A substância católica e o fator melquisedeque-PB

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Revista Eletrônica Correlatio n. 10 - Novembro de 2006 A substância católica e o fator melquisedeque Jorge Pinheiro dos Santos RESUMO O artigo analisa o conceito substância católica e suas implicações para a construção de uma missiologia que respeite a universalidade da espiritu- alidade e as manifestações culturais. Parte da compreensão tillichiana de substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Nessa releitura de Tillich, o princípio protestante é visto como subconjunto da substância católica, o que leva a dizer que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Essa leitura de Tillich permite ver a história e a cultura como a substância que, para além de toda a situação, fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus. Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. A partir dessa compreensão o artigo afirma a importância do conceito, aqui reformatado como fator Melquisedeque, para a missiologia, que deve reconhecer as manifestações do essencial nas culturas, e denunciar as expressões idolátricas que ameaçam a co- munidade humana. Palavras-chave: Substância católica, fator Melquisedeque, princípio protestante, cultura, espiritualidade, missiologia, universalismo, parti- cularidade. ABSTRACT This article analyzes the concept Catholic substance and its implica- tions for the construction of a missiology that respects the universality of spirituality and cultural manifestations. It starts from the Tillichian comprehension of catholic substance, as the relation between the mani- festation of essence in existence and the affirmation of the meaning of the Christ event. In this rereading of Tillich, the Protestant principle is

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A substância católica e o fator melquisedeque - Jorge Pinheiro dos Santos

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    A substncia catlica e o fator melquisedeque

    Jorge Pinheiro dos Santos

    ReSumoO artigo analisa o conceito substncia catlica e suas implicaes para a construo de uma missiologia que respeite a universalidade da espiritu-alidade e as manifestaes culturais. Parte da compreenso tillichiana de substncia catlica, enquanto relao entre a manifestao da essncia na existncia e a afirmao do significado do evento crstico. Nessa releitura

    de Tillich, o princpio protestante visto como subconjunto da substncia

    catlica, o que leva a dizer que a substncia catlica apresenta-se sob as dimenses no-histricas e histricas como identidade subjacente. Essa

    leitura de Tillich permite ver a histria e a cultura como a substncia que, para alm de toda a situao, fornece os smbolos de uma situao

    ltima, a unidade universal do reino de Deus. Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princpio protestante enquanto

    evento fundante do cristianismo, que tem uma relao de centralidade com a substncia catlica. A partir dessa compreenso o artigo afirma a

    importncia do conceito, aqui reformatado como fator Melquisedeque, para a missiologia, que deve reconhecer as manifestaes do essencial nas culturas, e denunciar as expresses idoltricas que ameaam a co-munidade humana.Palavras-chave: Substncia catlica, fator Melquisedeque, princpio

    protestante, cultura, espiritualidade, missiologia, universalismo, parti-cularidade.

    AbStRActThis article analyzes the concept Catholic substance and its implica-tions for the construction of a missiology that respects the universality of spirituality and cultural manifestations. It starts from the Tillichian comprehension of catholic substance, as the relation between the mani-festation of essence in existence and the affirmation of the meaning of

    the Christ event. In this rereading of Tillich, the Protestant principle is

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    seen as a subset of catholic substance that leads us to say that catholic substance presents itself in non-historical and historical dimensions as an underlying identity. This reading of Tillich permits us to see history and culture as a substance that, beyond every situation, provides the symbols of an ultimate situation, the universal unity of the Kingdom of God. Within this universal unity of the Kingdom of God is found the Protestant principle as a founding event of Christianity which has a rela-tion of centrality with catholic substance. Based on this comprehension, this article affirms the importance of the concept, here reformatted as the

    Melquisedeque factor, for missiology, that should recognize the manifes-tation of the essential in cultures, and denounce idolatrous expressions that threaten the human community.Key-words: Catholic substance, Melquisedeque factor, Protestant princi-ple, culture, spirituality, missiology, universalism, particularity.

    Uma vez por ano, os artesos de uma tribo da Indonsia constroem um

    barco de madeira em miniatura e o levam beira do rio. O lder religioso

    da tribo amarra uma galinha num lado do barquinho e coloca uma lanterna acesa no outro lado. Depois, cada membro da tribo passa perto do barqui-nho e coloca um objeto invisvel entre a galinha e a lanterna. Quando se

    pergunta s pessoas o que deixaram no barquinho, elas respondem: meu pecado. O lder, ento, deixa o barquinho ser levado pela correnteza do

    rio, enquanto as pessoas gritam: Estamos salvos! [1]

    IntroduoEm A Massa e a Religio [2] , escrito em 1922, Tillich disse

    que os telogos do passado exprimiram numa linguagem metafsica dois elementos no conceito Deus: (1) como o ser mais real de todos, ou seja, Deus como substncia absoluta, (2) e Deus como personalidade tico-espiritual, ou seja, como a forma mais perfeita.

    Na conscincia catlica o primeiro elemento que domina, e na conscincia protestante o segundo elemento. Para o catlico, a graa uma comunicao da substncia divina, para o protestante, a graa a comunho tica com a personalidade divina. A explicao dessa diferena parte do fato de que o catolicismo produziu uma religio de massa e uma mstica suprapessoal que no se ope religio de massa, ao contrrio, decorrncia dela. J o protestantismo, que foi beneficiado

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    pela emergncia de personalidades e comunidades elementos que no se excluem --, perdeu as massas.

    Para Tillich, a histria das religies mostrava que o elemento fun-damental da religio a aspirao no-racional presente nas formas, que vibra interiormente sob o efeito da irradiao do que no pode ser capturado atravs da lgica e da lei tica. Mais tarde, no correr da vida, vai desenvolver este conceito, chegando concluso de que esta subs-tncia universal de Deus uma dimenso intrnseca f humana e ao cristianismo, que pode ser, ento, compreendida em trs elementos:

    A intuio da presena do sagrado; comunidades do amor, que renem pessoas antes separadas umas das outras; a autoridade essencial vida, que se manifesta atravs da tradio e dos smbolos.

    Embora a igreja protestante, e por extenso evanglica, tenha nas-cido de um protesto crtico contra a absolutizao desses elementos da substncia catlica na instituio Igreja Catlica Romana, tal substncia universal pode ser entendida como princpio do cristianismo, que deve tambm se fazer presente no protestantismo.

    A substncia catlica e suas implicaes para a missiologiaO princpio protestante subconjunto e centralidade da substncia

    catlica, enquanto relao entre a manifestao da essncia na existncia e a afirmao do significado do evento crstico. Fazendo uma releitura contempornea de Tillich, ao afirmamos que o princpio protestante subconjunto da substncia catlica, estamos dizendo que a substncia catlica apresenta-se sob as dimenses no-histricas e histricas como identidade subjacente. Ou seja, quando nos referimos histria e cultura a substncia que, para alm de toda a situao, nos fornece os smbolos de uma situao ltima, a unidade universal do reino de Deus [3] . Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princpio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relao de centralidade com a substncia catlica. o princpio protestante que retira da figura humana de Jesus tudo que nela poderia

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    ser materializado como idolatria, por sua facticidade histrica. por meio do smbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo.

    O paradoxo do aparecimento do Cristo na existncia sem a defor-mao da existncia uma interpretao radical do smbolo da cruz que, segundo Dourley [4] , salva o significado da crucifixo da idolatria de se permanecer na adorao de um objeto histrico e por isso limi-tado, finito, enclausurado num tempo e espao passados. O princpio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta, a cruz como presente e fim, como revelao e escathon que remetem ao kairs.

    Mas, o protestantismo reformado caiu numa armadilha ao aban-donar a unidade universal da substncia, que mantm e possibilita o resgate do sentido de Deus nas profundezas do humano. Devido a esse desmo bblico, em sua aridez do deo dixit, da palavra que se resu-me na tica do texto, as profundezas da interioridade humana foram esquecidas e perderam seu vigor teolgico. Por isso, Tillich props a manuteno da relevncia do kerigma cristo, to a gosto de Barth, em aliana com o reconhecimento da presena do sagrado expresso na cultura e nas dobraduras da secularidade.

    a partir da que Tillich se lana ao conceito de comunidade espi-ritual, como definio de um processo de salvao, de essencializao, j que para ele o significado da vida, existencial e pessoal consiste na recuperao do ser essencial em Deus. Ou como diz, a comunidade espiritual latente antes do encontro com a revelao central, e mani-festa depois desse encontro [5] . E nesse processo de essencializao, Cristo o elemento final que possibilita o kairs, pelo qual a histria humana sempre esperou. A partir da entende que h um processo de essencializao das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencializao sob o poder crstico, enquanto membros de uma igreja latente.

    E mais, considera que esta igreja latente est teologicamente ligada igreja manifesta e por isso levada a Cristo, cuja f, amor e cruz estabelecem o fenmeno da converso, enquanto mudana de sentido de uma participao latente para uma participao manifesta na comunidade espiritual [6] . Dessa maneira, a f e o amor de Cristo que levam autocrtica radical capaz de estabelecer distino entre o essencial e as

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    formas atravs das quais o essencial se manifesta. A afirmao de que a igreja latente se complementa na igreja manifesta justifica a missio-logia crist. Ou como Tillich afirmou: a comunidade espiritual est relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religio, e a presena espititual torna necessria uma mudana radical na atitude para com o que incondicional [7] . Convm lembrar, porm, que Tillich combateu toda expresso de arrogncia na relao entre igreja manifesta e igreja latente, ao reconhecer a presena da espiritualidade nas religies e na cultura. Por isso, sugere que a missiologia combine ofensiva e mediao. Ofensiva no sentido barthiano e mediao no sentido de correlacionar o kerigma com a questo cultural. [8]

    Assim, o conceito de substncia catlica valioso para a com-preenso da missiologia, principalmente no protestantismo de misses, em especial para os batistas brasileiros. A misso crist, partindo desta leitura admite que a realidade manifesta no kairos de Cristo est em ao na cultura. Dessa maneira, a tarefa missionria consistiria em pro-curar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento Cristo, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriao missionria da experincia crist ao consider-la enquanto manifestaes do essencial, alm de sinalizar caminhos nos quais a auto-compreenso crist pode ampliar contatos com culturas e povos.

    A missiologia batista e o fator melquisedequeO movimento batista em suas origens, e aqui nos remetemos

    aos movimentos religiosos separatistas da Inglaterra no sculo XVII, apresentou-se com duas grandes vertentes, uma cognominada batistas gerais e outra batistas particulares. Os primeiros desenvolveram posies que os aproximaram do pensamento teolgico arminiano e os segundos do pensamento calvinista. Assim, no de estranhar que os primeiros sempre tenham tido uma compreenso de aspectos da substn-cia catlica na forma de universalismo, inclusivismo e luta pela plena liberdade de expresso religiosa de todo e qualquer comunidade.

    Essa era a viso de John Smyth, primeiro pastor (1610-1612) batista na Inglaterra, que coerente com sua compreenso teolgica le-vantou a bandeira da liberdade de conscincia absoluta [9] , dando incio trajetria batista de ao poltica engajada na luta pela liberda-

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    de religiosa. Outro pensador batista geral, Guilherme Dell, conhecido por suas fortes convices teolgicas a respeito da livre expresso do ser, em 1646, destacou-se pela luta a favor da liberdade religiosa na Inglaterra. Escreveu o livro intitulado Uniformidade Examinada [10] , que postulava a tese de que a unidade deve existir sem uniformidade, uma vez que a ltima era m e intolervel, excluindo toda a liberdade concedida por Deus. Essa era uma nova argumentao favorvel a liberdade religiosa.

    Mas, talvez o livro mais revolucionrio da teologia batista, que apresenta uma viso da substncia catlica entendida em um de seus aspectos, o do universalismo, seja o de Hosea Ballou (1771-1852), Tratado sobre a Expiao, escrito em 1805. Ballou considerou que o sacrifcio de Cristo ao invs de ser uma posio jurdica ou vicria tem base moral. Assim, Cristo sofreu pela humanidade, mas no em seu lugar. Com base neste argumento, afirmou a salvao universal de todos os seres humanos, porque a morte leva a alma no regenerada ao arrependimento.

    Logicamente, por ser uma confisso protestante de forte cunho missionrio, as reflexes teolgicas sobre o universalismo influenciaram em muito a ao missiolgica batista. E o pai das misses modernas, o batista ingls William Carey (1761 1834), apesar de ter iniciado seu trabalho a partir dos batistas particulares, no correr de sua obra missio-nria na ndia, construiu uma viso de misses at ento indita: dela participariam todas as igrejas e comunidades, todas as classes sociais, e sua ao, considerada civilizatria na poca, passou a ser calcada num entendimento no paternalista de ao social. Depois de sua morte, esta viso missiolgica, que tinha por base uma compreenso instintiva da substncia catlica, cedeu lugar a novas propostas.

    Mas a partir do final do sculo XX, a experincia de Carey e as lei-turas de outros pensadores batistas gerais voltaram baila, trazendo para a missiologia batista uma compreenso da importancia da substncia catlica. Assim, Don Richardson, professor de Missiologia, v a histria relatada na abertura desse trabalho como exemplo de uma ponte entre o que ele chama de revelao geral e o kerigma, a revelao crstica. Ou seja, Deus se mostra na espiritualidade de pessoas e comunidades, que leva ao reconhecimento do evento crstico. Ele chama esta presena do

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    essencial na existncia humana de fator Melquisedeque, recorrendo ao nome do sacerdote a quem Abrao prestou homenagem.

    Em seu livro O Fator Melquisedeque, best-seller entre os protes-tantes de misses do Brasil, Richardson enumera casos de comunidades aos quais Deus falou mesmo antes da presena crist, citando com bom humor alguns casos relatados nas Escrituras, como o de Nnive, capital da Assria, que ouviu as imprecaes mal-humoradas de um judeu, aceitou a exortao e foi salva. E pergunta quem reconheceu que o Messias havia nascido em Belm, alm dos pastores? Claro, ns sabe-mos, os astrlogos do Oriente, considerados pagos pelos judeus. Ou ainda o caso do funcionrio etope que foi a Jerusalm e s encontrou o preconceito. Mas ouviu da revelao crstica atravs de Filipe.

    Richardson fala ainda de comunidades que possuem relatos se-melhantes aos da criao e do dilvio descritos na Bblia e mesmo de comunidades que contam que, em seu caminhar nmade, perderam o livro que falava sobre o Deus que criou o mundo.

    John Sanders, pensador arminiano, seguindo o caminho aberto por Hosea Ballou, considera que o amor de Deus pelos seres humanos nunca ficou suspenso esperando que missionrios levem o Evangelho queles que no conhecem o evento crstico, embora deseje que todos ouam acerca das coisas que seu Filho tem feito. Assim, afirma, o Es-prito age ativamente quando, onde e como ele quer, trazendo pessoas para um relacionamento com Deus, antes mesmo que o Evangelho as alcance. [11]

    E o escritor C. S. Lewis, to querido e estudado pelos batistas, considerava que os que se entregam em f quele que est por detrs de toda verdade e bondade sero salvos, mesmo que nada saibam sobre o evento crstico. Diz Lewis: H, pessoas em outras religies que esto sendo guiadas pela influncia secreta de Deus para se concentrarem naqueles pontos de sua religio que esto de acordo com o cristianismo e que assim pertencem a Cristo sem o saber. [12]

    Em outro lugar ele escreve: Eu acho que toda orao que feita sinceramente, mesmo a um falso deus (...) aceita pelo Deus verdadeiro e que Cristo salva muitos que no acham que o conhecem. [13]

    E nas Crnicas de Nrnia, Lewis conta a histria de um homem chamado Emeth, verdade em hebraico, que fora criado num pas onde

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    o principal deus chamava-se Tash. Emeth lutou contra o pas de Nrnia, cujo Deus era Aslan, uma figura crstica. Atravs de uma srie de cir-cunstncias, nosso heri Emeth tem uma viso do deus Tash e percebe que Tash o maligno. Impelido pela viso, ele vagueia pelos bosques. L Aslan o encontra, e acontece o seguinte dilogo:

    Ai de mim, Senhor! No sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash. Criana, todo o servio que tens prestado a Tash, eu o considero como servio prestado a mim... por sermos o oposto um do outro que tomo para mim os servios que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos to diferentes, que nenhum servio que seja vil pode ser prestado a mim e nada que no seja vil pode ser feito para ele. Portanto se qualquer pessoa jurar em nome de Tash, e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo sem saber, e eu que o recompensarei. E, se um ser humano cometer alguma crueldade em meu nome, ento, embora tenha pronunciado o nome de Aslan, a Tash que est servindo e Tash quem aceita suas obras...

    E constrangido, Emeth acrescenta:

    Mesmo assim tenho aspirado por Tash todos os dias da minha vida. Amado, no fora o teu anseio por mim, no terias aspirado to inten-samente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram. [14]

    Para Lewis, Deus salva pessoas e comunidades de acordo com o princpio da f descrito por Paulo em Romanos (2.7), Deus dar a vida eterna s pessoas que perseveram em fazer o bem e buscam a glria, a honra e a vida imortal.

    Assim, podemos ver que o protestantismo de misses e os batistas, no enquanto instituio, mas em sua ao missiolgica tm vivido uma prtica que em muito se aproxima da leitura tillichiana da substncia catlica. Assim, podemos dizer que essa leitura apresenta as bases para uma esperana maior no modo especfico no qual o desejo de Deus de essencializar todos os seres humanos pode ser realizado. O ponto de vista defendido que Deus ama todos os seres humanos e deseja que sejam salvos. Todos so essencializados em razo do evento crstico, quer sejam conscientes ou no desse evento que projeta o kairs. Dessa

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    maneira, o universalismo dos batistas gerais apresenta a igreja latente como comunidade que caminha, pela obra expiatria que desconhecem, em direo essencializao. Ou em linguagem batista, Deus aceita todos os que exercem f nele, sem levar em considerao at que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.

    importante dizer que Tillich, sem dvida, enriqueceu o con-ceito de substncia catlica ao v-lo em processo de correlao com o princpio protestante, e que mesmo nas mais diferentes confisses protestantes, como o caso dos batistas, encontramos defensores da substncia catlica como fundamental para a vida teolgica. o caso de A. H. Strong, um dos telogos mais respeitados no meio batista, que entende o processo de essencializao como exposto por Tillich, embora no utilize a mesma terminologia.

    Tais consideraes, nos permitem dizer que, provavelmente, o conceito substncia catlica represente a abordagem mais prxima de um consenso entre os pensadores cristos na atualidade.

    Consideraes finaisNa teologia de Tillich, conforme expe Dourley, provvel que sua

    contribuio antropologia seja mais importante do que sua cristologia [15] . Essa antropologia baseava-se na compreenso de que a humani-dade imago Dei e se encontra em choque com a alienao do tempo presente. Mas a memria humana persiste como impulso na direo da recuperao desse mau encontro exposto por La Botie. Esta dialtica traduz e explicita a presena da espiritualidade do esprito humano.

    Quando Tillich afirma que a humanidade universalmente espiri-tual, partindo da tenso entre universal e particular, localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar a realizao plena do universal na revelao crist, relativiza a particularidade no contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal nfase exige que o telogo cristo aprecie as manifestaes do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a f crist diminudo. Ao contrrio, a f aprofundada por meio do reconhecimento das variaes daquilo que os cristos percebem no evento Cristo, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.

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    Assim, a radicalidade do princpio protestante pode ser aplicada s materializaes da substncia catlica na direo da essencializa-o do humano, denunciando as expresses idoltricas que ameaam a comunidade humana.

    Jorge Pinheiro dos Santos cientista da religio e telogo. pos-doutorando em Cincias da Religio na Universidade Presbiteriana Mackenzie; Doutor e Mestre em Cincias da Religio pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo. Tem graduao em Teologia pela Faculdade Teolgica Batista de So Paulo. professor de Teologia e Histria na Graduao e no Mestrado da Faculdade Teolgica Batista de So Paulo. Entre seus livros publicados esto Somos a imagem de Deus, ensaios de antro-pologia teolgica, So Paulo, gape Editores, 2001; tica e Esprito Proftico, revisitando a Histria com Paul Tillich, So Paulo, Ed. Igreja sem fronteiras, 2002; Teologia e Modernidade, Etienne Higuet (org.), vv.aa., So Paulo, Fonte Editorial, 2005; e A Forma da Religio, Etien-ne Higuet e Jaci Maraschin (orgs,), vv.aa., So Bernardo do Campo, Universidade Metodista de So Paulo, 2006.

    NotAS[1] Don Richardson, O Fator Melquisedeque, So Paulo, Edies Vida Nova, 1986, p. 93. [2] Paul Tillich, La Masse et la Religion , in Christianisme et so-cialisme, crits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra e Quebec ; Cerf, Labor et Fides, Presses de lUniversit Laval, 1992, pp. 92-93. [3] Paul Tillich, Teologia Sistemtica, So Leopoldo, Sinodal, 2005, pp. 757, 761-762. [4] John Dourley, So Bernardo do Campo, Correlatio, no. 1. Site: www.metodista.br/correlatio. [5] Paul Tillich, idem, op. cit. , p. 605. [6] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 665. [7] Paul Tillich, idem, op. cit, p. 665-666. [8] Paul Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Mes-sage, ed. D. Foster, Cleveland: The Pilgrim Press, 1996, pp. 5-9.

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    [9] Zaqueu Moreira de Oliveira, Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses, Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edies, 1997. p. 83. [10] Zaqueu Moreira de Oliveira, idem, pp. 104-106. [11] John Sanders, Inclusivismo. Site: http://arminianismo.vilabol.uol.com.br [12] C. S. Lewis, Mere Christianity, New York: Macmillan, 1960, pp. 65 e 176. Trad. portugus: Mero Cristianismo, So Paulo, Quadrante, 1997. [13] Evan Gibson, C. S. Lewis: Spinner of Tales, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1980, p. 216. [14] C. S. Lewis, The Last Battle, New York: Collier Books, 1970, pp. 164-165; e God in the Dock, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1970, p. 111. Trads. portuguesas: A ltima Batalha e As Crnicas de Nrnia, So Paulo, Martins Fontes. [15] John Dourley, The Problem of Essentialism: Tillichs Anthropolo-gy versus his Christology in Theological Legacy: Spirit and Communi-ty, International Paul Tillich Conference, New Harmony, Indiana, 17-20 de junho de 1993 (Berlin: Walter deGruyter, 1995), p. 125-141.