaria ao aeroporto de Maiquetía, próximo aoporto de La Guaira. “A idéia era deter Pérez no aeroporto” –explicou Chávez, algum tempo depois, a Agustín Blanco Muñoz– “e levá-lo pela rodovia ao Museu Histórico; nossos rapazeshaviam organizado uma operação-comando no aeroporto com opropósito de capturá-lo, mas não puderam entrar, pois estava sobvigilância desde o meio dia.”

Na realidade, a conspiração fora traída desde o dia anterior,embora as autoridades não estivessem a par dos detalhes da re-belião, nem de suas dimensões. O general Fernando OchoaAntich, ministro da Defesa, sabia que algo estava se tramando efora, em pessoa, reunir-se com o presidente Pérez em Maiquetía,organizando uma pequena força, composta de guardas nacionaise marinheiros.

“A segunda opção” – prossegue Chávez – “consistia em espe-rar no túnel da rodovia e bloqueá-lo com um carro incendiado,mas havia guardas demais e nossas forças eram insuficientes.Depois, nosso plano consistia em levá-lo para sua residência emLa Casona, que sofrera um violento ataque, enfrentado pelasforças da Disip. Pérez chegou a La Casona, mas minutos antes dese fazer o cerco, conseguiu sair e foi para o Palácio de Miraflores,que foi atacado pelos nossos tanques, mas ele escapou por umaporta sem vigilância.”

Hugo Chávez e os principais conspiradores do MBR-200 es-tavam certos que o ano de 1992 fosse propício para dar o golpede Estado. Chávez foi posto à frente do batalhão de pára-quedistas em Maracay em agosto de 1991; Jesús UrdanetaHernández e Joel Acosta Chirinos receberam seus regimentos umasemana antes. Francisco Arias Cárdenas, que trabalhava nosserviços de inteligência e mantivera um certo distanciamento no

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que se refere à conspiração, já havia recebido um batalhão deartilharia em Maracaibo, no ano anterior.

Chávez percebeu que as autoridades estavam a par de algu-mas de suas atividades, embora não de sua extensão. Em dezem-bro de 1989, ele e outros militares foram levados a um tribunalmilitar formado por generais que suspeitavam que eles estavampreparando um golpe; é bem verdade que nada ficou comprova-do. No entanto, Chávez estava consciente de que era preciso agircom cautela. No princípio, seu plano era fomentar um golpe emdezembro de 1991, mas, pelo visto, o plano foi denunciado, tal-vez por seus parceiros civis.

Em fevereiro de 1992, a estratégia combinada consistia emavançar em direção a Caracas para capturar o presidente e o AltoComando Militar. Se os conspiradores não conseguissem deter opresidente, seu movimento insurrecional teria nascido morto.Chávez sabia que cerca de 10% da Força Armada o apoiava semreservas. Mas, caso o presidente Pérez não fosse capturado nasprimeiras horas e permanecesse em liberdade para dar ordens aos40 comandantes de batalhão que se supunha lhe seriam fiéis, ogoverno venceria, irremediavelmente. Chávez relata os fatos daseguinte maneira:

“Estivemos em alerta desde quinta-feira, dia 30. Reunimo-nos com a

equipe da Força Aérea, Visconti, Reyes Reyes, e lembro-me de que no

domingo, 2 de fevereiro, quase à meia noite, telefonaram-me de

Miraflores, gente nossa, e disseram-me em código a data e a hora da

chegada de Pérez. Naquele momento, começamos a informar e a agilizar

a operação. Na segunda-feira amanhecemos mobilizando as pessoas”.

Chávez despediu-se de sua esposa e de seus filhos, deixandocom ela um cheque e dinheiro que retirara de sua conta bancá-

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ria em Maracay. À tarde da segunda-feira, 3 de fevereiro, osconspiradores controlavam os quartéis de Maracay e de Maracai-bo, assim como os de várias outras cidades, primeiro passo paraavançar em direção a Caracas.

Mas uma troca de mensagens telefônicas em código, comoutras bases militares, revelou que nem tudo ia bem:

“Veja, não posso.”

“A festa é hoje, mande-me o uísque.”

“Não, não podemos mandar o uísque, não conseguimos o dinheiro.”

“Bom, tudo bem, não me mande nada.”

Os conspiradores ignoravam que naquele momento já haviamsido traídos. Horas antes, na segunda-feira, ao meio dia, umcapitão da Academia Militar da Venezuela, designado por Chávezpara deter seus oficiais superiores, decidiu confessar ao diretor oque estava sendo tramado. O Alto Comando Militar sabia, pois,que enfrentava uma tentativa de golpe, embora não soubesse deonde viria. Tinha apenas 24 horas para investigar e para retomaro controle do país.

Às 8 horas da noite, a coluna de soldados de Chávez, a bor-do de uma frota de ônibus alugados, começou a deslocar-se deMaracay para Caracas. O próprio Chávez chegou a seu posto noMuseu Histórico Militar à uma da manhã. Esperava poder diri-gir as operações do interior do museu, mas teve uma desagradávelsurpresa. Suas tropas foram recebidas com tiros de metralhado-ra. Pela primeira vez, viu-se obrigado a reconhecer que seusplanos tinham sido traídos. Graças a sua hábil retórica, conseguiuentrar no museu, depois de persuadir o coronel de guarda de queseus homens eram um reforço para o lugar. Mas, ao entrar, per-cebeu que o material de comunicações que esperava utilizar não

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fora entregue. Sem contato com as unidades rebeldes no resto dopaís, estava sozinho e isolado.

Em outro lugar da capital, um grupo de soldados atacarao palácio presidencial, mas não conseguiu entrar. A situaçãodos conspiradores tornara-se crítica e se deteriorava. Os refor-ços foram bloqueados na periferia de Caracas; os generais daForça Aérea decidiram que era arriscado demais deixar seusaviões levantarem vôo, e um grupo civil, que teoricamente de-veria assumir o controle da televisão e das rádios, fracassouem sua tentativa. Os conspiradores enfrentavam um desastre.Depois do golpe, o papel dos civis provocou acirrada polêmi-ca entre os conspiradores militares. Aparentemente, em Valen-cia os civis que apoiavam o golpe chegaram ao quartel e re-ceberam armas e veículos, com os quais ajudaram a tomar acidade. Em Caracas e em Maracaibo isso não aconteceu. Se-gundo Chávez,

“Os civis nunca chegaram. Nas imediações de Miraflores, eu mantinha

um caminhão cheio de armas, destinadas aos civis. Embora seja ver-

dade que nós não chegamos a controlar os meios de comunicação e que,

portanto, não podíamos pedir apoio popular, também é verdade que

havia gente que sabia que a operação seria naquela noite, gente que

conhecia a contra-senha ‘Páez-Patria’, para pedir armas. Mas nunca

chegaram. A culpa não é só nossa. Há gente que sabia da operação com

antecedência e que simplesmente não veio”.

Na madrugada de 4 de fevereiro, o presidente Pérez apareceuna televisão. Anunciou a um país atemorizado que uma rebeliãomilitar ocorrera em Maracay, mas que estava sendo reprimida. Aover a matéria na televisão, Chávez compreendeu que seu golpefracassara. Às 9 horas da manhã, decidiu render-se.

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A essa altura, algo bem mais extraordinário aconteceu. Paraevitar maior derramamento de sangue, Chávez pediu que lhepermitissem falar pela televisão, com o objetivo de pedir aosoficiais que haviam tomado quartéis e cidades em outras partesdo país que se rendessem pacificamente. Oficiais como Francis-co Arias Cárdenas, em Maracaibo, ainda controlavam suas regi-ões, mas, já que a conspiração falhara em Caracas, não havianenhuma possibilidade de êxito em nível nacional.

O aparecimento de Chávez na televisão durou apenas um minuto.Sua conseqüência inesperada foi a de que passara a ser, de um ofi-cial totalmente desconhecido, uma figura nacional. Um minuto noar, em um momento de estrondosa derrota pessoal, transformou-oem uma espécie de salvador da pátria em potencial.

Sua mensagem televisiva era destinada, sobretudo, ao regi-mento de páara-quedistas de Aragua e à brigada de tanques deValencia. As duas forças haviam se apoderado de suas respecti-vas cidades e não davam a impressão de querer render-se. Chávezpercebeu que, se não o fizessem, haveria derramamento de san-gue. Falou confiante e sem anotações.

“Antes de mais nada, quero dizer ‘bom dia’ a todo o povo da Venezuela,

mas esta mensagem bolivariana é dirigida, especialmente, aos valen-

tes soldados do regimento de pára-quedistas de Aragua e ao regimen-

to de tanques de Valencia.

Companheiros: infelizmente, no momento, os objetivos a que nos

propusemos não puderam ser atingidos na capital... os que estávamos

em Caracas não pudemos tomar o poder. Aí onde vocês estão, traba-

lharam bem, mas agora é tempo de refletir; novas possibilidades sur-

girão e o país terá a oportunidade de avançar definitivamente para um

futuro melhor.

Assim, pois, ouçam o que tenho para dizer: ouçam o comandante

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Chávez, que lhes envia esta mensagem, e, por favor, pensem bem.

Baixem as armas, pois é certo que os objetivos que nos havíamos pro-

posto em nível nacional não estão a nosso alcance.

Companheiros, ouçam esta mensagem de solidariedade. Agradeço sua

lealdade, sua coragem e sua generosidade desinteressada; diante do país

e diante de vocês mesmos, assumo pessoalmente a responsabilidade por

este levante militar. Obrigado.”

Duas curtas frases desta mensagem televisionada causaramespecial impacto. Nunca ninguém, na Venezuela, ouvira umpolítico pedir desculpas por alguma coisa. Apesar dos erros po-líticos e econômicos dos últimos anos – desvalorização da mo-eda, colapso do sistema bancário, processos por corrupção, de-cadência econômica – nenhum daqueles que detinham o poderjamais havia se desculpado, ou sequer aceito parte da responsa-bilidade. E, agora, havia um oficial que dizia assumir a respon-sabilidade por algo que fracassara. Era algo completamente novo.

A outra expressão que cativou a imaginação popular foi “nomomento”, já que foi interpretada de forma otimista pela maio-ria, como um sinal de que Chávez voltaria à luta, posteriormen-te. Seu projeto revolucionário de derrubar o governo se frustra-ra, mas reviveria. O próprio Chávez afirma que as palavras quepronunciou saíram no momento; não tinha nenhum motivo es-pecial para dizer “no momento”. Nos anos seguintes, essa frasese converteria em sua marca de fábrica, na promessa implícita deque voltaria.

Depois do golpe, com as lideranças da conspiração atrás dasgrades, os políticos do antigo regime voltaram a um país que so-frera mudanças dramáticas: a instituição monolítica da ForçaArmada estava agora profundamente dividida, e a grande maio-ria das pessoas se alinhava decididamente com o autor do golpe.

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Os políticos tinham de ajustar seu discurso à nova realidade.Durante uma sessão extraordinária do Congresso, convocadaimediatamente depois do golpe, o ex-presidente Rafael Calderapronunciou um imponente discurso que esteve a ponto de garan-tir-lhe apoio. Sem dúvida, assim foi interpretado pelas pessoasque o reelegeram presidente 2 anos mais tarde, em dezembro de1993, e que o consideravam a única figura política importanteque entendera o sentimento do povo.

O discurso de Caldera culpou o Presidente Pérez e suas polí-ticas neoliberais pelas dificuldades que vivia a Força Armada.Disse muitas verdades.

“Devemos reconhecer, magoa-nos profundamente, mas é verdade: não

sentimos na classe popular, no conjunto de venezuelanos não políti-

cos, e até nos militantes de partidos políticos, esse fervor, essa reação

entusiasta, imediata, decidida, abnegada, disposta a tudo diante da

ameaça contra a ordem constitucional. E isso nos obriga a aprofundar

a análise da situação e de suas causas.

Nestes momentos, devemos dar uma resposta ao povo e tenho a con-

vicção de que não será a repetição dos mesmos discursos que há trin-

ta anos são pronunciados cada vez que há algum levante a que assis-

timos pela televisão, o que responde à inquietação, ao sentimento, à

preocupação popular. O país espera outra mensagem. Gostaria de di-

zer desta tribuna, com toda a responsabilidade, ao senhor presidente

da República, que cabe a ele, principalmente, embora também a todos,

a tarefa de enfrentar imediatamente as profundas reformas que o país

reclama. É difícil pedir ao povo que se sacrifique pela liberdade e pela

democracia, quando ele não acredita que a liberdade e a democracia

sejam capazes de lhe dar o que comer e de impedir o exorbitante au-

mento do custo de vida, quando não se foi capaz de pôr fim definiti-

vamente ao terrível mal da corrupção, que aos olhos de todos está

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corroendo diariamente as instituições. Esta situação não pode ser es-

condida. O golpe militar é censurável e condenável, sem dúvida, mas

seria ingênuo pensar que se trata tão-somente de uma aventura de uns

quantos ambiciosos que, por sua conta, se lançaram a ela precipitada-

mente, não se dando conta daquilo em que estavam se metendo. Há um

contexto, há uma questão de fundo, há uma grave situação no país e,

se essa situação não for enfrentada, o destino nos reserva muitas e

gravíssimas preocupações.”

Caldera não foi o único a pronunciar um discurso que foiinterpretado como uma mensagem codificada de apoio ao gol-pe. Seu discurso foi seguido pelo de Aristóbulo Istúriz, um ex-dirigente do sindicato de professores e deputado pela Causa R.Assim como Caldera, Istúriz recebeu a recompensa do eleitora-do por suas opiniões, visto que foi eleito prefeito de Caracas (e,depois, vice-presidente, apoiando Chávez, da Assembléia Cons-tituinte de 1999). Quatorze soldados morreram durante o golpe,50 militares e cerca de 80 civis ficaram feridos no tiroteio. Maisde mil soldados foram presos.

Durante vários meses travou-se um intenso debate sobre opapel desempenhado pelo ministro da Defesa, Fernando OchoaAntich. Chávez o conhecia há muitos anos e houve rumores deque estaria vinculado ao golpe. Isso nunca ficou provado, mas seacreditava que reagira lentamente diante de oficiais cujos planosconspiratórios conhecia. No incestuoso mundo da elite políticavenezuelana, sabia-se que seu irmão, Enrique Ochoa Antich,pertencia à esquerda. Enrique era um membro destacado, e fu-turo secretário-geral do MAS, o partido de esquerda que poriatodo o seu peso na campanha eleitoral de Chávez, em 1998.Homem decente, embora fanfarrão, Fernando Ochoa Antich se-ria transferido do Ministério da Defesa para o Ministério das

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Relações Exteriores e, depois, confinado como embaixador noMéxico. Mas, em fevereiro de 1992, tinha a responsabilidade deinvestigar o estado da Força Armada. Por que ocorrera um gol-pe que quase tivera êxito? Que medidas era preciso tomar paraevitar que ocorresse de novo?

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om o tenente-coronel Chávez atrás das grades, depois de sua“intervenção militar”, de fevereiro de 1992, a segunda ten-

tativa de golpe, meses depois, no mesmo ano, parecia quase oprolongamento do primeiro, apesar de ter sido muito mais violenta.No dia 27 de novembro de 1992, fazia-se um esforço suplemen-tar para capturar o presidente Pérez, com o Palácio de Mirafloresbombardeado por via aérea; Caracas e Maracay foram cenários deintensos combates, em que mais de 170 pessoas morreram.

O organizador e chefe do golpe foi o vice-almirante da Ma-rinha, Hernán Grüber Odremán, com a ajuda de FranciscoVisconti Osório, da Força Aérea, um membro da conspiraçãobolivariana cujos planos haviam fracassado em fevereiro. Os doisoficiais iriam se envolver na política durante o governo deChávez, em 1999; Grüber, como governador do Distrito Federal,e Visconti, como membro da Assembléia Constituinte.

O vice-almirante Grüber não era um rebelde nato. Nascido emUpata, em 17 de fevereiro de 1940, é descendente de uma famí-

27 DE NOVEMBRO DE 19927. O GOLPE DO VICE-ALMIRANTE HERNÁN GRÜBER

COMO É POSSÍVEL QUE A UNIÃO SOVIÉTICA TENHA DESTITUÍDO O MINISTRO DADEFESA E OUTROS ALTOS OFICIAIS, QUANDO UM JOVEM PILOTO ALEMÃOATERRISSOU SEU AVIÃO NA PRAÇA VERMELHA, ENQUANTO NA VENEZUELA OCOMANDANTE DO EXÉRCITO PERMANECE EM SEU CARGO DEPOIS QUE AMETADE DE SUAS TROPAS PARTICIPOU DE UMA REBELIÃO, E TODO O MUNDOFAZ DE CONTA QUE NÃO ACONTECEU NADA?

VICE-ALMIRANTE HERNÁN GRÜBER, MARÇO DE 1992.

C

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lia de imigrantes alemães de velha data, proprietária de terras noEstado de Bolívar, que outrora pertenceram às missões do Caroni.Alistou-se na Marinha em 1958, enquanto seu irmão Robertofazia o mesmo no Exército, chegando a general. Grüber partici-pou da eliminação das guerrilhas nos Estados de Lara eAnzoátegui, nos anos de 1960, ocupando depois posições decomando na área de fronteira, especificamente em Puerto Páez,na fronteira com a Colômbia.

Depois do golpe de Chávez, houve muitas discussões no go-verno e na Força Armada, sobre o que poderia suceder no futu-ro. Quem estava por trás da conspiração? Até que ponto havia seespalhado? Que medidas seria preciso adotar para deter a desa-gregação?

Em meados de março de 1992, cerca de seis semanas depois dogolpe, o general Ochoa, ministro da Defesa, convocou o vice-al-mirante Grüber para uma conversa particular. Esteve tambémpresente outro oficial de alta patente na Marinha, o vice-almiranteLuis Enrique Cabrera Aguirre. O assunto em pauta era a onda dedescontentamento que afetava a Força Armada. Em particular, umdos motivos do descontentamento era a forma como os oficiaiseram promovidos às patentes superiores, com apadrinhamentopolítico, sem levar em conta os procedimentos estabelecidos.

A versão da reunião, descrita por Grüber, destinava-se expli-citamente a expressar sua simpatia pela causa, mas, ainda assim,presta contas, friamente, de até que ponto chegava o desconten-tamento na Força Armada, e da forma extrovertida como osoficiais superiores estavam dispostos a manifestar suas preocu-pações a seus indecisos patrões políticos.

O general Ochoa manifestou diante dos dois almirantes suapreocupação pela situação da Força Armada. Em sua opinião, asituação “ainda era bastante delicada”. Ouvira dizer “que havia muito

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descontentamento entre os jovens oficiais de nível médio” e queriaconhecer a opinião dos dois almirantes com relação ao assunto.

“Veja” – respondeu Cabrera – “deve entender que os oficiaissuperiores perderam a credibilidade e a confiança. Assim, semmais nem menos. Os subalternos já não acreditam em seus ge-nerais nem em seus coronéis.”

“– Como pode estar tão certo? – perguntou Ochoa.

– Coloca todos no mesmo saco?

– O que se pode esperar – respondeu Cabrera – de generais e de coronéis

que foram promovidos por serem apadrinhados por algum senador?

– E, então, o que se há de fazer? – perguntou Ochoa, dirigindo o olhar

para Grüber.

– Quer que lhe diga? – respondeu energicamente Grüber (é óbvio que

se tratava de seu próprio e colorido relato). – Deveria ser pedida a

renúncia de todo o Alto Comando. Eles deveriam ter baixa imediata-

mente, sendo substituídos por oficiais com verdadeira aptidão militar.

– Mas isso nos levaria ao caos – objetou Ochoa.

– Veja – prosseguiu Grüber – o caos será pior se continuar a crescer o

descontentamento dos militares. Como é possível que a União Sovié-

tica tenha destituído o ministro da Defesa e outros altos oficiais, quando

um jovem piloto alemão aterrissou seu avião na Praça Vermelha, en-

quanto na Venezuela o comandante do Exército permanece em seu

cargo depois que a metade de suas tropas participou de uma rebelião,

e todo o mundo faz de conta que não aconteceu nada?”

Era uma boa pergunta, mas o general Ochoa não tomou pro-vidências. Não podia nem varrer o Alto Comando, nem discipli-nar os jovens oficiais que claramente preparavam outro golpe.Como um coelho cego pelas luzes, o governo inteiro estava pa-ralisado, incapaz de agir.

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Ochoa conseguiu encaminhar um estudo acadêmico sobre asituação na Força Armada. Queria ter uma idéia clara das dimen-sões da dissidência. Tão importante tarefa foi confiada ao vice-almirante Cabrera e uma equipe de pesquisadores universitáriosfoi colocada a sua disposição. Entrevistaram um grande núme-ro de importantes políticos e generais, tanto na reserva quantona ativa, como também enviaram questionários a cinco milhomens nos principais quartéis do país: Aragua, Táchira, Zulia,Monagas e Caracas.

Seu relatório, assinado por Cabrera, ficou pronto em meadosde julho. Revelava a existência de cinco queixas mais importan-tes sobre as condições da Força Armada e o estado geral do país,assim como fazia um certo número de recomendações. Algumasdas queixas relacionavam-se às condições de trabalho: o inadequa-do atendimento à saúde na Força Armada; a ineficácia daseguridade social; e a pouca compreensão do sistema de promo-ções e do provimento de compensações em decorrência da falta depromoções. Outras queixas indicavam um descontentamento maisgeral (e, por conseguinte, menos remediável): a falta de liderançae a cultura da corrupção, tanto no mundo político quanto nomilitar, que havia se infiltrado no país até os mais altos níveis.

O chefe da equipe de generais, general Ivan Jiménez Sánchez,recebeu e analisou o relatório. Até prometeu criar uma comissãoque cuidaria da implementação de suas recomendações. Inevita-velmente, talvez devido ao estado de desordem política no país,o relatório foi engavetado.

Em agosto de 1992, não tendo garantias de que as reformasque incitavam ao golpe seriam postas em práticas, e sabendo quese fazia caso omisso do relatório de julho, a facção do vice-al-mirante Grüber começou a preparar um novo golpe de Estado.Acompanhavam-no na conspiração Cabrera, da Marinha,

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Visconti, da Força Aérea, e vários contatos civis, principalmen-te da Causa R. A facção de Grüber também teve o apoio dosmembros sobreviventes do MBR-200, de Chávez, dirigido por estede sua cela na prisão de Yare. Autodenominaram-se Movimen-to 5 de Julho, em homenagem à luta pela independência.

Ao que parece, perdeu-se mais tempo planejando o que acon-teceria depois do eventual êxito da insurreição, do que pensan-do em como conseguir que esta fosse mais eficaz do que a ante-rior. O plano político inicial era formar um conselho de Estado,composto por civis e militares, com um presidente civil, queduraria um ano, reorganizando o país. O modelo era a JuntaPatriótica de 1958, embora também conhecessem as conseqüên-cias do golpe de Rómulo Betancourt contra o general IsaíasMedina Angarita, em 18 de outubro de 1945, quando uma Jun-ta Revolucionária de governo instalou-se no Palácio deMiraflores.

Seus planos estiveram sujeitos a numerosos atrasos e, com opassar das semanas, vários rebeldes-chave pareciam perder oentusiasmo. As eleições para prefeitos e governadores seriamrealizadas em dezembro, e os rebeldes tinham consciência de queseus atos seriam mal interpretados se o golpe ocorresse duranteou depois delas. Decidiram que deveriam agir com rapidez: emnovembro. O vice-almirante Grüber, cujo pseudônimo era “JúlioCésar”, descreve, em suas memórias, como foi tomada a decisãode “atravessar o Rubicão”.

Em 25 de novembro, ele deu os toques finais na preparação,gravando um vídeo do discurso que planejava transmitir à na-ção no dia do golpe. Ensaiou diante das câmaras e os técnicosmostraram-se satisfeitos com o resultado.

Dois dias depois, na manhã de 27 de novembro, chegou a seuquartel-general para presidir o que pensava que seria um golpe bem

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organizado. Mas, como sucedera anteriormente com o golpe deChávez, houve erros e omissões graves, já que alguns participan-tes importantes não cumpriram os compromissos assumidos. O piorde tudo foi a falha dos equipamentos de telecomunicações. Assimcomo Chávez anteriormente, Grüber não dispôs de meios para secomunicar com seus oficiais em outras partes do país. Ele tambémestava fadado ao isolamento.

Houve uma diferença. Desta vez, os conspiradores consegui-ram tomar um canal de televisão, e Grüber depositou suas espe-ranças em um levante civil. Se seu vídeo, que pedia apoio a seuprograma de reconstrução nacional, chegasse a ser divulgado nastelas da televisão em todo o país, ele esperava, ansiosamente, queas massas se levantariam, apoiando sua rebelião.

O desastre tornou a ocorrer, e ninguém parece saber comoaconteceu. Em lugar das comedidas palavras gravadas do vice-almirante, anunciando um golpe de Estado e fazendo um chama-do ao povo, uma série de imagens de conflitos passou pelas te-las de televisão. Apareceram homens mascarados, somando-selogo a uma onda de saques que fazia pensar no Caracazo; oca-sionalmente, ouvia-se a retórica incendiada do recluso tenente-coronel Chávez.

Parece que houve uma troca de vídeos, ou talvez o operadortenha introduzido a fita errada na máquina. Depois, ninguémassumiu a responsabilidade por esse erro. A nação inteira, dian-te de suas telas, enquanto se preparava para ir trabalhar, não sabiase devia rir ou chorar. O certo é que não havia a mínima inten-ção de sair para as ruas, apoiando uma revolução organizada comtanta incompetência.

Horas depois, na mesma manhã, tal como já fizera em feve-reiro, o presidente Pérez apareceu nas telas para anunciar queestava tudo bem; ao meio dia o vice-almirante rendeu-se. Nesse

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preciso instante, um avião militar rompeu a barreira do som aosobrevoar Caracas, provocando um estrondo. O vídeo de Grüber,que nunca foi ao ar, falava desse sobrevôo como o sinal para queo povo fosse para as ruas. Naquele momento, ninguém se mexeu.Visconti, lucidamente, embarcou seus conspiradores da ForçaAérea em um avião de carga Hércules e atravessou a Colômbia,buscando asilo no Peru. Nas prisões de Yare e San Carlos, umnovo grupo de conspiradores militares uniu-se a Chávez atrás dasgrades.

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tenente-coronel Chávez e o vice-almirante Grüber nãoagiram isoladamente. Os planejadores das duas tentativas

de golpe de Estado de 1992 haviam previsto uma mudança re-volucionária de governo, realizada pelos militares, aliados agrupos civis. Haviam se voltado principalmente para as forças daesquerda venezuelana, que possuíam uma longa tradição deestímulo e participação em subversões militares. A maioria dastentativas de golpe no último meio século, especialmente em 1945(contra Medina Angarita), em 1958 (contra Pérez Jiménez) e em1962 (contra Rómulo Betancourt), contou com a participação decivis.

Em função do Caracazo de 1989, um grupo de ativistas civis,desejosos de aproveitar a explosão popular, tentou retomar essatradição. Assim, chegaram a formar uma nova Frente Patriótica,um instrumento político que floresce episodicamente na históriavenezuelana quando gente de boa vontade de todo o espectropolítico une-se, nos momentos críticos, para tentar mudar o curso

8. LUIS MIQUILENA E A FRENTE PATRIÓTICADE 1989

UMA FRENTE PATRIÓTICA NÃO SE INVENTA; NÃO SE PODE REUNIRCEM PERSONALIDADES EMINENTES E DIZER: “SOMOS UMA FRENTE”.NÃO ACREDITO NISSO.

HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM AGOSTO DE 1995.

O

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dos acontecimentos. Uma Frente Patriótica desempenhou umpapel importante na queda de Pérez Jiménez em 1958 e, em umpassado mais remoto, em 1850, uma Frente similar foi criada, nostempos de Ezequiel Zamora.

A elite venezuelana gosta de falar de seu país como de uma“democracia”, ainda que isso seja algo relativamente novo. AVenezuela não esteve alheia aos governos militares – foi gover-nada por ditadores militares durante a primeira metade do século20 e também durante boa parte do século 19. Com uma históriacomo essa, é pouco surpreendente que os políticos procuremenvolver os militares em seus planos; a esquerda não é umaexceção. “Os venezuelanos estão tão acostumados a fazer doExército o árbitro de suas lutas políticas”, escreveu Rafael Calderaem 1979, “que em qualquer momento os grupos mais variados,com os objetivos mais diversos, tentam envolver o Exército emnovas aventuras, para mudar nossa realidade política”

Durante a II Guerra Mundial, o governo do general IsaíasMedina Angarita contou com o apoio do PCV e o golpe de Esta-do que derrubou esse governo, em 1945, foi organizado porpolíticos civis da AD, inclusive Rómulo Betancourt, e, em menormedida, Carlos Andrés Pérez. Depois, em 1958, o governo mili-tar foi derrubado pela Frente Patriótica do momento, a JuntaPatriótica, um grupo de esquerda que conspirou junto com setoresdo Exército. Naquela época, a esquerda proporcionou um calo-roso apoio à candidatura a presidente do almirante WolfgangLarrazabal. Finalmente, em 1962, durante a campanha guerrilhei-ra contra o regime de Betancourt, os civis esquerdistas estiveramintimamente vinculados a duas importantes revoltas militares, emCarúpano e Puerto Cabello.

A nova Frente Patriótica que se formou depois do Caracazo,em 1989, era presidida por Luis Miquilena, o líder do sindicato

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de motoristas de ônibus de Caracas na década de 1940, e um dosgrandes sobreviventes da esquerda venezuelana. Depois, seria oprincipal assessor político do tenente-coronel Chávez e, maistarde, com mais de 80 anos, o presidente da Assembléia Consti-tuinte de 1999.

Quem participou da Frente compartilhava o interesse pelacriação de uma aliança política entre civis e militares. Grandeparte do debate interno que se travou na Venezuela desde oadvento do governo Chávez girou em torno do legado da rela-ção entre civis e militares. Quando o criticam quanto ao fato deque seu governo tem suas origens em um golpe militar fracassa-do, ainda que tenha sido eleito presidente anos mais tarde, Chávezlembra que o governo progressista do general Medina Angarita,por quem sente certo afeto, foi derrubado por um golpe organi-zado por Betancourt e pelo partido AD, um grupo político peloqual sempre manifestou seu desprezo. Betancourt é lembrado comentusiasmo por seus partidários, como “o pai da democracia”,ainda que seu caminho para o poder tenha passado por um gol-pe militar.

Luis Miquilena é um testemunho vivo dos debates daquelaépoca. “Havia um certo processo de desenvolvimento político naVenezuela” – lembra – “que começou a substituição da ditadurade Juan Vicente Gómez pelo general Eleazar Lopez Contreras; estee Medina Angarita, que abriu as portas da democracia, obtive-ram avanços consideráveis.”

O general Medina Angarita governou a Venezuela durante osanos do auge provocado pela II Guerra Mundial, quando os ali-ados faziam o impossível para garantir o fornecimento do petró-leo venezuelano. Obteve importantes concessões das empresaspetrolíferas estrangeiras e contou com o apoio do PCV. Parte daesquerda ainda se lembra de forma positiva do resultado de seu

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governo. No entanto, suas políticas progressistas nunca tiveram,em outros aspectos, o apoio dos funcionários das empresas depetróleo, visto que as atividades sindicais eram cerceadas, paraque, em tempos de guerra, as greves não interferissem na produ-ção. A AD, ao defender os direitos dos trabalhadores, transfor-mou-se rapidamente na força política dominante nos campos depetróleo. Rómulo Betancourt, fundador da AD, e alguns milita-res deram um golpe, em outubro de 1945, pois temiam que oscomunistas se aliassem ao sucessor designado de MedinaAngarita.

Miquilena, que descreve a si mesmo como “um lutador soci-al que tomou parte na luta sindical”, adotou uma atitude bene-volente com relação a Medina Angarita, ainda que, diferentemen-te dos comunistas ortodoxos, não apoiasse ativamente essegoverno. Mas quando esse governo foi ameaçado, no entanto, elecombateu o levante militar: “Desempenhei meu papel, em apoioa Medina, contra o levante da AD, para impedir que essa açãomilitar triunfasse”.

Medina Angarita foi derrubado. Porém, como diz Miquilena,o golpe acabou se transformando em uma faca de dois gumespara seus organizadores. Betancourt e a AD (assim como seupresidente, Rómulo Gallegos) sabotaram os trabalhos do gover-no golpista por um curto período de três anos, de 1945 a 1948,mas seu governo foi, por sua vez, derrubado em 1948 por PérezJiménez, que governaria por toda uma década.* “A AD viu-seobrigada a arcar com as conseqüências desastrosas de uma dita-dura que durou dez anos e que acabou com todas as liberdadescivis”.

* Qualquer particular que se dispõe a transportar passageiros em seu próprio veículomediante pagamento da passagem, como complemento de renda. Meio de transpor-te muito comum em pequenas cidades e entre cidades venezuelanas.

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Para se entender a História recente, entender esses caminhosobscuros do passado são quase indispensáveis. A trajetória deLuis Miquilena, político com uma longa história de dissidência,é particularmente esclarecedora, visto ser o homem que ajudoua reviver a tradição de nacionalismo socialista que constitui onúcleo do projeto de Hugo Chávez. Em 1944, quando ainda eraum líder sindicalista, Miquilena fez parte de um grupo comunistaantiestalinista, conhecido como os Machamiques, em um mo-mento em que o PCV ortodoxo somava forças com MedinaAngarita. Isso ocorreu no final da II Guerra Mundial, seguindoinstruções dos comunistas estadunidenses liderados por EarlBrowder (e, por extensão, de Joseph Stalin, aliado dos EstadosUnidos). Moscou não queria ações que pudessem inquietar seualiado ocidental.

Miquilena e os irmãos Machado, Gustavo e Eduardo, ambos co-munistas, opunham-se a essa posição (daí o nome deMachamiques). Pensavam que a política devia ser decidida naVenezuela, não em Moscou – e menos ainda nos Estados Unidos.Em 1946, Miquilena ajudou a fundar um novo partido comunistaantiestalinista, chamado Partido Comunista Venezuelano Unitário.No princípio, esse partido foi conhecido como “os Negros” porque,na distribuição de cores eleitorais (fundamental para uma popu-lação em boa parte analfabeta), o PCV tinha a cor vermelha.

O principal organizador dos “negros”, criador e pioneiro donacionalismo socialista na Venezuela, foi Salvador de la Plaza,um desconhecido professor de História da Universidade Centralda Venezuela, que morreu nos anos de 1970, com 74 anos deidade. Essa figura esquecida, conhecida por seus estudantes comoo “padre vermelho”, é um dos autores intelectuais do projeto deHugo Chávez. É, pois, impossível compreender as raízes históri-cas do êxito de Chávez sem fazer referência ao poderoso comu-

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nismo antiestalinista de Miquilena e de la Plaza, que influenci-aria amplos setores da esquerda, a partir dos anos de 1940.Miquilena representa o mais importante porta-voz dessa tradi-ção, compartilhada por outros membros da Frente Patriótica de1989.

Além de Miquilena, o núcleo principal da Frente era forma-do por Douglas Bravo, o líder guerrilheiro dos anos de 1960;Manuel Quijada, um advogado envolvido nas rebeliões militaresde 1962; Lino Martíinez, outro ex-guerrilheiro, que seria, depois,ministro de Chávez; e o tenente-coronel William Izarra, marxistarevolucionário que se retirara recentemente da Força Aérea.

A Frente publicou uma série de panfletos chamados “Trêsdécadas de frustração”, que causaram certo impacto na impren-sa. Entre suas propostas mais concretas, estava a convocação deuma Assembléia Constituinte, que redigiria uma nova Constitui-ção, recomendação que viria a ser um dos elementos essenciaisdo programa político de Chávez. No entanto, os membros daFrente provinham de diversos horizontes e estavam muito divi-didos politicamente para que ela durasse até o final do ano.Chávez logo a qualificou de “natimorta”. “Uma Frente Patrióticanão pode ser inventada; não é possível reunir cem personalida-des eminentes e dizer: ‘Somos uma Frente’. Não acredito nisso”.

Ainda assim, a Frente de 1989 foi um fato importante para osanos seguintes, já que vários de seus membros se tornariam ele-mentos fundamentais do governo de Chávez, em 1999. PedroDuno, professor de Filosofia na Universidade Central daVenezuela, e desde sempre uma figura influente na esquerda, foium dos esquerdistas civis envolvidos. Duno, que pertencia a umafamília de militares, manteve seus contatos com os militaresdurante anos. Faleceu em novembro de 1998, logo após ter sidoeleito senador pelo Estado de Miranda, na bancada dos aliados

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de Chávez. Quando escrevia em Últimas Notícias, em 23 de ju-nho de 1991, dois anos depois do Caracazo, preparava o terrenointelectual para um novo golpe:

“A Venezuela é um país em estado de colapso avançado, cujas carac-

terísticas de corrupção e pilhagem, incompetência, irresponsabilidade

e cinismo definem o sombrio panorama do presente. Nesta situação de

abandono sugere-se que a Força Armada intervenha. Já que é impos-

sível utilizar a força do argumento racional, ou da lei, dos direitos, ou

da Constituição, porque o Estado e o governo não dão garantias, tor-

na-se justificável usar o argumento racional da força, a razão última”.

Apenas seis meses mais tarde, em 4 de fevereiro de 1992, otenente-coronel Chávez tomou-o ao pé da letra.

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á mais de um quarto de século, em 1974, fui visitar o generalOmar Torrijos, o militar que governava o Panamá. Fui até

sua residência de praia, na costa do Pacífico, e passamos o dia in-teiro conversando. Éramos apenas 4: o chefe do serviço secreto,o reitor da universidade, Torrijos e eu. O general passou a maiorparte do dia deitado em sua rede, à sombra, em um pátio comvista para o mar, às vezes conversador, às vezes taciturno. Amaior parte do tempo falamos dos camponeses e da ReformaAgrária, e do que acontecera nas áreas rurais da China e do Chile,do Vietnã, Peru e Cuba. Torrijos era um grande admirador deFidel, mas dizia que não estava de acordo com tudo o que seestava fazendo lá. “Deviam ter deixado aos camponeses umpedacinho de terra que pudessem chamar de sua”.

Como Graham Greene haveria de constatar, era difícil nãoficar cativado por essa figura encantadora, a antítese completado oficial latino-americano com óculos escuros. Torrijos tomouo poder em 1968 e governaria o Panamá durante 13 anos, até sua

9. TORRIJOS E VELASCO, TRADIÇÃO DA REBELIÃOMILITAR NA AMÉRICA LATINA

UMA GERAÇÃO DE JOVENS OFICIAIS... DECIDIU NÃO APENAS ORGANIZAR UMGOLPE DE ESTADO, MAS TAMBÉM VARRER TODO O SISTEMA DE “DEMOCRA-CIA” APARENTE DO PAÍS. AS PESSOAS TINHAM SE ACOSTUMADO A MISTURAR APOLÍTICA COM SUA ATIVIDADE ECONÔMICA, USANDO LIBERDADE DEMOCRÁTI-CA DA MESMA FORMA COMO AS MULHERES USAM SEUS COSMÉTICOS.

GENERAL OMAR TORRIJOS, AGOSTO DE 1975.

H

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morte em um acidente aéreo, em 1981. Tinha um programa ra-dical de reformas, relacionadas principalmente com a zona doCanal, pedaço do território panamenho que os estadunidensesexpropriaram em 1903. Na seqüência, a zona foi administradadiretamente pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos,depois pelo Pentágono, sendo utilizada para construir um canalinteroceânico e inumeráveis bases militares. Mas o programa deTorrijos ia além da temática nacionalista do canal. Rebelou-secontra a corrupção da elite política e implantou uma ReformaAgrária em benefício dos camponeses.

A história da América Latina, nas décadas de 1970 e 1980, foitão marcada pelas ditaduras militares de direita que é fácil esque-cer a existência de outra tradição, já que, em várias oportunida-des, tanto no século 19, quanto no século 20, oficiais radicaisergueram a bandeira dos interesses do povo, dispostos a lutar emseu nome contra os latifundiários locais ou os

capitalistas estrangeiros: Manuel Izidro Belzú, na Bolívia,Ezequiel Zamora, na Venezuela; Luiz Carlos Prestes, no Brasil;Marmaduke Grove, no Chile. A lista é longa e fascinante.

Quando membros da velha elite política da Venezuela reú-nem-se para debater o fenômeno Chávez, gostam de analisarexemplos de países onde o domínio militar foi imposto à soci-edade civil por oficiais nacionalistas de esquerda – tanto naAmérica Latina quanto em outros lugares. Seus exemplos es-trangeiros preferidos são Kemal Ataturk, na Turquia, e GamalAbdul Nasser, no Egito, com referências ocasionais a Charles deGaulle, na França. Mais perto de casa, os “suspeitos habituais”considerados são Omar Torrijos, no Panamá, Juan VelascoAlvarado, no Peru, e Juan Domingo Perón, na Argentina. Sem-pre se diz que o tenente-coronel Chávez vai tomar um dessescaminhos.

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Embora a democracia, em detrimento do domínio militar,tenha se transformado na prática dominante na América Latina,durante os anos de 1990, nem sempre foi assim. Existem poucosperíodos na História do continente durante os quais os militaresnão tenham desempenhado o papel principal, ainda que a mai-oria tenha sua origem na direita, e não na esquerda.

As elites governantes do continente sempre mantiveramposições ambíguas em relação a suas Forças Armadas. Por umlado, os militares são lembrados como baluartes essenciais ehistóricos contra os indígenas rebeldes, cujas terras foramconfiscadas por colonos através dos séculos. Nesse contexto, osoldado faz, às vezes, de salvador da pátria, a quem os descen-dentes dos colonos, supõe-se, devem manifestar sua eterna gra-tidão. Visto que os descendentes dos povos indígenas povoamagora imensas e explosivas periferias [de grandes cidades] docontinente, e continuam sendo uma ameaça semelhante, embo-ra diferente, para os herdeiros da classe colonial, a gratidão emrelação às Forças Armadas está na ordem do dia.

Do outro lado, embora os militares sejam úteis ou até indis-pensáveis para as elites governantes, também são consideradoscomo pertencentes a uma classe social inferior, pela qual se tempouca consideração. Os oficiais são, freqüentemente, alvo depiadas sem fim. Os excessos cometidos pelas ditaduras militaresdos anos de 1970 e 1980 mancharam o nome de todos os mili-tares, e as elites de hoje, tanto as tradicionais quanto as quesaíram recentemente das universidades, tendem a considerar osmilitares como um mal necessário, que é melhor serem mantidosreclusos em seus quartéis. Essa visão foi reforçada pelo governodos Estados Unidos, na década de 90, em total contradição comsuas políticas anteriores, que favoreciam ditaduras rígidas emrelação a regimes civis irrelevantes.

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Os estadunidenses temiam que os governos democráticos fos-sem dominados por nacionalistas, esquerdistas ou socialdemo-cratas pouco preocupados com os interesses econômicos ou estra-tégicos dos Estados Unidos. Ao longo dos anos de 1970, e duranteos anos de 1980, os Estados Unidos viam com benevolência grandeparte da América Latina cair sob o domínio militar, favorecendoo processo. O modelo surgido no Brasil, em 1964, foi seguido peloChile, em setembro de 1973, quando o general Augusto Pinochetderrubou o governo eleito de Salvador Allende. A tradição perpe-tuou-se na Bolívia e no Uruguai, nos anos de 1970, e chegou aoauge, em março de 1976, com o golpe do general Jorge Videla, naArgentina, que derrubou o governo de María Estela Martínez, viúvade Perón.

Embora esses governos tenham se distinguido por seu fla-grante desrespeito aos direitos humanos, os generais gozaram doapoio irrestrito do governo de Washington. Sua firme posição deapoio aos interesses econômicos tradicionais dos Estados Unidose sua obtusa posição anticomunista, durante a guerra fria, pre-valeceram sobre qualquer dúvida acerca da repressão interna. Otipo de governo centralizado e de mão dura proposto pelos mi-litares, que proibia que os trabalhadores se associassem a sindi-catos, era muito apreciado pelo capital estrangeiro.*

Na década de 1990, no entanto, com o desenvolvimento deuma nova forma de economia neoliberal, que prescinde de go-vernos militares fortes, e com o fim da urgência estratégica im-posta pela guerra fria, Washington começou a favorecer a demo-cracia. Os característicos óculos escuros dos ditadores militaressaíram de moda.

Ainda assim, existia uma tradição alternativa, e o tenente-coronel Chávez sempre mostrou interesse pela experiência dogeneral Torrijos, no Panamá, e do general Velasco, no Peru.

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Conhecera o filho de Torrijos, quando este participou de um trei-namento militar na Venezuela, e lera material político sobre astransformações no Panamá que o visitante trouxera consigo.Hoje, Chávez faz eco à velha retórica do panamenho.

Em uma entrevista de agosto de 1975, Torrijos procurou jus-tificar seu golpe de Estado, argumentando que a Guarda Nacio-nal panamenha, dirigida por ele, fora transformada em “peões daoligarquia”.

“Nossa missão era manter o status quo, fosse como fosse, comaparato militar permanente, ou com um golpe de Estado. Eu eraobrigado a participar de atos de repressivos, a tal ponto que meenojei de tanta repressão. Como resultado direto, a Guarda Na-cional decidiu se rebelar e descolonizar o país. Sobretudo, que-ríamos resolver o problema do canal, o que para os panamenhosera como uma religião.”

Tal como viria a acontecer na Venezuela, os oficiais paname-nhos rebelaram-se contra o que consideravam a incompetênciae a corrupção dos governantes civis.

“Fomos as sentinelas da oligarquia, até que os erros dospolíticos tornaram-se tão graves que já não havia possibilidadede retificação. Uma geração de jovens oficiais, egressos da EscolaMilitar do Panamá, decidiu não apenas organizar um golpe deEstado, mas também varrer todo o sistema de “democracia” apa-rente no país. As pessoas haviam se acostumado a misturar po-lítica com sua atividade econômica, fazendo uso da liberdadedemocrática indiscriminadamente”.

Torrijos conseguiu arrancar um novo tratado sobre o canal aogoverno estadunidense de Jimmy Carter, em 1979, e o canal foidevolvido aos panamenhos 20 anos mais tarde, em dezembro de1999. Mas Torrijos não viveu tempo suficiente para presenciar

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esse acontecimento maior: morreu em um acidente aéreo, emagosto de 1981. Seu sucessor, Manuel Noriega, tratou os assun-tos com menos tino diplomático e sofreu a humilhação da inva-são estadunidense de 1989 – Operação Justa Causa – durante aqual mais de mil panamenhos foram mortos. Foi capturado,acusado de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, e ainda estácumprindo pena de prisão perpétua em uma cadeia dos EstadosUnidos.

A experiência dos militares peruanos sob o governo do ge-neral Velasco, entre 1968 e 1976, também exerceu influência naformação política do tenente-coronel Chávez, que visitou o Peruquando era um jovem cadete, em 1974, em um momento em queo Governo Revolucionário das Forças Armadas, de Velasco, jáestava em franca decadência. Assegura que foi influenciado peloexemplo peruano, embora a experiência tenha muito pouco emcomum com o projeto implementado por ele na Venezuela –ainda que alguns de seus ensinamentos possam ser úteis.

Como na Venezuela e no Panamá, um grupo de inteligentesoficiais peruanos, descontentes com a corrupção e o estado ge-ral do país, havia debatido a possibilidade de uma intervençãomilitar. Alguns deles tinham sido influenciados por sua experi-ência na França, durante a guerra da Argélia. Assim como naVenezuela, esses oficiais desconfiavam profundamente do prin-cipal partido político do país – Apra, no Peru, AD, na Venezuela– em parte devido a sua posição francamente antinacionalista epro-estadunidense. Da mesma forma, e como na Venezuela, osoficiais peruanos tinham a experiência da guerra contra a guer-rilha e tinham mais consciência do que os políticos civis dasabjetas condições de vida da população rural.

Quando tomaram o poder, em 1968, os militares peruanosanunciaram sua intenção de construir uma nova ordem que não

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seria “nem capitalista, nem comunista”. Sua principal preocupa-ção naquele momento era a corrupção do regime civil deFernando Belaunde Terry, a desvalorização da moeda, e umacláusula de um contrato assinado pelo governo com uma com-panhia petrolífera, a Standard Oil, contrária ao interesse nacio-nal. A inflação, baixa para os padrões latino-americanos, mas altapara o Peru, estava em cerca de 19%.

O afã reformista do general Velasco Alvarado era, em parte,decorrente de sua experiência no extermínio dos movimentosguerrilheiros peruanos durante os anos de 1960. Seu conhecimen-to de primeira mão do sofrimento da população rural dos Andes,que as guerrilhas de Hugo Blanco e Luis de la Puente Ucedahaviam tentado levantar, levou-o a retomar boa parte do progra-ma da guerrilha. Velasco Alvarado era um oficial muito inteligen-te, influenciado pelo exemplo do general de Gaulle, na França,onde servira como adido militar nos anos que se seguiram ime-diatamente à guerra da Argélia.

Velasco Alvarado nacionalizou as empresas petrolíferas es-trangeiras, expropriou as fazendas de cana e levou adiante umaampla Reforma Agrária; fez do quíchua, língua dos Andes, umidioma oficial do país. Também expropriou os jornais conserva-dores e promoveu a participação dos trabalhadores na adminis-tração das indústrias do Estado. Para pesar de Washington, rea-tou relações diplomáticas com Cuba e desenvolveu um crescentecomércio bilateral com a União Soviética.

Retrospectivamente, como nota Richard Webb, o presidentedo Banco Central peruano no regime posterior, o programa eco-nômico de Velasco Alvarado não foi tão radical como parecia.

O regime militar implementou profundas reformas sociais,institucionais e econômicas, muitas das quais aplaudidas peloConsenso de Washington naquele momento. Na realidade, grande

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parte da agenda de reformas, particularmente a Reforma Agrá-ria, a reforma da educação e o reforço dos mecanismos de pla-nejamento pareciam tirados diretamente dos livros da velhaAliança para o Progresso e das recomendações-padrão do Ban-co Mundial naquela época.

O governo de Velasco Alvarado padeceu de dois erros funda-mentais: depois de um período inicial de entusiasmo, careceu deapoio popular, e tentou levar a cabo uma revolução com dinheiroemprestado. Os dois erros, desde o princípio, foram a causa de suaqueda. O governo, que incluía civis, era quase totalmente formadopor oficiais, jamais tendo conseguido atingir outros setores alémdos beneficiários imediatos das reformas de Velasco.

A falta de dinheiro era ainda mais grave. Em 1976, o Peruesgotou suas reservas internacionais e teve de pedir empréstimoa um consórcio de bancos estadunidenses. As condições impos-tas eram impressionantes: congelamento de salários, desvalori-zação e cortes orçamentários no setor público, abolição do direitode greve, exclusão do governo de membros radicais destacados,fim da proibição de contratos petrolíferos com empresas estran-geiras e venda de empresas do Estado ao setor privado.

De maneira pouco surpreendente, o regime de VelascoAlvarado começou a enfrentar sérios problemas. Depois de suamorte, em 1977, houve graves distúrbios e uma longa greve dapolícia. Ao perceber a magnitude da hostilidade pública, seusucessor conservador, o general Francisco Morales Bermúdez,resolveu abandonar todo o projeto e devolver o poder aos civis.Depois das eleições de 1980, Belaunde Terry, o político tão brus-camente deposto em 1968, foi reeleito presidente, e não tardouem apagar a lembrança da revolução militar.

Os governos militares do Peru e do Panamá foram freqüen-temente ridicularizados por jornalistas e politicólogos. Velasco

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Alvarado e Torrijos irromperam com grandes esperanças deredimir as condições dos pobres, enfrentando os potentados lo-cais da América. Ambos eram líderes sérios e inteligentes, pos-suidores de um imenso carisma. Suas mortes foram lamentadascomo catástrofes nacionais. Não podem ser culpados por suaambição, embora tenham sido incapazes de sustentar os progra-mas revolucionários iniciados.

O tenente-coronel Chávez segue seus passos, mas com umaagenda diferente e aprendendo com seus erros. É um presidenteeleito, não um ditador militar. Sabe que uma revolução não podeter êxito com dinheiro emprestado e sabe que as Forças Arma-das não podem governar sozinhas. Necessitam do apoio da gran-de maioria do povo.

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SEGUNDA PARTE

REVIVENDO O PASSADO

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onde quer que se vá, na Venezuela e, aliás, em boa parte daAmérica Latina, pode-se encontrar uma efígie de Simón

Bolívar, libertador do país (e de grande parte do continente) dodomínio espanhol. Pode ser uma estátua na praça principal, umretrato em um gabinete ministerial, ou um grafite numa parede.Nunca se pode escapar de todo desse semblante nobre, da curvaligeiramente arrogante de seu sorriso e, se o artista foi honesto,do tom moreno da pele, indicando um zambo, um mestiço.

A história tradicional venezuelana sempre pôs ênfase nasorigens aristocráticas de Bolívar, esquecendo sua herança negra.No entanto, Bolívar lutou pelos direitos da imensa comunidadede escravos na Venezuela. Durante a luta pela independência, em1816, solicitou do presidente Alexandre Pétion, governante ne-gro da república sem escravos, do Haiti, que lhe fornecesse ar-mas e munições. Pétion aceitou, desde que Bolívar prometesselibertar os escravos na Venezuela. Bolívar já o fizera em suaspropriedades, mas não lograra estimular a reacionária classe

11. O LEGADO DE SIMÓN BOLÍVAR

NADA DO QUE FOI FEITO ANTES PARECE COM O QUE V. FEZ E, PARA QUEALGUÉM POSSA IMITÁ-LO, SERÁ PRECISO QUE HAJA UM MUNDO POR LIBERTAR.V. FUNDOU TRÊS REPÚBLICAS, E O IMENSO DESENVOLVIMENTO A QUE ESTÃOFADADAS ELEVARÁ SUA GRANDEZA ATÉ ONDE NINGUÉM CHEGOU. SUA FAMACRESCERÁ, ASSIM COMO AUMENTA O TEMPO COM O TRANSCORRER DOSSÉCULOS E ASSIM COMO CRESCE A SOMBRA QUANDO O SOL DECLINA.

JOSÉ DOMINGO CHOQUEHUANCA A BOLÍVAR, 1825

A

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proprietária de escravos do período posterior à independência: alibertação dos escravos não ocorreu até 1854.

O culto secular a Bolívar sobreviveu intacto por gerações, naVenezuela. Sucessivos presidentes e generais – o corrupto, opreguiçoso e o patriota – todos prestaram uma obediente home-nagem ao Libertador. No final do século 20, Hugo Chávez de-monstrou não ser exceção. Enalteceu ideologicamente o exem-plo e os pensamentos de Bolívar, rebatizando o país na novaConstituição de 1999, como República Bolivariana da Venezuela.

Não se trata, entretanto, tal como Chávez se orgulha regular-mente de enfatizar, de um exercício de descuidado nacionalismo.Seu propósito não é simplesmente o de venerar uma

figura a quem a maioria de seus predecessores não fez maisdo que dedicar elogios, sem resgatar o caráter histórico e as pro-ezas do Libertador dos exageros do mito e da fábula.

Chávez não foi o único. Tarefa similar foi assumida por dife-rentes escritores nos últimos anos. O general em seu labirinto,romance sobre os últimos meses de Bolívar, escrito em 1989 pelocolombiano Gabriel Garcia Márquez, Prêmio Nobel de Literatu-ra, constituiu um esforço de fama internacional. Trata-se de umrelato, em ficção, do último ano de vida do Libertador, em 1830,quando já estava fora do poder e a luta de toda a sua vida pare-cia desmoronar à sua volta. O romance deu dimensão humana àconvencional estátua de bronze.

Outro livro influente nos círculos intelectuais da Venezuelae da Colômbia foi O culto a Bolívar, do historiador venezuelanoGermán Carrera Damas. Essa obra constituiu também um golpena desmistificação da carreira de Bolívar, embora não tenha sidobem recebida, como assinalou Chávez, pela alta oficialidade daAcademia Militar da Venezuela. O próprio Chávez aderiu a essarevisão da história, introduzindo, em suas aulas na Academia, o

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debate sobre o papel de Bolívar, num esforço por recuperar algu-mas das características do Libertador que poderiam ter valorpolítico no presente. Seu objetivo era se inspirar nas tradiçõeshistóricas da nação, para traçar um modelo para o futuro.

O exemplo de Bolívar foi particularmente útil para Chávez emsua avaliação do papel que a Venezuela poderia desempenhar nosassuntos do resto do continente. A maioria dos políticos latino-americanos reconhece sobejamente que seus Estados nacionaissão frágeis demais para atuarem isoladamente. O fato de que essavisão tenha tomado conta do continente por várias décadas foio que impulsionou a integração econômica. Bolívar enfrentouproblema similar, o que o levou à conclusão de que era necessá-rio promover uma cruzada em todo o continente contra o domí-nio do império espanhol, unindo a América Latina contra ospoderes estrangeiros.

Chávez procura, agora, fazer algo semelhante. Seu propósi-to é reacender o sonho bolivariano, buscando a unificação po-lítica da América Latina em novas bases: a integração interna decada país. Para tanto, planeja um grande congresso dos Estadosbolivarianos, libertados por Bolívar, como uma réplica do con-gresso organizado pelo Libertador no Panamá, em 1826. “Umprojeto válido para o século 21”. Chávez acredita, com paixão, queé preciso “reunir, em uma conferência, os países da AméricaLatina fragmentada”.

Bolívar não é a única figura significativa que Chávez ressus-citou do passado. Em 1980, em discussões com jovens oficiais,seus mais próximos amigos militares, começou a resgatar o pen-samento e os escritos de outros protagonistas da históriavenezuelana do século 19, especialmente Simón Rodríguez eEzequiel Zamora. Incluiu-os no panteão de seu embrionáriomovimento revolucionário. No processo, participou pessoalmente

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do debate histórico sobre o século 19, que se desenrolava naesquerda venezuelana desde os anos de 1960.

A visão original da esquerda marxista na Venezuela, como emqualquer lugar, era de extrema hostilidade em relação a Bolívar.Partindo dos escritos do próprio Marx, a maioria dos escritoresmarxistas via o Libertador como uma figura típica burguesa, cujaação servira tão-somente aos interesses das potências imperiaisemergentes da época. Bolívar, segundo essa leitura, assegurara aindependência da Espanha com ajuda inglesa. Entregara, então,o continente à exploração do capitalismo inglês. Durante anos,esse retrato caricatural de Bolívar, como aliado do imperialismo,impediu efetivamente a esquerda de examinar suas característi-cas mais positivas. Para qualquer militante ou simpatizante daesquerda, era impossível vê-lo como um modelo revolucionáriopara o século 20.

No decorrer dos anos de 1960, essa visão começou a mudarna Venezuela. O movimento guerrilheiro dera a suas unidadesmilitares os nomes de heróis do passado: José Leonardo Chirinos,líder de uma revolta de escravos no século 18 em Coro, e EzequielZamora, líder camponês das planícies, no século 19. Posterior-mente, quando alguns membros das guerrilhas se afastaram daortodoxia do PCV, começaram a reexaminar o que haviam apren-dido do passado para criar uma ideologia de esquerda com umadose maior de nacionalismo, tal como faria Chávez em anosposteriores.

Naquele grupo estava Douglas Bravo, comandante da linhade frente guerrilheira “José Leonardo Chirinos” no Estado deFalcón. Bravo avalia que sua expulsão do PCV, em junho de 1965,deveu-se, em parte, a seus argumentos em favor dos heróis doséculo 19: Bolívar, Simón Rodriguez e Ezequiel Zamora, entreoutros. Suas idéias eram opostas à ortodoxia soviética.

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Bravo organizou um novo partido político em abril de 1966,o PRV, inspirando-se nessas figuras do passado. Lembra que a“cabeça filosófica” do partido, Pedro Duno, publicou, em 1969,um documento intitulado “Marxismo-leninismo-bolivarianismo”.Duno objetivava “nacionalizar” a ideologia da esquerda latino-americana. Ao mesmo tempo em que revivia a figura do Liber-tador, exercia atração sobre o partido de Bravo a idéia-chave deSimón Rodríguez: a “América (Latina) não deve servilmenteimitar e sim buscar ser original”.

Quando Chávez começou a organizar sua conspiração mili-tar, nos anos de 1980 e fez seus primeiros contatos com a esquer-da revolucionária, descobriu que falavam a mesma língua. Aressurreição de Bolívar como importante e necessário precursorde qualquer revolução radical foi aceita pelos esquerdistas comquem manteve contato.

Apesar de Bolívar ser amplamente reconhecido como uma dasgrandes figuras do século 19, fora da América Latina pouca gentese lembra de algo além de algum detalhe folclórico sobre sua vidae sua obra. Provavelmente seja mais famoso devido à triste re-flexão que fez, no final da vida: “lavrei no mar...”. Não obstante,já que a figura de Bolívar é um componente significativo doprojeto político de Hugo Chávez, recorrente em seus discursos,torna-se necessário incluir aqui um relato sumário de sua vida ede suas façanhas.

Bolívar nasceu em 24 de julho de 1783, em Caracas e mor-reu na Colômbia, antes de completar 50 anos, em 17 de dezem-bro de 1830. Como principal condutor da rebelião latino-ameri-cana contra o império espanhol, lutou pela libertação daVenezuela e da Colômbia e também do Equador, do Peru e do AltoPeru (Bolívia); suas campanhas desenrolaram-se durante umperíodo de dez anos. Lutou de norte a sul e de leste a oeste da

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Venezuela e da Colômbia, empreendendo, então, uma inspiradamarcha que o levou para os Andes do Equador e do Peru. Nun-ca, desde as batalhas das primeiras gerações de conquistadores,no século 16, houve um único comando cobrindo tanto territó-rio com resultados de tanto alcance.

Bolívar tinha também dotes intelectuais. Leitor voraz de clás-sicos e da literatura emancipadora da França pré-revolucionária,manteve uma volumosa correspondência que revela um homemde agudo engenho e observação. Muitas de suas “cartas abertas”e discursos permanecem como modelos do pensamento políticoavançado da época.

Ao mesmo tempo, foi um homem de visão rigorosa e intran-sigente, freqüentemente cruel e imprevisível em suas ações.Cometeu muitos erros táticos e estratégicos e seu propósito glo-bal esteve muitas vezes à beira do colapso. Acreditava firmementeque era responsável por um continente anárquico que se bene-ficiaria de uma liderança forte. Arrogante e até certo ponto in-suportável, nunca duvidou que fosse o líder de que se necessitava.

Os pais de Bolívar morreram quando ele era muito jovem,tendo vivido durante um tempo em casa de seu professor, SimónRodríguez, outra figura de destaque no panteão de Chávez.Bolívar viajou, ainda jovem, para a Europa, primeiro para aEspanha, entre 1798 e 1801, e daí para a França e a Itália, entre1804 e 1807. Estimulado pela atmosfera revolucionária da épo-ca, devorou os trabalhos de Voltaire e de Rousseau e, quandovoltou para a Venezuela, em 1807, dedicou-se pessoalmente a seuembrionário e clandestino movimento de independência.

Uma insurreição ocorrida em Caracas, em 19 de abril de 1810,forçou a renúncia do último capitão-geral espanhol, VicenteEmparan. Uma junta revolucionária assumiu o poder na cidade,e enviou Bolívar para a Inglaterra, para assegurar o apoio britâ-

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nico ao novo regime. Chegando em Londres em julho, durante asguerras napoleônicas, Bolívar fracassou em fazer o governo bri-tânico se interessar pela sorte de seu país, embora tivesse êxitoem convencer o exilado Francisco de Miranda a voltar com elepara Caracas, com o objetivo de assumir o comando das forçasrevolucionárias. Miranda combatera nas fileiras da RevoluçãoFrancesa, tendo tentado organizar uma rebelião contra a Espanha,em 1806.

Em seu retorno a Caracas, Bolívar recebeu o comando daestratégica e importante cidade de Puerto Cabello. A independên-cia da Venezuela foi formalmente declarada em 5 de julho de1811, depois que um congresso se reuniu em Caracas, em mar-ço, para esboçar uma constituição para a nova República.

Dez anos de luta se aproximavam, pois os espanhóis nãoaceitaram essa rebelião republicana de Caracas e ainda contro-lavam outras partes do país e do continente. Seu contra-ataquenão demorou, pressagiado, em março de 1812, por um terremo-to que destruiu grande parte da cidade. A Igreja católica, semprehostil ao regime republicano e sempre leal a Madri, depressacapitalizou politicamente o desastre, tal como faria um destaca-do padre, depois das terríveis inundações em Caracas e no Esta-do de Vargas, em dezembro de 1999.

As forças republicanas eram débeis, mal armadas e divididas.Logo passaram à defensiva: os espanhóis retomaram PuertoCabello, aproveitando-se de um descuido de Bolívar, enquantoMiranda, em Caracas, tentava negociar a paz com o comandan-te espanhol. Miranda foi denunciado como traidor e os republi-canos entregaram-no aos espanhóis. Acorrentado, foi levado paraa Espanha, onde morreu, em uma prisão da cidade de Cádiz.

Enquanto isso, Bolívar escapou pelo mar da Venezuela até oporto de Cartagena, em Nova Granada (atual Colômbia), então sob

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controle de rebeldes republicanos. Ali publicou a primeira de suasgrandes declarações políticas, o “Manifesto de Cartagena”,conclamando à eliminação do poder espanhol na Venezuela,como prelúdio à unificação continental, e instando a que fossesubstituído por um sólido governo centralizado:

“ele (o governo) deve se mostrar terrível e se armar de uma firmeza igual

aos perigos, sem se ater a leis nem a constituições, enquanto não se

restabelecer a felicidade e a paz. (...) Sinto que, enquanto não centra-

lizarmos nossos governos americanos, os inimigos obterão as mais

completas vantagens; seremos incontestavelmente envolvidos nos

horrores dos conflitos civis e conquistados indignamente por esse

punhado de bandidos que infesta nosso território”.

Os republicanos, em Cartagena, tomaram Bolívar ao pé daletra e o escolheram como comandante de uma força expedici-onária para garantir a libertação da Venezuela. Depois de umacampanha de três meses, Bolívar venceu o exército espanhol emvárias batalhas e retomou Caracas em 6 de agosto de 1813. Con-vocado pelo Congresso, recebeu o título de Libertador.

A vitória foi temporária e as forças republicanas não pude-ram manter Caracas por muito tempo. Os espanhóis tinham nocoronel José Tomás Boves um inteligente e impiedoso comandan-te, com habilidade para mobilizar indígenas e camponeses dasplanícies venezuelanas como força de combate capazes de com-petir com as de Bolívar. Boves tomou Caracas um ano depois, emjulho de 1814, aplicando com rigor castigos exemplares e encer-rando um capítulo da história da independência da repúblicavenezuelana.

Bolívar escapou novamente para Cartagena e, em dezembro,tomou Bogotá. Mas a chegada de novas tropas da Espanha trouxe

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novas derrotas; em maio de 1815, viu-se obrigado a se retirar paraa Jamaica, onde escreveu sua famosa “Carta da Jamaica”: umplano visionário para o futuro da América Latina que alcançavao continente, desde a Argentina e o Chile, até o México:

“Somos um pequeno gênero humano, possuímos um mundo à parte,

cercado por amplos mares; novo em quase todas as artes e ciências,

ainda que de certo modo velho nos usos da sociedade civil. (...) não

somos índios, nem europeus, mas uma espécie intermediária, entre os

legítimos proprietários do país e os usurpadores espanhóis”.

Bolívar tentou voltar a Cartagena, mas, como esta cidadehavia caído novamente em mãos espanholas, seu navio tomou orumo da independente república negra do Haiti. Chegou a PortoPríncipe em 1º de janeiro de 1816, sendo bem recebido pelo pre-sidente Pétion, que concordou em lhe fornecer armas e muniçõese, além disso, permitiu-lhe recrutar marinheiros para sua frotainvasora.

Lançar um ataque à Venezuela a partir do Haiti era umaoperação arriscada que podia terminar em desastre. A frota deBolívar capturou a ilha de Margarita, mas foi repelida a partir daterra firme em julho de 1816, em Carúpano e Ocumare. Refugiou-se no Haiti, para preparar uma segunda expedição, e, no fim doano, retornou ao continente por Barcelona.

A guerra contra os espanhóis entrava, então, em uma nova fase.Em abril de 1817, navegou pela costa até o delta do Orinoco.Avançou rio acima, estabelecendo seu quartel general emAngostura (atual Ciudad Bolívar) em julho do mesmo ano. Alimanteve contato com líderes republicanos dos llanos, principal-mente com José Antonio Paez e Francisco de Paula Santander, esteúltimo oriundo da Colômbia. As forças de Bolívar combateram,

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então, nos llanos, durante um longo período de dois anos, até quefinalmente ficou pronto para lançar um ataque à Colômbia.

Em 1819, as forças de Bolívar escalaram a passagem damontanha, a partir da planície, dentro do que ainda era parte dovice-reino espanhol de Nova Granada. Os oficiais realistas nun-ca imaginaram um ataque republicano por essa rota. Despreve-nidos, foram derrotados na batalha de Boyacá, em 7 de agosto domesmo ano. Três dias depois, Bolívar entrou em Bogotá, enquantoo vice-rei espanhol escapava por mar para Cartagena. A Colôm-bia estava em mãos republicanas.

Deixando o general Santander encarregado de Bogotá, comovice-presidente de Nova Granada, Bolívar subiu de novo as en-costas andinas, dirigindo rio abaixo desde o Apure até o Orinoco.Em dezembro de 1819, chegou a sua antiga base em Angostura,convocando o Congresso para informá-lo de seus triunfos.

A união de Nova Granada e Venezuela em um grande Esta-do foi o voto unânime dos povos e governos dessas repúblicas.A sorte da guerra possibilitou esse enlace tão desejado por todosos colombianos: “de fato estamos juntos”.

O Equador seria logo incorporado, para completar o quadro.O Congresso de Angostura designou Bolívar como presidente editador militar do novo Estado, que passaria a se chamar Repú-blica da Grande Colômbia. Essa república foi pensada como umafederação que incluía todas as províncias espanholas daVenezuela, Nova Granada (Colômbia) e Quito (Equador).

Durante vários meses, houve trégua; mas, em junho de 1821,os homens de Bolívar avançaram para o norte, partindo doOrinoco, derrotando o exército espanhol, na batalha de Carabobo.O caminho para Caracas estava livre e Bolívar fez sua entradatriunfal. Agora, a libertação da Venezuela estava completa. Re-alizou-se um novo congresso, na fronteira, em Cúcuta, a fim de

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esboçar a constituição para a nova república e eleger formalmenteBolívar como seu presidente, em setembro de 1821.

Dessa forma, Bolívar transformava-se no governante da re-pública formada por Venezuela e Colômbia, com a missão de sero libertador da América Latina. Como tinha ambições maiores,não ficou muito tempo em Caracas. Naquele ano enviou um deseus melhores oficiais, o general Antonio José de Sucre, para osul, a fim de ajudar na libertação do Equador. Sucre fora para oporto de Guayaquil, no Pacífico, e solicitava reforços.

Deixando novamente Santander responsável por Bogotá,Bolívar marchou para o sul em dezembro de 1821, ao longo darota montanhosa para Quito, capital do Equador. Sua campanhamilitar contra as forças da Espanha não estava ainda terminada.Enquanto Bolívar avançava, vindo do norte, Sucre penetrava emterra firme vindo do oeste, das costas de Guayaquil. As tropas deSucre derrotaram o exército espanhol na batalha de Pichincha,em 24 de maio de 1822, tendo Quito caído no dia seguinte.Bolívar chegou 3 semanas depois, saindo rumo a Guayaquil.

Os três territórios da Grande Colômbia foram assim liberta-dos do jugo espanhol. A Argentina e o Chile também estavamlivres, graças ao triunfo das forças revolucionárias lideradas pelogeneral José de San Martin. Apenas o Peru permanecia sob odomínio espanhol.

San Martin marchou para Lima partindo do sul e proclamoua independência dos peruanos, mas os soldados espanhóis ain-da controlavam as cidades dos Andes. San Martin, então, trans-feriu-se para Guayaquil, buscando o auxílio de Bolívar para o quedevia ser o ataque final às tropas espanholas. Os dois generaisreuniram-se ali, em 26 de julho de 1822. San Martin, evidente-mente, precisava de auxílio não apenas para vencer os espanhóis,mas também para retomar o controle de suas próprias forças

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argentinas, estacionadas em Lima. Bolívar mostrava claramenteresistência em apoiá-lo, e San Martin voltou para Lima sem re-ceber a ajuda que esperava. Renunciou a todos os seus cargos eexilou-se na Europa.

Um ano depois, em setembro de 1823, Bolívar voltou a Limapara preparar a derrota final do exército espanhol nos Andes.Reunindo uma nova força expedicionária, derrotou os espanhóisna batalha de Junin, em 1824. A campanha final terminou em 8de dezembro do mesmo ano, quando o vice-rei espanhol rendeu-se a Sucre na batalha de Ayacucho.

Sucre perseguiu o que restava do exército espanhol para o sul,nos Andes, internando-se no Alto Peru, que foi finalmente liber-tado em abril de 1825 e ao qual deu-se o nome de Bolívia, emhomenagem ao Libertador. A América espanhola estava final-mente livre.*

Bolívar deslocou-se para as montanhas de Potosí, na Bolívia,fazendo uma pausa para ser homenageado por José DomingoChoquehuanca, prefeito de um vilarejo na fronteira:

“Nada do que foi feito antes parece com o que V. fez e, para que alguém

possa imitá-lo, será preciso que haja um mundo por libertar. V. fundou

3 repúblicas, e o imenso desenvolvimento a que estão fadadas eleva-

rá sua grandeza até onde ninguém chegou. Sua fama crescerá, assim

como aumenta o tempo com o transcorrer dos séculos e assim como

cresce a sombra quando o Sol declina”.

Gerhard Masur, biógrafo de Bolívar, pensa que esse discursodeve ser apócrifo, mas, já que é uma lenda incrustada na histó-

* A América do Sul, porque a América Central e o Caribe continuavam colônias espa-nholas. (N. da T.)

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ria da Venezuela, além de ser uma das citações favoritas de HugoChávez, merece ser incluído neste relato.

Bolívar permaneceu os meses restantes de 1825 na Bolívia,regressando a Lima no final desse ano; foi eleito presidente doPeru em agosto de 1826. Seu vasto império era agora demasia-damente extenso para ser controlado por um general, assim comotambém eram insolúveis os problemas políticos existentes emcada Estado. O sonho de Bolívar, de dar uma lição à Europa, fi-cava pendente: “Vamos mostrar à Europa que a América temhomens capazes de se igualar com a glória dos heróis do VelhoMundo”, disse ao general Sucre quando lhe ordenou que se en-carregasse da Bolívia. No entanto, houve discórdia no Peru, se-guida de uma guerra entre a Colômbia e a Venezuela. Seus doisgenerais, Páez e Santander brigaram e o ambicioso projeto deuma Grande Colômbia unida evaporou-se em 1828. A união dosdois países fez-se em pedaços e, em 1829, os peruanos invadiramo Equador, em uma tentativa de retomar Guayaquil.

Bolívar tentou pela última vez assegurar a união política daAmérica Latina em um congresso de países de língua espanho-la, realizado no Panamá, em 1826. Houve muitas ausências, eapenas o Peru, a Grande Colômbia, representantes do México eda América Central participaram. A união política entrou naagenda, e os Estados presentes acertaram um plano para umaforça conjunta de mar e terra, mas todos os esquemas permane-ceram em embrião. Tudo o que restou do Congresso do Panamáfoi a visão do que deveria ser um dia. Bolívar morreu de tuber-culose, em 17 de dezembro de 1830, em Santa Marta, Colômbia.“A América é ingovernável”, disse no fim. “Quem serviu à revo-lução lavrou no mar”.

Hugo Chávez não compartilha o pessimismo de Bolívar. “Ascontradições em seu pensamento não são determinantes” – dis-

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se. “O que podemos observar, no período histórico entre 1810 e1830, é o esboço de um projeto nacional para a América hispâ-nica.” Tal projeto foi empreendido novamente, em determinadomomento, de forma destacada, por Ezequiel Zamora, um quartode século depois da morte de Bolívar. Chávez pretende retomá-lo, agora no contexto da agenda continental.

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ugo Chávez refere-se freqüentemente ao “sistema robinso-niano” e pensei, no começo, que fazia referência ao fale-

cido Joan Robinson, o reconhecido economista de Cambridge,certamente familiar para os intelectuais estadunidenses das dé-cadas de 1960 e 1970. Depois, inevitavelmente, pensei no he-rói da ficção de Daniel Defoe, Robinson Crusoe, oriundo de York,que viveu por “Oito e Vinte Anos, solitário, em uma ilhadesabitada nas costas da América, perto da foz do Grande RioOROONOQUE”.

Isso estava mais perto da realidade. O pensamento político eeconômico de Hugo Chávez deriva, certamente, em parte, por umtrilha tortuosa entre a história de Robinson Crusoe e o impactoque ela produziu em Simón Rodríguez, um jovem professor em1790. Rodríguez foi inicialmente professor e, depois, amigo ín-timo de Simón Bolívar. As posições filosóficas de ambos, que seinfluenciaram mutuamente, estão incluídas no coração do pro-jeto de Chávez para a Venezuela e para a América Latina.

12. ROBINSON CRUSOE E A FILOSOFIA DE SIMÓNRODRÍGUEZ

OH! MEU MESTRE. OH! MEU AMIGO. OH! MEU ROBINSON, VOCÊ NA COLÔM-BIA! VOCÊ EM BOGOTÁ E NINGUÉM ME DISSE NADA!

BOLÍVAR A SIMÓN RODRÍGUEZ, EM 1824.

H

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Rodríguez impregnou-se tanto do caráter de Robinson Crusoe quemudou seu nome para Samuel Robinson.

A vida e a obra de Simón Rodríguez são quase desconheci-das fora da América Latina, e seus escritos nunca foram tradu-zidos para o inglês. Não obstante, exerceu influência nos vári-os países em que viveu e trabalhou, como Venezuela, Colômbia,Chile, Bolívia, Peru e Equador. Foi professor primário e de filo-sofia, com idéias nada ortodoxas sobre educação e comércio.Estava, além disso, apaixonadamente convencido da necessida-de de integrar os povos indígenas da América Latina e os escra-vos negros vindos de fora às sociedades dos futuros Estadosindependentes. Duzentos anos depois, suas palavras e idéias têmum tom contemporâneo, quando ressuscitadas por HugoChávez.

O relato de Daniel Defoe sobre as aventuras de RobinsonCrusoe, livro publicado originalmente em Londres, em 1719, etraduzido para o francês e o holandês no ano seguinte, estábaseado em uma história da vida real de Alexander Selkirk,abandonado na ilha de Juan Fernández, no Pacífico. Defoe sim-plesmente trocou a ilha para um lugar no Atlântico, próximo aorio Orinoco. É possível que o livro esteja disponível às margensdo próprio Orinoco, na Venezuela, embora seja mais provável queos latino-americanos tenham tido acesso, primeiro, à versãoalemã do relato, escrita por Joachim Heinrich Campe. Robinsonder Jüngere, de Campe, foi publicado originalmente em Hambur-go, em 1769, tendo sido um dos mais famosos livros alemães detodos os tempos. Foi escrito sob a influência do livro de Rousseau,Emílio ou da educação, de 1762, que indicava Robinson Crusoecomo um livro excepcional para crianças, na medida em que lhesensinava a aprender como Robinson o fizera: fazendo.

Seja qual for a versão disponível em Caracas, foi lida por

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Simón Rodriguez, o professor titular das escolas primárias dacidade. Entre seus jovens alunos estava Simón Bolívar, um órfão– que, em algum momento, foi seu hóspede – filho de uma ricafamília de fazendeiros.

Rodríguez nasceu em Caracas, em 1769, e sua primeira escolaprimária rapidamente entrou em conflito com os pais das crian-ças. Ele escrevera e publicara um longo relatório, em que suge-ria que sua escola não devia ser exclusivamente para filhos debrancos ricos, mas também para filhos de negros e pardos. Esseinteresse pelas classes baixas acompanhou-o durante toda a suavida, causando-lhe infinitos problemas e penúrias. Adiantara-seuns 100 anos a sua época. Tempos depois, quando trabalhava naBolívia, em 1820, continuava insistindo em que as crianças in-dígenas deviam desfrutar de educação gratuita nas escolas pú-blicas que ele estava implantando. As autoridades rapidamenteencontraram pretextos para fechá-las.

Destituído pelo Cabildo (Conselho Municipal) de Caracas,Rodríguez uniu-se aos primeiros movimentos pela independên-cia de 1797, organizados por Manuel Gual e José Maria España.Quando essa revolta prematura foi esmagada, Rodríguez foiobrigado a se exilar. Navegou pelo Caribe até a Jamaica, alichegando cerca de dois anos depois que o governo colonial bri-tânico esmagara a grande rebelião cimarrona.* Na Jamaica apren-deu inglês. Imaginava seu novo lar como a “ilha de RobinsonCrusoe” e, ansioso para se livrar de seus antepassados espanhóis,mudou seu nome para “Samuel Robinson”. Manteve esse pseu-dônimo por um quarto de século, durante o tempo em que este-ve fora do continente.

* Os cimarrões eram povos indígenas que povoavam o Caribe antes dos colonizado-res espanhóis. (N.da T.)

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Partiu da Jamaica para os Estados Unidos e dali, para a Eu-ropa. “Fiquei na Europa por mais de vinte anos” – escreveu anosdepois, quando relatava suas peregrinações. – “Trabalhei em umlaboratório de química industrial, onde aprendi algumas coisas;participei de encontros secretos de caráter socialista... Estudei umpouco de literatura, aprendi idiomas e dirigi uma escola de pri-meiras letras, em um vilarejo da Rússia.”

Samuel Robinson poderia ter sido uma interessante, masesquecida “nota de pé de página” da história latino-americana,se seu caminho não tivesse cruzado pela segunda vez o de SimónBolívar. Os dois homens, mestre e aluno, encontraram-se nova-mente na Paris de Napoleão, em 1804, e percorreram juntos aItália. Graças a essa amizade com Robinson, Bolívar conheceuAlexandre Humboldt, o cientista alemão que explorou o Orinocoe, como orientador, também lhe indicou leituras esclarecedoras.Anos depois, enquanto combatia no Peru, Bolívar escreveu so-bre seus sentimentos em relação a “seu Robinson”:

“Amo esse homem com loucura. Foi meu mestre, meu companheiro de

viagem, e é um gênio, um portento de graça e talento para quem os sabe

descobrir e apreciar (...) Com ele, eu poderia escrever as memórias de

minha vida. É um professor que ensina divertindo, e é um escriba que

transmite preceitos a quem lhe dita. Ele é tudo para mim. Quando o

conheci valia o infinito. É preciso que tenha mudado muito para que

eu me engane”.

Estando em Roma, em agosto de 1805, esses livres pensado-res venezuelanos subiram as ladeiras do “monte Sacro”, um pro-montório elevado sobre o rio Aniene, a nordeste de Roma, lugarem que uma fábrica engarrafadora ainda fornece água santa, deuma antiga nascente. Ali, Bolívar fez o juramento romântico de

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dedicar sua vida à luta pela independência da América Latina.Tempos depois de sua morte, Rodríguez lembrou-se do teor dojuramento e escreveu-o, sem dúvida com algum embelezamento.Esse texto permanece profundamente arraigado na psiquevenezuelana, aprendido desde a escola primária, fixado na me-mória dos soldados que prestam o serviço militar. Quando HugoChávez começou a organizar sua própria conspiração, lá pelosanos de 1980, foram as palavras de Bolívar, recordadas por SimónRodríguez, que utilizou:

“Juro diante de ti, e juro diante do Deus de meus pais que não darei

descanso a meu braço, nem repouso a minha alma, enquanto não

romper as cadeias que nos oprimem...”.

Bolívar voltou à América do Sul um ano depois, em 1806, paraenfrentar os desafios da luta pela independência. Samuel Robinsonpermaneceu lá, ainda intrigado pela Europa de Napoleão. Dedicou-se a realizar várias viagens, visitando e vivendo na Itália e naAlemanha, na Prússia, Polônia e Rússia. Em algum lugar, durantesuas viagens, deve ter-se integrado “às sociedades secretas denatureza socialista”, sobre as quais escreveu.

Em 1823, abandonou sua escola na Rússia, transferindo-separa Londres. Ali, em uma casa em Grafton Street, que algum diapertencera a Francisco de Miranda, conheceu um outro latino-americano exilado: Andrés Bello, o filósofo venezuelano. Bello,que também era educador, estimulou-o a voltar ao país, agora quea independência da América Latina estava quase garantida.

Samuel Robinson, na época com 54 anos, zarpou de volta peloAtlântico, chegando às terras da Colômbia, no porto deCartagena, quando retomou seu nome de Samuel Rodríguez.Viajando para Bogotá, teve notícias de Bolívar, que estava na

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frente da conquista do Peru: “Oh! meu mestre. Oh! meu amigo.Oh! meu Robinson, você na Colômbia! Você em Bogotá e nin-guém me disse nada!” Bolívar instou-o a se apressar para que seencontrassem em Lima. Os dois velhos amigos reuniram-se nes-sa cidade, em 1824, pouco depois da batalha de Ayacucho, queselou o destino do império espanhol na América Latina.

Não sabemos com exatidão o que discutiram, mas temos umaidéia bastante precisa de como as idéias de Simón Rodriguez sedesenvolveram nos anos seguintes de seu regresso à AméricaLatina, vindo da Europa. Sua experiência européia convencera-o de que a América Latina devia tentar fazer as coisas de mododiferente. Em um de seus primeiros livros, publicado em 1828,escreveu sobre a necessidade de se diferenciar, o que veio a seruma das chaves do pensamento de Hugo Chávez:

“A América espanhola é original. Originais devem ser suas instituições

e seu governo, e originais seus meios de fundar uns e outros. Ou in-

ventamos, ou erramos.”

Em abril de 1825, Rodríguez uniu-se a Bolívar em uma ex-pedição pelos Andes, na recém-denominada Bolívia. De Lima,atravessaram por Arequipa, Cuzco, Tinta, Lampa, Puno e Zepitae, então, uma vez na Bolívia, viajaram para La Paz, Oruro, Potosíe Chuquisaca (chamada Sucre, depois da vitória de Ayacucho).

Bolívar decidiu que o país ao qual fora dado seu nome era umlugar que poderia se beneficiar do talento de Rodríguez. Assim,designou-o “diretor do Ensino Público, Ciências Físicas, Matemá-ticas e Artes, e diretor-geral de Minas, Agricultura e CaminhosPúblicos da República Boliviana”. Os dois amigos separaram-seentão, Bolívar voltando para o Peru, enquanto Rodríguez perma-necia na Bolívia. Rodríguez pôs-se a trabalhar imediatamente em

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Chuquisaca, na formação de uma escola técnica para crianças dolugar, tanto indígenas quanto brancos. Anos depois, esboçou osplanos extraordinariamente idealistas que tentara implantar naBolívia:

“Meu grande projeto na época consistia em pôr em prática um plano

bem elaborado, que se baseava em colonizar a América com seus pró-

prios habitantes, para evitar o que temo que aconteça um dia, isto é,

que a invasão repentina de imigrantes europeus, mais inteligentes do

que o nosso povo atual, venha novamente submetê-lo e a tiranizá-lo

de um modo mais cruel do que o antigo sistema espanhol. Eu queria

reabilitar a raça indígena e evitar sua completa extinção.”

Tragicamente para a Bolívia, os cidadãos conservadores deChuquisaca repudiaram os engenhosos esquemas de Rodríguez.Só de má vontade haviam aceito submeter-se à ordem republi-cana. Rapidamente, alguns dos piores temores de Rodríguez tor-naram-se realidade. A antiga classe latifundiária permaneceuintacta, e promoveu a vinda de novos imigrantes europeus. Es-ses tomaram parte na matança e na destruição da populaçãoindígena, particularmente durante o auge da borracha, no finaldo século 19. O projeto revolucionário de Rodríguez poderia termudado a história posterior da Bolívia, mas não foi o que acon-teceu.

Ainda na Venezuela, as autoridades estimularam a imigraçãobranca da Europa, em grande escala, muito antes que os brancosjá estabelecidos tivessem chegado a acordos com a populaçãonativa. Mais de um milhão de imigrantes europeus chegaram àVenezuela depois do fim da II Guerra Mundial, em 1945.

Rodríguez estabeleceu sua escola em Chuquisaca e partiu paraCochabamba, onde desejava implantar outra escola, com os mes-

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mos conceitos. Sua paixão pela educação dos indígenas tinhaprofundas raízes em sua avaliação, quase única na época, do pa-pel que desempenhava a classe baixa no desenvolvimento dopaís. Escreveu, em 1830, sobre a dívida que nunca poderia serpaga:

“Os eruditos da América nunca revelaram o fato de que devem seu

conhecimento aos indígenas e aos negros; mas, se esses sábios tives-

sem sido obrigados a arar, semear, colher e aeirar, assim como prepa-

rar tudo o que comem, vestem, usam e manipulam durante suas vidas

desprezíveis, seguramente não saberiam tanto...

Deveriam ter trabalhado nos campos e seriam tão rústicos quanto seus

escravos; deveriam ter trabalhado com eles nas minas, nos campos,

atrás dos bois, e nas estradas, atrás das mulas; nas extrações de pedra

e nas centenas de pequenas fábricas, onde se produzem ponchos,

mantas, vestidos, sapatos e panelas para cozinhar”.

Rodríguez sabia da hostilidade dos brancos; enfrentara-atrinta anos antes, em sua escola de Caracas, por volta de 1790.Agora, essa hostilidade iria afetá-lo novamente. Quando regres-sou a Chuquisaca, vindo de Cochabamba, viu que sua escolafora fechada, por ordem do presidente da Bolívia, marechalAntonio José de Sucre y Alcalá, o mais destacado dos oficiaisde Bolívar.

Sucre queixava-se de que Rodríguez era um organizadorimprevisível que falhara ao manter sua escola sem orçamento. Épossível que isso seja verdade, mas a verdadeira causa do fecha-mento era a posição racista das autoridades de Chuquisaca e dospais brancos que não queriam que seus filhos se educassem comos indígenas. Posteriormente, Rodríguez explicou o queaconteceua na escola:

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“Um advogado chamado Calvo destruiu meu estabelecimento em

Chuquisaca, dizendo que eu havia esgotado os recursos, para manter

prostitutas e ladrões, em vez de dedicar meu esforço para educar gen-

te decente.

As prostitutas e os ladrões eram os filhos dos verdadeiros donos do país,

ou seja, os indiozinhos e as indiazinhas que perambulam pelas ruas e

que são, de fato, consideravelmente mais decentes do que os filhos e

as filhas do senhor Calvo”.

Deprimido com a recepção que recebera, Rodríguez renuncioua todos os seus cargos na Bolívia, retirando-se para o Peru, tal-vez em busca de Bolívar. Os dois homens nunca mais se encon-traram e há quem suspeite de que as cartas escritas por Rodrígueza Bolívar nunca chegaram ao Libertador. Por vários anos, paramanter a si e à indiazinha boliviana com quem se casara, tocouuma fábrica de velas que havia fundado no Equador.

Em 1834, talvez convocado por Andrés Bello, partiu do Equa-dor para o Chile. Viveu e trabalhou por muitos anos emConcepción e, depois, em Valparaíso. Ali fundou escolas técni-cas, onde ensinava seus alunos a ler e a escrever, assim como afabricar tijolos, telhas e velas. Aprender fazendo. É freqüen-temente lembrado por provocar escândalo com seu método deensinar anatomia. Como não havia cadáveres disponíveis, apa-recia nu na sala de aula. Depois de dez anos no Chile, voltou aoEquador em 1843, para viver no vilarejo de Lacatunga. Ali, em1847, refletia sobre o trabalho e o comércio:

“A divisão do trabalho na produção de bens serve apenas para

embrutecer a mão-de-obra. Se para produzir tesouras para unhas,

baratas e de qualidade, temos de reduzir os trabalhadores a máquinas,

é preferível cortar as nossas unhas com os dentes”.

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Rodríguez morreu em 1852. No ano anterior a sua morte,escreveu sobre como estava convencido das vantagens de umarevolução agrária:

“Se os (latino-) americanos quiserem que a revolução política, que o

peso dos eventos gerou e cuja sobrevivência foi possível graças à for-

ça das circunstâncias, proporcione benefícios verdadeiros, devem tentar

uma genuína revolução econômica, começando pelas áreas rurais: dali,

a revolução chegará às fábricas. Dessa forma, teremos progressos di-

ários, que nunca serão alcançados se se começar pelas cidades”.

Rodríguez pensava ainda que:

“Os americanos devem vencer sua resistência em se unir para alcan-

çar objetivos e seu temor a pedir conselhos antes de avançar. Aquele

que nada faz, nunca erra; no entanto, é preferível errar do que ir para

a cama dormir”.

Não é difícil entender como um revolucionário como HugoChávez, ansioso por reviver um discurso nacionalista na era daglobalização, tenha querido ressuscitar a vida e os escritos destehomem extraordinário. Simón Bolívar, outro de seus heróis, tinhauma grande dívida para com esse velho amigo, a quem chamavade Samuel Robinson. Hoje, essa dívida é também nossa.

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terceira figura exemplar resgatada por Hugo Chávez daturbulenta história da Venezuela do século 19 é a de

Ezequiel Zamora, líder das forças federalistas durante a guerracivil, entre 1840 e 1850. Zamora é um provinciano radical, umcomerciante que se transformou em soldado e estrategista. Tinhaum programa de Reforma Agrária, de grande alcance, em bene-fício do campesinato, uma apaixonada hostilidade à oligarquialatifundiária, um projeto para combinar soldados e civis na lutae um desejo de realizar o sonho bolivariano de unir suas tropascom forças similares do outro lado da fronteira com a Colômbia.Os objetivos desse revolucionário do século 19 casam-se perfei-tamente com o programa pessoal de Chávez.

Zamora foi, algumas vezes, reivindicado pela esquerda, naVenezuela, como um socialista precoce. Há evidências sugerindoque esse soldado carismático, esse “General do Povo Soberano”,que originalmente foi um comerciante provinciano, chegou a teramplo conhecimento da transformação da ordem das coisas na

12. EZEQUIEL ZAMORA CLAMA POR “HORROR ÀOLIGARQUIA”

DEZ VACAS LEITEIRAS DEVEM SER TRANSFERIDAS PELOS FAZENDEIROSPARA TERRENOS PÚBLICOS, PARA FORNECIMENTO DE LEITE GRATUITOÀS FAMÍLIAS POBRES.

PLANO DE EZEQUIEL ZAMORA PARA OS CAMPONESES, 1859.

A

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Europa de seu tempo, por meio de seu cunhado Juan Gasper, umimigrante da Alsácia. Era certamente familiar, para Zamora, o lema“liberdade, igualdade, fraternidade” que ele usava de vez em quan-do, pois estava bem informado sobre os acontecimentos europeusde 1848. Socialista ou não, era sem dúvida um progressista libe-ral e um homem de opinião avançada para seu tempo e lugar.

Tal como Douglas Bravo e os movimentos guerrilheiros dosanos de 1960 batizaram uma de suas linhas de frente guerrilheirasem homenagem a Zamora, Chávez sentiu profunda atração porseu programa radical, comentando-o durante suas aulas na Aca-demia Militar da Venezuela nos anos de 1980. Desde sua infân-cia, esteve familiarizado com o relato da campanha final que osoldado revolucionário empreendeu em 1859 em todo o territó-rio de seu Estado natal, Barinas.

Pouca coisa escrita resta das idéias de Zamora, mas as tradi-ções orais, recolhidas pessoalmente por Chávez quando esteveacantonado em Elorza, nos llanos, mantêm viva a crença ances-tral de que era um homem solidário com os pobres do campo. Suaconvocação aos camponeses insurgentes baseava-se em 3 lemas,comumente utilizados por Chávez:

“Terra e homens livres.”

“Eleições populares.”

“Horror à oligarquia.”

Durante muitos anos após sua morte, depois da vitória de seusoponentes conservadores, o nome de Zamora foi menosprezado.A oligarquia local, segundo Chávez, nunca perdoou a Zamora asações que realizou contra seus interesses, quando saqueou ovilarejo de Barinas. Ordenou que o edifício que continha os ar-quivos com os títulos de propriedade das terras fosse queimado

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até os alicerces. Em uma ação que lembrava a Revolução Fran-cesa, exigiu que as terras tomadas pelos camponeses ficassem asalvo de futuras represálias legais por parte dos fazendeiros.

Rómulo Gallegos, escritor e efêmero presidente da Venezuelapela AD, turvou as águas republicanas quando o comparou a JoséTomás Boves (1782-1814), o intransigente chefe dos homens dosllanos, os vaqueiros do Orinoco que lutaram junto com os mo-narquistas espanhóis contra Bolívar, em 1814, e arrebataramCaracas das mãos republicanas. Em seu romance Pobre Negro,publicado em 1937, Gallegos descreve como foi a recepção aZamora: “É Boves de volta, disse o velho, e que agora se fazchamar Ezequiel Zamora. Como Boves, ele sabe como fazer comque as pessoas o siguam...”.

A força de Boves residia em sua capacidade de mobilizar asclasses oprimidas, os escravos e os indígenas contra os republica-nos. “Desde o começo de sua campanha” – escreveu José AmbrosioLlamozas em 1815 – “ele manifestou a natureza da estratégia queadotaria e de que nunca se afastou: baseava-se na destruição detodos os brancos, enquanto resgatava, preservava e enaltecia aspessoas de cor... As casas e bens de todos aqueles que eram assas-sinados ou exilados eram transferidos para os mestiços que, alémdisso, receberiam o título de propriedade das terras.”

Isso sim é que era horror à oligarquia! Quando Boves tomoua Caracas republicana, em julho de 1814, arrasou-a, forçandoBolívar a fugir para o exílio na Jamaica. Boves não sobreviveumuito tempo, pois foi morto no decorrer daquele mesmo ano.

Zamora era um chefe popular e certamente proclamou o“horror à oligarquia”, embora não haja evidências de que tenhaimplementado o tipo de campanha racista intransigente quepunham em prática os vaqueiros das planícies. No entanto, che-gou à posteridade um legado contraditório. O Estado de Barinas,

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que algum dia foi conhecido como Estado de Zamora, foirebatizado posteriormente por políticos latifundiários locais, quenão apreciavam ver Zamora comemorado dessa forma. A está-tua de Zamora na Praça Zamora, de Barinas, foi derrubada elançada no rio Santo Domingo, que corre por um de seus lados.

Tudo isso é parte da história familiar de Chávez. Ele lembra que,em 1960, com seis anos, costumava ouvir os relatos que lhe faziasua avó, Rosa Chávez, em sua casa em Sabaneta. Ela, por sua vez,recuperava as narrativas feitas, nos anos de 1920, por seu avô, umhomem que acompanhou Zamora em sua marcha por Barinas, em1859. Ali, em Santa Inés, Zamora conseguiu sua maior vitória. Nosarredores de Sabaneta, ele cruzou o rio Boconó em uma passagemrasa, no mesmo lugar em que o jovem Chávez costumava ir, comseu pai, pescar e nadar. Às vezes, Chávez ia com seus companhei-ros de escola até o próprio campo da batalha de Santa Inés, sem-pre com a esperança de encontrar na areia velhas baionetas.

A batalha de Santa Ines foi a “obra-prima” de Zamora, escre-ve Malcom Deas, um historiador de Oxford, “um elaborado métodode emboscadas entrincheiradas”. Deas afirma que “a reputação deZamora como reformador igualitário deve-se a seu extraordináriodom para com o ser humano, um dom de relacionamento comtodas as classes sociais, assim como seu prestígio militar provéminteiramente de sua destreza no campo de batalha”. Portanto, nãohá dúvida de que Chávez tem razão quando reivindica Zamoracomo um idealista radical que pôs as necessidades dos campone-ses no coração de seu programa para transformar a economia ruraldo país. Entre suas propostas específicas que sobreviveram, está umplano de quatro pontos para os camponeses:

1. Devem ser destinadas ao uso comunitário cinco léguas ao redor de

cada vilarejo ou casario, em toda a sua circunferência;

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2. A abolição do sistema de cálculo da renda sobre terras agrícolas.

3. Os salários dos trabalhadores deverão corresponder a seu trabalho.

4. Dez vacas leiteiras devem ser transferidas pelos fazendeiros para

terrenos públicos, para fornecimento de leite gratuito às famílias po-

bres.

Fossem quais fossem as propostas específicas de seu pro-grama, Zamora permaneceu na lenda popular como um dosmais ousados caudilhos do século 19 Não foi um sedento desangue como Boves, mas teve uma capacidade similar paramobilizar as massas para a ação como, certamente, é o casode Chávez.

Zamora nasceu em Cúa, Estado de Miranda, em fevereiro de1817. Seu pai morreu na Guerra da Independência e sua famíliamudou-se para Caracas quando ele era bem jovem. Depois, voltouaos llanos, ganhando a vida, por alguns anos, como negociante degado. Posteriormente, abriu um armazém em Villa de Cura.

Apoiou a causa liberal na época de Antonio Leocadio Guzmán(1801-1884), fundador do partido liberal e poderoso opositor daoligarquia de fazendeiros reunidos em torno da figura de JoséAntonio Páez (1790-1873), o grande e idoso conservador quelutou ao lado de Bolívar. Depois de eleições tipicamente fraudu-lentas em sua cidade natal, em 1846, Zamora lançou um ataquecontra as forças dos fazendeiros, unindo-se a um dos grandeschefes nativo dos llanos, “o índio” José Rangel.

Zamora e Rangel organizaram os camponeses e escravos locais,em uma força de ataque que se chamou Exército do Povo Sobe-rano, mas foram derrotados em 1847, na batalha de Laguna dePedra. Zamora e Rangel foram capturados e condenados à morte.Rangel foi morto a machadadas; quanto a Zamora, suspenderamsua execução, comutando sua pena para dez anos de prisão. Fu-

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giu para Maracay quando era transportado para a cadeia de Ma-racaibo; conseguiu trabalho como diarista em uma fazenda, até quelhe foi concedida uma anistia, no ano seguinte.

Alistou-se então no Exército Liberal, de José Tadeo Monagas(1785-1868), continuando sua luta contra os fazendeiros. Em1849, suas tropas levaram a Caracas, acorrentado, o chefeoligarca José Antonio Páez; em 1851, transformou-se em coman-dante militar em Coro. Em 1854, quando os escravos foram en-fim libertados, Zamora opôs-se, inutilmente, a que seus antigossenhores recebessem indenização.

A derrota dos fazendeiros foi apenas temporária, visto que embreve voltaram, liderados pelo presidente Julián Castro. Zamora eoutros chefes liberais foram enviados para o exílio pelo Caribe; mas,em outubro de 1858, um grupo de exilados organizou uma JuntaPatriótica para planejar uma rebelião. Seriam dirigidos pelo generalJuan Crisóstomo Falcón, cuja irmã casara-se com Zamora.

Zamora voltou ao continente, efetuando um ataque vitorio-so a Acoro, em fevereiro de 1859. Começou então uma campa-nha para o oeste, que só terminou com sua morte, 10 mesesdepois, na batalha de San Carlos. Seu grande êxito de Santa Inés,em dezembro de 1859, obrigou à retirada das forças governamen-tais, conduzidas por Pedro Ramos, para Mérida, deixando Coro,Barinas e Portuguesa em mãos das forças federalistas.

Chávez recorre freqüentemente à batalha de Santa Inés emseus discursos, tendo ficado surpreso quando descobriu, duran-te uma visita a Havana, que o onisciente Fidel Castro sabia tudoa respeito. Quando conclamava os cidadãos a votar “sim” durantea campanha prévia ao plebiscito, realizado em 15 de dezembrode 1999, para ratificar a nova Constituição, Chávez pronunciouum discurso que prefigurava a batalha por vir, comparando suapostura à de Zamora.

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Na batalha de Santa Inés, Zamora fez com que suas tropas simu-lassem uma retirada, o que permitiu aos partidários do “não” avan-çarem e tomarem Barinas sem disparar um tiro. Zamora, partidáriodo “sim”, havia preparado uma emboscada e lançou seu contra-ataque, dando-lhes um golpe terrível e perseguindo-os até Mérida.

A intenção de Chávez era repetir o êxito de Zamora no ple-biscito.

Chávez também reivindica Zamora como o elo da correnteque liga o projeto de Bolívar ao programa que ele ambicionarealizar. O Zamora de Chávez seguiu as pegadas de Bolívar embusca do ideal de uma América Latina unida por meio de umaaliança integral com a Colômbia:

“Encontra-se, em Zamora, o mesmo pensamento geopolítico boliva-

riano quanto à unidade da América Latina; ele tentou unir suas forças

às que lutaram pela Federação em território colombiano do outro lado

do rio Apure. Em 19 de maio de 1859, em uma proclamação ao povo

de Barinas e Apure, ele descreveu “a nova era da Federação colombi-

ana que se abre, e que era o desejo póstumo de nosso Libertador, o

grande Bolívar”.

Chávez invocou outra característica de Zamora. Em um retra-to de Zamora por José Ignacio Chaquet, depois da batalha deSanta Inés, o herói guerreiro está representado de perfil, usando2 chapéus, um em cima do outro. Um é um chapéu comum e ooutro é um quepe militar. Em várias oportunidades, Chávez imi-tou essa postura. Para Zamora, o objetivo era destacar a unida-de entre o povo e as Forças Armadas, em seus esforços para “fa-zer a Revolução”. Em seu propósito de reestruturar as relaçõesentre a sociedade civil e a Força Armada, o comandante Chávezprocura manter essa tradição.

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* Godo: termo que se usava para se referir aos espanhóis durante as guerras de inde-pendência. Malandrin: bandido, malfeitor, criminoso, larápio. (N. do E.)

A lenda de Zamora sobrevive hoje nas estrofes de uma can-ção militar da época da guerra federal. Letra e música são deDomingo Castro, um músico do Exército:

“O céu encoberto anuncia tempestade

E o Sol detrás das nuvens perde sua claridade

Oligarcas, tremei, viva a Liberdade!

As tropas de Zamora, ao toque do clarim,

Derrotam as brigadas do godo malandrim*

Oligarcas, tremei, viva a Liberdade!”

Em uma narração recente da grande batalha de Zamora emSanta Inées, Román Martínez Galindo se queixa de que as novasgerações de crianças venezuelanas estão muito influenciadas pelatelevisão – particularmente a dos Estados Unidos. Martínez la-menta o fato de que “estão mais familiarizados com a conquistado Oeste, com a anexação do Texas, ou com a guerra civilestadunidense entre o Norte e o Sul, do que com as guerrasfederalistas da Venezuela”. A história de Zamora, sugere, é “umepisódio de tanta importância em nossa história, escrita pornossos antepassados próximos, que é necessário conhecê-la serealmente quisermos saber quem somos”.

Martínez Galindo tem a esperança de que algum dia ostalentosos cineastas da Venezuela decidam nos resgatar docolonialismo dos filmes de vaqueiros, dos marines, dos boinas-verdes... e que possamos ver o General do Povo Soberano nocinema, tocando clarim à frente de suas tropas, enquanto ento-am “Oligarcas, tremei!”

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TERCEIRA PARTE

PREPARANDO A DERRUBADA DO ANTIGO REGIME

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or sua participação na organização da tentativa de golpe defevereiro de 1992, o tenente-coronel Chávez recebeu uma

longa pena de prisão. Na prática, ficou encarcerado apenas 2anos, de fevereiro de 1992 a março de 1994. Detido primeiro emSan Carlos,* foi transferido, posteriormente, para San Franciscode Yare. Recebeu tratamento adequado na prisão e procurou, dealguma maneira, comportar-se como um oficial destacado. Per-mitiram-lhe ser entrevistado pela rádio e receber numerosas vi-sitas, algumas das quais passaram a desempenhar um papelimportante em sua formação política e, posteriormente, em seugoverno. Teve também tempo para ler e pensar, assim como paraconsiderar mais profundamente as bases nacionalistas de suafilosofia política.

Enquanto Chávez esteve preso, uma série de acontecimentosdramáticos ocorreu no cenário nacional. O presidente Carlos

1992 – 199413. A PRISÃO DE YAREÀ PROCURA DE ALIADOS POLÍTICOS

(OS) PROJETOS ORIGINAIS (DO MAS ERAM) DE JUSTIÇA SOCIAL, DE EQÜIDADE,LIBERDADE, DEMOCRACIA, REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA. ESSAS FORAM ASBANDEIRAS DE QUE OUVI FALAR, QUANDO EU ERA JOVEM, NO ENSINO MÉDIO,LÁ EM BARINAS...

HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM JUNHO DE 1998.

P

* Antiga prisão militar, localizada em Caracas. (N. da T.)

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Andrés Pérez, que sobrevivera a 2 tentativas de golpe militar em1992, foi finalmente destituído do poder em junho de 1993, poraquilo que foi, de fato, um golpe do Congresso. Perdera o apoioda velha guarda da AD, seu próprio partido. Alinhados contra eleno Congresso, acusaram-no de corrupção e, junto com dois deseus ministros, forçaram-no a renunciar à Presidência. Foi subs-tituído, para completar o período, por Ramón J. Velásquez, umconhecido historiador.

Quando as novas eleições presidenciais foram convocadas, emdezembro de 1993, o tenente-coronel Chávez conclamou seusseguidores a se absterem, o que muitos deles fizeram. O resulta-do da votação foi pouco alentador para os partidos tradicionais.Quando Pérez foi eleito, em dezembro de 1988, 25% dos eleito-res se abstiveram. Em dezembro de 1993, a abstenção chegou a40%, uma porcentagem de eleitores consideravelmente maior doque os míseros 30% que votaram para eleger o eventual vitori-oso: Rafael Caldera.

A força política dos velhos partidos estava desmoronando. Acrise econômica, o Caracazo, as duas tentativas de golpe de Es-tado e suas próprias divergências internas estavam aplainando ocaminho para a catástrofe. Pela primeira vez na políticavenezuelana, os quatro principais candidatos receberam umaparcela semelhante de votos: Claudio Fermín, pela AD, recebeu23,60%; Oswaldo Álvarez Paz, do Copei, obteve 22,73%; AndrésVelásquez, da Causa R, recebeu 21,95%. Apenas Caldera, com30%, obteve uma estreita vantagem e todos reconheceram queconseguira a vitória graças a seu famoso discurso no Congresso,em fevereiro de 1992, no qual virtualmente legitimara o golpe deChávez. Devido a sua habilidade política inata, ou simplesmen-te por sorte, Caldera deu seqüência a sua campanha como inde-pendente, formando um grupo chamado Convergência, que se

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aliou ao MAS. Sendo o fundador do Copei, ele os abandonou,assim como estes o abandonaram.

Embora Caldera fosse o vencedor por estreita margem, nãoteve nada parecido com maioria no Congresso. Seu governo fi-cou amarrado desde o começo, vendo-se obrigado a pedir apoioa Luis Alfaro Ucero, o chefe da AD.

Os politicólogos começaram a falar, pela primeira vez, danatureza messiânica da cultura política venezuelana. Caldera eravisto como o mago do momento, como já o fora Pérez, em 1988.Caldera era o homem que, novamente, poderia reunificar o país,apesar de ter tudo contra. Posteriormente, nos mesmos anos de1990, a situação política tornou-se tão desesperadora, que can-didatos milagrosos apareceram de todos os lados. Um deles eraIrene Sáez, uma ex-rainha de beleza, que se tornou prefeita deChacao. Outro seria o tenente-coronel Hugo Chávez

Novas forças começaram a emergir no país. Um pormenorimportante nas eleições de 1993 foi a grande votação da CausaR, o partido radical de trabalhadores do Estado de Bolívar, quejá tivera alguma influência sobre Chávez. Transformou-se naterceira maior força, depois dos dois partidos principais. Estes,juntos, receberam menos votos do que os dois menores e de maisrecente formação: a Convergência, de Rafael Caldera (aliado aoMAS), e a Causa R.

Os dois partidos de esquerda eram agora atores principais dacena nacional. O MAS decidiu participar com Caldera, enquan-to a Causa R decidiu esperar algum tempo. Na seqüência, e de-pois de sérias divisões, ambos apoiariam Chávez.

O MAS é uma pequena organização política, mas com gran-de influência intelectual, que seguiu a maioria dos altos e baixosdos movimentos socialistas semelhantes da Europa, oscilandoentre o eurocomunismo e a socialdemocracia. Uma porção con-

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siderável da esquerda intelectual na Venezuela entrou e saiu doMAS durante seus 30 anos de existência e suas acirradas lutasinternas forneceram grande parte da matéria-prima para o debatepolítico na Venezuela.

Fundado no início dos anos de 1970 por antigos membros doPCV, muitos dos quais haviam lutado nos movimentos guerrilhei-ros dos anos de 1970, seu porta-voz mais claro e várias vezescandidato à Presidência da República era Teodoro Petkoff. Desen-cantado da luta guerrilheira, e desiludido com a invasão sovié-tica na Tchecoslováquia, em 1968, a trajetória política de Petkofffoi de um lento deslocamento para a direita, embora suas açõessempre tenham sido guiadas por um forte senso moral quanto aoque é correto fazer em determinado momento. Durante a crise dosanos de 1990, entregou-se à tarefa de levar o MAS a apoiar ogoverno minoritário de Rafael Caldera. O próprio Petkoff desem-penhou um papel destacado naquele governo como ministro doPlanejamento, implementando um conjunto de reformasneoliberais. Foi incorporado ao governo por outro conhecido ex-comunista e fundador do MAS, Pompeyo Márquez, que veio a sero ministro de Fronteiras do governo Caldera.

Reconhecendo sua dívida política para com o tenente-coro-nel Chávez, que lhe dera a margem sobre os outros candidatos,o presidente Caldera deu instruções, no início de seu mandato,para que fossem libertados os envolvidos nos 2 golpes militaresde 1992. Chávez saiu da prisão em um domingo de Ramos, 27 demarço de 1994.

Durante seu cativeiro, Chávez, assim como Caldera, estiveraem busca de aliados políticos. Renovara seus contatos com umconsiderável número de figuras civis que conhecera antes dogolpe. Luis Miquilena foi um visitante assíduo, como outrosmembros da Frente Patriótica formada em 1989. Falou com gente

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do MAS e da Causa R, mas parece ter estabelecido um limitediante do Bandeira Vermelha, um pequeno grupo que ainda pre-gava a luta armada e que se proclamava herdeiro das guerrilhasdos anos de 1960. Chávez nunca teve muito tempo para a ultra-esquerda.

“Setores como esses parece que se auto-atribuíram a missão purista de

se proclamarem os únicos revolucionários do planeta, ou deste terri-

tório. E aqueles que não sigam seus dogmas, aqueles que não aceitem

suas propostas, não são revolucionários. Deixe-me dizer-lhe que nunca,

jamais conversei mais de 5 minutos com algum dirigente do Bandeira

Vermelha.”

Embora Teodoro Petkoff estivesse trabalhando com Caldera,outra figura proeminente do MAS, Jorge Giordani, fora um visi-tante assíduo da prisão de Yare. Economista do desenvolvimento,preparado na Universidade de Sussex, e professor da Universida-de Central de Caracas e do Cendes, Giordani era o grande guru doMAS em matéria econômica. Recusara-se a apoiar o governo deCaldera e iria se transformar em um dos principais conselheiroseconômicos de Chávez. Muitas das idéias econômicas, semifo-muladas, de Chávez provêm de sua articulação com Giordani, que,em 1999, foi designado ministro do Desenvolvimento, encarregadode Cordiplan.

O MAS não era sinônimo de Petkoff em nenhum aspecto e,quando a possibilidade de uma presidência de Chávez apareceuno horizonte, por volta de 1998, Giordani e uma maioria do MASoptaram por apoiá-lo. Petkoff era ainda ministro de governo deCaldera e não desejava mudar de linha. Não concordava com aproposta política de Chávez em quase nenhum de seus aspectos.Mas o resto de seu partido aderiu a Chávez.

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Ao perguntar-lhe porque o MAS apoiara sua campanha pre-sidencial, Chávez observou que a direção apresentara muita re-sistência, mas que se submetera à pressão das bases partidárias.Entrevistado por Agustín Blanco Muñoz em 24 de junho de 1998,disse que os membros de base apoiavam-no há bastante tempo:

“Quando saímos de Yare, nessas viagens pelo país, o pessoal do MAS

sempre estava presente, procurando conversar. Acho que a maior parte

das bases do MAS, esse corpo estruturado que há no país, sempre es-

teve e está conosco e nunca concordou com a incorporação do MAS

ao governo (de Caldera) e, menos ainda, com as decisões posteriores,

tomadas por parte da cúpula... Creio que foram capazes de estimular,

de pressionar a direção para que tomasse uma decisão que, penso,

aponta para a busca de suas raízes, de seus projetos originais de jus-

tiça social, de eqüidade, liberdade, democracia, de revolução democrá-

tica. Essas foram as bandeiras de que ouvi falar, quando eu era jovem,

no ensino médio, lá em Barinas, quando nasceu o MAS. Quase no

mesmo ano em que entrei para o Exército, em 1971.”

Durante aqueles anos, Chávez conheceu outro fascinanteativista político, um historiador argentino chamado NorbertoCeresole. Como, apesar de ter raízes na esquerda, Ceresole foiadotando posições mais próximas à direita, seus primeiros con-tatos com Chávez são citados muitas vezes como indícios danatureza reacionária de suas opiniões.

Ceresole afirma que, nos anos de 1970, foi membro dosMontoneros, o grupo guerrilheiro peronista que esteve em primei-ro plano durante o governo de Perón e, depois, durante o de suaviúva, Isabelita. Mais tarde, pronunciou-se a favor do golpemilitar do general Jorge Videla contra a presidência de IsabelitaPerón em 1976, afirmando que as organizações de direitos hu-

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manos que criticavam os excessos da “guerra suja” na Argenti-na faziam parte de um “complô judeu” contra a nação. Ceresoleé também autor de muitos livros. Um deles, A conquista do im-pério americano, publicado pela editora Al-Andalus, em Madri,em 1998, denuncia energicamente a máfia financeira judia quese esconde por trás do capitalismo americano.

No início, Ceresole foi útil a Chávez devido ao seu permanenteinteresse histórico por governos militares “progressistas”. Comoperonista radical, Ceresole tecia considerações sobre Nasser eAtaturk; também escreveu livros para apoiar o general peruanoVelasco Alvarado e o general panamenho Torrijos. Suas nume-rosas conexões com os governos árabes foram extraordinaria-mente úteis. No entanto, uma amizade prolongada com esseargentino controvertido poderia ter se tornado embaraçosa;quando Chávez assumiu a Presidência, desapareceu oportuna-mente do país, voltando a Buenos Aires.

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iudad Bolívar, antes Angostura, assim chamada devido aoestreitamento do rio, é um vilarejo colonial assentado rio

acima, na margem Sul do Orinoco. Uma calçada arborizadamargeia o rio, com balaustradas que impedem os transeuntes decair, sendo vítimas dos jacarés, que outrora caracterizaram essavia aquática estratégica. Walter Raleigh esteve em Angostura,assim como o cientista alemão Alexandre Humboldt, recuperan-do-se durante semanas de um surto de febre.

Simón Bolívar também utilizou Angostura como base polí-tica, anos antes que fosse rebatizado em sua honra. Esteve aliprimeiro em 1816, antes de seu espetacular avanço pelas mon-tanhas andinas, em direção à Colômbia. Depois, em 1819, oCongresso, que convocara entre as populações libertadas próxi-mas ao Orinoco e às costas caribenhas, designou-o presidente ecomandante militar do novo Estado da Grande Colômbia.

“Feliz o cidadão” – disse Bolívar na abertura do Congresso deAngostura – “que, sob o escudo das armas a seu mando, convo-

14. CAUSA R, PÁTRIA PARA TODOS (PPT)E A POLÍTICA EM GUAYANA

A CAUSA R REPUDIAVA A ESTRATÉGIA DE MEGAPROJETOS, ORIENTADOS PARAA INDÚSTRIA DE EXPORTAÇÃO DE MATÉRIA-PRIMA... CONCENTRANDO-SE EMINDÚSTRIAS MANUFATUREIRAS DE MÉDIO PORTE, CAPAZES DE TRANSFORMARMATÉRIA-PRIMA NO PRÓPRIO ESTADO DE BOLÍVAR.

MARGARITA LÓPEZ MAYA

C

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cou a soberania nacional para que exerça sua vontade absoluta!”O presidente Chávez utilizou as mesmas palavras quando instoua Assembléia Nacional a preparar uma nova Constituição, 180anos depois, em 1999.

Angostura, ou Ciudad Bolívar, como se chama agora, foi emdeterminado momento um importante centro de comércio deque hoje só resta a glória de uma história esquecida. Mantémsua importância como capital do Estado de Bolívar e passagempara as planícies do baixo Orinoco e para a região oriental daGuiana. Ultrapassada a cidade, uma rodovia conduz a CiudadGuayana, o centro do maior complexo industrial jamais plane-jado na Venezuela, um lugar onde o espírito heróico e pionei-ro faz pensar nos dias gloriosos da União Soviética. Esse é ocoração energético da Venezuela, um lugar onde o Estado as-sumiu a responsabilidade de desenvolver a indústria pesada ea geração de energia, elementos indispensáveis de uma econo-mia moderna.

Pode-se chegar a pensar que, se a Venezuela tem grandequantidade de petróleo, teria sido suficiente instalar usinas degeração movidas a combustível. Mas não é assim; governosambiciosos, tempos atrás, tomaram a decisão de vender petró-leo no mercado externo e obter energia hidrelétrica própria parasua indústria nacional. A região de Guayana abriga o segundomaior complexo hidrelétrico do mundo, situado em Guri, sobreo rio Caroní. Só é superado pela represa de Itaipu, sobre o rioParaná, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Aqui estãotambém as escavações de uma imensa montanha de minério deferro em Cerro Bolívar, além da enorme usina operada pelaSiderúrgica do Orinoco – Sidor – e além de uma embrionáriaindústria de alumínio. Todas elas foram instaladas e operadascom recursos do Estado.

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Atender e manejar essas gigantescas empresas exigiu umavasta força de trabalho, atraída para a região de todos os cantosdo país. Não é de surpreender, portanto, que a região tenha setornado famosa por sua radicalização política. Um poderosomovimento de trabalhadores desenvolveu-se durante cerca de 30anos, independentemente dos sindicatos, controlados pelos go-vernos da época. Hoje, esse movimento constitui um sólido apoiodo presidente Chávez.

Ciudad Guayana é o berço da Causa Radical (Causa R), umaorganização política única na Venezuela. Fundada no princípiodos anos de 1970, a Causa R, ou Causa Radical, foi o núcleooriginal de PPT, um partido criado em 1997 e que hoje faz partedo Pólo Patriótico, a coalizão governamental de Chávez. O PPTproporcionou ao governo vários de seus principais ministros,assim como muitas de suas lúcidas idéias.

A Causa R foi fundada nos anos de 1970 por Alfredo Manei-ro, um lutador das guerrilhas do PCV na década anterior. O grupode Maneiro, assim como o do MAS, de Teodoro Petkoff, formou-se a partir das cisões que afetaram o velho PCV, em 1970, no finaldas lutas guerrilheiras. Maneiro, nascido em 1939, foi membro doComitê Central do PCV e comandante guerrilheiro do frente ori-ental. Quando o PCV implodiu, no final dos anos de 1960, Maneiroidentificou-se com a posição chinesa, na disputa sino-soviética,atitude radicalmente diferente da de dissidentes como Petkoff, quese aproximou da socialdemocracia de tipo europeu. Pablo Medinafoi um dos discípulos de Maneiro quando se dedicava à luta sin-dical. Foi membro da Assembléia Constituinte de 1999 e um dosmais proeminentes assessores civis de Hugo Chávez.

O grupo de Maneiro participou da formação do MAS, em ja-neiro de 1971, mas rapidamente mudou de direção. Maneiro ado-tou uma posição muito crítica em relação ao velho PCV dos anos

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de 1960, e não apenas por questões de doutrina. Começou a ques-tionar a pertinência dos partidos políticos em geral, até chegar aformular uma posição ideológica hostil a esse tipo de organização.Em uma coleção de artigos, Notas Negativas, publicada em 1971,esboçou a posição política de um novo grupo de esquerda nacio-nalista que chamou de Venezuela 83, precursor do Causa R.

O número 83 refere-se ao ano de 1983. Naquela data, para aqual faltavam dez anos, as companhias petrolíferas estrangeirasque operavam na Venezuela devolveriam suas concessões aoEstado venezuelano em virtude do tratado assinado em 1944. Aopinião nacionalista venezuelana esperava ansiosamente a che-gada desse acontecimento (na prática, Carlos Andrés Pérez, maispopulista e demagogo do que nunca, conseguiu adiantar a datapara 1976, ano em que as companhias petrolíferas foram final-mente nacionalizadas).

O objetivo político de Maneiro era particularmente original,pois consistia em canalizar os movimentos de protesto sem cri-ar uma estrutura política partidária. A historiadora MargaritaLópez Maya descreveu seu projeto da seguinte maneira:

“Maneiro dizia que era necessário dar tanto um quadro político à

extraordinária capacidade de mobilização espontânea das massas,

quanto participar das infinitas e variadas formas de movimentos po-

pulares; mas isso devia ser feito com a firme convicção de que as

massas sozinhas deviam decidir sobre sua própria orientação política.

Em lugar de começar com uma estrutura política dada, era importan-

te crer na capacidade dos movimentos populares de gerar novas lide-

ranças em suas próprias fileiras”.

Uma vez formulada essa interessante e inovadora filosofiapolítica, Maneiro e seu grupo decidiram se concentrar em três

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áreas particulares de mobilização popular, onde deveria eventual-mente emergir a necessária liderança de vanguarda. Uma delasera o movimento estudantil, criado na Universidade Central daVenezuela, uma efervescente organização política sediada nosmagníficos edifícios modernistas de Carlos Raul Villanueva. Comprofundas raízes, que chegam às gerações de 1918, 1928 e 1958,assim como à de 1968, a UCV esteve, durante muitos anos, as-sociada à esquerda. Uma segunda área de protestos populares eraa zona Oeste de Caracas, no subúrbio de Catia, com meio milhãode habitantes de várias raças e considerável tradição de lutaspopulares.

A atividade política nessas 2 frentes, a UCV e Catia, teve êxito,inicialmente, mas logo revelou-se politicamente estéril. A Cau-sa R concentrou seus esforços na terceira área escolhida porManeiro, o movimento operário de Ciudad Guayana, associadoà indústria siderúrgica estatal, Sidor. Depois de uma longa gre-ve, os trabalhadores da Sidor haviam se politizado, adotandoposições críticas em relação aos sindicatos oficiais, controladospela AD. Ali, a filosofia de Maneiro foi posta à prova e deu re-sultados satisfatórios.

As grandes obras públicas em Ciudad Guayana, a Sidor e osgrandes reservatórios no rio Caroní eram fruto de decisões toma-das durante os anos de 1950, sob a ditadura militar de MarcosPérez Jiménez. Pérez Jiménez, uma figura que todos prefeririamesquecer, vive exilado na Espanha.* No Palácio de Miraflores, emCaracas, uma fileira de retratos presidenciais vai desde RómuloGallegos (deposto em 1948) até Rómulo Betancourt (que tomouo poder em 1958). Pérez Jiménez, que governou entre esses 10

* A edição inglesa deste livro foi publicada antes da morte de Marcos Pérez Jiménez,em 20 de setembro de 2001, aos 86 anos. (N. da T.)

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anos, tornou-se um personagem desconhecido, tirado da Histó-ria. No entanto, tomou muitas decisões fundamentais, que afe-tariam a economia venezuelana por 50 anos, decisões de talmonta e implicações que, até os anos de 1990, nenhum dos pre-sidentes posteriores teve a coragem ou a oportunidade dereconsiderá-las.

Luis Miquilena, o conselheiro político mais destacado deChávez, tem uma atitude interessante, ambivalente, em relação àditadura de Pérez Jiménez. Apesar de vítima da repressão da épo-ca, Miquilena agora é capaz de reconhecer os êxitos do ditador:

“O ditador tinha uma idéia das potencialidades do país bastante mais

elaborada do que a dos que integravam a AD naquela época. Pérez

Jiménez estabeleceu as bases de nosso desenvolvimento e posso dizê-

lo com a autoridade de alguém que esteve preso 7 anos durante o seu

mandato.

Naquela época, desenvolveu-se a indústria siderúrgica e foram

construídas as principais estradas do país. Certamente, ele tinha um

plano e um conceito do que o país podia ser, o que nunca tiveram seus

sucessores”.

Essas idéias, diz Miquilena, eram importantes, e só foramretomadas “quando Chávez propôs fundar um novo país pela viademocrática”.

O caminho da Venezuela para o desenvolvimento industrialsob os preceitos do governo de Pérez Jiménez deveria ter sidoretilíneo. Com ferro, bauxita e eletricidade baratos e transporteeconômico pelo Orinoco (além da proximidade de um vastomercado, como os Estados Unidos), a rota para frente pareciasimples e atraente. No entanto, quanto ao econômico, as empresasestatais de Ciudad Guayana transformaram-se em dor de cabe-

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ça sem fim para os sucessivos governos e, tal como na UniãoSoviética, as desvantagens do capitalismo de Estado tornaram-se cada vez mais evidentes.

A poderosa Corporação Venezuela de Guayana (CVG), corruptae burocrática, tornou-se um estado dentro do Estado. O desenvol-vimento industrial fora financiado pela renda do petróleo e quandoos preços desse produto despencaram, nos anos de 1980, a ruínaeconômica da região de Guayana tornou-se muito evidente.

Aparentemente, tudo continuava igual. Grandes rodovias cru-zavam o território, a vasta produção siderúrgica da Sidor manti-nha-se, a faraônica represa de Guri funcionava a plena capacida-de. No entanto, bastava rever os livros para constatar o tamanhoda ruína. O dinheiro dos lucros do petróleo era mal empregadopelos partidos políticos no poder, em conivência com sindicatos(que eram extensões dos partidos políticos), o que permitia gran-des superfaturamentos. Grandes dívidas foram contraídas, sem quese pensasse em como seriam pagas. A Sidor empregava 6 mil tra-balhadores, mais do que era economicamente justificável. A usi-na hidrelétrica da represa de Guri não podia sobreviver se nãocobrasse a eletricidade que produzia. Outras fábricas necessitavamde investimentos consideráveis e havia pouca disponibilidade porparte do Estado. Era necessário dinheiro proveniente dos investi-dores estrangeiros, o que, por sua vez, exigia melhoramentos emeficiência e competitividade, uma mudança da água para o vinho,para o paternalista Estado venezuelano.

Subitamente, os trabalhadores da região começaram a ouvir osporta-vozes da Causa R. Pablo Medina, outro partidário das guer-rilhas dos anos de 1960, fora enviado à Sidor para se infiltrar comotrabalhador, em 1972. O clima parecia propício à atividade polí-tica. A nova Ciudad Guayana transformara-se em um imã para ostrabalhadores não organizados, que migravam de todo o país, e o

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crescimento potencial de uma organização sindical criativa rapi-damente tornou-se evidente. Medina trabalhava no turno da noi-te na siderúrgica; durante o dia, produzia um jornal, El Matancero,muito crítico em relação ao sindicato dominante, ligado à AD.

Ao descrever essas atividades iniciais, Margarita López Mayarelata como o jornal de Medina se concentrou em áreas da lutapolítica que anteriormente ficaram desassistidas:

“El Matancero combatia a corrupção do sindicalismo tradicional e recla-

mava o direito dos trabalhadores de participar democraticamente das

decisões sindicais que lhes diziam respeito, algo nunca visto até então

na região. Igualmente, exigia a participação nas decisões relativas à

segurança nos locais de trabalho, aspectos nunca antes considerados pelos

dirigentes sindicais”.

Andrés Velásquez foi um dos primeiros militantes da Causa R.Esse habilidoso eletricista, que foi depois candidato presidencial daesquerda, culminava com as esperanças de Maneiro de que umanova liderança emergisse das lutas específicas. Em 1977, depois de5 anos de atividade política continuada, outra incorporação: TelloBenítez foi eleito para o sindicato dos trabalhadores siderúrgicos,Sutiss, Sindicato Único dos Trabalhadores da Indústria Siderúrgi-ca e Similares.

Depois de uma década de trabalho político, os ativistas asso-ciados a El Matancero abriram uma brecha momentânea. Nas elei-ções sindicais de 1979, a chapa de El Matancero, encabeçada porVelásquez, assumiu o controle do Sutiss. Foi uma vitória de Pirro.*

* Pirro II, rei de Épiro, região da Grécia antiga, na batalha de Heracléia, em 280 a.C.,apesar de vitorioso, sua vitória causou tantos danos ao seu exército que pode ser con-siderada uma derrota. Esse tipo de êxito com sabor de derrota deu origem à expres-são “vitória de Pirro”.

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Dois anos depois, em 1981, o Sutiss sofreu intervenção por partede sua federação, a Fetrametal, uma organização sob o controle daAD. Velásquez e Benítez foram despedidos da siderúrgica. A Cau-sa R estava agora e pouco tempo depois, perdeu seu fundador:Alfredo Maneiro morreu em novembro de 1982, com apenas 45anos de idade.

Passaram-se alguns anos antes que o Sutiss fosse capaz derecuperar sua independência: a chapa de El Matancero ganhounovamente em 1988. o movimento estava novamente em ascen-são e a Causa R, pela primeira vez, tinha presença nacional. Naseleições para o Congresso, em 1988, três candidatos da Causa Rforam eleitos deputados. No ano seguinte, o ano do Caracazo,Andrés Velásquez foi eleito governador do Estado de Bolívar, emdezembro de 1989. Três anos depois, em dezembro de 1992,voltou a vencer, enquanto outro ativista da Causa R, AristóbuloIstúriz, uma figura destacada do sindicato dos professores queapoiou o golpe de Chávez, foi eleito prefeito de Caracas. Final-mente, nas eleições presidenciais de dezembro de 1993, Velásquezobteve 22% dos votos em todo o país. Era um triunfo extraordi-nário.

O programa de Velásquez de 1990 fornece algumas indicaçõesquanto às ambições nacionais da Causa R naquele momento; temtambém algo das idéias que foram posteriormente incorporadasao governo de Hugo Chávez.

Segundo Margarita López Maya, o programa de Velásqueztinha quatro linhas mestras: a prática democrática devia serentendida não apenas enquanto eleições, mas também nas açõesdo próprio governo; a corrupção devia ser exterminada pela raiz;era preciso garantir a competência e a transparência na presta-ção dos serviços, especialmente os da saúde, educação eseguridade social.

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A quarta premissa, que se referia especificamente ao desen-volvimento da região de Guayana, era perfilar critérios muitodiferentes dos concebidos até então pelo Estado venezuelano:

“A Causa R repudiava a estratégia de megaprojetos, orientados para a

indústria de exportação de matéria-prima (ferro, alumínio, bauxita) e em

seu lugar era favorável às atividades águas abaixo do Orinoco, concen-

trando-se em indústrias manufatureiras de médio porte, capazes de trans-

formar matéria-prima no próprio Estado de Bolívar”.

Não haveria mais megaprojetos que o Estado não pudesse finan-ciar e, sim, um número maior de empresas de porte médio quepudessem ser sustentadas no local. Tal foi a herança intelectual quea Causa R passou ao governo de Hugo Chávez. Alguns escritoressugeriram que a Causa R, com sua ênfase nos trabalhadores e nosindicalismo, tem algumas semelhanças com o Partido dos Traba-lhadores, de Lula, no Brasil. Na prática, o paralelo é mais satisfatóriocom os partidos verdes da Europa, particularmente na Alemanha. ACausa R não é, de modo algum, um partido da esquerda tradicional.

Pouco tempo depois do golpe de Chávez, de 1992, a Causa Rrealizou um de seus mais notáveis recrutamentos: o tenente-coronel Francisco Arias Cárdenas, companheiro de Chávez noMBR-200, o oficial que controlou Maracaibo durante a tentati-va de golpe. Cardenas é natural do Estado de Táchira e, nas elei-ções de 1996, foi escolhido candidato da Causa R para o gover-no do Estado de Zulia.

Esse foi, provavelmente, o ponto mais alto a que chegou aorganização de Maneiro. Posteriormente, a Causa R foi varridapela onda do fenômeno Chávez. Como todos os movimentospolíticos na Venezuela, teve de enfrentar decisões inesperadas:apoiar Chávez para a Presidência ou repudiá-lo?

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Em fevereiro de 1997, a Causa R dividiu-se em dois gruposdiferentes: uma pequena fração permaneceu com o nome CausaR, enquanto uma nova organização, de maior envergadura, co-meçou a se chamar PPT.

A divisão criou um conflito entre Andrés Velásquez e PabloMedina. Velásquez permaneceu na Causa R, apoiado por AnaBrumlick, a viúva de Maneiro. Pablo Medina, apoiado porAristóbulo Istúriz, Alí Rodríguez Araque e Alberto Muller Rojas,formam o PPT, somando seus esforços à campanha presidencialde Chávez.

O PPT tornou-se um componente importante do Pólo Patrió-tico, aliança criada para apoiar a candidatura presidencial deChávez em 1998. Pelo menos 4 de seus membros desempenharamum papel importante no governo de Chávez. Um deles é o tenen-te-coronel Arias Cárdenas, governador de Zulia. Outro é AliRodríguez Araque, ex-comandante guerrilheiro dos anos de 1960,que foi nomeado ministro de Energia e Minas em 1999, sendoagora o homem por trás das novas dinâmicas da política da Opep.Aristóbulo Istúriz é o vice-presidente da Assembléia Constituinte.Pablo Medina é o secretário-geral do PPT, enquanto Alberto MullerRojas é o embaixador da Venezuela em Santiago do Chile.

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o sair da prisão, em março de 1994, o tenente-coronel Chávezcomeçou a pensar em seu futuro político. Inicialmente, con-

tinuava opondo-se à participação em eleições. O velho sistema eracorrupto demais e hostil demais para com os recém-chegados. Emprimeiro lugar, concentrou-se em tornar públicos os dois pontosprincipais de sua agenda política: a necessidade de dissolver oCongresso e a necessidade de convocar uma Assembléia Constitu-inte para redigir uma nova Constituição.

O repúdio de Chávez ao sistema político vigente era tão pro-fundo que se opôs à candidatura de seu amigo e companheiro,Francisco Arias Cárdenas, a governador do Estado de Zulia, em1995. Arias não teve o apoio do MBR-200, como era esperado,mas, sim, o da Causa R.

No princípio de 1997, Chávez começou a mudar de opinião.O apoio popular aumentava e suas conversas com a Causa R ecom o MAS prosseguiam. Com vistas nas eleições presidenciaisde 1998, dispunha de apenas dois anos para transformar esse

15. AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1998

NA LUTA PELO PODER NA VENEZUELA” – DISSE CHÁVEZ AOS DELEGADOS EMABRIL DE 1997 – “CONTRAPÕEM-SE DOIS PÓLOS: O ‘PÓLO PATRIÓTICO’,LIDERADO PELO MBR-200, E O ‘PÓLO DA DESTRUIÇÃO NACIONAL’, LIDERADOPELOS VELHOS PARTIDOS POLÍTICOS.

A

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apoio em uma organização capaz de conduzir uma campanhaeleitoral – e ganhá-la. Por volta de julho de 1998, seis meses antesdas eleições, alcançava 45% nas pesquisas de intenção de voto.

Inicialmente, começou a reconstruir seu MBR-200, comoorganização política propriamente dita, com apoio civil e mili-tar. Anunciou, em janeiro de 1997, que seu movimento chega-ria ao poder “antes do ano 2000” e, em abril, declarou formalmen-te sua intenção de optar pela presidência.

O MBR-200 organizou seu primeiro Congresso naquele mêse os delegados decidiram que deviam apresentar candidatos atodos os cargos contemplados nas eleições que se realizariam emdezembro de 1998. Ao mesmo tempo, haveria eleições para aPresidência e para o Congresso, para governadores de Estado eprefeitos. “Na luta pelo poder na Venezuela” – disse Chávez aosdelegados em abril de 1997 – contrapõem-se dois pólos: o ‘PóloPatriótico’, liderado pelo MBR-200, e o ‘pólo da destruição na-cional’, liderado pelos velhos partidos políticos.”

Por várias razões, o MBR-200 – que incluía tanto oficiais naativa quanto na reserva – parecia um instrumento pouco apro-priado para preparar uma campanha eleitoral civil. Havia opo-sição dentro do MBR-200 sobre a estratégia eleitoral. Algunsmembros afirmavam que essa oposição levaria a uma eventualdissolução do programa radical, tal como sucedera com movi-mentos progressistas como o MAS e a Causa R.

Por seu lado, Chávez afirmava que não se devia perder aoportunidade de fazer campanha quando tantos cargos eletivosestavam em jogo. Mas, em vista dessa oposição interna, decidiudeixar o MBR-200 como estava e criar um novo agrupamentopolítico que pudesse ser organizado como força eleitoral. Emjulho, batizou sua nova organização com o nome de Movimen-to V República (MVR). A Venezuela precisava criar uma nova

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república, afirmou, e o novo movimento fora projetado paramanifestar a ruptura total com o passado.

A Venezuela tivera quatro repúblicas, desde a declaração deindependência, em 1811. Duas foram formadas durante a Guer-ra de Independência: a Confederação de Estados da Venezuela,em 1811, e a Segunda República, em 1813; a Terceira Repúblicafoi criada nos tempos da formação da Grande Colômbia, em 1819.A Quarta República, fundada em Valencia, em 1830, por umgeneral de Simón Bolívar, José Antonio Páez, seria a mais dura-doura. Construída, disse Chávez, por “uma classe de oligarcas ede banqueiros, sobre os restos de Bolívar e de Sucre”, a QuartaRepública venezuelana sempre foi dominada por conservadoresopostos aos ideais de Bolívar.

Desde já, Chávez aspirava a fundar a Quinta República, oprimeiro novo começo em 140 anos. Seu movimento, disse, ti-nha “caráter nacional e popular”. Tentaria retomar os ideais dopassado e seria fundado com base nas idéias de Bolívar.

Sua missão era assegurar o bem-estar da comunidade naci-onal, satisfazer as aspirações individuais e coletivas do povo daVenezuela, e garantir a situação de muita prosperidade para apátria.

Embora seja tentador imaginar que Chávez poderia estar ten-tando estabelecer um paralelo com as mudanças implementadasna França pelo general de Gaulle, depois do colapso da QuartaRepública francesa, em 1958, é possível que, para muitosvenezuelanos, a idéia de “Quinta República” tenha alguma rela-ção com a noção milenarista de “Quinta Monarquia”. O fato é que,nos últimos anos do século 20, as livrarias de Caracas estavamrepletas de material new age, e havia literatura que chegava asugerir que os venezuelanos eram uma nação de eleitos, especi-almente escolhidos para realizar os desígnios de Deus.

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Os “Homens da Quinta Monarquia”, politicamente ativos naGrã-Bretanha durante o século 17, acreditavam que as quatromonarquias, da Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma, seriam segui-das pela dos santos. A utopia projetada dos santos se caracteri-zaria pela abolição do dízimo, a reforma das leis, a humilhaçãodos ricos e a exaltação dos pobres. A noção milenarista de Chávezacerca de um novo começo, depois dos males e da corrupção dopassado, deve ter acertado em cheio nos milhares de eleitoresfamiliarizados com a linguagem dos pregadores protestantes edos adventistas do sétimo dia.

Os movimentos milenaristas são relativamente comuns noTerceiro Mundo e a campanha de Chávez seguramente chamou aatenção da imensa subclasse que, na Venezuela, como no resto daAmérica Latina, adotou a igreja protestante evangélica em todasas suas diversas variantes com um fervor inusitado, em quantidadescada vez mais numerosas. Vários cartazes da campanha de Cháveztinham retratos religiosos do comandante, que era impossível dis-tinguir dos “santinhos” milenaristas distribuídos pelas seitas evan-gélicas. Dado que Chávez fala com a retórica de um pastor evan-gélico, invocando a dor, o amor e a redenção, a naturezamilenarista de seu apelo ao povo não deve ser subestimada.

No início, o MVR era pequeno. Cerca de 60% de seus primei-ros membros eram militares que haviam participado do MBR-200,enquanto 40% era de civis sem ideologia definida.

No começo de 1998, o ano eleitoral, o partido das massaspopulares começou a deslanchar. Outros partidos deram apoioformal à campanha de Chávez. O primeiro, em março, foi o PPT,a cisão da Causa R. Em maio, foi acompanhado pelo MAS. Os doisgrupos dividiam-se no processo. O MAS perdeu dois de seus lí-deres históricos: Teodoro Petkoff e Pompeyo Márquez. O PPTperdeu seu líder na Guayana: Andrés Velásquez.

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A nova aliança chavista, chamada Pólo Patriótico, fixou efe-tivamente um marco na história do MAS e da Causa R, os doispartidos de esquerda resultantes de cisões do PCV no início dosanos de 1970 que lentamente construíram sua força como mo-vimentos independentes. A partir de então, suas idéias sobrevi-veriam e prosperariam para preencher o vazio ideológico do MVRde Chávez, que tinha pouco a propor, além de seu nacionalismomal definido e de seu entusiasmo milenarista. Mas, ao mesmotempo, tanto o MAS quanto a Causa R assinavam a sentença demorte de suas organizações enquanto organizações independen-tes. Com Chávez, solidamente instalado na cadeira presidencial,seduzindo mais da metade do país para que o acompanhasse emuma viagem para um destino obviamente positivo, ainda queincerto, a necessidade de organizações políticas separadas já nãoparecia evidente. Sua contribuição capital foi impregnar o MVRcom suas formas particulares e diversas de ideologia de esquer-da, nas quais Chávez se inspirou, em grande parte, para redigirseu plano de desenvolvimento alternativo, publicado em 1995 echamado Agenda Alternativa Bolivariana.

Em junho de 1998, o Pólo Patriótico começou a discutir ostemas cruciais de uma aliança política. Como assegurar aosmembros de cada um dos componentes da aliança a eleição parao Congresso ou para os governos dos Estados, em eleições pre-vistas para novembro? Pressionados pela necessidade de união,superaram suas lealdades partidárias individuais e concordaramem que o Pólo Patriótico apoiaria apenas um candidato em cadaEstado.

À medida que o apoio a Chávez tornou-se mais firme e unitá-rio durante o ano eleitoral, a impopularidade dos velhos partidospolíticos tornou-se cada vez mais evidente. Os caciques da AD e doCopei começaram então a ter dúvidas sobre o lançamento de um

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candidato de suas próprias fileiras. Chávez parecia ter uma vanta-gem imensa como independente, vindo do nada, e o Copei decidiuprocurar um independente popular com possibilidades de vencê-lo. O candidato óbvio era a ex-rainha da beleza Irene Sáez, a vito-riosa e inovadora prefeita da rica zona caraquenha de Chacao. Seismeses antes das eleições, as pesquisas atribuíam a Irene 22% dosvotos. Carecendo de candidato próprio, o Copei decidiu apoiá-la.

O tiro saiu pela culatra. Poucos meses depois, seus númerostinham baixado 2%. Ela, pessoalmente, era bastante popular. Suaqueda deveu-se à equivocada aliança com o Copei. Ainda semperceber o quanto era impopular, o Copei subitamente abando-nou a rainha da beleza, transferindo seu apoio, algumas sema-nas apenas antes das eleições, a Henrique Salas Römer, o candi-dato do último agrupamento conservador restante, ProjetoVenezuela. Até aquele momento, Salas Romer tinha uma taxa deaprovação superior a 40%, o que o aproximava do primeiro lu-gar ocupado por Chávez.

A mudança de candidato no meio da campanha, longe demelhorar as perspectivas da figura escolhida, simplesmente re-duzia suas possibilidades de vitória. Receber a benção oficial doCopei era como receber uma maldição contra a qual não haviaapelação possível.

Se o Copei se comportou pessimamente com Irene Sáez, aperfídia da AD foi ainda mais chocante. Inicialmente, tinha can-didato próprio, Luis Alfaro Ucero, um veterano do partido, comgrande experiência política. Mas, em novembro de 1998, a ummês das eleições, os caciques do partido começaram a se preo-cupar. A taxa de aprovação de Alfaro nas pesquisas estava emtorno de 6%.

A direção do partido decidiu abandonar o navio. ExpulsaramAlfaro do partido a que havia dedicado sua vida inteira e subi-

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ram, junto com o Copei, no bote salva-vidas constituído peloinfeliz Salas Römer. Com esse par de lastros a bordo – os doispartidos mais impopulares e desacreditados do país – Salas Romerteve a sorte de chegar em segundo lugar, no dia 6 de dezembro,com 39% dos votos. Irene Sáez chegou em terceiro lugar, com 4%,e Alfaro Ucero em quarto. Chávez arrasou, com 56% dos votos.

O voto pessoal em Chávez e no MVR que fundara foi tãoamplo que sufocou completamente os partidos que formavam oPólo Patriótico. Talvez tenham lhe servido de estribo e talvezainda lhe dêem idéias, assim como o contorno de um programapolítico. Mas, essencialmente, já não eram necessários. Chávezpodia continuar sozinho.

Este obteve 3.673.685 votos nas eleições de dezembro, ou seja,56,2%. De acordo com os números de cada um dos componen-tes da aliança eleitoral, os votos distribuíram-se da seguintemaneira:

Movimento V República 2.625.839 40,17%Movimento para o Socialismo 588.643 9%Pátria para Todos 142.859 2,19%Partido Comunista da Venezuela 81.979 1,25%Outros partidos 234.365 3,59%

Chávez tornara-se a personalidade dominante na Venezuela,que fazia e desfazia políticos e partidos políticos. No espaço dequatro anos, fora da cadeia para as portas do palácio presiden-cial. O velho sistema político jazia em ruínas a seu redor. Uma eratotalmente nova estava por começar.

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QUARTA PARTE

CHÁVEZ NO PODER

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m uma cerimônia formal em Caracas, no dia 2 de fevereirode 1999, quase sete anos depois da tentativa malograda de

golpe militar, Hugo Chávez assumiu a faixa presidencial, na pre-sença de numerosos presidentes latino-americanos. Os objetivosimediatos de seu governo eram claros. Seria redigida uma novaconstituição e a Força Armada seria integrada à vida econômi-ca e social do país, por meio de um programa batizado de PlanoBolívar 2000. Mas suas outras ambições ainda precisavam deexplicação.

Em seu primeiro discurso como presidente, anunciou queassinaria imediatamente um decreto para um plebiscito nacional:o povo deveria decidir se haveria eleições para convocar umaassembléia nacional constituinte, que redigisse uma nova cons-tituição. Como para escapar da crença generalizada de que era umditador militar em potencial, o presidente Chávez estava ansio-so, desde o princípio, por submeter cada um de seus atos à von-tade do povo. Naquele ano, seriam realizadas um número de

16. A FORMAÇÃO DE UMAASSEMBLÉIA CONSTITUINTE

NOSSAS LEIS ATUAIS SÃO RELÍQUIAS DESASTROSAS DE CADA REGIME DESPÓTI-CO, ANTIGO OU MODERNO, QUE EXISTIU; ESTEJAMOS CERTOS DE QUE ESTEEDIFÍCIO MONSTRUOSO ENTRE EM COLAPSO E DESMORONE, PARA QUEPOSSAMOS CONSTRUIR UM TEMPLO À JUSTIÇA, LONGE DESTAS RUÍNAS, E DITARUM NOVO CÓDIGO LEGAL VENEZUELANO, SOB A INFLUÊNCIA DE SUA SAGRADAINSPIRAÇÃO.

BOLÍVAR, NO CONGRESSO DE ANGOSTURA DE 1819.

E

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eleições sem precedente. Os assessores de campanha de Cháveztiveram êxito em cada uma delas.

Em novembro de 1998, houve eleições para o Congresso. Emdezembro de 1998, houve eleições presidenciais, nas quais Chávezobteve 56,2% dos votos. Em abril de 1999, o plebiscito foi or-ganizado, para determinar se seria convocada uma assembléianacional constituinte. Os partidários do “sim” obtiveram 88% dosvotos. Em julho de 1999, foram realizadas as eleições para estaAssembléia. Os partidários de Chávez, apresentando-se comoindependentes, receberam 119 dos 131 lugares e 91% dos votos.Finalmente, em dezembro de 1999, um segundo plebiscito rati-ficou a nova Constituição, redigida pela Assembléia. O “sim” teve71% dos votos e o “não”, 28%. Se os venezuelanos algum diasentiram-se privados de práticas democráticas, agora tinham-nasem abundância. Novas eleições para implementar as decisões daAssembléia foram previstas para o ano 2000.

A necessidade de redigir uma nova constituição e de elegeruma assembléia constiuinte para executar essa tarefa fazia par-te integrante do pensamento de Chávez desde os anos de 1980.Ele e seus partidários entenderam claramente que esse trabalhonão podia ser deixado nas mãos do velho Congresso. Uma rup-tura franca com o passado era necessária. Enquanto a propostaparecia uma novidade, a possibilidade de rever a Constituição de1961 vinha sendo considerada há muito tempo. A crise do siste-ma político fermentara durante anos e os sucessivos governoshaviam feito esforços para empreendê-la, considerando a possi-bilidade de mudanças constitucionais. A Comissão Presidencialpara a Reforma do Estado (Copre) fora formada em dezembro de1984, durante o governo de Jaime Lusinchi, da AD.

A Copre percebeu o repúdio do povo em relação à AD e aoCopei e recomendou que se fizesse uma série de reformas: nova

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concepção para o financiamento eleitoral, desenvolvimento dademocracia interna nos partidos, revisão do sistema eleitoral eum projeto de descentralização política. Lusinchi não fez nada,mas Carlos Andrés Pérez reduziu as propostas a pó, quandovoltou ao poder em 1989. O sistema eleitoral de chapas fecha-das, que permitira aos dois principais partidos manter um con-trole estrito de quem seria eleito, foi substituído por um acertomais aberto, em função do qual os eleitores sabiam em quemestavam votando. Os governadores dos Estado e os prefeitospassaram a ser eleitos por um sistema de voto único direto esecreto em um só turno.

Essa mudança permitiu, em âmbito local, que os partidosminoritários conseguissem várias vitórias. Nas eleições paragovernadores de Estado, em 1989, a Causa R venceu no Estadode Bolívar e o MAS ganhou no Estado de Aragua. Os dois par-tidos ganharam várias cadeiras no Congresso. Em 1992, a Cau-sa R ganhou para a prefeitura de Caracas e, nas eleições presiden-ciais de 1993, outros partidos avançaram significativamente. Masainda que louváveis, as reformas não haviam conseguido resol-ver os problemas maiores causados pelo desencanto políticogeneralizado no país, que se evidenciava nos altos índices deabstenção.

Em meio à atmosfera de crise gerada pelo Caracazo, fez-seuma tentativa, em junho de 1989, de reformar o Estado, refor-mando a própria Constituição. A Frente Patriótica, de orientaçãoesquerdista, organizada por Luis Miquilena, entre outros, forauma das primeiras a solicitar a convocação de uma assembléiaconstituinte: havia a necessidade de se redigir uma nova Cons-tituição para estabelecer uma nova República. O Congresso re-tomou a idéia e montou a Comissão Especial Bicameral para aRevisão da Constituição, presidida pelo ex-presidente Rafael

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Caldera. Embora a proposta viesse da esquerda, a comissão eradominada, inevitavelmente, por membros dos velhos partidos, ADe Copei, que tinham maioria no Congresso.

O objetivo inicial da comissão era elaborar rapidamente vá-rias emendas à Constituição de 1961, mas as reuniões prolonga-ram-se indefinidamente. Então, em função da tentativa de gol-pe de Chávez, em fevereiro de 1992, quando de novo se tomavaconsciência da profundidade da crise política, as discussões ace-leraram-se repentinamente. O tema de uma nova constituição e,em alguns casos, a convocação de uma assembléia constituintepropriamente dita para que a elaborasse, estavam no primeiroplano do cenário político. Com o objetivo de cortar pela raiz essasdemandas extremas, a comissão publicou um rascunho de pro-jeto de reforma por volta do final de março, apresentando-o aoCongresso para que fosse discutido.

O debate do rascunho estendeu-se por vários meses, mas foitratado com tanta indiferenca e houve tão pouco consenso quefoi abandonado em agosto. Dois anos mais tarde, durante suaprópria campanha eleitoral, no final de 1993, Caldera tentoureviver a idéia, mas não chegou a lugar nenhum. Somente Chávezparecia estar em condições de colcoar o projeto de uma novaconstituição no centro de seu programa político.

Durante o primeiro ano de sua presidência, os fatos se suce-deram de forma surpreendente. Em abril de 1999, realizou-se oprimeiro plebiscito e, em 25 de julho do mesmo ano, realizaram-se as eleições para a nova Assembléia Constituinte, que foram umêxito para aqueles que desfrutavam do apoio de Chávez. Final-mente, em 3 de agosto, a recém-eleita Assembléia NacionalConstituinte reuniu-se pela primeira vez no salão redondo doSenado, com Miquilena como presidente e Aristóbulo Istúrizcomo vice-presidente.

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Em 5 de agosto de 1999, os membros da nova assembléiaouviram um discurso do presidente Chávez, incitando-os a pro-duzir uma constituição no mais breve prazo possível. Paraampará-los em seu trabalho, entregou-lhes seu próprio projeto.Depois, lembrou-lhes as palavras de Bolívar ao primeiro congres-so venezuelano, convocado em Angostura, em 1819:

“Nossas leis atuais são relíquias desastrosas de cada regime despótico,

antigo ou moderno, que existiu; estejamos certos de que este edifício

monstruoso entre em colapso e desmorone, para que possamos cons-

truir um templo à justiça, longe destas ruínas, e ditar um novo código

legal venezuelano, sob a influência de sua sagrada inspiração”.

As sessões plenárias da Assembléia começaram na manhãseguinte, com os experimentados oradores da oposição ocupandoa maior parte do tempo: Alberto Franceschi, um velho trotkistademagogo; Jorge Olavaría, um confuso, porém brilhante jorna-lista e editor que oscilara por todo o espectro político durantedécadas, sendo tanto pré-candidato presidencial pela Causa Rquanto embaixador em Londres; Allan Brewer Carías, o decanodos constitucionalistas venezuelanos, que um dia pusera um péem Cambridge, com a reputação de ter introduzido máquinaseleitorais, caras e pouco confiáveis, na Venezuela; e ClaudioFermín, conhecido em todos os lugares como “o Negro”, o úni-co político sério dos 4, que fora candidato presidencial derrota-do da AD nas eleições de 1993. A grande maioria da Assembléiaobservava, silenciosa e aturdida.

Logo ficou decidido que as sessões plenárias seriam abando-nadas, formando-se 21 comissões especializadas, com o objeti-vo de definir e debater os diferentes artigos da nova Constitui-ção. Então, foi programada que a Assembléia se reuniria em

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plenária, dois meses mais tarde. Uma comissão, presidida porHermann Escarrá, foi incumbida das propostas e petições prove-nientes de fora. Um tema permanecia pendente: a natureza dasrelações entre a Assembléia Constituinte, eleita em julho de 1999,e o velho Congresso, com seu Senado e sua Câmara de Deputa-dos, eleito no mês de novembro do ano anterior.

A Assembléia Constituinte passou a ser considerada, pelamaioria dos juristas, como a autoridade suprema do país, à qualtodas as demais instituições estavam subordinadas. O presidenteChávez e Luis Miquilena, como presidente da Assembléia, aposta-vam em um período de coexistência pacífica entre o antigo e onovo, até a ratificação, por plebiscito, da nova Constituição.

Mas, em meados de agosto de 1999, aflorou uma discussãosobre o futuro do Poder Judiciário. Chávez decretou emergênciajudiciária em 25 de agosto e uma comissão de nove membrosrecebeu poderes para destituir a Corte Suprema. Dos 15 membrosda Corte Suprema, 8 apoiaram o decreto de emergência, mas suapresidenta, Cecilia Sosa, opôs-se categoricamente, demitindo-seno ato. Declarou que a Corte agora estava morta e que o sistemademocrático do país estava em perigo.

A velha elite política, com a representação que ainda possuíano Congresso, fabricou um confronto entre o Congresso e aAssembléia. Convocaram uma reunião do Congresso para 27 deagosto do mesmo ano, em sessão de emergência, para conside-rar a demissão de Cecília Sosa. Sua decisão foi considerada comouma provocação pelo presidente Chávez e pela Assembléia Cons-tituinte, mas quando a Guarda Nacional tentou impedir que oscongressistas penetrassem na sede do Parlamento, situada nocentro de Caracas, e que também era utilizada pela Assembléia,desencadearam-se violentos protestos de rua, com agressões dospartidários dos dois lados.

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Uma vez acalmados os ânimos, houve um empate e, depoisde discussões presididas pela hierarquia eclesiástica, a AssembléiaConstituinte autorizou o Congresso a se reunir em 9 de setembro.Os membros do Congresso, que se opunham ao governo deChávez, e eram maioria, concordaram em não votar leis queinterferissem no trabalho da Assembléia.

Durante esse período, o presidente Chávez decidiu usar seutempo para uma viagem pelo mundo, em busca de apoio políti-co e econômico na Ásia, visitando o Japão, a Malásia e a Repú-blica Popular da China, regressando por Madri e Paris.

De volta a Caracas, encontrou a Assembléia Constituinte aponto de aprovar vários artigos com os quais não concordava,visto que alguns deles lhe causariam dificuldades políticas impor-tantes. Dois artigos em particular, um relativo à liberdade deimprensa e outro relativo ao direito à vida (mas que, aparente-mente, dava sinal verde ao aborto), certamente atrairiam para suapessoa a ira da imprensa internacional e da Igreja católica – umaaliança pouco comum mas poderosa. Além disso, a Assembléiahavia repudiado seu projeto de mudar o nome oficial do país paraRepública Bolivariana da Venezuela, uma mudança de nome quepodia parecer inocente à primeira vista, mas que dissimulava seusambiciosos planos para o futuro da América Latina.

Cecilia Romero, uma observadora, num texto escrito no finalde setembro de 1999, mostrou como “o escrutínio internacional”começava a desempenhar “um papel importante no processo detransição”. Romero analisava como a “oposição sitiada” utiliza-va seus “vínculos internacionais e a mídia” para denunciar o queconsiderava “o desmantelamento de 41 anos de sistema demo-crático”.

Chávez negava-se a aceitar essa chantagem e enfrentou fir-memente os diversos grupos internacionais que demonstravam

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descontentamento com o que estava acontecendo. Ele estava emuma posição difícil, já que se dera conta de que algumas cláusulasdo novo projeto constitucional podiam ferir interesses de certosgrupos; por outro lado, não queria intervir de maneira demasi-adamente explícita nos assuntos da Assembléia “soberana”. Acrise passou, as cláusulas foram suavizadas e Chávez conseguiuaté que fosse retomado seu desejo de chamar o país de Repúbli-ca Bolivariana da Venezuela.

O rascunho do projeto constitucional ficou pronto em mea-dos do mês de outubro. Em determinado momento, chegou a termais de mil artigos, que foram muito reduzidos até chegar, pri-meiro a 450 e, finalmente, a 396. Os membros da Assembléiaforam informados de que disporiam de apenas um mês para sereunirem em sessão plenária e rever a redação. Trabalhando diae noite, todos os dias, terminaram os trabalhos em 12 de novem-bro de 1999. O documento foi submetido a plebiscito em 15 dedezembro daquele mesmo ano.

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corrupção do Poder Judiciário encontra-se no coração dacrise do velho Estado venezuelano. Supunha-se que a elei-

ção de Hugo Chávez iria solucionar tal situação e que seu governoiniciaria a reforma. Uma comissão de emergência judiciária foiformada durante o mês de agosto de 1999, no seio da novaAssembléia Constituinte, para redigir as cláusulas legais da novaConstituição, examinar o estado das disposições vigentes e ava-liar o trabalho, tanto dos juízes quanto dos membros da CorteSuprema.

A nova comissão era presidida por Manuel Quijada, advogadoe partidário de Chávez, que havia participado na Frente Patrió-tica de 1989, criada por Luis Miquilena, Douglas Bravo e outrospersonagens, depois do Caracazo. Partidário desde sempre daaliança entre civis e militares, Quijada é um veterano das tenta-tivas de golpe militar de 1962.

Em setembro, a comissão presidida por Quijada revelou que,pelo menos, a metade dos 1.200 juizes do país eram culpados de

17. MANUEL QUIJADA E A REFORMA DO PODERJUDICIÁRIO

REVENDO OS ARQUIVOS... A COMISSÃO DESCOBRIU QUE 4 MIL QUEIXASHAVIAM SIDO FORMULADAS CONTRA JUÍZES E FISCAIS, NOS ÚLTIMOS 10 ANOS.

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corrupção ou de incompetência e deviam ser afastados. Reven-do os arquivos do Conselho da Magistratura, órgão responsávelpor investigar as queixas formuladas contra o Poder Judiciário,a comissão descobriu que 4 mil queixas haviam sido formuladascontra juízes e fiscais, nos últimos 10 anos.

A corrupção e a incompetência do Poder Judiciário são co-nhecidas há anos, e muitas das queixas contra o órgão se refe-rem à impossibilidade de se abrirem processos contra políticoscorruptos e banqueiros. Um dos membros da comissão de Quijada,Carlos Tablante, denunciou o “Poder Judiciário na Venezuela”como “um refúgio da ilegalidade, da vagabundagem e dacorrupção”, lembrando que, apesar do clamor popular, algunsjuízes corruptos haviam abandonado os processos contra as duasdúzias de banqueiros acusados do escândalo bancário que, em1994, “quase levou o sistema financeiro à bancarrota”.

Mas, o que tornava a situação mais grave e mais explosiva eraque a maior parte da população carcerária – cerca de 23 milpessoas – nunca fora processada. O presidente Chávez promul-gou um novo código penal, por decreto de 1º de julho de 1999,tal como fora autorizado a proceder durante a espera da redaçãofinal da nova Constituição. Seu decreto destinava-se a moderni-zar o sistema judiciário e beneficiar os prisioneiros com presun-ção de inocência e garantia de um processo diligente. Sua publi-cação levou os presos a pensarem que algo aconteceria muito embreve.

No final de setembro, explodiram distúrbios em várias prisõesdo país, com a morte de alguns presos. Em uma prisão na peri-feria de Caracas, a Guarda Nacional entrou com tanques, pararestabelecer a ordem. O calamitoso contexto, mesmo para ospadrões latino-americanos, das prisões venezuelanas era bemconhecido há anos, assim como as infames condições de vida que,

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com freqüência, haviam provocado distúrbios de grande magni-tude. Mais de 500 presos foram mortos em 1998. Esperava-se queo presidente Chávez tratasse esse assunto com maior presteza. Areforma judiciária estava entre as primeiras de sua lista de pri-oridades e, agora, a reforma das prisões deveria sair do papel.

Durante a primeira semana de outubro de 1999, a AssembléiaConstiuinte declarou uma emergência penitenciária que veio a serum exemplo impressionante de governo em ação. Durante seuprograma radiofônico de domingo pela manhã, em outubro de1999, Chávez anunciou que uma equipe de juízes e fiscais, acom-panhados de defensores dos direitos humanos e de sacerdotes,visitara quatro das mais perigosas prisões do país, tentando ace-lerar os processos. Informou que o governo queria acelerar osprocessos dos presos que estavam esperando sentença, assimcomo acelerar a implementação do novo Código Penal. Pensavaque muita gente podia ser solta imediatamente, devido ao tem-po já cumprido, enquanto os funcionários das prisões esperavamliberar 6 mil celas para presos que seriam julgados até o final doano. Um sistema de liberdade condicional, durante o dia, foi postoem prática para permitir que os presos trabalhassem fora daprisão.

Chávez também esperava poder iniciar a separação dos pre-sos em função da gravidade dos crimes cometidos. Em muitasprisões, gente acusada de furto convivia com suspeitos de assas-sinato. Também disse, em seu programa de rádio e televisão, quea Guarda Nacional passara o fim de semana procurando armasnas prisões e admitiu que freqüentemente os carcereiros confis-cavam armas para vendê-las novamente aos presos.

A crise das prisões concentrou de novo a atenção sobre areforma do Poder Judiciário. Na Venezuela, os juízes eram nome-ados pela maioria política no Congresso. Até os membros da Corte

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Suprema eram escolhidos pelo partido no poder. Enquanto umaquarta parte da Corte ocupava postos vitalícios, o resto não tinhaautonomia e era removível a qualquer tempo. Eram ainda maisvulneráveis se tomavam medidas contra políticos ou seus sóci-os nos negócios, ou contra dirigentes de poderosos grupos comer-ciais. As queixas de corrupção contra o presidente Jaime Lusinchihaviam sido paralisadas pela Corte Suprema de Justiça duranteanos. As recomendações de qualquer magistrado relator sobre aconveniência de se abrir um processo eram simplesmente igno-radas. Embora um membro da Corte Suprema tenha renunciadoem 1992, em sinal de protesto, e um grupo de intelectuais tenhaconvidado o resto da Corte a fazer o mesmo, nunca aconteceunada e o caso Lusinchi saiu de cena.

A comissão de Quijada, encarregada das cláusulas legais paraa nova Constituição, sugeriu que fossem elaborados novos pro-cedimentos de seleção e de treinamento para os juízes e meca-nismos de supervisão de suas atividades, a exemplo do que ocorrenos Estados Unidos. Foi também sugerido que os candidatos àCorte Suprema fossem submetidos a uma audiência pública e auma investigação sobre sua história de vida. Enquanto algunscríticos contrários pensavam que tais reformas levariam anos parase tornarem efetivas, a maioria das pessoas concorda que todosos avanços alcançados sob o governo de Chávez nessa área fo-ram auspiciosos.

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futuro da Venezuela depende de como o governo do presi-dente Chávez irá reorganizar a exploração e a comercia-

lização do petróleo, indústria que transformou o país, nos últi-mos 80 anos. Tal reorganização transcende um simples interessenacional, porque a Venezuela fornece a maior parte das impor-tações de petróleo dos Estados Unidos.

Grande parte do petróleo provém do lago de Maracaibo: umgrande reservatório de água, entre os Andes e o mar do Caribe quese transformou em uma das maravilhas do mundo. Lugarestranhamente romântico, o lago representa a herança dos diasaudaciosos do capitalismo pioneiro, quando a natureza era do-mesticada e explorada com tecnologias rudimentares e graças àingenuidade e à força bruta do operário. Hoje, constitui umacatástrofe ecológica sem solução. A forma do lago – de umalágrima – é familiar a qualquer pessoa que tenha estudado ummapa da América do Sul. Cheio de torres de perfuração em for-ma de árvores de Natal, um bosque de estruturas metálicas de

18. ALÍ RODRÍGUEZ ARAQUE E A NOVA POLÍTICAPARA O PETRÓLEO

O AUMENTO DO PREÇO DO PETRÓLEO NÃO FOI CONSEQÜÊNCIA DE UMAGUERRA OU DA LUA CHEIA. NÃO. É O RESULTADO DE UMA ESTRATÉGIAACERTADA, DE UMA MUDANÇA DE 180 GRAUS COM RELAÇÃO À POLÍTICA DEGOVERNOS ANTERIORES E DA PDVSA... AGORA, O MUNDO SABE QUE HÁ UMGOVERNO SÉRIO NA VENEZUELA...

PRESIDENTE CHÁVEZ, MAIO DE 1999.

O

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quatro patas que emergem da superfície da água, evoca a lem-brança dos primeiros filmes cujo cenário era a indústria do pe-tróleo, ou, talvez, as fotos em sépia das velhas enciclopédias.

A realidade vai muito além da lembrança folclórica, e tam-bém traz surpresas. O lago de Maracaibo não é um lugar apro-priado para os pedalinhos turísticos. Experimentados mestresconduzem lanchas de alumínio reluzentes, com orgulho e destre-za, pelas águas cinzentas desse vasto mar interior. É um ambi-ente de trabalho sério, repleto de homens capacitados que sabemo que fazem: mergulhadores, engenheiros, especialistas em cons-trução de plataformas petrolíferas.

As instalações petrolíferas, milhares delas, são todas iguais,porém diferentes: uma pequena plataforma sobre quatro pilares,repletos de tubulações, apenas acessíveis por meio de uma escada;uma estrutura com braços que se movem para cima e para baixosem cessar, como as comportas da Camarga, pintadas por VanGogh; um gigantesco barco, coberto com mastros de ferro apoia-dos em 6 imensos barris, uma estrutura de concreto com tornei-ras e tanques e um emaranhado conjunto de tubos. No centro dolago, ergue-se uma grande plataforma, semelhante às do mar doNorte, como um gigante rodeado de anões: apoiada em 3 pila-res, extrai petróleo de uma profundidade de 6,5 mil metros.

A extração do petróleo de sob o lago perpetuou-se por qua-se um século e, agora, constitui uma banalidade, graças àtecnologia pesada que permite extraí-lo do fundo do mar. O quetorna o lago de Maracaibo um lugar especial é que sua superfí-cie está muito acima da terra que o cerca. Foi extraído tantopetróleo da bacia de Maracaibo, desde os anos de 1920, que oterreno ao redor afundou pouco a pouco no imenso buraco quefoi sendo cavado. Os campos que rodeiam o lago afundam umpouco mais a cada ano.

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Já teria ocorrido um desastre se essa área não houvesse sidoexplorada, no início, pela Royal Dutch Shell. Os holandeses sãoespecialistas em terras baixas e estão familiarizados com a cons-trução de diques. Há anos, com muita ingenuidade, os engenhei-ros holandeses construíram um muro ao redor do lago, permitin-do que casas e instalações fossem construídas do outro lado dabarreira. O terreno, no entorno, está agora a 5 metros sob o ní-vel do mar e continua baixando a um ritmo de 15 a 20 centíme-tros anuais. Teria baixado mais e mais rapidamente se os enge-nheiros não tivessem injetado água para encher os buracosdeixados pela extração do petróleo.

Essa impressão de que algo é extraído permanentemente, arealidade física da redução, é uma das razões pelas quais todosos venezuelanos são tão apegados a sua companhia petrolíferaestatal. Durante décadas, seu patrimônio histórico foi sugadopelas grandes companhias petrolíferas estadunidenses e européi-as, principalmente Shell, Mobil e Exxon. Gerações de historiado-res e políticos nacionalistas consideraram essa época um escân-dalo e a convicção de que o país estava sendo roubado permanecefortemente arraigada no imaginário coletivo.

Dois acontecimentos, ocorridos nos anos de 1943 e 1976, sãocomemorados como grandes momentos históricos durante osquais o país levantou-se contra as companhias petrolíferas. Em1943, o governo do general Isaías Medina Angarita aproveitoua penúria da guerra para obrigar as companhias a se submeteremao regime tributário venezuelano; conseguiu ainda limitar aduração de suas concessões em 40 anos. Em 1976, apenas 30 anosdepois, o presidente Carlos Andrés Pérez chegou a um acordo comas principais 14 companhias estrangeiras, que previa sua progres-siva retirada do país. Em 1º de janeiro daquele ano, a Pdvsa re-clamou e obteve seus bens, que incluíam 11 mil poços de petró-

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leo, 11 refinarias e 14 navios petroleiros. O pacote também con-tinha oleodutos, instalações portuárias e inúmeros edifícios deescritórios.

Inicialmente, as 3 grandes companhias nacionalizadas con-tinuaram mantendo seu status individual: a Royal Dutch Shelltransformou-se em Maraven; a Creole Petroleum Company, daExxon, em Lagoven; e a Mobil Oil em Llanoven. Maraven eLagoven mantiveram suas identidades corporativas intactas: umacom sua desenvoltura de tipo europeu; a outra, com seuautoritarismo estadunidense. Na essência, eram competidoras. Ocomplexo de antigos edifícios holandeses no acampamento daMaraven, situado em Lagunillas, às margens do lago, permane-ceu intacto e, apesar das palmeiras, continuou parecendo umvilarejo holandês de antigamente, com suas varandas e telhadosinclinados. No agitado coração de um centro dotado datecnologia do final do século 20, quase podia se esperar quealguém passasse pela rua de tamancos.*

Como as demais companhias no resto do mundo, as empre-sas recentemente nacionalizadas passaram muito tempo procu-rando novas fontes de petróleo. Desencadeou-se então uma ondade pânico, diante da possibilidade de que o petróleo estivesseesgotado; mas logo o óleo voltou a brotar por todos os lados. Nolago de Maracaibo passaram simplesmente a perfurar mais em-baixo. Talvez fosse mais difícil de extrair, mas havia petróleo emabundância. Vastas reservas haviam sido localizadas mais ao sul,no Estado de Barinas, nas encostas dos Andes.

Com o passar dos anos, a companhia estatal não esteve isentadas pressões da globalização e da privatização. Começou com o

* Tamancos muito leves, de cor muito clara e desenho característico, são calçados tra-dicionais dos holandeses. (N. da T.)

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governo do presidente Pérez, em 1989, e continuou com a cha-mada “abertura” (para o setor privado) do governo de RafaelCaldera. As companhias estrangeiras foram autorizadas a parti-cipar de empresas mistas junto com a companhia estatal. A Shelle a BP reabriram, com orgulho, seus postos de gasolina na capi-tal, para mostrar que estavam de volta ao negócio. Pdvsa haviaprevisto um plano de investimentos para 1991 de 65 milhões dedólares, sendo que um terço do capital deveria provir da inicia-tiva privada.

Em 1997, toda a gerência da Pdvsa foi reorganizada, sendoque suas filiais, Maraven e Lagoven, sobrevivências do passado,foram finalmente eliminadas A companhia estatal estava agoradividida de outra forma, com a criação de 3 novas divisões: uma,para exploração e produção; outra, para comercialização e fabri-cação; a terceira, para serviços. O corpo gerencial e os emprega-dos mal começavam a se acostumar com essas mudanças radi-cais quando chegou um novo governo, em 1999. Uma dasprimeiras mudanças realizadas foi a criação de uma quarta divi-são, para monitorar a indústria do gás.

O novo responsável, como ministro de Energia e Minas, eraAlí Rodríguez Araque, um ex-comandante guerrilheiro sessentãoque fora o especialista em petróleo da Causa R e do PPT. Nasci-do em Mérida, em 1937, estudou direito e economia na Univer-sidade Central da Venezuela, em Caracas, e na Universidade dosAndes, em Mérida. Lutou nas montanhas do Estado de Falcón nadécada de 1960, junto com Douglas Bravo, mas, depois da der-rota da guerrilha e de uma breve passagem pelo PRV, separou-se de Bravo. Uniu-se às fileiras da Causa R, de Alfredo Maneiro,trabalhando como advogado trabalhista em Ciudad Guayana.

Em 1983 foi eleito para o Congresso pelo Estado de Bolívar,na lista da Causa R, e, em novembro de 1988, foi eleito senador

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pelo PPT. Durante o governo de Caldera, de 1994 a 1997, ocupouuma posição influente no Congresso, como presidente da Comis-são de Energia e Minas. Esteve estreitamente vinculado aomonitoramento dos contratos fechados durante a abertura daindústria aos investimentos estrangeiros. Quando o PPT se somouà aliança eleitoral de Chávez, tornou-se seu principal assessorpara assuntos relativos ao petróleo.

A primeira tarefa de Rodríguez Araque no governo foi resta-belecer a primazia de seu ministério sobre a companhia estatal.A Pdvsa fora administrada durante anos como uma empresacorporativista, um estado dentro do Estado, um vasto conglome-rado que distribuía favores e sinecuras. Com uma rápida mudançade pessoas, inclusive a substituição do primeiro presidente, aquem Chávez nomeara, os objetivos iniciais de Rodríguez Araqueforam alcançados.

A segunda tarefa consistia em modificar de forma radical apolítica da Venezuela em relação à Opep. A Venezuela adquirirauma má reputação entre os membros da Opep durante a década de1990, quando a política de abertura estava em vigor, pois era vis-ta como um país-membro que ignorava todas as decisões da ins-tituição. Os sucessivos governos da Venezuela haviam tentado umjogo isolado. Quase todos haviam abandonado a Opep, ignoran-do as quotas decididas e buscando elevar a produção, atraindocompanhias estrangeiras para explorar novos campos de petróleo.

Desde o princípio, o governo de Chávez tinha uma estratégiadiferente e muito bem definida. Rodríguez Araque ordenou umamudança de direção, insistindo na redução dos investimentos daPdvsa. Estava decidido a colaborar com a Opep e a trabalhar em prolde um preço estável para o petróleo. Viajou para os países da orga-nização, procurando também garantir a cooperação dos países pro-dutores da América Latina. O México, que não é membro da Opep

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e compete com a Venezuela no lucrativo mercado dos EstadosUnidos, decidiu frear os aumentos de produção que havia previsto.

Finalmente, depois de uma reunião da Opep em março de1999, a Venezuela reduziu suas exportações em 4%, situando-asem 2,72 milhões de barris diários, anunciando que havia a pre-visão de novos cortes, tanto na produção quanto na exploração.Em maio, ao mesmo tempo em que celebrava seus primeiros cemdias no governo, o presidente Chávez explicava com orgulho:

“O aumento do preço do petróleo não foi conseqüência de uma guer-

ra ou da lua cheia. Não. É o resultado de uma estratégia acertada, de

uma mudança de 180 graus em relação à política de governos anteri-

ores e da Pdvsa. Em primeiro lugar, decidimos respeitar os cortes de

produção acertados com a Opep e com o México. Em segundo lugar,

decidimos fazer cortes mais drásticos. Agora, o mundo sabe que há um

governo sério na Venezuela e uma nova liderança na Pdvsa...”.

Posteriormente, em setembro do mesmo ano de 1999, RobertCorzine, correspondente do Financial Times, acrescentou que osmeses anteriores haviam sido “um dos períodos de mais êxito nahistória das tentativas da Opep por controlar os preços do petró-leo”. Não apenas seus países-membro haviam acatado os cortesde produção, evitando a prática anterior de violação das cotas,como países não membros da Opep, como a Grã-Bretanha e aNoruega, haviam sido capazes de reduzir a produção.

No final do ano, a Venezuela considerou que os preços havi-am alcançado um nível suficientemente elevado. RodríguezAraque afirmou que, agora, a Opep devia fixar uma faixa depreços em que o petróleo devia se manter graças ao corte ou aoaumento da produção. Chávez propôs que se realizasse umacúpula de presidentes de países da Opep, em Caracas, durante o

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ano de 2000, convidando, entre outros, Sadam Hussein, doIraque, Muamar Kadhafi, da Líbia, e o presidente do Irã.

As outras inovações importantes introduzidas pelo governode Chávez foram as modificações no Fundo de EstabilizaçãoMacroeconômica, criado pelo governo anterior. Esse era umfundo especial, projetado para respaldar a renda do governo emcaso de uma queda drástica nos preços do petróleo. A idéia eracompensar a volatilidade dos preços internacionais. Se o preçodo barril superasse os 14 dólares, o superavit deveria ser depo-sitado no fundo. Rodríguez Araque decidiu baixar o limite para9 dólares por barril. Era uma cifra conservadora, embora nãoestivesse fora dos baixos preços do petróleo nos anos mais recen-tes. O óleo cru venezuelano era negociado a 16,6 dólares o bar-ril em 1997, tendo caído para 10,75 dólares em 1998.

Na realidade, o preço chegou muito abaixo dos 9 dólaresdurante o ano de 1999, o que consumiu altas somas do fundo deestabilização. De 11,95 dólares em março de 1999, ou seja, an-tes da cúpula da Opep, o preço ultrapassou os 20 dólares, pou-cos meses depois.

O novo relacionamento com a Opep e o aumento dos preços dopetróleo, que foi bem aceito pelo resto do mundo, foi um dos gran-des êxitos do primeiro ano do governo de Chávez. No entanto, fi-cava pendente a delicada questão da companhia estatal de petróleo.

Numerosas personalidades influentes, alheias ao governo,sustentavam enfaticamente que os cidadãos deviam ter direito auma parte da riqueza petrolífera do país. Alberto Quirós Corradi,outrora presidente da Maraven, defendia, em artigos na imprensa,que os cidadãos venezuelanos deviam ter o direito de comprarações da companhia estatal de petróleo, o que as disposições danova Constituição não permitiam. O Estado conservaria as ren-das da empresa petroleira.

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Quirós pronunciou-se a favor de que fosse permitido que acompanhia vendesse 10% de suas ações, para determinar seu realvalor. Também argumentou que, se fossem distribuídos conveni-entemente, os recursos financeiros da empresa poderiam contri-buir para estabelecer as bases de um sistema privado de fundosde pensão.

Tais propostas pareciam perigosas aos setores nacionalistasda Força Armada e do governo de Chávez. Mas o próprioRodríguez Araque não carecia de idéias revolucionárias. Em umaentrevista com Maria Cristina Iglesias, em maio de 1998, qnandoainda era o encarregado da política para o petróleo do PPT noCongresso, delineou, em grandes traços, uma estratégia paraenvolver os investidores individuais venezuelanos na compra deações da empresa estatal de petróleo:

“A idéia é que, durante um período exploratório, o que implica em certa

dose de risco, o investimentro seja proveniente, exclusivamente, da

Pdvsa e do capital internacional. Uma vez que os campos petrolíferos

adequados tenham sido identificados, serão realizados alguns ajustes

nos investimentos internacionais, permitindo-lhes participar com até

49%. A Pdvsa também teria uma participação percentual”.

Dessa forma, o caminho estaria aberto para que os poupadorese investidores venezuelanos adquirissem parte do capital dascompanhias e consórcios criados para produzir petróleo. Nadadisso, obviamente, reduziria a legítima remuneração quecorresponde aos investidores estrangeiros. Sem dúvida, um pro-grama como esse contaria com o sólido apoio do capital inter-nacional.

Em 1999, nada disso havia ocorrido ainda, mas o mundopercebia que estava gravado na pedra.

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alvez a Venezuela receba vultosos recursos oriundos do pe-tróleo; mas estes são rapidamente absorvidos por uma

pequeníssima parcela da população. A grande maioria no paíscontinua pobre e faminta. Enquanto os 10% mais ricos de umapopulação de 23 milhões de habitantes recebem a metade darenda nacional, 40%, de acordo com estimativas de 1995, vivemem estado de pobreza crítica; cerca de 80% da população ganhasalário mínimo ou menos ainda, segundo cifras de 1996. Comose não bastasse, a situação continua piorando. O poder aquisiti-vo real caiu 35%, entre 1989 e 1995.

O presidente Chávez e seu governo conhecem muito bemessas estatísticas. Constantemente diz aos estrangeiros que visi-tam o país como é difícil explicar como um país tão rico pode,ao mesmo tempo, ser tão pobre. Também está consciente de quenão tem uma varinha de condão. Utiliza grande parte de seutempo para dizer aos pobres, com sua retórica cristã, que sejampacientes; e aos ricos, que demonstrem algum senso de solida-

19. O PROGRAMA ECONÔMICO DOGOVERNO DE CHÁVEZ

NOSSO PROGRAMA NÃO ESTÁ NEM A FAVOR DO ESTADO, NEM A FAVOR DONEOLIBERALISMO. ESTAMOS EXPLORANDO UM CAMINHO DO MEIO, EM QUE AMÃO INVISÍVEL DO MERCADO UNA-SE À MÃO VISÍVEL DO ESTADO: TANTOESTADO QUANTO SEJA NECESSÁRIO, TANTO MERCADO QUANTO SEJA POSSÍVEL.

PRESIDENTE CHÁVEZ, 2 DE FEVEREIRO DE 1999.

T

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riedade em relação aqueles com quem são obrigados a dividir opaís.

No entanto, ainda que de forma dissimulada e não claramen-te formulada, pode-se discernir, em grandes traços, a lógica de umapolítica econômica. Apesar de toda a sua retórica contra oneoliberalismo, Chávez necessita desesperadamente de investimen-tos estrangeiros. Tem de manter um rumo difícil, para não dizerquase impossível, que consiste em dizer a um povo nacionalista oque quer ouvir, ao mesmo tempo em que emite um tipo apropri-ado de declarações tranqüilizadoras para não afugentar os inves-tidores estrangeiros. Segundo Fausto Masó, um jornalista habitu-almente bem informado, Castro garantiu a Chávez que “suaprincipal preocupação era conseguir até o último dólar estadu-nidense para Cuba, já que a única forma revolucionária de alcan-çar o desenvolvimento, hoje, consiste em abrir o país inteiro aosinvestimentos estrangeiros”.

O que é bom para a Cuba revolucionária seria necessariamentebom para a Venezuela e Chávez seguiu a recomendação. O em-baixador estadunidense em Caracas, John Maisto,* passou a maiorparte de seu tempo tentando convencer o presidente Chávez aassinar o tratado de promoção e proteção dos investimentosestrangeiros que todos os outros países latino-americanos foramobrigados a assinar. Maisto esforçou-se para que o acordo fosseassinado antes da primeira sessão da Assembléia Constituinte,sabendo que esta assembléia nacionalista iria opor-se aos termosdo mencionado acordo. Na verdade estava batendo em uma portaaberta. O governo de Chávez aceitou tranqüilamente assinar otratado em outubro, enquanto Chávez garante que isso aconte-ceu quando ele se encontrava no exterior. “Agora, passa o tem-

* Desde então o senhor Maisto foi substituído pela senhora Donna Hrinack. (N. da T.)

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po pronunciando discursos para garantir a estabilidade e os in-vestimentos” – disse-me um desiludido economista de esquerda.

No entanto, durante seu primeiro ano de governo, seus aliadosde esquerda não fizeram objeções a sua estratégia. Muitos delesestavam ocupados com outro projeto, visto que debatiam na As-sembléia Constituinte os parâmetros da futura política econômi-ca sem ver o que se fazia naquele preciso momento. Seja como for,um dos elementos importantes de seu programa foi a promoção dosinvestimentos nacionais. Esse ponto sempre fizera parte da polí-tica econômica da Causa R e do PPT: uma tentativa de unir ospequenos empresários independentes contra os grandes barões doEstado e seus amigos comerciantes e banqueiros.

No princípio, a opinião do mundo econômico no exteriorestava dividida sobre o fenômeno Chávez. “Vislumbra-se umarecessão muito profunda no próximo ano se os preços do pe-tróleo não se recuperarem” – disse um porta-voz pessimista daMerill Lynch, em Nova York, uma ou duas semanas depois daseleições de dezembro de 1998. Acrescentou, sinistramente queChávez “teria de ser o super-homem para tirar a economia doburaco”. Outros observadores também estavam pessimistas.“Pensamos, simplesmente, que o risco é grande demais nestemomento” – disse um analista do Deutsche Bank em NovaYork.

O pessimismo mostrou-se sem fundamento. Os preços dopetróleo recuperaram-se. Por sua parte, os investidores vene-zuelanos foram menos alarmistas. De fato, a maioria sabia queas coisas teriam sido certamente piores se Chávez tivesse sidoderrotado. A Bolsa de Caracas fechou em alta depois das eleições,já que esses investidores, que haviam se retirado diante da expec-tativa de um resultado inesperado, voltaram, trazendo seus ca-pitais. “Quando se observam os fluxos” – disse com entusiasmo

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um representante da Merill Lynch – “não há dúvida de que setrata dos investidores locais trazendo seu dinheiro de volta”.

Apesar de toda a sua retórica, Chávez no poder demonstrouser um dirigente pragmático. Essencialmente, acredita que acombinação de gente honesta com um governo honesto dará umbom governo. É alguém francamente hostil à corrupção, coisa queo país não possuía no passado, e decididamente oposto à filoso-fia do neoliberalismo selvagem que os Estados Unidos impõemao mundo. No entanto, é difícil para ele descrever com precisãoo que está tentando pôr em seu lugar. Seu primeiro discursopresidencial, de 2 de fevereiro de 1999, deu poucos detalhes sobreo que viria:

“Nosso programa não está nem a favor do Estado, nem a favor do

neoliberalismo. Estamos explorando um caminho do meio, em que a

mão invisível do mercado una-se à mão visível do Estado: tanto Es-

tado quanto seja necessário, tanto mercado quanto seja possível”.

A frase é admirável, mas, como diretriz para um ministroencarregado da política econômica, apenas pode ser interpreta-da de uma forma: mantenha o rumo atual.

“Ele é muito radical em outros itens” – disse-me um econo-mista universitário – “mas na esfera econômica é um conserva-dor. É muito afirmativo e firme quanto à política externa, mas nãohá nada nem remotamente similar no âmbito econômico. Con-centra-se em seus ataques aos políticos corruptos, mas nuncamenciona os banqueiros, sendo que eles foram tão maus quantoos demais.”

Ainda que Chávez não demonstre muito interesse pela eco-nomia, seus aliados políticos do MAS e do PPT elaboraram como tempo algo semelhante a um programa econômico, embora

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fosse mais preciso defini-lo como uma atitude. No decorrer de1999, pouca publicidade foi dada às decisões e às ações do go-verno em matéria econômica, apesar de que o debate econômi-co na Assembléia Constituinte suscitou várias manchetes naimprensa. Os partidários de Chávez na Assembléia Constituinte,tanto os civis de esquerda quanto os militares na reserva, esta-vam decididos a conseguir que o Estado continuasse desempe-nhando um papel importante na economia. Essa era a opiniãomajoritária na Assembléia e, com certeza, também no país.

No entanto, esse grupo dominante tinha ambições muitodiversas. Muitos, no MAS, sentiam saudades dos anos em que oEstado desempenhava um papel-chave no desenvolvimento,enquanto que os do PPT, que nisso refletiam os valores gerais daCausa R, aspiravam a um Estado menor, que oferecesse menosoportunidades de corrupção, e expressavam sua preocupação comas pequenas empresas e a poluição do meio ambiente.

Apesar de tais diferenças, quase todos, na Assembléia, con-cordavam em erradicar os fundamentos neoliberais, cujas receitasnão desempenharam nenhum papel na formulação final da novaConstituição. Mas a vitória foi mais aparente que real. Enquan-to apenas uns poucos estavam a favor da venda da Pdvsa a in-teresses privados, quase todos concordavam em que seria razoá-vel fazer acordos com as companhias petrolíferas estrangeiras. Naprática, ocorreu que boa parte das políticas econômicasimplementadas durante os anos de 1990 – que haviam aberto aindústria do petróleo aos investimentos estrangeiros e começa-do o processo para privatizá-la – seria mantida. Essa aparênciade continuidade foi reforçada com a permanência de MaritzaIzaguirre, que vinha do governo de Caldera, como ministra daEconomia. Renunciou em junho de 1999, sendo substituída pelodeputado José Rojas, que também trabalhara na administração

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de Caldera. “A pobre Maritza na verdade não sabia o que estavaacontecendo” – disseram-me – “e José Rojas agora está perceben-do a mesma coisa, apesar de ser um partidário do MVR.”

A mudança que deixou os ministros nervosos foi a chegadados militares aos altos cargos da administração pública. “Osmilitares estão por toda a parte” – explicou-me um importanteconselheiro econômico. – “Às vezes, até parece que há um pro-jeto secreto sobre o qual nada se sabe. Na realidade, há um par-tido militar. Em alguns ministérios há casos de dualidade depoder.” Os altos oficiais militares de fato foram colocados nosprincipais ministérios, incluindo a Pdvsa. “Muitos vêm da clas-se baixa” – confiou-me o famoso economista universitário – “edizem a você: ‘meu pai era operário’. No entanto, estudaram nauniversidade e seu preparo intelectual é bastante bom; quandoeu dava aulas em minha universidade, havia três oficiais em umaclasse de 20 pessoas. Mas sua mentalidade é muito diferente ecertamente, são autoritários. Alguns são de esquerda, mas conhecialguns oficiais pinochetistas.”

A maioria dos oficiais que participou do governo está emcargos de segundo escalão. Eles o observam e esperam, mantendoseus olhos bem abertos. Mas há uma figura destacada e plena-mente ativa, que não tem absolutamente nada de pinochetista.O tenente-coronel William Fariñas é o presidente do Fundo ÚnicoSocial (FUS), uma criação recente e potencialmente poderosa, quereúne os antigos órgãos governamentais responsáveis pela saú-de e pela política social.

O FUS e o Banco do Povo fazem parte de uma série de novasorganizações concebidas para implementar as políticas sociaisque buscam melhorar a saúde e o bem-estar da maioria pobre dapopulação. O impacto político desse tipo de instituições fez-sesentir em anos passados: Eva Perón dirigiu o Ministério do Bem-

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Estar Social na Argentina dos anos de 1940, que funcionou comosua base de sustentação na tentativa de melhorar a condição dospobres. O governo de Velasco Alvarado no Peru, dos anos de 1970,contava com uma instituição parecida, criada pelos militares: oSistema Nacional de Apoio à Mobilização Social (Sinamos), sis-tema que parecia muito bom na teoria, mas foi um retumbantefracasso na prática.

O tenente-coronel Fariñas, assim como outros altos oficiaisno governo de Chávez, passou pela universidade. Era professorde Planejamento Estratégico e Política Social na UniversidadeCentral da Venezuela, em Caracas. É também doutor em treina-mento organizacional. Oficial da reserva da Força Aérea, temvários heróis: Bolívar, claro, o Sagrado Coração de Jesus, a Vir-gem Maria Auxiliadora, o Arcanjo Miguel... e o Che Guevara.

O Che é a única figura que representa a entrega e o altruís-mo e a dedicação total à causa do povo – em todas as partes domundo. É um ícone para todos os revolucionários, assim comopara mim... sempre foi, desde que eu era estudante e comecei ater convicções revolucionárias. O espírito revolucionário queanima os militares e outros cidadãos comprometidos nesse pro-cesso alimentou-se do pensamento e dos ideais do Che, assimcomo dos acontecimentos do maio francês...

Esse revolucionário dos anos de 1960 está encarregado deuma organização que conta com um enorme potencial políticoe com um grande orçamento. O orçamento provém em parte doorçamento ordinário das instituições que absorveu e, em parte,do Fundo de Estabilização Macroeconômica (FEM), que canali-za os recursos do petróleo para projetos governamentais. Assim,o FUS recebe 40% do orçamento do FEM.

O FEM ajudará a construir escolas e hospitais, até igrejas, masseu projeto mais recente e ambicioso é o Plano Bolívar 2000, uma

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das idéias mais originais de Chávez. Os detalhes foram apresen-tados em 27 de fevereiro de 1999, semanas antes de seu lança-mento. A idéia consiste em mobilizar a capacidade restante daForça Armada para estabelecer um vínculo com as comunidadese para reativar cada vez mais a decrépita infra-estrutura socialvenezuelana. Os soldados colocarão seus quartéis, seus camposesportivos e seus refeitórios à disposição das comunidades. Ospróprios soldados, por sua vez, irão às comunidades, para cons-truir estradas e escolas.

O Plano Bolívar foi esboçado para ser implementado em trêsetapas. A primeira, chamada Pró-País, envolverá as Forças Ar-madas na prestação de serviços sociais. A segunda, Pró-Pátria,levará os militares a ajudar as comunidades, na busca de solu-ções para seus problemas. A terceira, Pró-Nação, encaminhará opaís para a auto-suficiência econômica e o desenvolvimentosustentável.

Na etapa Pró-País, o país foi dividido em 25 zonas de atua-ção, sendo que cerca de 40 mil soldados e voluntários começa-ram a trabalhar na reconstrução de estradas, centros médicos eescolas, junto com as autoridades locais. O presidente Chávezanunciou aos repórteres que “hospitais móveis de campanha”seriam enviados aos vilarejos e bairros mais afastados “como parauma zona de guerra”. Em dezembro de 1999, depois das terríveisinundações no Estado litorâneo de Vargas, a metáfora da zona deguerra tornou-se infelizmente adequada.

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20. UM NOVO FUTURO AGRÍCOLA PARA AVENEZUELA

SE O ARROZ FOSSE O PRATO NACIONAL, ‘MUDARÍAMOS A MENTALIDADE DOSVENEZUELANOS, QUE COMERIAM MANGAS EM LUGAR DE MAÇÃS, PANQUECASEM VEZ DE HAMBÚRGUERES E ARROZ EM VEZ DE MASSA’.

FEDERICO CHAPELLÍN, EL UNIVERSAL, 2 DE NOVEMBRO DE 1999.

Viajei de limusine para as arenosas margens do Orinoco. Mi-nha intenção não era fazer nada no gênero. O carro estava

estacionado fora do terminal de ônibus de Caracas, consideradoum dos lugares mais perigosos da cidade, onde é preciso mantertodos os sentidos bem alerta – e a mão firme na carteira – e nãopude resistir.

Meu destino inicial era Cabruta, um vilarejo perdido, situadona confluência dos dois grandes rios do país, o Orinoco e o Apu-re. Mas os ônibus só fazem a viagem de noite. Os llanos, as vastasplanícies venezuelanas que propiciam pastagem a milhões decabeças de gado, são insuportavelmente quentes durante o dia eé por isso que os motoristas que conhecem o trajeto organizam suasviagens quando está mais fresco. Mas eu não queria dormir em umônibus durante oito horas; eu queria ver as vastas planícies.

Uma oferta de Gabriel, um obeso e jovial motorista com ocabelo preto e comprido que caracteriza os indígenas, parecia sera solução. Orgulhoso proprietário de um carro estacionado à beira

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da calçada, disse que me levaria em minha longa viagem aoOrinoco por 50 dólares. Só havia um pequeno inconveniente:nunca fora para lá e talvez, se soubesse um pouco mais sobre oestado da estrada, tivesse pensado duas vezes.

A limusine era um velho Ford em vários tons de branco,bastante batido e muito riscado, mas sem dúvida muito cômodo,e objeto de interesse pouco comum no campo venezuelano. Ossoldados que guarnecem as pequenas guaritas ao longo da estra-da paravam-nos para uma rápida e distraída vistoria – para logoentabular uma longa discussão acerca dos mais sofisticadosdetalhes dos ajustes do motor. Gabriel é um entusiasta partidá-rio de Chávez, e ouve gravações de cantores de música floclórica,como Alí Primera ou Cristóbal Jiménez, que exaltam as virtudesdo presidente.

Um pouco mais tarde, foi preciso atender a algo mais impor-tante. Cada viagem por terra na América Latina implica, em al-gum momento, em uma parada involuntária para consertar umpneu furado. Ônibus, caminhão, caminhonete ou carro – todosos motoristas usam seus pneus até mais do que o cansaço. Sóquando estão vazios e explodem é que seus donos decidem queé necessário trocá-los. A explosão ocorreu em um trecho estrei-to e congestionado da estrada, e Gabriel empurrou o carro feri-do para um trecho de terra dura. É meio dia, faz mais de 40º C enão há vestígio de uma sombra. Gabriel deve pesar, pelo menos,120 quilos. Ainda assim, pula de um lado para o outro com avivacidade de um homem mais jovem e mais magro e, em me-nos de 20 minutos estamos, rodando outra vez.

O verdadeiro problema agora é o estado da estrada. Essaestrada asfaltada foi construída nos tempos em que a Venezuelatinha mais dinheiro do que bom senso, enormes recursos prove-nientes do petróleo e um governo apaixonado por infra-estrutura.

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Mas a superfície lisa do início desapareceu há muito tempo e nãohá dinheiro para consertá-la. O custo da viagem agora é cober-to pelo motorista, que se vê obrigado a pagar os consertos de seupobre carro, sacudido e maltratado pelos buracos. Para Gabriele sua limusine, os problemas são mais dramáticos. É possível queas rodas dianteiras evitem os buracos, mas não as traseiras.Quando isso acontece, o chassi raspa no chão. Milagrosamente,conseguimos sobreviver.

Oito horas mais tarde, apenas dez minutos antes que o vio-lento sol alaranjado desaparecesse por trás da ondulada super-fície do Orinoco, entramos majestosamente no caótico vilarejo deCabruta, admirados por todos.

Cabruta foi fundada pelos jesuítas, na confluência doOrienoco e do Apure, e fazia parte de uma meia dúzia de missõesconstruídas nessa região no início do século 18. Quando Alexan-dre Humboldt, o cientista e viajante alemão, chegou para exploraro local, por volta de 1800, os jesuítas já se haviam ido há muitotempo, mas os restos dos antigos assentamentos eram ainda vi-síveis, e um punhado de famílias indígenas sobrevivia às margensdo Orinoco, em Cabruta, La Encaramada, Urbana, Cachichana,San Borja e El Raudal.

Cabruta é hoje o centro do “eixo Orinoco-Apure”, um dosprojetos de Chávez para desenvolver e povoar a parte central doSul da Venezuela. Abaixo de Cabruta situa-se uma elevaçãorochosa de onde se pode ver o Orinoco se estender para o sul, emdireção ao Brasil, e para leste, em direção ao Atlântico. O rioApure, que se une ao Orinoco nesse ponto estratégico, desce daColômbia e dos Andes indo para oeste. Nessas terras, hoje virgens,o presidente Chávez espera desenvolver a agricultura, de maneiraque as pessoas que vivem atualmente nas periferias das grandescidades, se mudem para o campo. Quer criar novos centros eco-

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nômicos nas regiões pouco povoadas do Sul e do Leste deste paíspara que possam acolher os migrantes das abarrotadas cidadesdo Norte da Venezuela.

Trata-se de uma zona de pecuária, desabitada, mas que tam-bém poderia ser aproveitada para a produção industrial de arroze de palmito, 2 produtos para os quais Chávez considera que aVenezuela apresenta vantagens comparativas.

“Veja, aqui está o eixo Orinoco-Apure” – exclamou, quandojuntos mergulhamos no mapa que há em sua residência de LaCasona, em janeiro do ano 2000. Sua excitação era contagiante.“A terra foi virtualmente abandonada; não teremos de construirnovos vilarejos aqui, mas simplesmente reforçar os assentamen-tos que já existem.”

Chávez também estava interessado em outra área, justo aonorte do eixo Orinoco-Apure. Ali haveria um eixo norte-sul, deGuasdualito, perto da fronteira com a Colômbia, até o lago deMaracaibo. Chávez mostrava-me no mapa o assentamento de LaFría, um projeto de assentamento que já existia, mas que foiabandonado, onde poderiam ser reassentados os sobreviventesdas inundações de dezembro que ficaram sem casa. Nas encos-tas dos Andes, próximo à fronteira colombiana, esse seria umoutro projeto piloto para os ambiciosos planos de longo prazo quetinha em mente.

“Esse lugar encontra-se no Estado de Táchira, ao norte doeixo Orinoco-Apure, ao norte de San Cristóbal. Aqui há umacidade de cerca de 10 mil habitantes. É uma região maravilho-samente rica, ao pé da montanha, bem ao sul do lago de Ma-racaibo. Houve uma época em que trabalhei ali, em uma uni-dade militar que fazia a patrulha.”

De novo aproximou-se do mapa: “Veja, aqui está a fronteiracom a Colômbia, aqui está o aeroporto internacional e aqui há

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uma zona industrial abandonada. Aqui está a terra, aqui há al-gumas casas e aqui construiremos escola, oficina, estrada”.

Tudo isso fora construído há 10 anos, em tempos de CarlosAndrés Pérez. “Foram gastos milhões e milhões de bolívares, edepois o próprio Pérez abandonou o projeto. Começaram a cons-truir uma rodovia para San Cristóbal, a capital, mas pararam,porque nunca construíram os túneis nas montanhas. A estradaainda está ali, mas sem os túneis.”

Chávez disse-me que programara visitar La Fría na semanaseguinte: “Porque não vem conosco?” – disse de repente e euexpliquei, desculpando-me, que tinha uma passagem de volta aLondres dentro de três dias. “Pois bem, poderíamos ir depois deamanhã, quarta-feira. Tínhamos planejado ir para outro lugar, emZulia, mas isso pode esperar.”

Convocou um funcionário, que estava sentado à vista, mas nãopodia ouvir: “Chame o general Cruz Weffer” – disse e em trintasegundos estava em comunicação com o chefe do Estado-Maior.“Creio que vamos a La Fríia nesta quarta-feira. Como? Quantasfamílias? Em que pé está?” Fez uma pausa para ouvir uma respostagaguejada: “Pois lhes diga que se apressem. Que vamos de qual-quer maneira; não importa se não está tudo pronto”.

Eu estava tendo uma demonstração pessoal das característi-cas do presidente Chávez, que seus colaboradores mais próximosacham angustiante: sua preocupação militar com os detalhes esua capacidade de tomar decisões rápidas e de exigir ação ime-diata. Para a maioria das coisas que quer que sejam feitas, hojejá é tarde demais.

Então, quarta-feira de madrugada, quando o Sol mal saía detrás das colinas que rodeiam a cidade, esperei por ele no salão deoficiais do pequeno aeroporto de La Carlota, no centro de Cara-cas, a sede da Força Aérea venezuelana, enquanto um agente dos

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serviços secretos passava o tempo revistando debaixo do sofá,para ver se havia bombas. Quando Chávez chegou, vestindo seuuniforme camuflado de campanha e sua boina vermelha, embar-camos no avião presidencial e decolamos para a fronteira colom-biana, a uma hora de vôo. A metade do governo foi também.

Aterrissamos em um aeroporto deserto, onde a grama cresciaentre as placas da pista de concreto. Uma banda militar saudou opresidente e, depois das formalidades militares de rigor, subimosem quatro grandes helicópteros, para voar para uma área militarpróxima, em Guarimito. Do ar, o assentamento parecia lamenta-velmente isolado, um grupinho de tetos de zinco rodeados por umasavana que se perdia de vista. O território colombiano, impossívelde distinguir, encontra-se a alguns quilômetros dali.

Uma vez em terra, as coisas pareciam um pouco mais ani-madoras Aterrissamos em um trecho de estrada dura, junto a umpântano, onde um grupo de operários trabalhava para conser-tar as poucas casinhas de telhado de zinco que havíamos vistode cima. A maioria deles usava botas amarelas de borracha, masum oficial critica três rapazes, por usarem sandálias. Eles ale-gam que suas botas estavam molhadas. Trata-se de um campomilitar e os militares destinam a terra e as casas para oreassentamento as vítimas das inundações; mas o oficial estáevidentemente preocupado com a impressão que seus trabalha-dores vão causar ao presidente.

A partir do momento em que Chávez desce de seu helicópte-ro, uma multidão saída de lugar nenhum vai para cima dele.Pouco a pouco, se consegue abrir caminho até chegar a um gran-de trailer, transformado em oficina. Esse é o componente civil desua operação cívico-militar, dirigido pelo instituto governamentalde treinamento. Contém mesas de carpintaria e serras elétricas.Chávez indaga ao supervisor, um civil nervoso, cobrindo-o de

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perguntas: “Há quanto tempo está aqui? Quando vai começartudo? Quando chegam os professores?”

“Os professores estão sendo selecionados” – diz o supervisorcomo se desculpando – “mas ainda não chegou nenhum.”

“Sim” – diz Chávez – “isso já sabemos. As pessoas se compro-metem e depois desaparecem. Um mês depois é preciso recome-çar tudo. Deve ter muito cuidado com quem escolhe.”

Continua pressionando o infeliz supervisor: “Vocês têm de sermais produtivos. Por que não instalam umas barracas, constroemoutro edifício e trazem mais gente?” Descobre que o supervisorperde tempo, indo e vindo todos os dias da cidade – que fica aapenas 5 minutos de helicóptero, mas a uma hora por terra. “Vocênão pode fazer isso o tempo todo” – diz – “vai ficar exausto.Porque não experimenta ficar aqui, em uma barraca? Não seesqueça da importância deste trabalho. Não estamos treinando aspessoas para que se vão. Queremos que fiquem. Estamos coloni-zando o país com nossa própria gente. Quantas vezes fomosmalsucedidos no passado? Não podemos fracassar desta vez.” Osupervisor, em seu impecável terno escuro de representante doEstado, inclina a cabeça em sinal de aprovação, mas parece cons-ternado.

Enquanto espero por Chávez, que é cercado por outra multi-dão, dirijo-me a Jorge Giordani, o ministro do Planejamento. Essehomem grisalho, que aparenta mais idade do que tem, está portrás do plano para o desenvolvimento interno. Economista radicale professor universitário, com estudos no Instituto de Estudospara o Desenvolvimento, da Universidade de Sussex, nos temposdo desaparecido Dudley Seers, foi o guru econômico do MAS.Giordani trabalhou com seus estudantes na formulação de umplano para revitalizar as áreas rurais, e conta-me que costuma-va visitar Chávez na cadeia. Os dois homens se davam bem, tendo

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Giordani se tornado o orientador econômico de Chávez quandode sua tese de graduação. Como ministro do Planejamento, trouxeconsigo uma equipe de universitários radicais para pôr em campoos projetos do presidente. Seu ministério, o Cordiplan, tem aresponsabilidade de projetar a revolução agrícola prometida.

Dirigimo-nos para uma sala de reuniões onde Chávez inter-roga agora o oficial principal. Descobre que parte da terra foiocupada por invasores, que derrubaram árvores e venderam amadeira. “Quero saber, imediatamente, quem vendeu essas ter-ras. Aquele que for surpreendido derrubando árvores será preso.Isso é totalmente ilegal. Quero saber quem possui terras em 50quilômetros de raio. Sei que há muita gente que possui terras poraqui, mas que, na realidade, vive em Miami ou em Londres.Devemos expropriá-las. A nova Constituição permite, embora,obviamente, tenhamos de pagar por elas”.

Começou então a fazer perguntas sobre o que a terra pode-ria produzir. “O que se cultiva nesta região? O que cultivavam osindígenas? A produção de leite é na verdade a melhor opção, ouseria melhor produzir vegetais?” As pessoas começam a expor seuponto de vista, e todos asseguram que a terra é boa para a pecu-ária. Chávez anuncia, com severidade, que vai voltar para ver oque estão fazendo e avisa que poderá vir sem avisar.

Caminhamos de volta para as casas que já foram reformadase estão a ponto de serem entregues a seus novos proprietários.Foram construídas em círculo, em torno da praça, e cada uma temum pedaço de terra na parte traseira. Alguns toldos provisóriosforam instalados, mas Chávez fica fora, no meio, em pleno sol domeio-dia, por mais de uma hora. A maioria das 24 famílias quereceberão casas vem da zona litorânea da tragédia de dezembro;alguns vêm de Naiguatá, embora outros sejam de uma zona pró-xima, onde ocorreu uma tragédia semelhante. Um desses homens

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diz-me que suas plantações de milho e de mandioca foram de-vastadas pelas águas. “Não temos dinheiro nem capital. Precisa-mos de ajuda” – diz. Quando peço que ponha seu nome em meucaderno, ele se desculpa por não saber escrever.

As famílias chegam uma a uma e Chávez fala com cada umadelas. Freqüentemente, trata-se de um homem e de uma mulher,jovens, com 2 ou 3 filhos pequenos, embora às vezes seja umcasal mais velho e mais preocupado. Toda a família em conjun-to se adianta e ele lhe estende o título de posse, faz perguntassobre sua experiência e sua competência e dá alguns conselhose advertências. Eles se retiram sorridentes. As casas não são umpresente para os colonos, já que morarão nelas sem pagar alugueldurante um ano apenas. Depois, terão de pagar regularmente umacota à cooperativa, que é, formalmente, a proprietária.

Uma vez terminadas as formalidades, Chávez faz um discur-so curto, ao mesmo tempo em que anuncia que seu secretário jáavisou que estão com 3 horas de atraso. “Não tem importância,façamos as coisas como devem ser feitas.” Tem consciência de queé importante dar alento a quem toma posse das novas casas,assim como respeitar certas formalidades.

“Foram muito corajosos em vir para cá” – diz a eles – “e emfundar um novo vilarejo. Não é fácil para ninguém se mudar dacosta para os llanos. Mas não pensem em mais nada: começa-mos há apenas duas semanas, mas, em poucos meses, haverá milcasas aqui.”

Lembra a eles que Guarimito é o nome dos indígenas queviviam nesse lugar. “Conheço esta região, são das melhores ter-ras da Venezuela. Estive aqui várias vezes, patrulhando a fron-teira.” Diz para não se preocuparem com o isolamento. “Construi-remos uma estrada-de-ferro que passará muito perto daqui, desdeo rio Apure até o lago de Maracaibo.”

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Acrescenta uma última advertência. “Por favor, não ponhammeu nome em suas estradas ou casas. Não quero ser lembradocom algo como a rodovia Raúl Leoni” – diz, evocando a extra-vagância de um presidente anterior.

Foi uma experiência reconfortante: os novos colonos orgu-lhosos, as crianças agitando a bandeira amarela, azul e verme-lha da Venezuela, e todo o mundo à beira das lágrimas. Chávezdesempenha seu papel paternal reconfortando as pessoas, con-versando, fazendo perguntas, procurando respostas e difundin-do um sentimento de otimismo e de boa vontade.

Uma multidão de ministros e de curiosos dirige-se para o he-licóptero e decolamos para visitar outro projeto abandonado doancien régime, uma imensa zona industrial abandonada que, se-gundo dizem, é a maior da América Latina. Chávez mergulha denovo na multidão que o espera, para saber o que desejam. Vive-ram aqui muitos anos e só desejam uma coisa: trabalho. Depois,subimos em um ônibus e damos lentamente uma volta pelo lo-cal abandonado.

Chávez dirige uma reunião improvisada com seus ministros,enquanto o responsável pelo lugar explica o que acontecia antesa cada oficina e a cada galpão abandonado. Discutem sobre o quedeverá ser recuperado, que os investidores poderão ser motivadosa se transferir para lá se receberem suficientes incentivos fiscais.O Estado pode entrar com educação e assistência médica, mas nãose trata de repetir o fracasso das empresas do Estado da década de1970. O investidor privado terá de ser estimulado a levar adianteos grandes e pequenos projetos necessários para corrigir as falhasdo passado. O ministro da Indústria diz-me que, se os militaresajudassem, limpando o terreno, seria possível montar 50 empre-sas pequenas, talvez com 20 empregados cada uma, durante oprimeiro ano. Chávez quer que tudo seja feito mais depressa.

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Ao regressarmos à base militar de La Fría, bastante atrasadospara o almoço, Chávez se reuniu, por uma hora, com seu gabi-nete, para discutir aquilo que cada um aprendeu e quais decisõesdeveriam ser tomadas no futuro. A reunião teve continuidadedurante a viagem de volta assim como se prolongou no terminalde passageiros do aeroporto de La Carlota, quando fui para casa.Chávez continua falando sem dar sinais de cansaço e, na voltaa La Casona, ainda fez outras reuniões noite adentro. Seus mi-nistros, assim como eu, estamos completamente exaustos.

O reassentamento das vítimas das inundações em La Fría éapenas um elemento de uma longa série de experiências feitaspelos governos da América Latina, através dos anos, para tentarinverter o fluxo do êxodo rural que asfixia as cidades. Houve maisfracassos do que êxitos. No início dos anos de 1970, o governoradical militar do Peru legalizou as invasões nas cidades novasque cercavam Lima, mas essa estratégia apenas atraiu novosimigrantes dos Andes rurais para a cidade litorânea, servindoapenas para aumentar ainda mais os barrios. Chávez procurou serum pouco mais original, transferindo o excesso de populaçãourbana para os novos projetos agroindustriais de desenvolvimen-to distantes das delícias da cidade. Essa estratégia é muito dife-rente da de Pol Pot, no Camboja, já que não há ameaças de re-pressão. A escala é modesta e a escala de tempo é o longo prazo.Chávez disse-me que pensava em 20 anos. Pode-se imaginar queconsiga persuadir alguns milhares de pioneiros a aceitar o desa-fio, mas é mais provável que seus projetos diminuam a taxa demigração rural para as cidades, isto é, que a invertam. Se conse-guir apenas isso, o esforço já terá valido a pena.

Nenhum presidente, desde Marcos Pérez Jiménez, no prin-cípio dos anos de 1950, fez grande coisa pela agricultura.Chávez gostaria que o país fosse auto-suficiente. Atualmente,

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a Venezuela importa mais da metade dos alimentos que conso-me; 64% em 1998. Enquanto os governos anteriores concentra-ram-se no petróleo, no desenvolvimento industrial ou no co-mércio, o governo de Chávez concentrar-se-á na agricultura. Ogado pasta em milhares de hectares que poderiam ser utiliza-dos de forma mais produtiva.

Há mais de 50 anos, as pessoas falavam de “semear o petró-leo”, isto é, investir a renda petrolífera para melhorar a agricul-tura. Isso nunca aconteceu e agora Chávez quer que aconteça.Em 1999, começou modestamente, com o repasse de 15 milhõesde dólares às famílias camponesas, para ajudá-las a criar novosassentamentos em zonas rurais. O plano foi projetado para au-mentar a produção de itens como arroz, milho, leite, açúcar eóleo de cozinha.

Poder-se pensar que a dieta do venezuelano é à base de ar-roz, já que a Venezuela é um país quente, que possui muitos riose várzeas. Mas, hoje, os venezuelanos comem mais trigo quearroz, já que o trigo importado dos Estados Unidos, a preçossubsidiados, é mais barato que o arroz produzido no país. Segun-do Federico Chapellín, um colunista de El Nacional, os venezue-lanos consomem apenas 12 quilos de arroz por pessoa ao ano,enquanto os colombianos comem 30 quilos, os brasileiros, 48, osequatorianos, 58 e os peruanos, 32. Os venezuelanos compensamseu baixo consumo de arroz comendo 65 quilos de trigo impor-tado dos Estados Unidos.

A Venezuela produz arroz e, de fato, produz mais do que seconsome. Evidentemente, o trigo não é um cereal que próprio depaíses tropicais. Então, para mudar as prioridades do país, Chávezterá que mudar a dieta nacional e promover o arroz e o milho emlugar das massas, à base de trigo. Chapellín sugere que o arrozseja transformado em prato nacional e que a nova Constituição

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devia tê-lo declarado “cereal nacional”. Ao fazer isso, escreveu,esperançado, “mudaríamos a mentalidade dos venezuelanos, quecomeriam mangas em lugar de maçãs, panquecas em vez dehambúrgueres e arroz em vez de massa”.

Em um dos grandes centros comerciais de Caracas, fiz umalista dos diferentes lugares onde se poderia comer. Primeiro en-contrei as “Wendy’s Old Fashioned Hamburgers”, ilustradas comuma moça estadunidense de cachinhos curtos e dois lacinhos.Depois, vi o “American Deli”, que tem a Estátua da Liberdade emseu logotipo. Depois, a “Italian Coffee Company”, com letreirosna rua que indicavam Canal Street e Manhattan. Acompanhava-as “Good Time Ice Cream”, “Happy Time Ice Cream”, “Chip-a-Cookie”, “Dunkin Donuts”, a loja de chocolates “St. Moritz”, e,claro, McDonalds. É difícil imaginar que os alegres jovens quefreqüentam o centro comercial, com seu modo de vida àestadunidense, queiram algum dia mudar seus hambúrgueres porpanquecas, ou comer arroz em vez de massa. Mas é essa mudançarevolucionária que o governo de Chávez está exigindo deles paraque reconstruam o país em bases mais nacionalistas.

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21. JOSÉ VICENTE RANGEL E A POLÍTICA EXTERNA,A POTÊNCIA SOVIÉTICA ENTROU EM COLAPSO, MAS ISSO NÃO SIGNIFICA QUE OCAPITALISMO NEOLIBERAL DEVA SER O MODELO A SER SEGUIDO PELOS POVOSDO OCIDENTE. MESMO QUE SEJA POR ESSA ÚNICA RAZÃO, CONVIDAMOS ACHINA A QUE CONTINUE FAZENDO TREMULAR SUA BANDEIRA, PORQUE OMUNDO NÃO PODE SER DOMINADO POR UMA FORÇA POLICIAL UNIVERSALQUE PRETENDE TER O CONTROLE DE TUDO.

O PRESIDENTE CHÁVEZ EM PEQUIM, OUTUBRO DE 1999.

hávez chegou à Presidência com grandes ambições em matériade política externa. Seu objetivo é, nada mais, nada menos do

que realizar o sonho bolivariano de unir os povos da América La-tina. Outros lutaram por essa causa durante o último meio século,principalmente Fidel Castro e Che Guevara. Castro, durante seusprimeiros anos de governo, invocou a tradição da “Nossa Améri-ca”, na “Primeira Declaração de Havana”, de 1960. Com seu grandesenso histórico, elogiou a “América que Bolívar, Hidalgo, Juarez,San Martín, O’Higgins, Sucre e Martí queriam ver libertada”.

Che Guevara, em seu campo boliviano de Ñancahuazu, emdezembro de 1966, invocou o espírito da revolução continentale brindou ao “novo grito de Murillo”, que a sua guerrilha estavadando, fazendo eco ao advogado de La Paz que, em 1809, foradesignado para empreender a libertação da América Latina.

O fascínio de Hugo Chávez pelo projeto bolivariano de eman-cipação prolonga essa tradição de liderança radical americana e,como venezuelano, pode contar com a relação privilegiada que

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seu país tem com a figura do Libertador. Em uma entrevista comAgustín Blanco Muñoz, em 1995, ele argumentava que “a posi-ção bolivariana nesse campo de visão geopolítica continua ten-do toda a sua atualidade”.

Nenhum de seus generais nos tempos da independência, pelomenos nenhum de seus generais venezuelanos, tinha essa visão,essa noção de unir todos os territórios fragmentados da Améri-ca Latina, para enfrentar o poder imperial do Norte. É uma po-sição que agora ganha espaço, não apenas entre os venezuelanos,mas em toda a América Latina.

Dar ênfase à integração econômica da América Latina nãotem, obviamente, nada de novo; fez parte da retórica oficial dequase todos os regimes, durante décadas. Em troca, a ênfase queo presidente Chávez dá ao político é nova e interessante. Comoaspira a seguir os passos de Bolívar, queria convocar um Con-gresso Anfictiônico* em Caracas, no ano 2000, de todos osEstados bolivarianos do continente, tal como fizera Bolívar noPanamá, em 1826.

“O século 20 foi perdido. Assim como se fala da década de1980 como da década perdida, o século 20 foi um século perdi-do. Nossos povos viviam melhor no século passado [19], do queneste [20]. Viveram melhor. Então, é uma união, como diziaBolívar. A pátria, para nós, é a América: a união é fundamental.Nisso, Martí, O’Higgins e Artigas estavam de acordo; Sandino ePerón, também. É a união de todos esses povos.”

Sua estratégia, diz, “aponta na direção de formar uma gran-de aliança, uma grande união latino-americana e caribenha”. Oque deseja é uma “comunidade de nações e de Estados”.

* Congresso de representantes de Estados (neste caso, de todos os Estados bolivarianos),que se reuniriam para deliberar sobre assuntos de interesse de todos eles. (N. do E.)

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Isso, afirma, tem de ser conduzido politicamente, embora nãose esquecendo da economia. “Definimos, como prioritária e ur-gente na definição de nossa política externa, o tratamento, aintegração de 3 fronteiras que rodeiam a Venezuela” – a fronteiracaribenha (a bacia do Caribe), a fronteira amazônica (o Mercosule o Brasil) e a fronteira andina (a comunidade andina).

Chávez explicou ao intelectual Heinz Dietrich, em maio de1999, que esperava que a Venezuela fosse logo capaz de “pisarno acelerador” da integração da comunidade andina, do Mercosule da bacia do Caribe, “incluindo, claro, a América Central, até oMéxico, Cuba, Santo Domingo e todas as ilhas do Caribe”.

“Por que” – pergunta de maneira retórica – “não pensar emuma moeda? Mas não o dólar, uma moeda latino-americana, umamoeda nossa. Assim como a Europa unida, que conseguiu che-gar ao euro...”

Chávez estendeu essa idéia da integração ao âmbito militar.No princípio de novembro de 1999, dirigiu-se a um grupo demembros do Parlamento Andino, um recinto inofensivo cujosmembros são escolhidos entre os parlamentares das repúblicasandinas. Chávez tirou-os de sua letargia quando lhes sugeriu queconsiderassem a possibilidade de criar uma Otan latino-america-na, um projeto para uma aliança militar continental, coisa quenão podia estar mais longe de suas cabeças.

A Otan, claro, é uma instituição criada pelos Estados Unidose que trabalha em seu benefício. Chávez, de um só golpe, estavasugerindo algo bastante diferente – uma Otan latino-americanasem os Estados Unidos. Durante anos, sem dúvida, uma espéciede Otan latino-americana funcionou, com o nome de JuntaInteramericana de Defesa. Seu quartel general fica em Washing-ton e, embora alguns generais estadunidenses gostem de falarcastelhano, suas reuniões acontecem em inglês. Vários exércitos

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latino-americanos, em troca de apoio político, recebem ajudaeconômica de Washington, assim como armas de segunda mão.Dois países em particular, o México e a Argentina, estabeleceramestreitos vínculos militares com os Estados Unidos, os quaisequivalem a uma aliança militar formal.

Ainda assim, nem todos os oficiais latino-americanos vêemtais acordos com bons olhos. Muitos se lembram da guerra dasMalvinas, em 1982, quando seu aliado estadunidense aliou-se àGrã-Bretanha contra a Argentina. Outros se lembram das inter-venções militares dos Estados Unidos no passado – no Panamáe no Haiti (e em Granada, nos anos de 1980). Cada um reconhe-ce que a ameaça de uma intervenção na Colômbia é grande.

Há outra preocupação entre os militares. Os Estados Unidosinvadiram o Panamá em 1989 e, naquela ocasião, aboliram aGuarda Nacional panamenha. Muitos oficiais venezuelanos te-mem, e Chávez tornou-se o porta-voz desse temor, que este sejao objetivo atual dos Estados Unidos no continente: abolir asForças Armadas!

A política externa do governo de Chávez está nas mãos com-petentes e eficientes de José Vicente Rangel,* político experien-te e diplomata nato. Também é conhecido por seu apego senti-mental à Revolução Cubana e por sua hostilidade com relação àspolíticas estadunidense na América Latina. Três vezes candida-to presidencial da esquerda, e durante décadas um dos maisdestacados jornalistas da Venezuela – tinha um programa sema-nal na rádio e na televisão, além de uma coluna na edição domi-nical do jornal El Universal – agora com 70 anos, é o encarregadode colocar em prática a política externa bolivariana de Chávez.

* José Vicente Rangel agora é ministro da Defesa. Seu sucessor no Ministério das Re-lações Exteriores foi Luis Alfonso Dávila. (N.da T.)

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Nas paredes de sua sala, ao lado de uma estátua de Bolívar,só há um quadro: a fotografia de José Ignacio Arcaya, ministrode Relações Exteriores que, no início dos anos de 1960, foi o únicochanceler que se recusou a ceder à solicitação que os EstadosUnidos fizeram a todos os países latino-americanos, de boicotarCuba de Fidel Castro. Ignacio Arcaya é lembrado como ochanceler da dignidade. Em uma década sombria, fez o que tinhade fazer. Seu filho é o ministro do Interior de Chávez.* Por sua vez,o filho de Rangel é um dos partidários de Chávez na AssembléiaConstituinte.* A foto foi bem escolhida.

De ombros largos, cabelo branco e bigode militar, JoséVicente Rangel evoca a imagem do genial coronel Blimp ou,talvez, a de um corretor de seguros, ofício que desempenhou nopassado. Exilado na Espanha na década de 1950, durante aditadura de Marcos Pérez Jiménez, aceitou o primeiro trabalhoque lhe ofereceram.

Nascido em 1929, no tempo do ditador Juan Vicente Gómez,Rangel é o produto da euforia radical da era posterior a 1945. Foieducado no conservador liceu católico La Salle, de Barquisimeto,cursou Direito na Universidade de Mérida, tendo depois entradona Universidade Central, em Caracas, um foco de radicalismopolítico. No princípio, aderiu às fileiras da União RepublicanaDemocrática (URD), de Jóvito Villalba, tendo sido membro dadireção nacional do partido durante muitos anos, de 1950 a 1963.

Grande parte de sua vida política foi influenciada por suaprofunda desconfiança na AD, particularmente em seu principallíder, Rómulo Betancourt, que adotou um anticomunismo intran-

* Ignácio Arcaya é, agora, embaixador da Venezuela na ONU. O atual ministro do In-terior e Justiça é Luis Miquilena. (N. da T.)

* José Vicente Rangel Ávalos foi eleito, em julho de 2000, prefeito de Sucre, municí-pio caraquenho. (N. da T.)

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sigente e um compromisso com os Estados Unidos. Essa profun-da hostilidade com relação à AD é compartilhada por Chávez, eé uma das características de todas as principais figuras de seugoverno. Rangel abandonou finalmente a URD em 1964, quan-do o próprio Villalba aliou-se ao partido detestado. Nos anos de1970, Rangel aproximou-se do MAS, que surgira de uma cisão doPCV, tendo sido seu candidato à Presidência da República sem serum membro ativo do partido.

Por que então esse outrora esquerdista empedernido cerroufileiras com Chávez? Por coisas do acaso, Rangel me disse um dia.Ele esteve a par da existência de Chávez antes da fracassadatentativa de golpe, de fevereiro de 1992, que transformou estenuma figura pública. O filho de Rangel, José Vicente RangelÁvalos, estudou na Academia Militar da Venezuela durante osanos de 1980. Seu oficial superior (além de seu orientador), foiHugo Chávez. Durante os fins de semana, o ex-candidato presi-dencial da esquerda, bastante famoso – Rangel – encontrava-secom o futuro líder do golpe, totalmente desconhecido – Chávez.Mais tarde, Rangel visitou Chávez na prisão de Yare.

Paradoxalmente, o filho de Rangel teve de deixar a Academia.Pensava-se que o filho de um conhecido homem de esquerdatinha de se infiltrar no Exército para fomentar um golpe. Ninguémsuspeitou naquele tempo que era o comandante Chávez, e não orecruta Rangel Ávalos, que estava por trás da conspiração.

Uma das tarefas de José Vicente Rangel como ministro deRelações Exteriores consistiu em buscar melhorar a imagem dopresidente no estrangeiro. Durante a campanha presidencial de1998, a oposição conservadora pintou Chávez com as cores maissombrias: no melhor dos casos, Nasser e Ataturk; e, no pior, Hitlere Mussolini. John Maisto, o embaixador estadunidense em Cara-cas, recusou-se a lhe dar um visto para os Estados Unidos quan-

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do era candidato, e recebeu sua eleição com alarmismo. Diplo-mata de carreira, desprovido de ambições, não tinha intenções depassar à história como o homem que “perdeu” a Venezuela.Maisto achava que Chávez era um golpista perigoso e antidemo-crático. Segundo dizem, afirmou não conhecer “ninguém naVenezuela que considere Chávez um democrata”. RichardWilkinson, o embaixador britânico, e os demais embaixadoreseuropeus adotaram posições mais comedidas. Chávez foi convi-dado a visitar a Grã-Bretanha em 1998 e deixou uma excelenteimpressão em todos que conheceu.

Depois de sua eleição em 1998, Chávez empreendeu umaviagem pelos países da América Latina, particularmente peloMéxico, Brasil e Argentina. Em toda a parte foi recebido comcortesia, embora a maior parte dos outros presidentes obvia-mente esperava que seu sonho bolivariano de integração con-tinental não fosse mais do que uma retórica sedutora. Foi aRoma e conversou com o papa e, na Espanha, teve uma entre-vista com o rei. Tinha de se livrar da imagem negativa quehaviam feito dele.

Depois de alguns meses como presidente, repetiu o exercí-cio. Em setembro de 1999, falou nas Nações Unidas, em NovaYork, fazendo o mesmo em Washington. Os estadunidensesmantiveram uma posição hostil durante os primeiros meses deseu governo e, em agosto de 1999, depois que as disputas en-tre o velho Congresso e a nova Assembléia Constituinte trans-bordaram para as ruas de Caracas, Washington expressou aber-tamente sua preocupação.

A situação na Venezuela é motivo de “crescente preocupação”– disse James Foley, porta-voz do Departamento de Estado, em 30de agosto, expressando solenemente seu desejo de que as parteschegassem “a um acordo sobre a maneira de exercer o poder” e de

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“garantir a elaboração de uma Constituição que preserve o com-promisso duradouro da Venezuela com a democracia”.

No entanto, com a visita de Chávez a Washington, o ambien-te começou a mudar. Conquistou os editores do WashingtonPost, com quem tomou um café da manhã. “Falou com imagenscoloridas e dramáticas” – segundo o relato de Nora Boustany –“que ele via e sentia a dor dos venezuelanos quando percorriaos campos, depois de ter pago com a prisão, há 5 anos, suatentativa de golpe de 1992”. Acrescentou que se “comprometeua ser criativo para atacar os problemas do país, mas não pro-meteu milagres nem soluções de um dia para o outro”. “Preci-sa-se de uma liderança séria” – disse ao Washington Post – “enão de populismo irresponsável”.

No decorrer do ano, Chávez dirigiu-se a outras partes domundo, incluindo a China, Japão, Coréia do Sul, Malásia,Cingapura e as Filipinas. Desde a presidência de Carlos AndrésPérez, nos anos de 1970, a Venezuela não se considerava um paísdo Terceiro Mundo. Presidentes anteriores, em particular o pró-prio Pérez, tinham o hábito de visitar continentes distantes. Defato, durante sua segunda presidência, na década de 1990, Pérezera acusado de passar tempo demais representando o papel dehomem de Estado internacional. Seja como for, a posição daVenezuela como membro fundador da Opep torna-a, evidente-mente, um ator mundial e Chávez, apesar dos inevitáveis encar-gos domésticos, estava muito consciente de que devia obter tantoapoio internacional quanto possível.

Nesse contexto, sua visita à China em outubro teve umaimportância considerável, tanto política quanto econômica. Asnecessidades potenciais da Venezuela em arroz e artigos de con-sumo baratos, e as necessidades da China em petróleo, faziamcom que os dois países fossem parceiros complementares. Mas

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Chávez também apreciava a posição chinesa em matéria de po-lítica internacional. Seu entusiasmo pela “terceira via” do primei-ro-ministro britânico desvanecera-se depois da guerra do Kosovo,quando compreendeu que a posição britânica, de apoio incondi-cional aos Estados Unidos, estava em total contradição com suaprópria concepção da política mundial. Chávez assegurou aoslíderes chineses, em Pequim, que era a favor de “um mundo abertoe multipolar”, que respeitasse a soberania dos povos.

“Na Venezuela, na América longínqua, já içamos a bandeirada soberania popular; nisso estamos totalmente de acordo como povo chinês e seu governo revolucionário.”

Ao visitar o túmulo de Mao Tse-tung, em 12 de outubro, pro-nunciou em elogio que ninguém pode ignorar, ao “grande estra-tegista, grande soldado, grande estadista e grande revolucioná-rio”. Quando encontrou o ministro chinês Zhu Rongji,simplesmente disse que o povo venezuelano estava começandoa “levantar-se”, assim como a China levantara-se 50 anos antes,“sob a liderança de seu Grande Timoneiro”. Chávez disse aoschineses que não acreditava no neoliberalismo, pois este fora umdesastre para o Terceiro Mundo. Buscara impor modelos econô-micos a partir dos centros de poder mundial no Ocidente, masmergulhara milhões de pessoas na pobreza, deixando-as semoutras perspectivas senão o desemprego, a miséria e a morte.

“A potência soviética entrou em colapso, mas isso não signi-fica que o capitalismo neoliberal deva ser o modelo a ser segui-do pelos povos do Ocidente. Mesmo que seja por essa única ra-zão, convidamos a China para que continue fazendo tremular suabandeira, porque o mundo não pode ser dominado por uma for-ça policial universal que pretende ter o controle de tudo”.

Depois de viajar pela Ásia, Chávez voltou para casa via Eu-ropa. Disse ao chanceler alemão Gerhard Schroeder, que deseja-

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va “criar um modelo econômico diferente” e que seus conselheiros“observavam com muita atenção o modelo alemão e europeu”.Também disse que “a nova Constituição daria mais estabilidadee segurança aos investimentos nacionais e estrangeiros”.

Também insistiu na multipolaridade. O mundo tinha queentender due “as pessoas têm o direito de reorganizar seus acor-dos como melhor lhes convenha. Existe um princípio fundamen-tal: a autodeterminação dos povos. Não pode haver uma políti-ca internacional que observe o que outros povos fazem, paradepois lhes impor seu próprio modelo”.

O entusiasmo de Chávez por um mundo “multipolar” aindaparece estranho no contexto latino-americano, embora dez anosdepois do fim da guerra fria, os europeus tenham se manifesta-do com freqüência a favor desse conceito. “Não podemos acei-tar um mundo politicamente unipolar, nem a unilateralidade deuma única hiperpotência”, anunciou o ministro de RelaçõesExteriores francês, Hubert Védrine, em discurso pronunciado emParis, em 3 de novembro. No entanto, na América Latina dos anosde 1990, os países mais avançados, especialmente o México, aArgentina e até certo ponto o Chile, consideram-se membrospotenciais do Ocidente e membros potenciais do Primeiro Mun-do. De seu ponto de vista, a América Latina faz parte do póloestadunidense – uma atitude não muito diferente da de TonyBlair, no Reino Unido. Ainda assim, até no debate europeu, pou-cos foram os que indicaram onde poderiam ser criados os outrospólos potenciais. Os Estados Unidos e a Europa são consideradosexemplos únicos.

Hugo Chávez defende uma posição totalmente diferente eoriginal, alinhando-se com Védrine na busca de um mundomultipolar e apostando na formação de um pólo latino-america-no. Para isso, conta com o apoio firme, porém tácito, do Brasil,

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em que o presidente Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tem-po em que aceita com entusiasmo o modelo econômico neoliberal,compartilha a crença tradicional dos sucessivos governos brasi-leiros na importância geopolítica de um país de tamanho conti-nental, como é o Brasil. Chávez vê com otimismo o que consideraum renascimento global do nacionalismo:

“Creio que estamos atravessando um período em que o naci-onalismo renasce. Isso pode ser visto no conflito da Tchetchêniacontra os russos. É como o regresso da história, assim como asvelhas nações voltaram depois da I Guerra Mundial... Antes haviaum duplo globalismo, duas potências imperiais que queriamdominar o mundo, e então uma delas entrou em colapso e a outradisse, ‘agora é minha vez, sou o dono da nova ordem mundial,o mundo unipolar’. Essa idéia fracassou rapidamente. O que te-mos agora é uma desordem mundial. Não há ordem, não há umaúnica superpotência. No futuro haverá vários centros e veremosa formação de alianças e blocos.”

O problema de Chávez é que ainda não existem sinais de queos países da América Latina organizem-se em um bloco capaz denegociar com o resto do mundo. Essa mensagem demorará muitoa ser transmitida. Muitos presidentes latino-americanos vão semostrar resistentes, já que nenhum deles considera a Venezuelaum líder político natural no continente.

Na Venezuela, Chávez fala, passando por cima de seus auditoresimediatos, a um público mais amplo. A mesma técnica pode darresultados na América Latina e pode ser que, pouco a pouco, nes-se universo mais amplo ele também venha a ter um público.

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22. A GUERRA CIVIL NA COLÔMBIA E O FUTURO DOSONHO BOLIVARIANO

PEÇO A CHÁVEZ QUE, POR FAVOR, PERMANEÇA EM SEU TERRITÓRIO, POISNÓS RESOLVEREMOS NOSSOS PRÓPRIOS PROBLEMAS. NÃO QUEREMOSNOS MANIFESTAR SOBRE OS PROBLEMAS INTERNOS DA VENEZUELA, PORQUENÃO QUEREMOS QUE INTERFIRAM NOS ASSUNTOS INTERNOS DACOLÔMBIA. SE CHÁVEZ ENTRAR EM CONTATO COM AS GUERRILHAS,QUEREMOS SER INFORMADOS ANTES.

PRESIDENTE ANDRÉS PASTRANA EM WASHINGTON, SETEMBRO DE 1999.

ara a Força Armada venezuelana e, por consegüinte, para opresidente Chávez, o principal problema externo que o país

enfrenta, há tempos, é sua relação com a Colômbia. A Venezuelatem centenas de quilômetros de fronteira com a Colômbia, umpaís que durante décadas esteve envolvido no tipo de guerra civilprolongada e sem saída que a Venezuela teve de enfrentar duranteo século 19.

Essa guerra atravessa freqüentemente a fronteira. Fazendei-ros venezuelanos dos Estados de Zulia e Táchira são seqüestra-dos de vez em quando e caminhoneiros que transportam merca-dorias da e para a Colômbia são atacados. Os dois lados, asguerrilhas de esquerda e os paramilitares de direita, estiveram en-volvidos nesses incidentes fronteiriços.

Mas o problema colombiano é muito mais significativo ecentral para a Venezuela do que o assunto relativamente simplesdos incidentes fronteiriços. A Colômbia é um país em profundacrise e o futuro do governo de Chávez depende inevitavelmente

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do que aconteça no país vizinho. O Estado colombiano atual estáà beira do colapso e, de fato, em muitos lugares do país já entrouem colapso, devastado pela economia da droga, que alcançouimportância maior que a economia nacional tradicional.

Fato ainda mais significativo: as novas forças emergentes naColômbia, associadas às Farc e ao Exército de Libertação Naci-onal – ELN, retomaram as bandeiras bolivarianas.

Na realidade, o anseio público do governo da Venezuela,expresso ao governo do presidente Pastrana, em Bogotá, é favo-recer as negociações de paz entre as partes beligerantes na Co-lômbia. O êxito de tais negociações é fundamental para a segu-rança da Venezuela.

A crise na Colômbia prolongou-se tanto, e passou por tantasfases, que quem não conhece com precisão o país e seu passadotem dificuldade para compreender o que está acontecendo. Du-rante a maior parte de sua história, a Colômbia atravessou ciclosde violência de extrema intensidade. Grande parte desta situaçãofoi provocada pelas guerras e lutas camponesas pelo direito àterra. A situação de guerra civil e de anarquia local é tão pronun-ciada que a derrocada do Estado central foi anunciada muitasvezes. Porções consideráveis desse país, do tamanho de um con-tinente, nunca chegaram a ser controladas pelo governo central.Na década passada, a situação evoluiu significativamente, emparte, devido à guerra fria e, em parte, devido à natureza instá-vel do comércio da droga.

Manuel Marulanda, o líder das Farc, governa de fato um terçodo país. O ELN não é tão poderoso quanto as Farc, mas tambémtem capacidade de mobilizar e de motivar uma parte substanci-al da população. Marulanda domina zonas importantes do paíshá quarenta anos e, agora, suas forças guerrilheiras podem sur-gir em qualquer momento em quase todas as regiões. Na maior

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parte desse período, foi um líder camponês aliado ao PartidoComunista. Esteve sob as ordens de Jacobo Arenas, um dos maissofisticados teóricos dos partidos na América Latina. O movimen-to camponês, para o bem ou para o mal, era dominado peloPartido – às vezes estimulado, outras vezes retido, segundo asnecessidades políticas do momento.

Às vezes, houve êxitos, como quando o Partido Comunista ea guerrilha das Farc sobreviveram ao ataque de sua base deMarquetalia, em 1964, uma ofensiva lançada pelo Exército co-lombiano com a ajuda dos Estados Unidos. Às vezes, houvedesastres, como quando o Partido recomendou a aceitação dosoferecimentos de paz e o estabelecimento de uma organização defrente civil, no final dos anos de 1980, a União Patriótica, paraparticipar da política convencional. Muitos líderes guerrilheiros,das Farc e de outros grupos, desceram das montanhas para par-ticipar das campanhas políticas da União Patriótica. Os líderes emuitos de seus seguidores foram rapidamente massacrados pe-los grupos paramilitares de direita. Tal política foi um erro imen-so. A experiência teve tamanho impacto sobre Marulanda que atéhoje ele está convencido de que um acordo de paz significariarepetir a catástrofe do passado.

Embora as Farc estejam em guerra contra o Exército colom-biano, seus mais ferozes opositores são os grupos paramilitares.Estes se separaram das Forças Armadas, ainda que freqüen-temente atuem com seu apoio tácito. Financiados pelos trafican-tes de drogas, são imensamente ricos e poderosos, além deimpiedosos na guerra. As Farc também são financiadas pelaeconomia da droga, embora principalmente por intermédio dosque a cultivam e produzem e não dos vendedores e traficantes.A distinção pode parecer sutil, e existe pelo menos um casodocumentado de um comandante das Farc que financiou suas

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operações independentes com dinheiro da comercialização pro-priamente dita.

Desde que a União Patriótica foi destruída, a situação mudoumuito. As Farc estão em uma posição muito mais vantajosa, queobriga o governo a se sentar à mesa de negociações. As Farc nãosão o mesmo animal político das décadas passadas. Com o colap-so da União Soviética e o fim da guerra fria, já não existe umpartido comunista poderoso, com capacidade para manipular aguerra camponesa. Jacobo Arenas, a eminência parda das anti-gas Farc de tipo soviético, faleceu. Manuel Marulanda voltou asua encarnação anterior, de líder camponês tradicional, atuandopor conta própria, conduzindo a guerra com astúcia camponesae com 40 anos de experiência acumulada atrás de si.

Ao mesmo tempo, a natureza do trabalho no campo mudoucompletamente, em parte devido à destruição e à devastação daprópria guerra, em parte, devido às transformações do comércioda droga. Durante vinte anos, a Colômbia foi um importanteprodutor de maconha, mas não cultivava papoula (produzidaprincipalmente no México e na Guatemala); cultivava poucacoca. A Colômbia apenas processava um pouco da coca cultiva-da no Peru e na Bolívia, para produzir cocaína e exportá-la. Oprocessamento da coca não necessitava de muita mão-de-obra.

Hoje, o quadro é bastante diferente. A terra dedicada ao cul-tivo de cânhamo, coca e papoula foi multiplicada por 5. A Co-lômbia é, agora, o segundo maior produtor de coca na Américae o maior exportador de heroína. As somas de dinheiro geradaspor essa atividade econômica são tão gigantescas que as cifrasparecem inverossímeis. De acordo com uma informação recen-te, os traficantes de droga, depois de 20 anos de negócio, havi-am acumulado um total de mais de 75 bilhões de dólares em 1997,mais do que o produto nacional bruto da Colômbia. Fato ainda

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mais significativo, do ponto de vista da guerra camponesa, é oimpacto no emprego rural. São milhares as pessoas que aderiramao cultivo de plantas destinadas à produção de drogas e queforam severamente atingidas pelas campanhas indiscriminadasde erradicação.

Nesse contexto, as Forças Armadas de que dispõe Marulandajá não são compostas de pequenos produtores rurais que lutampor um pedaço de terra, mas de trabalhadores rurais que lutampor seu trabalho. Marulanda mobilizou esse proletariado rural quetrabalha nas plantações de coca e de maconha e os defendeu, commuito êxito, contra os esforços do governo, do Exército e dosEstados Unidos, para destruir seu meio de vida. Em parte, a ra-zão pela qual as Farc têm êxito é porque Marulanda tem dinhei-ro para gastar.

Essas evoluções não são apenas relevantes para aqueles quese interessam pela história da Colômbia; têm também impacto naVenezuela. Em certa medida, porque o reposicionamento das Farc,realizado por Marulanda, implicou em retomar o passado de umaforma semelhante à de Hugo Chávez. A esquerda colombiana,depois de ter abandonado o pouco apreço de tipo marxista queo Partido Comunista tinha por Bolívar, buscou reintroduzir afigura do Libertador no panteão de seus heróis. As Farc têm agoramilícias bolivarianas. A Colômbia, é preciso que se diga, sempreteve algumas dificuldades com Bolívar, visto que seu verdadei-ro herói pátrio da época, Francisco de Paula Santander, foi oresponsável pelo desmantelamento do projeto bolivariano daGrande Colômbia.

As Farc também não estão sozinhas. Em algum lugar do ce-nário perambulam os antigos seguidores do general GustavoRojas Pinilla, o ditador dos anos de 1950, que acabou com aguerra civil daquela época – a “Violência” – e que desfruta hoje

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do retorno de sua popularidade muito semelhante à de MedinaAngarita na Venezuela. Quando Rojas Pinilla tentou voltar, nosanos 1970, obteve grande apoio dos nacionalistas socialistas domesmo tipo daqueles que agora apóiam Hugo Chávez.

No momento, o governo de Hugo Chávez conformou-se emseguir os passos de seus predecessores da década de 1990, man-tendo discussões sobre o problema fronteiriço com o governode Bogotá e com as organizações guerrilheiras. O ministro defronteiras do governo de Caldera era Pompeyo Márquez, o ex-líder comunista e membro influente do MAS, que manteve,durante muito tempo, contatos com Marulanda. Utilizou seuscontatos para obter a garantia de que as Farc não penetrariamem território venezuelano. Outros contatos com as Farc foramestabelecidos por Francisco Arias Cárdenas, quando era gover-nador do Estado de Zulia. Arias Cárdenas declarou estar con-vencido de que os paramilitares colombianos são dirigidos peloExército daquele país.

O ex-presidente Caldera encontrou-se com o ex-presidentecolombiano Ernesto Samper na cidade fronteiriça de Guasdualito,em agosto de 1997, quando foi acordado que a Venezuela desem-penharia um papel nas negociações de paz com as guerrilhas queo governo colombiano programava. Tais negociações foram or-ganizadas, em princípio, pelo Congresso colombiano, para seremdepois retomadas e estimuladas pelo atual presidente AndrésPastrana. Na seqüência, a Venezuela sugeriu que a Colômbiaseguisse o exemplo centro-americano, abrindo espaço para acriação de um “Grupo de Amigos” do processo de paz colombi-ano, ao qual se unirriam o México, a Costa Rica e a Espanha.

No princípio, o presidente Chávez deixou claro que desejavacontinuar com essa política e ajudar o processo de paz. Váriosmembros de seu governo haviam iniciado contatos informais com

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os movimentos guerrilheiros e várias reuniões entre representan-tes da guerrilha e do governo venezuelano aconteceram emHavana e em Caracas. Enquanto Chávez como presidente segueem grande parte as políticas estabelecidas por Caldera, Chávez,como pessoa, assim como Arias Cárdenas e o ministro Rangelinclinam-se para uma solução negociada do conflito.

Em setembro de 1999, o presidente Pastrana começou amostrar preocupação com as intenções venezuelanas, como ex-plicou ao Washington Post: “Peço a Chávez que, por favor, per-maneça em seu território, pois nós resolveremos nossos própriosproblemas. Não queremos nos manifestar sobre os problemasinternos da Venezuela, porque não queremos que interfiram nosassuntos internos da Colômbia. Se Chávez entrar em contato comas guerrilhas, queremos ser informados antes.”

O governo de Washington sempre ronda essas disputas entreCaracas e Bogotá e, assim, os Estados Unidos comprometeram-se a apoiar o governo de Bogotá custe o que custar – prometen-do-lhe entregar 1,5 bilhão de dólares durante os próximos 3 anos.Ao mesmo tempo em que são obrigados a mostrar que apóiam asnegociações de paz na Colômbia, não gostariam que os seguido-res das Farc desempenhassem qualquer tipo de papel em umfuturo governo colombiano.

A posição militar dos Estados Unidos na região mudou emconseqüência do tratado que os obrigou a se retirarem de suasimensas bases na zona do canal do Panamá, em dezembro de1999. Todas as forças terrestres, navais e aéreas dos EstadosUnidos tiveram de ser transferidas para outros locais na Améri-ca Latina e no Caribe. Dado que os Estados Unidos têm acesso aosaeroportos das Antilhas Holandesas, diante da costa daVenezuela, pressionaram o governo de Chávez para que os au-torizasse a sobrevoar o território venezuelano sem autorização

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prévia enquanto estão envolvidos na campanha contra o tráficode drogas na Colômbia.

Chávez, para grande irritação dos estadunidenses, negou-se aautorizar. Sabendo que essa política é aprovada não apenas pelaesquerda, mas também pela Força Armada da Venezuela, os Esta-dos Unidos terão de admitir que não poderão obter o que desejam,mesmo continuando a tentar mudar a decisão de Chávez.

Em janeiro de 2000, foi possível perceber como pode ser fortea pressão dos Estados Unidos, quando o Equador, o terceiro ele-mento da Grande Colômbia de Bolívar, parecia seguir os passosda Venezuela. País rico em petróleo, mas endividado, com umdebilitado e incompetente ancien régime, o Equador anunciou suaintenção de adotar o dólar estadunidense como moeda nacional.A economia do país estava em crise, com uma inflação em tor-no de 60% em 1999, e mais da metade de uma população de 12milhões de habitantes em estado de pobreza crítica. A estratégiade dolarização do presidente Jamil Mahuad era enfaticamentecombatida pelo principal movimento indígena do país, que repre-sentava mais de 4 milhões de indígenas, e por setores importan-tes das Forças Armadas. Sexta-feira, 23 de janeiro, depois de umamarcha pela capital, da qual participaram milhares de indígenas,jovens oficiais, liderados pelo coronel Lucio Gutiérrez e centenasde indígenas liderados pelo principal líder indígena, tomaram oedifício do Congresso, em Quito, e anunciaram a criação de um“parlamento do povo”. Na manhã seguinte, o coronel Gutiérrezdeclarou que o governo do presidente Mahuad fora deposto esubstituído por uma junta composta por 3 homens. Gutiérrez eramembro da junta, ao lado de Antonio Vargas, um professor de 40anos que presidia a Confederação Nacional de Nações Indígenasdo Equador, e Carlos Solórzano, um ex-presidente da Corte Su-prema. Depois de discussões com o Exército, Gutiérrez viu-se

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obrigado a abandonar seu posto na junta, em favor do coman-dante-em-chefe, general Carlos Mendoza. Os militares equato-rianos estiveram preocupados durante anos com a capacidade demobilização do movimento indígena radical no campo, mas es-tavam divididos quanto às decisões a tomar. Alguns relatóriossugeriam que Gutiérrez devia renunciar para evitar um possívelgolpe de direita contra os índios. Mais de 20 comandantes regi-onais não apoiaram o golpe de Gutiérrez e Vargas.

“A insurreição indígena no Equador é um dos fenômenos maisdramáticos ocorridos nos últimos anos” – disse o general JoséGallardo, ex-ministro da Defesa, citado em um telegrama deMonte Hayes, o correspondente da Associated Press em Quito.Gallardo, segundo Hayes, fora “o principal opositor, dentro dasForças Armadas, aos programas que, no início da década de 1990,davam assistência social às comunidades indígenas rurais igno-radas pelas agências de governo. O objetivo era aumentar a in-fluência do Exército nos vilarejos e aniquilar qualquer ameaça àsegurança nacional oriunda do movimento indígena radical”.

Horas mais tarde, sábado, 24 de janeiro, o ânimo do generalMendoza dobrou-se à pressão da embaixada estadunidense emQuito. Mendoza dissoveu a junta e, levando em conta as sutile-zas constitucionais, designou o vice-presidente, Gustavo Noboa,como novo presidente. Disse aos repórteres que sua decisão foratomada depois de discutir com representantes estadunidenses, queo haviam ameaçado com o congelamento tanto da ajuda quan-to dos investimentos estrangeiros se o poder não fosse devolvi-do ao governo eleito. “Estávamos buscando evitar o isolamentointernacional do Equador” – disse.

Solórzano e Vargas opuseram-se totalmente à dissolução dajunta. Vargas denunciou o general Mendoza por ter traído osíndios e afirmou que sua federação continuaria lutando por uma

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mudança radical. O novo governo tomou represálias rápidascontra os organizadores do golpe dentro das Forças Armadas eprendeu 4 coronéis – Lucio Gutiérrez, Fausto Cobo, GustavoLalama e Jorge Brito – e 12 tenentes-coronéis. Cerca de 200oficiais também foram detidos.

O Equador não é a Venezuela e o coronel Gutiérrez não é HugoChávez. O Equador tem uma elite governante profundamenteracista, e muitos de seus membros unir-se-ão contra a ameaça aseus privilégios que representa a subclasse indígena. No entan-to, a tentativa de golpe de janeiro do ano 2000 tem certa seme-lhança com o golpe de Chávez de 1992 e há quem acredite quejá viu o epitáfio do ancien régime no Equador.

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23. NOVOS DIREITOS PARA OS POVOS INDÍGENAS

SE EU TIVESSE DE ESCOLHER UMA BELA VENEZUELANA, SERIA UMA INDÍGENA,DE CARA REDONDA, DE PREFERÊNCIA PEQUENA; É POR ISSO QUE NOSSAFILOSOFIA NÃO CONSISTE EM ESCOLHER UMA BELA VENEZUELANA...

OSMEL SOUSA, MEMBRO DA ORGANIZAÇÃO MISS VENEZUELA

Venezuela produz mais mulheres bonitas do que qualqueroutro país do mundo, segundo os critérios de beleza das or-

ganizações que criaram os concursos de “Miss Mundo” e de “MissUniverso”. No entanto, nenhuma das vencedoras provém dospovos indígenas, nem da comunidade negra.

Se houvesse apenas um responsável por isso, seria certamenteOsmel Sousa, um desenhista de publicidade que se tornou o chefeda Organização Miss Venezuela. Trabalha em uma casa pintadade rosa no centro de Caracas, que lhe serve ao mesmo tempo deescritório e de escola para as belezas aspirantes. Pintada de rosatambém por dentro, seu luxuoso interior poderia ser o cenário deum bordel hollywoodiano. Freqüentam esse lugar, durante 5meses todos os anos, 26 jovens desejosas de aprender os detalhesmais sutis da aparência, do estilo e da apresentação.

O senhor Sousa senta-se atrás de uma imensa escrivaninha,localizada em um quarto pequeno, cujas paredes estão todascobertas por espelhos. No meio do quarto há um minúsculo púl-

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pito redondo, atapetado de rosa, no qual suas pupilas em poten-cial podem mostrar seus encantos.

Sousa possui a franquia para operar a Organização MissVenezuela e organiza um concurso anual na televisão venezue-lana que apresenta as moças de sua escola. “Este programa tema pesquisa de audiência do ano” – diz, com orgulho – “portan-to, é o mais caro. Os patrocinadores têm de pagar muito dinhei-ro – o que financia nossa organização e nossa escola”. Sua escolaganhou várias vezes os concursos de “Miss Mundo” e de “MissUniverso”.

Como escolhe as moças para sua escola? “Vou às academiase às festas, como uma espécie de caça-talentos. Fazemos umaseleção de 40 jovens entre as quais selecionamos 10. E assimvamos, até chegar a 26. Aí, elas vêm para a escola e se preparampara o concurso. Freqüentam a escola durante 5 meses. Ensina-mos a elas como se prepararem e, também, algumas frases eminglês, se é que ainda não as sabem. Aprendem a arrumar ocabelo, a se maquiar como se fossem profissionais, a desfilar napassarela. E, claro, vão ao ginásio, fazem exercícios, aprendemcomo cuidar do corpo.”

Na prática, as moças que freqüentam a escola são subvencio-nadas. “Não pagam nada. Apenas exigimos delas que se dediquemem tempo integral. Não podem estudar nem fazer mais nada.”

A cada ano há 50 juízes. “Vêm de todos os estratos sociais”– informa Sousa – “e mudam todos os anos. São cantores, atri-zes, políticos, cabelereiros, desenhistas, ex-rainhas de beleza,diplomatas. Uma vez tivemos até um embaixador inglês.” Essa éa organização que define os padrões da beleza venezuelana.Como faz isso?

“A beleza venezuelana não existe, porque temos uma gran-de mistura de raças. Se eu tivesse de escolher uma bela

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venezuelana, seria uma indígena, de cara redonda, de preferên-cia pequena; é por isso que nossa filosofia não consiste em es-colher uma bela venezuelana, mas em selecionar uma moçanascida na Venezuela. Pode ter um pai húngaro e uma mãe es-panhola, não importa, desde que tenha nascido na Venezuela.”

E quanto às negras? A Venezuela é um país caribenho que umdia teve uma significativa população de escravos. Os negrosconstituem ainda uma importante minoria, localizada nas pro-víncias costeiras. “Sim, temos negras” – diz Sousa, folheando umcatálogo publicitário com os rostos e as silhuetas de anos ante-riores. “Veja, sempre temos uma morena. Aqui está uma” – eaponta para a foto da “Miss Delta do Orinoco”, de pele morena,em meio a uma dúzia de belezas arianas de raça pura. “PareceNaomi Campbell, não acha?”

No entanto, existe uma verdade terrível que se sente obriga-do a admitir: “Miss Venezuela nunca foi negra”. E por quê? “Por-que as pessoas na Venezuela não se sentiriam bem representadaspor uma negra.”

Enquanto a indústria publicitária continuar retratando mulhe-res brancas nas propagandas e instituições como a OrganizaçãoMiss Venezuela continuarem fornecendo exemplos da beleza bran-ca européia, é quase certo que essa situação não vai mudar.

O que acontece com as ex-rainhas de beleza que não sãocandidatas à Presidência, como Irene Sáez? Sousa lança um olhara seu álbum de fotografias. “Esta está casada com um multimilio-nário. Esta está casada com um magnata do petróleo. Esta foinossa terceira “Miss Mundo” e é atriz nos Estados Unidos. Estatrabalha para uma empresa telefônica nos Estados Unidos e ga-nha um monte de dólares. Esta é modelo na Itália.”

Reclina-se para trás em sua cadeira e reflete sobre o êxito desuas protegidas. “Todas elas são da classe média e todas se casam

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com homens muito ricos. Todas se saíram muito bem; estamosmuito contentes. As moças ricas, na Venezuela, não gostam departicipar de concursos de beleza. Têm dinheiro demais.”

A propósito, quem são os venezuelanos? Um milhão de eu-ropeus instalaram-se no país depois de 1945. Serão venezue-lanos?

As costas caribenhas vibram ao ritmo dos descendentes dosantigos escravos africanos. Serão venezuelanos?

Mais de 300 mil indígenas vivem nas zonas fronteiriças dopaís: nas regiões esquecidas dos Estados de Zulia e Apure, paraoeste, e Amazonas e Bolívar, para o sul, vivem inumeráveis tri-bos e nações. Serão venezuelanos?

São perguntas que os “venezuelanos” parecem se fazer rara-mente. Durante décadas, vociferaram palavras de ordem nacio-nalistas e se inclinaram em silêncio diante da imagem de Colomboe de Simón Bolívar e ainda assim não se perguntam quem são,nem de onde vêm. Trata-se de um desafio que o governo dopresidente Chávez tem de enfrentar e que, aliás, não procurouevitar: “A história não é simplesmente uma façanha épica” – dissea Agustín Blanco Muñoz – “é a história de uma cultura, a maneiracomo o país foi criado, por que se chama Venezuela, por quesomos desta cor, qual foi o processo que nos trouxe onde estamosagora”. Em 1999, durante as reuniões da nova Assembléia Cons-tituinte, algumas perguntas sobre a identidade nacional começa-ram a ser formuladas. As discussões mais acirradas diziam res-peito aos direitos que s deviam ser assegurados aos povosindígenas na nova Constituição.

De 23 milhões de habitantes no total, 316 mil (cerca de 1,4%)identificam-se como indígenas, mas o número é, seguramente,muito maior. O grupo mais numeroso, os wayúu, também conhe-cidos como guajiros, inclui provavelmente 197 mil pessoas, que

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ocupam, principalmente, o Estado de Zulia, entre o lago deMaracaibo e a fronteira colombiana.

Nas zonas quase desertas do Sul e do Leste vivem cerca de 100mil indígenas: 44 mil no Amazonas, 35 mil em Bolívar, 21 mil emDelta Amacuro. Ao norte do Orinoco, 7 mil vivem em Anzoáteguie 6 mil em Apure.

Acredita-se que há cerca de 26 grupos étnicos na Venezuela, quereceberam diferentes nomes dos colonos através dos séculos. Mere-cem ser chamados pelos nomes que eles mesmos se dão: wayúu,warao, pemón, añú, yanomani, jivi, piaroa, kariña, pumé, yecuana,Yukpa, eñepá, kurripakao, barí, piapoko, baré, baniva, puinave, yeral,jodi, kariná, warekena, yarabana, sapé, wanai, uruak...

O governo de Chávez interessou-se desde o princípio pelofuturo dos povos indígenas. Atala Uriana, uma liderança wayúudo Estado de Zulia, partidária do Pólo Patriótico, foi nomeada aprimeira-ministra do Meio Ambiente; renunciou, depois, paraintegrar a Assembléia Constituinte. No processo de eleições paraesta Assembléia, foram feitos acordos especiais para garantir aeleição de três representantes dos povos indígenas. O ConselhoNacional Indígena (Conive) realizou um encontro em março paraescolher seus delegados: Nohelí Pocaterra, uma wayúu, trabalha-dora social e presidenta do Conselho Mundial de Povos Indíge-nas; José Luis González, um pemón, sociólogo, membro desta-cado do Conive e fundador da Associação Indígena do Estado deBolívar, e Guillermo Guevara, um jivi, diretor da OrganizaçãoRegional dos Povos Indígenas do Estado do Amazonas. Todostinham uma longa experiência na promoção dos direitos dospovos indígenas.

A história da colonização branca e da resistência indígena naVenezuela é longa, complicada e pouco pesquisada; mas o queestá claro há muito tempo é que a independência, no início do

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século 19, piorou as coisas para os indígenas. Durante 2 séculos,os espanhóis permitiram que os capuchinhos, os jesuítas e osfranciscanos organizassem missões onde os indíos gozavam dealgumas medidas de proteção. Mas os jesuítas se foram em 1760;uma fatalidade aguardava os capuchinhos, meio século maistarde. Suas extensas missões ao longo do rio Caroní estavampróximas do Delta do Orinoco, por razões estratégicas, pois aju-davam a resguardar o país dos ingleses e dos holandeses. Em1817, foram atingidos pela chegada dos exércitos de Bolívar, quepercebera que aquele que controlasse as ricas missões doscapuchinhos ganharia a guerra. Os missionários, assim como amaior parte da Igreja católica, estava do lado dos espanhóis e, em7 de maio de 1817, sofreram as conseqüências de sua opção: 20missionários, com idades compreendidas entre 32 e 70 anos,foram massacrados. As tropas do Libertador tomaram as missões,roubaram seus cereais e seu gado e recrutaram os índios dasmissões para seus regimentos.

Ao longo do século 19, os governos nunca tiveram nenhumapolítica indígena, salvo a falsa esperança de que as missões fos-sem restauradas. Os índios foram implacavelmente deslocados docentro para as fronteiras do Estado.

Mais ao sul, em meados do século 18, os espanhóis começa-ram a avançar para as águas do Alto Orinoco. Os yecuana, co-nhecidos então como makiritare, não se intimidaram e duranteanos, entre 1765 e 1775, organizaram uma grande campanha deresistência. Em uma única noite, no final do ano de 1775, toma-ram e queimaram 19 fortes e acampamentos espanhóis, ao lon-go da estrada que ia de Angostura (Ciudad Bolívar) a La Esme-ralda, no Alto Orinoco.

Mais de 100 anos depois, em maio de 1913, durante o auge daborracha, os brancos contra-atacaram. O coronel Tomás Funes as-

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sumiu o controle de San Fernando de Atabapo, com um pequenoexército de operários da borracha; o governador da cidade, RobertoPulido, foi assassinado, assim como sua esposa, seus irmãos e 130moradores do lugar. Era simplesmente uma etapa preliminar aomassacre dos índios makiritare. O coronel Funes dominou a cidadedurante 9 anos, sem controle do Estado central, matando centenasde índios. Um livro intitulado Os filhos da Lua descreve como “de-zenas e dezenas de vilarejos makiritare foram destruídos e seushabitantes assassinados. Calculando aproximadamente, 2 mil índi-os foram massacrados durante esses anos trágicos”.

O coronel Funes rendeu-se às forças do general EmilioArévalo Cedeño, um famoso guerrilheiro aliado a Maisanta, obisavô do presidente Chávez. Funes achou que, rendendo-se,salvaria sua vida, mas foi fuzilado assim mesmo. Os indígenas daVenezuela lembram as histórias de sua opressão com muito maisdetalhe do que os descendentes dos colonos brancos.

Em outubro de 1999, os índios pemón que vivem no Sudesteda Venezuela chamaram a atenção, ao destruir várias tores deeletricidade. As tores haviam sido construídas atravessando seuterritório para transportar uma rede de alta-tensão de Guri aoBrasil. Os pemón não aceitavam as tores e argumentavam queaumentar a disponibilidade de energia elétrica barata provoca-ria o desenvolvimento das empresas mineradoras. As reservas deouro da região já haviam atraído uma legião de trabalhadorespouco preocupados com o respeito aos direitos dos pemón. Aposição oficial do governo consistia em que as tores causavammuito pouco dano ao meio ambiente; era preciso desenvolver aregião para criar postos de trabalho. O projeto da rede elétrica,cujo custo chegava a 110 milhões de dólares, não podia ser pa-ralisado porque os contratos já haviam sido assinados com ascidades do Norte do Brasil.

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Em dezembro, uma das maiores líderes indígenas da Améri-ca Latina, Rigoberta Menchú, chegou a Caracas para dar suabenção às mudanças relativas aos índios, instauradas pela novaConstituição. A guatemalteca Rigoberta Menchú ganhou o Prê-mio Nobel da Paz em 1992. Ela foi uma incansável protagonistada campanha continental que busca garantir o reconhecimentodos direitos dos povos indígenas.

“Em muitos países, o assunto vem sendo debatido nos últimos15 ou 20 anos e se imagina que dar direitos aos indígenas podeser algo ruim ou que pode afetar negativamente os demais cida-dãos. Mas demonstramos que somos patriotas, assim nos colo-camos, apesar de sermos atingidos pelo racismo e pela exclusão...É importante que as pessoas abandonem esses fantasmas, poisconstituem uma trava para o desenvolvimento da coexistênciapacífica entre grupos diferentes.”

A atitude dos colonos brancos em relação aos índios foimudando nos últimos anos na América Latina. Em alguns paí-ses, os indígenas constituem a maioria da população e estãocomeçando a visar ao poder, o que é um direito seu. Em outroslugares, os mestiços estão começando, assim como os negros, ase perguntar como definir a si mesmos em meio a uma situaçãode mudança. Esses serão debates muito importantes do século 21e a Venezuela de Chávez é um dos países de vanguarda onde taistemas vêm sendo tratados abertamente.

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24. TEODORO PETKOFF E A OPOSIÇÃO A CHÁVEZ

A TERRÍVEL DERROTA DOS PARTIDOS TRADICIONAIS NAS ELEIÇÕES DO FINALDE 1998 E SUA NOTÓRIA FALTA DE APOIO OU DE AFETO NO CORAÇÃO E NAMENTE DA GRANDE MAIORIA DAS PESSOAS SIGNIFICOU O DESMANTELAMENTOTOTAL DE TODA A OPOSIÇÃO POLÍTICA ORGANIZADA A CHÁVEZ.

T odas as tardes, em Caracas, os cidadãos que se interessam pelascoisas da política compram El Mundo, vespertino do grupo

Capriles, dirigido com grande faro e brilho por Teodoro Petkoffdurante o ano de 1999. El Mundo foi a cara inteligente da oposi-ção a Hugo Chávez. Preciso, informado e terrivelmente irritante,Petkoff expressou sua visão das coisas com imensa vitalidade.

Teodoro Petkoff, como muitos outros atores da políticavenezuelana, é um combatente guerrilheiro de outrora. Nascidoem 1931, filho de imigrantes búlgaros que se estabeleceram pertode Maracaibo, Petkoff integrou-se às fileiras do PCV em 1949, nocomeço da ditadura de Pérez Jiménez, sendo logo levado para oativismo político e o jornalismo. Dentro do Comitê Central doPartido, em 1961, foi um ferrenho defensor da revolta armadacontra o governo de Rómulo Betancourt. Em 1962, acompanhouDouglas Bravo nas montanhas. Preso duas vezes, esteve na pri-são de San Carlos, em Caracas, durante três anos, de 1964 a 1967,quando participou, com outros presos, de uma fuga espetacular.

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Petkoff foi sempre um dissidente. Discordava cada vez maisda estratégia adotada pelo PCV, tendo sido um crítico precoce dainvasão da Tchecoslováquia em 1968, um acontecimento apoi-ado tanto pelo Partido Comunista quanto por Fidel Castro. Em1969, aceitou o convite que o presidente Rafael Caldera fez àsguerrilhas para que baixassem das montanhas, ou voltassem doexílio, e, em 1970, ajudou a fundar o MAS, cisão do PCV.

Durante os 30 anos seguintes, Petkoff foi a consciência dacombativa esquerda venezuelana. Eurocomunista de primeirahora, foi candidato à Presidência em várias ocasiões. Na décadade 1990, à medida que a crise da sociedade venezuelana torna-va-se mais aguda, pôs seu nome e sua credibilidade a serviço dopresidente Caldera, o Kerenski octogenário do ancien régime.Como ministro do Desenvolvimento de Rafael Caldera, deu a essegoverno a possibilidade de sobreviver. Foi, sem dúvida, um típicogesto de coragem.

Depois, em meados de 1998, quando os líderes do veículopolítico que Petkoff ajudara a criar uns 30 anos antes decidiramunir suas forças à campanha de Hugo Chávez, Petkoff desertou.Seu desligamento do MAS foi um momento-chave para a esquer-da. Uns acompanharam Chávez e os outros se transformaram emcolunistas de El Mundo, o jornal que Petkoff procurou para di-vulgar sua própria posição política contra Chávez.

Durante a maior parte do primeiro ano do governo deChávez, os colunistas de El Mundo e de outros jornais, especial-mente o El Universal, bombardearam notícias políticas. Sur-preendentemente, para um governo que contava com tantos jor-nalistas, o regime de Chávez mostrou-se profundamentemedíocre em matéria de relações públicas, tendo sido incapazde refutar os ataques da imprensa hostil. Os colunistas, alinha-dos e dirigidos por Petkoff, fizeram muito barulho; no entan-

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to, eram vozes gritando no vazio, sem respaldo político real.Quando Petkoff foi obrigado, pelos proprietários do jornal, arenunciar, aparentemente por razões comerciais, sua debilida-de ficou evidente. A terrível derrota dos partidos tradicionaisnas eleições do final de 1998 e sua notória falta de apoio ou deafeto no coração e na mente da grande maioria das pessoassignificou o desmantelamento total de toda a oposição políti-ca organizada a Chávez. Tal foi o descrédito em que caíram ospolíticos de ontem que a maioria se aposentou sigilosamente,ou foi para casa escrever suas memórias.

A única oposição séria, além dos colunistas, vinha dos diri-gentes dos poderosos grupos econômicos, tradicionalmente acos-tumados a vociferar e a serem ouvidos: homens como VicenteBrito, presidente da Fedecámaras, Antonio Herrera Vaillant, vice-presidente da onipresente Venamcham, a câmara de comérciovenezuelano-estadunidense que reúne milhares de negócios es-trangeiros e nacionais; e Luis Eduardo Paul, o presidente daCâmara Petrolífera. De forma notória, durante os debates sobrea nova Constituição, esses indivíduos e seus grupos tomaram apeito, por meio de entrevistas e conferências na imprensa, des-tacar sua oposição às cláusulas econômicas, contrárias a seusinteresses. Mas eles também, como os colunistas, não tinhamapoio político.

Ocasionalmente, pode-se ouvir alguma voz da era anterior.Muitos velhos conservadores temem o que chamam de neopo-pulismo de Chávez. Eduardo Fernández, outrora esperança pre-sidencial do Copei, denunciou o “messianismo, o paternalismo,o centralismo e a visão financeira da economia” que, segundo ele,estão se espalhando pela América Latina, ao mesmo tempo emque “massas apáticas e despolitizadas” substituem os velhospartidos e ideologias.

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No final de 1999, durante a campanha para o plebiscito so-bre a nova Constituição, essa oposição foi ficando cada vez maisbarulhenta, usando os temas tradicionais da direita latino-ame-ricana. Expressavam o temor de que a democracia estivesse sendodestruída com meios democráticos. Atacavam Chávez chaman-do-o de conspirador em longo prazo e criticando-o por usar deviolência verbal, a “linguagem da guerra civil”. A oposição quei-xava-se de que já não havia a tradicional cortesia do debate e que“o país estava dividido em duas metades que não se falam”.

Boa parte da enfática retórica dessa oposição embrionáriapretende provocar os diferentes opositores potenciais a Chávezpara os unir em uma nova cruzada política oposicionista. Chávez,dizia-se, era contra os partidos políticos, contra o mundo dosnegócios, contra os meios de comunicação e hostil à Igreja ca-tólica. Se esses setores da sociedade se levantassem contra aameaça representada por ele, um novo movimento político deoposição poderia ser organizado.

Algumas críticas foram tão longe que sugerem que setores daForça Armada estão incomodados com o projeto de Chávez eestariam dispostos a participar de um novo golpe de Estado. Hágente dentro do velho MBR-200 descontente com o modo comoas coisas estão sendo feitas. Alguns são conservadores, masoutros esperam que as políticas do governo sejam mais revolu-cionárias, não menos. Querem que sejam tomadas medidas contraos ricos e os privilegiados e que haja uma defesa mais firme dosinteresses da Venezuela frente aos Estados Unidos. Além do mais,como poderá se depreender da leitura deste livro, um golpe nãoé coisa de todos os dias, que qualquer oficial descontente possalevar a cabo. Mesmo quando são planejados por homens compe-tentes e com visão, que tenham apoio popular, podem fracassarcom muita facilidade.

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Com tudo isso, a oposição reaparecerá. Muitos dos políticosdesprestigiados esperam que seus partidos voltem à ação. Issoaconteceu no Peru do general Velasco Alvarado e na Argentinado general Perón, onde os velhos partidos voltaram à ação quan-do o interregno terminou. Mas a Venezuela parece estar atraves-sando um processo de mudança mais profunda, que transformaráa paisagem política para sempre. Quando a oposição civilvenezuelana finalmente emergir, terá origem nas fileiras do pró-prio chavismo, de gente descontente com o ritmo das mudanças.

Em janeiro de 2000, quando o governo festejou seu primeiroaniversário, sinais de profundas dificuldades começaram a aparecerentre os velhos chavistas. Chávez estava no processo de reestrutu-ração de seu gabinete, mas, antes que pudesse concluí-lo, teve deaceitar a renúncia de Jesús Urdaneta Hernández, o chefe da Disipe um de seus mais próximos e antigos companheiros.

A causa primeira da súbita saída de Urdaneta Hernández foiter-se negado a atender à solicitação de Chávez que lhe pediu umrelatório sobre as atividades de funcionários da Disip durantes ossaques que tiveram lugar depois das inundações de dezembro. Aimprensa mencionou casos de saqueadores exterminados e,embora no início o presidente negasse que algo semelhante tives-se ocorrido, foi pressionado por José Vicente Rangel a solicitarum relatório detalhado a Urdaneta Hernández. Como ministro deRelações Exteriores, Rangel estava a par das pressões internaci-onais, provenientes de potenciais investidores e conhecia osdanos que as notícias sobre as execuções estavam causando.

Urdaneta Hernández, como chefe dos serviços de inteligên-cia, tinha idéia do que sucedera, mas disse a Chávez que apenaspoderia apresentar um relato geral e não algo detalhado, já quedevia “proteger” seus homens. Como forma de contra-ataque,perguntou ao presidente o que fizera com um informe anterior

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da Disip que denunciava atos de corrupção cometidos por Rangele Luis Miquilena. Pela primeira vez, Chávez era obrigar a pesaros méritos relativos das alas civil e militar de seu governo.

Diante de chantagem tão evidente, Chávez não teve dificul-dade em pôr-se ao lado dos civis. Diz-se que pôs a mão no ombrode Urdaneta Hernández e disse-lhe: “Irmão, acho que assim nãopoderemos chegar a um acordo”. Urdaneta Hernández foi imedi-atamente destituído e substituído na Disip por outro incondici-onal de Chávez, o capitão Eliécer Otaiza.

Nessa mesma semana, Chávez fez mudanças importantesentre seus principais colaboradores, nomeando um civil, IsaiasRodríguez, para o novo cargo de vice-presidente, enviandoIgnacio Arcaya para seu posto anterior nas Nações Unidas, emNova York, e substituindo-o, como ministro do Interior e Justi-ça, por Luis Alfonso Dávila. Um novo ministro da Defesa tambémfoi nomeado, o general Ismael Eliécer Hurtado, substituindo ogeneral Raúl Salazar.

O capitão Otaiza abriu um inquérito sobre as atividades dosagentes da Disip que tinham atuado na área das inundações. Nãofoi fácil, já que a Disip, enquanto serviço secreto, tinha agentes queusavam pseudônimo e estavam acostumados a se cobrirem uns aosoutros em caso de críticas externas à corporação. Otaiza teve queapelar à DIM, a inteligência militar, para acelerar as investigações.

No princípio do mês seguinte, sexta-feira, 4 de fevereiro,houve grandes manifestações em todas as cidades do país paracelebrar o oitavo aniversário da “intervenção militar” de Chávezem 1992. Chávez fez um discurso em Caracas no qual afirmou queo 4-F “valera a pena”.

No entanto, em outros lugares havia mais problemas, já queo tenente-coronel Urdaneta não tinha a intenção de desaparecerem silêncio. Reuniu-se com dois dos mais antigos colegas de

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Chávez no MBR-200, o tenente-coronel Francisco AriasCárdenas, influente governador de Zulia, e o tenente-coronel YoelAcosta Chirinos, o organizador do MVR. Na mesma sexta-feira,os três oficiais fizeram sua própria celebração na histórica cida-de de Coro, onde tornaram pública uma declaração na qual acu-savam o governo de perder o rumo. Coro, capital do Estado deFalcón, está próxima ao mar e foi utilizada muitas vezes, duranteo século 19, para lançar movimentos de oposição.

A principal queixa dos três oficiais era que sua revoluçãomilitar fora absorvida pelos civis. Urdaneta lançou então umadura campanha de críticas contra os dois aliados civis de Chávez,Miquilena e Rangel. Chávez apareceu na televisão para expres-sar seu pesar e também seu agradecimento a Urdaneta e a seuscompanheiros do passado pelo trabalho realizado através dosanos. Mas explicou que o processo avançara. Já não eram umpequeno grupo de conspiradores, mas um governo com respon-sabilidades frente a toda a nação.

A imprensa falou até a exaustão da divisão entre os coman-dantes, sugerindo até a possibilidade de outro golpe de Estado.Mas, na prática, Chávez continuou firme no comando, e AriasCárdenas e Acosta Chirinos não eram, de forma alguma, tão crí-ticos quanto Urdaneta Hernández. Não foi difícil dividi-los. Ascríticas a Miquilena e Rangel foram facilmente desconsideradas.

A causa real dos problemas era as eleições previstas para 28de maio e a luta no interior da V República pelos cargos. Haviamuitos empregos disponíveis, de governadores e prefeitos, mashavia candidatos demais, para poucos postos. Membros do MVRe membros dos partidos que compunham o Pólo Patriótico esta-vam ansiosos pela aprovação presidencial.

Miquilena, como principal cérebro político a serviço do MVR,era a figura-chave. Tomou todas as decisões sobre as promoções

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individuais, garantindo que o equilíbrio entre civis e militares, eentre a direita e a esquerda, fosse respeitado. Assim, terminousendo detestado pelos que foram afastados ou eliminados. Mas,como gozava da confiança do presidente, já que Chávez reconhe-cia nele a figura mais indispensável de seu governo, seusopositores foram facilmente neutralizados.

Arias Cárdenas decidiu ir à luta e candidatou-se à Presidên-cia contra Chávez, nas eleições de maio. Apesar de ser um homeminteligente, com apoio considerável no Estado de Zulia, pareciaimpossível que alcançasse o grau de popularidade nacional deChávez. Em longo prazo, o problema da formação de uma opo-sição constitucional e respeitada permanece sem resposta. É fran-camente insatisfatório ter uma imprensa hostil e irresponsável,submetida aos interesses de seus ricos proprietários, enquanto onúcleo original de oficiais, que deu o apoio inicial para a inter-venção militar de Chávez, ainda sonha com a ação inconstitu-cional. Os desprestigiados partidos políticos tradicionais, doancien régime, não dão sinais de recuperar sua antiga força. Sódepois das eleições de maio de 2000* será possível discernir aforma e o alcance das futuras forças de oposição.

* Como se sabe, as eleições previstas para 28 de maio foram canceladas na última horae propostas para o final de julho (N. do. T.)

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EPÍLOGO

OS MILITARES E A SOCIEDADE CIVIL

A IDIÉIA É OS MILITARES VOLTAREM A SUA FUNÇÃO SOCIAL FUNDAMENTAL, DEMODO QUE, ENQUANTO CIDADÃOS E ENQUANTO INSTITUIÇÃO, POSSAM SEINTEGRAR AOS PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO DEMOCRÁTICO DO PAÍS.

HUGO CHÁVEZ, ENTREVISTADO EM JANEIRO DE 2000.

presidente Chávez interessa-se pela educação e pelo desen-volvimento econômico, mas é, antes de tudo e sobretudo,

um soldado. Duas das figuras históricas que pôs no pedestal, opróprio Bolívar e Ezequiel Zamora, são indiscutivelmente mili-tares. “Eu entendo a alma do Exército” – disse-me, durante nos-sa conversa em La Casona – “e faço parte dessa alma.” Um de seusprojetos mais controvertidos é integrar a Força Armada à vida dasociedade civil.

Para pessoas estranhas à América Latina, e particularmentedepois que o general Pinochet derrubou Salvador Allende, emsetembro de 1973, é quase impossível pensar em um líder militarsem recordar a imagem grotesca de uma junta com óculos escu-ros, dirigindo um regime autoritário e repressivo. Poucos se lem-bram dos dirigentes militares radicais que se colocaram ao lado doscamponeses e implantaram reformas, apesar da feroz oposição dasoligarquias locais e dos Estados Unidos. Poucos se lembram de queAllende recrutou oficiais radicais para servir em seu governo.

O

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Chávez sabe muito bem que muitas pessoas, na América Lati-na e em outros lugares, hesita freqüentemente em apoiar gover-nos em que a participação militar é importante, mesmo quando fo-ram eleitos democraticamente. Ele explica o quanto desanimadaficou a sua geração de oficiais no momento do golpe chileno, mastambém gosta de recordar o quanto impressionadas ficaram as pes-soas com os governos militares progressistas do Peru e do Pana-má. Chávez tem orgulho de seus antecedentes militares e acreditafirmemente que os soldados têm o direito de ir ao encontro da so-ciedade, não devendo permanecer enclausurados em seus quartéis.Quer presenciar uma revolução nas relações entre os setores civise os militares da sociedade e se felicita pelo fato de os soldadosterem agora direito a voto. José Vicente Rangel explicou-me:

“Chávez faz parte de uma geração atípica de oficiais. Surgiram num

período em que o Exército venezuelano mal havia saído da luta guer-

rilheira dos anos de 1960. Durante esse tempo, o Exército – e todas as

Forças Armadas da região – haviam sido “pentagonizado”.* A escola

estadunidense das Américas, no Panamá, os “conselheiros” militares

estadunidenses e a “doutrina de segurança nacional” desempenharam

um papel muito importante”.

Uma vez desaparecido o fenômeno das guerrilhas, na déca-da de 1970, “os oficiais começaram a buscar novas motivações.Começaram a estudar nas universidades e estabeleceram víncu-los com a sociedade civil”. À medida que a situação econômica

* “Pentagonizado” refere-se ao Pentágono, o prédio da Secretaria da Defesa e do Es-tado-Maior das Forças Armadas estadunidenses, que tem a forma de pentágono, ouseja, uma figura geométrica com 5 lados; refere-se à influência que sofrem os mili-tares latino-americanos que fazem cursos na Escola das Américas, situada no Pana-má, mantida e orientada pelos EUA.

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do país piorou, os oficiais, que já não estavam confinados nogueto dos quartéis, começaram a viver a experiência da crise emprimeira mão. Foram também afetados por outro fator decisivo:

“A corrupção teve um impacto bastante específico nas Forças Arma-

das. Boa parte do corpo de oficiais estava envolvido. Creio que foram

levados pela liderança política civil, creio que, sem dúvida, corromper

os oficiais superiores era garantia de seu apoio e neutralizava seu

descontentamento. Isso talvez tenha neutralizado as camadas superi-

ores, mas criou muito descontentamento nas camadas inferiores, en-

tre oficiais que estavam estudando e tinham contato com os estudan-

tes. Começaram a perceber que os oficiais superiores participavam da

‘farra’ e que muitos deles enriqueciam rapidamente”.

Quando discuti o assunto com Chávez em La Casona, eleenfatizou a humilhação dos jovens oficiais de sua geração:

“A falta de equilíbrio no país afetou os militares. Num extremo de

pêndulo estavam os ‘gorilas’, e no outro, os ‘eunucos’. Durante muitos

anos, os militares venezuelanos foram ‘eunucos’: não estávamos au-

torizados a falar; tínhamos de observar em silêncio, enquanto presen-

ciávamos o desastre causado por governos incompetentes e corruptos.

Nossos oficiais superiores estavam roubando, nossas tropas quase não

tinham o que comer; e tínhamos de nos submeter a uma disciplina

férrea. Mas que tipo de disciplina era essa? Era cúmplice do desastre”.

Chávez quer levar os militares para a sociedade civil, “mas nãocomo ‘gorilas’, não como Hitler ou Mussolini, não, nada disso. Aidéia é os militares voltarem a sua função social fundamental, demodo que, enquanto cidadãos e enquanto instituição, possam seintegrar aos projetos de desenvolvimento democrático do país”.

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Durante o primeiro ano do governo de Chávez, os militarestrabalharam em seu próprio projeto socialdemocrático, chama-do Plano Bolívar 2000. “Graças a Deus, tínhamos a experiênciado Plano Bolívar 2000” – disse-me Chávez. – “Estivemos traba-lhando nisso durante dez meses, na zona litorânea, e foi muitobom, porque os militares estavam sensibilizados com esses temas.Já haviam trabalhado em tarefas humanitárias no que seria umazona de desastre; não custava nada utilizar esse enorme poten-cial humano para ajudar em operações para resgatar gente esalvar vidas.”

Reconhece que, agora, os militares vão mais longe, integran-do-se por si, pouco a pouco, à direção política do país, mas nãona política de partidos. Chávez é profundamente hostil aos doispartidos que dominaram o país durante tantos anos e, na rea-lidade, não gosta de partidos políticos, uma noção que em parteadquiriu dos teóricos da Causa R, que desenvolveram uma ide-ologia similar à dos Verdes alemães. Seu próprio partido, o MVR,está moribundo e os dois principais partidos que o apóiam, oMAS e o PPT, estão em permanente conflito. Chávez gostariatambém que os militares praticassem um modesto interna-cionalismo.

Vão aos Estados Unidos, mas também vão a Cuba, à Bolívia,ao Brasil, para explicar o Plano Bolívar 2000. Explicam às pes-soas que as Forças Armadas venezuelanas desempenham agorauma função social. “Afinal, já não pensamos em entrar em guerracom ninguém, nem com a Colômbia, nem com o Brasil, nem coma Guiana, nem com Cuba, com ninguém.”

O Equador é um país onde a mensagem de Chávez foi ou-vida com clareza, em janeiro, quando os oficiais radicais uni-ram-se aos camponeses dos Andes equatorianos para tentar der-rubar o governo.

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Os jornalistas sempre foram suscetíveis aos encantos dos líde-res carismáticos da América Latina e eu não sou nenhuma exceção.Graham Greene apaixonou-se pelo finado general Omar Torrijos, ogovernante de esquerda do Panamá, que convenceu Jimmy Cartera devolver o canal do Panamá. Ele é um dos modelos de Chávez.Gabriel García Márquez nunca dissimulou seu afeto por Fidel Cas-tro, outro herói de Chávez, enquanto os intelectuais peruanos fica-ram hipnotizados pelo falecido general Juan Velasco Alvarado, umpioneiro da “via militar para o socialismo” nos anos de 1960 – umexemplo que Chávez também aprecia. Hugo Chávez possui o mes-mo carisma magnético que seus predecessores; é um atraente e audaztenente-coronel, mas tem uma diferença: sua tentativa fracassadade tomar o poder pela força foi ratificada depois em eleições presi-denciais por um povo agradecido. O entusiasmo de Chávez pelasmudanças é contagiante. Sua busca de uma alternativa para a vidadas favelas é ambiciosa, porque a Venezuela ainda é uma socieda-de de quadrilhas e de saqueadores – como mostraram as reportagenssobre as inundações de dezembro. Com seu comportamento sem lei,os jovens das favelas apenas seguem o exemplo dos maiores emelhores das altas esferas do país, que roubaram e saquearam ariqueza nacional em níveis sem precedentes.

Transformar essa gente amoral, que vive em pocilgas, empioneiros voluntários, que partem para fazer florescer o deserto,exige uma grande dose de imaginação e muita fé. As pessoas queperderam suas casas nas inundações não vão pensar que a expe-riência é fácil. Você, viveria em uma favela com vista para oCaribe, que desaba no mar a cada vinte anos, ou se mudaria paraas distintas margens do Orinoco, repletas de insetos desagradá-veis e de doenças, onde nunca na história houve povoamento emmassa? Preferiria estar num barraco em Caracas, cercado deamigos e vizinhos, com a possibilidade de ser camelô, ou gosta-

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ria de ir para outro lugar do país, quando um governo benevo-lente proporciona casa e, eventualmente, terra para trabalhar?São opções reais e difíceis.

No programa revolucionário do governo de Chávez há mui-tas aspirações utópicas, e ainda há muito a dizer. Tornou públi-ca uma nova agenda de desenvolvimento para a América do Sule uma também para Washington. Sua hostilidade para com oneoliberalismo e a globalização, seu apoio aos direitos dos po-vos indígenas e sua busca de uma estratégia agrícola que permitaa seu país alimentar seu próprio povo, levam a que seja conside-rado um aliado tácito dos movimentos de protesto que sacudi-ram Seattle em novembro de 1999, durante a conferência daOrganização Mundial do Comércio. A globalização talvez seja adoença do novo milênio, mas os anticorpos para combatê-la estãosendo criados lentamente.

Os líderes radicais na América Latina tendem a desaparecer.Em eleições livres, saem vitoriosos aqueles que estão tão longeda esquerda que é fácil de serem controlados pelos governos deWashington. Os sucessivos governos estadunidenses dispuseramde inúmeras armas para destruir os regimes que desaprovam,desde o assassinato, ou a invasão militar, até a franca desestabi-lização por meios políticos e econômicos, passando pelo finan-ciamento de grupos de oposição e pela manipulação de campa-nhas pela imprensa hostil.

Os estadunidenses mantiveram-se em silêncio quanto a Chávez.Mesmo a oposição conservadora venezuelana, tão acostumada acomeçar seu discurso em Washington, concentrou suas atividadesem artigos revanchistas na imprensa caraquenha. Os estadunidenses,preocupados com as suas eleições presidenciais, concentrados prin-cipalmente na guerra civil na Colômbia e, agora, nos acontecimen-tos no Equador, ainda não sabem o que pensar de Chávez. A opo-

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sição venezuelana sabe exatamente o que pensa, mas está tão de-sarticulada devido ao colapso do ancien régime, é tão rechaçada edetestada, que ainda não dá sinais de recuperação.

O que devemos, então, fazer, com Hugo Chávez? É um demo-crata ou um ditador em gestação? Representa, por acaso, umavolta anacrônica ao passado, ao reivindicar modelos econômi-cos que fracassaram e receitas políticas de ontem? Ou represen-ta um futuro possível para a América Latina, uma verdadeiraalternativa para a globalização e o neoliberalismo?

Eu o vejo como uma figura interessante e significativa, umhomem honesto que leva no coração os interesses de seu povo, queespera mudar a história de seu país para o bem. Não acabará setransformando em um Mussolini, nem tampouco é um perigosobonapartista outrora evocado brilhantemente por Marx. Chávez éum homem de esquerda, um radical em busca de novas formas defazer política, de novas estruturas de organização econômica e decaminhos diferentes para conceber o futuro das relações interna-cionais dentro da América Latina e entre as duas Américas.

Obviamente, tem uma visão utópica, o que não é raro em umcontinente onde se diz que as utopias florescem, e seria ingênuonão imaginar que seus sonhos possam algum dia serem traídos.Porém, reuniu à sua volta as pessoas mais preparadas do país e,em um ano apenas, dispôs dos cadáveres dos velhos partidospolíticos, tendo lançado as bases de um quadro de recuperaçãoda história da Venezuela que talvez leve a um renascimentocultural capaz de resistir ao “colosso do Norte”.

Com uma atitude inteligente e criteriosa em matéria de po-lítica petrolífera e com uma retórica poderosa, dirigida contra oneoliberalismo, pode ser que consiga fazer a andar a economiavenezuelana, em prol das massas empobrecidas que, em boaparte, não se beneficiaram com os avanços do século 20. Talvez

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isso não aconteça. Talvez tudo termine em lágrimas. Muitosprojetos radicais na América Latina foram abandonados, comocadáveres na forca que o vento balança e faz girar. As propos-tas do comandante Chávez merecem um destino melhor.