A Teia Da Espiritualidade

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ISSN 1806-7328 CADERNOS DA ESTEF Revista Semestral N° 45 – 2010/2 A TEIA DA ESPIRITUALIDADE ESTEF Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana Porto Alegre (RS) – Brasil

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ISSN 1806-7328

CADERNOS DA ESTEFRevista Semestral

N° 45 – 2010/2

A TEIA DA ESPIRITUALIDADE

ESTEF

Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana

Porto Alegre (RS) – Brasil

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SUMÁRIO A teia da espiritualidade ....................................................................3

A vida religiosa na história:os primórdios Fr. José Bernardi ...................................................................................5 A espiritualidade beneditina Ir. Roberta Peluso, osb ....................................................................... 17 Espiritualidade cisterciense Pe. Bernardo Maria, cisterciense ...................................................23 Um olhar panorâmico na origem da espiritualidade mendicante Arno Frelich ...........................................................................................35 Oblatos de São Francisco de Sales Pe. Carlos Martins de Borba, osfs ...................................................47 Espiritualidade das irmãs de Santa Catarina Ir. Veronice Weber .............................................................................. 51 Espiritualidade da Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida Ir. Salete Dal Mago .............................................................................55 Práxis e doutrina do sensus fi delium no Vaticano II Wilson Dallagnol ....................................................................................63 Comensalidade eucarística Luciano de Souza Santo ......................................................................87 A primeira apóstola Luis Alberto Méndez Gutierrez ......................................................105 Religiosos leigos: quem somos? Vanildo Luiz Zugno, OFMCap............................................................ 115 Irmão leigo: identidade e missão Frei Edson Matias, OFMCap ...........................................................123 Crônicas Mudança na direção da estef ...........................................................127

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A TEIA DA ESPIRITUALIDADE

No Simpósio Franciscano, que todos os anos fazemos, na Estef, tomamos desta vez como tema as espiritualidades, situando entre elas a espiritualidade franciscana. O título do Caderno lembra que toda espiritualidade é relacional e se liga ao misterioso fi o dourado do Espírito, que conduz e entrelaça a todas numa teia de recíproca pertença. Nenhuma irrompe qual vulcãozinho isolado, sem nada dever a ninguém, todas contam com um antes e um depois, com um contexto que lhes dá o chão, e um horizonte que lhes dá asas e inspiração. Sem esquecer que todas emergem dos profundos mananciais do Espírito.

Quando uma pessoa, ou grupo de pessoas, se deixa tocar pelo Espírito, surge a espiritualidade. E sem o Espírito de Jesus, nenhuma espiritualidade é cristã. O Espírito, entretanto, campeia também fora dos quadros institucionais cristãos e chega até lá onde existe alguma pessoa que seja disponível ao sopro divino. As grandes espiritualidades partem sempre da sintonia com o Espírito, ou seja, de uma marcante experiência de Deus, que se torna sua experiência fundante, sem a qual é difícil de compreender qualquer espiritualidade sem afetá-la com distor-ções.

Diversos artigos deste Caderno tratam do assunto. José Bernardi escreve sobre A vida religiosa na história, enfocando seus primórdios, seu contexto e sua mística; é um artigo que ajuda a situar os demais artigos que o seguem. Roberta Peluso, beneditina do Mosteiro da Santíssima Trindade, em Santa Cruz do Sul (RS), resume em grandes pinceladas o perfi l da Espiritualidade beneditina, cuja origem remonta aos primeiros séculos cristãos. Logo em seguida vem o artigo de um monge cisterciense, natural de Porto Alegre e residente em Rio Pardo (RS), Mosteiro Nossa Senhora de Nazaré: é o Pe. Bernardo Maria, falando sobre a Es-piritualidade cisterciense, que é um desdobramento da beneditina.

Saltando alguns séculos adiante, teremos Um olhar panorâmico sobre a ori-gem da espiritualidade mendicante - outra etapa signifi cativa da espiritualidade cristã; o artigo é de Arno Frelich, franciscano, integrante do corpo docente da Estef. De época mais recente e com feições modernas, desponta a fi gura notável de São Francisco de Sales, cuja espiritualidade, aberta e prática, exerceu múltipla

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infl uência e inspirou uma constelação de grupos religiosos. O tema é tratado por Carlos Martins de Borba, osfs, no artigo: A espiritualidade dos Oblatos de São Francisco de Sales.

Veronice Weber, com o artigo A espiritualidade das Irmãs de Santa Catarina V.M., que é a sua congregação, nos conduz às origens da vida religiosa feminina ativa, que, por sua vez, deve muito a Regina Protmann, fundadora da Congrega-ção. Mais perto de nós, Salete Dal Mago apresenta A espiritualidade das Irmãs Franciscanas Aparecidas, uma Congregação nascida no limiar de nosso tempo, aqui em Porto Alegre.

Wilson Dallagnol dá sequência a sua interessante trilogia sobre a Práxis e doutrina do sensus fi delium no Vaticano II, um tema sempre pertinente. Luciano de Souza Santos, fi nalista do Curso de Teologia na Estef, aprofunda o cativante tema da Comensalidade eucarística, com boas contribuições. Outro fi nalista de Teologia, Luís Alberto Méndez Gutierrez, se interessa pela fi gura de Maria Ma-dalena, identifi cada por ele como A primeira apóstola.

Vanildo Luiz Zugno retoma um tema que ele vem aprofundando: Religiosos leigos: quem somos? Sobre o mesmo tema aparece um outro breve artigo de Ed-son Matias: Irmão leigo, identidade e missão. Na secção de crônicas, aparecem dois pronunciamentos, respectivamente, de Lúcia Weiler e de Aldir Crocoli, por ocasião da Mudança na Direção da Estef.

Adelino Gabriel Pilonetto

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INTRODUÇÃO Cada narrativa histórica é marcada

pelos interesses que a mobilizam. Esta marca é inevitável, pois a historiografi a é a elaboração de uma narrativa situada, comprometida, não neutra, a partir de fontes e documentos. É uma tentativa de ler o passado para entender o presente. A leitura é orientada pelas perguntas do presente.

Este estudo pretende organizar uma narrativa histórica da Vida Religiosa que possa lançar perspectivas para a experi-ência presente, com suas luzes e som-bras. Embora não seja um estudo exaus-tivo, pretende colocar à disposição de

quem se interessa pelo tema, uma pos-sível leitura do testemunho que tantos cristãos e cristãs, nos primeiros séculos da Igreja, procuraram dar de seu com-prometimento com o batismo e o segui-mento do Evangelho.

Para esta interpretação utilizaremos as seguintes lentes: simplicidade, diver-sidade e distonia. Vejamos por parte.

Usar lentes de simplicidade signifi ca que se trata de entender a Vida Religiosa como uma tentativa de seguir Jesus de modo simples. Estas lentes se inspiram num comentário marginal de Danielou (1966, p. 279) que afi rma:

A VIDA RELIGIOSA NA HISTÓRIA:OS PRIMÓRDIOS

Fr. José BernardiMestre em Teologia Patrística

Professor na Estef

_________________ _________________

Resumo: : O artigo propõe uma narrativa histórica das primeiras experiências de Vida Religiosa na Igreja cristã. Aborda as razões do surgimento desta forma de vida e traça o itinerário dos anacoretas, da vida cenobítica e do monaquismo urbano, destacando alguns personagens importantes neste caminho. Embora não seja opinião unânime dos historiado-res, propõe que a Vida Religiosa é uma ruptura com a Igreja e a sociedade em razão de um seguimento radical de Jesus Cristo.

Palavras-chaves: vida religiosa, anacoretas, vida cenobítica, monaquismo, história.

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Diante do orgulho dos intelectuais re-centemente convertidos, que transpu-nham para dentro do cristianismo a tradição aristocrática de seus mestres pagãos, o monacato quer reafi rmar, como fará o franciscanismo mais tarde, no XIII século, o primado do simples que constitui um dos aspectos essenciais da mensagem evangélica.

Interpretar a história da Vida Reli-giosa sob a chave da diversidade impli-ca em reconhecer as multiformes mani-festações do Espírito na vida da Igreja, que se mostram nas diversas formas que a Vida Religiosa assumiu, seja em dife-rentes etapas da história como dentro do mesmo período.

Por fi m, os óculos da distonia enxer-gam a Vida Religiosa, ao mesmo tempo como esforço de fi delidade e de descom-passo com a mensagem do evangelho. A irrupção de movimentos na vida da Igre-ja é marcada pela tensão entre o estabe-lecido historicamente e a também esta-belecida mensagem de Jesus. Trata-se do aspecto profético da Vida Religiosa, lido tanto em relação com a Igreja quanto com a sociedade.

1. VIDA RELIGIOSA: UM JEI-TO NOVO DE SER CRIS-TÃO? João Batista Libânio (1995, p. 9)

defende a ideia de que “a Vida Religio-sa cristã tem história tão longa quanto a própria igreja”. Enquanto Castillo (2008, p. 14) acha que a Vida Religiosa não per-tence à essência da Igreja, pois ela não existiu desde o começo (por três séculos

a Igreja viveu sem vida Religiosa) e não há nenhuma segurança de que não venha a desaparecer.

Libânio (1995, p. 09) entende Vida Religiosa como a tentativa de alguns homens e mulheres de viverem “de ma-neira radical o evangelho”. Esta ideia de fundo é bastante aceita pelos historiado-res e teólogos, embora haja quem pen-se que houve um tempo em que a Igreja toda se entendesse como “vivência radi-cal do evangelho”. Textos como a Carta a Diogneto1, a Apologia, de Justino2, ou a Súplica pelos cristãos, de Atenágoras3, descrevem a compreensão que os cris-

1 Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros ho-mens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costu-mes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, não têm modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talen-to e especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrá-rio, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida, para-doxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros, par-ticipam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles e cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram fi lhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem as leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam todos e são perseguidos por todos, são desconhecidos e apesar dis-so condenados; são mortos, e, desse modo, lhes é dada a vida; são pobres, e enriquecem a muitos; carecem de tudo, e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorifi cados; são amaldiçoados e, depois proclamados justos, são injuriados, e bendizem; são maltratados e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, e aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio (Carta a Diogneto, 5).

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media”4.De maneira geral pode-se dizer que

aconteceram três ondas, ou três ciclos ou fases na história da Vida Religiosa: a vida monástica, os movimentos mendicantes e a vida religiosa da diaconia. Atualmente, segundo algumas análises, estamos num período de crise em que se busca a iden-tifi cação de novos paradigmas.

Dedicaremos este estudo aos pri-mórdios da Vida Religiosa, ou seja, à primeira manifestação de Vida Religiosa na história da Igreja.

Antes de iniciarmos propriamente a narrativa histórica deste período, con-vém sublinhar que, na história, a Vida Religiosa foi constantemente um fenô-meno espontâneo (nasce independente da vontade da hierarquia e às vezes até contra a sua vontade), de protesto (não necessariamente violento, mas assinala-do por um estilo de vida que se contrapõe ao modo comum de viver a fé em Jesus e de seguir o seu evangelho), múltiplo e que responde aos desafi os do seu tempo.

tãos tinham de si mesmos e que, de algu-ma maneira, justifi ca a afi rmação de que os cristãos se entendiam como seguido-res radicais do evangelho.

Um dado que parece bastante tran-quilo é o que apresenta a Vida Religiosa, na Igreja, como movimento que procura manter viva e explícita a proposta de Je-sus. Assim, nos momentos de crise ou de afastamento da maioria dos cristãos, sur-gem movimentos e propostas de reaviva-mento da espiritualidade que retomam o evangelho.

Esta compreensão não isentou a Vida Religiosa de perigos, especialmen-te o de alimentar a concepção de que os religiosos e religiosas são “cristãos me-lhores” ou de primeira classe, enquanto os demais vivem a fé “medianamente” ou, como Agostinho preferiu, na “via 2 Nós, que outrora nos deleitávamos com a libertina-gem, agora não queremos viver mais senão na pureza. Nós, que amávamos o dinheiro e o crescimento da nossa riqueza acima de tudo, juntamos agora até o que pos-suímos, distribuindo-o entre quantos estão sofrendo ne-cessidade. Nós, que nos odiávamos uns aos outros, que nos matávamos uns aos outros e, por causa dos costu-mes diferentes, não queríamos coabitar com aqueles que eram de outra raça, vivemos agora, depois de ter Cristo aparecido entre nós, todos juntos, rezamos pelos nos-sos inimigos e procuramos convencer aqueles que nos desprezam sem razão que, observando os conselhos do Cristo, eles podem nutrir a esperança de que alcancem junto conosco a mesma felicidade que nós esperamos de Deus, o Senhor de todas as coisas (Justino, Apologia I,14,1-3,).3 Entre nós encontrareis por certo muita gente simples, artesãos, velhinhas... que se pela palavra não são capa-zes de argumentar em favor de sua religião, mostram com as obras a boa escolha que fi zeram. É gente que não se aplica a decorar discursos, mas pratica boas ações: não ferem quem os fere, não levam aos tribunais quem os espoliam, dão a todos os que lhe pedem e amam o próximo como a si mesmos... (ATENAGORAS, Súplica pelos Cristãos 11,4).

4 Sabemos todos dos confl itos entre expoentes da vida religiosa (Agostinho e Jerônimo, por exemplo) e os de-bates que debordaram para a heterodoxia como os mo-vimentos iniciados por Pelágio. O próprio Lutero vai se enfrentar com essa situação. Um pequeno e interessante artigo apareceu por ocasião dos 500 anos de Martinho Lutero. Trata-se de STAMM, Heinz-Meinolf. Lutero e a Via Religiosa, em Grande Sinal, ano XXXVII, n.9/10, 1983, pp. 781-787. O autor do artigo defendeu sua tese de doutorado sobre o mesmo tema.

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2. DE UM CRISTIANISMO FROUXO PARA UM CRIS-TIANISMO DE DESERTO

A segunda metade do século III é

marcada pelo aumento das adesões à nova religião, em parte, pela ausência de perseguições sistemáticas e, em parte, pela ampliação dos propagadores da nova fé5, pela facilidade de ligar e desligar os membros da comunidade, pelo batismo mais acessível e a menor exigência para o ingresso na comunidade. Além disso, a aliança com o Império e a ofi cialização do cristianismo como religião imperial provocaram reações que infl uenciaram no aumento de experiências distintas de viver a fé e o seguimento de Jesus, que procuraremos descrever a seguir.

3. ABANDONAR O MUNDO E IR PARA O DESERTO

Trata-se do movimento iniciado por homens e mulheres que deixavam a ci-dade e a convivência comunitária pela vida solitária no deserto6. De acordo com Castillo (2008, pp. 19-20), na segunda metade do século III, teve início no nor-

te do Egito um fenômeno novo que se propagou rapidamente do Egito para a Palestina, a Ásia Menor e outras regiões da África do Norte, caracterizado pelo fato de muitíssimos cristãos emigrarem das cidades, afastando-se do convívio com outros cidadãos e irem morar no deserto, “correspondendo assim a uma vocação pela qual se sentiam chamados a viver sua fé em Jesus Cristo de maneira diferente de como a vivera, até então, o comum dos fi éis”.

Muitos historiadores buscaram as razões do surgimento desse movimento novo na Igreja, apesar de haver quem acredite ser “forçoso reconhecer que o monaquismo apareceu na Igreja sem que o historiador esteja capacitado para conhecer a razão disso” (GUY, 1993, p. 16).

Castillo (2208, pp. 20-24), pela via negativa, acredita que os primeiros cris-tãos não se deslocaram ao deserto para imitar a comunidade de Jerusalém, nem pretendiam substituir o ideal do martí-rio7, nem dar prosseguimento ao estilo de vida das virgens e continentes.

Longe de convergências, entretan-to, ainda há muitas opiniões sobre as origens do movimento que levou cris-tãos ao deserto. Para Danielou (1966, p. 278), enquanto continuava atual a ameaça das perseguições, era o martírio

5 Um excelente estudo sócio-histórico procurou docu-mentar a ampliação das comunidades cristãs no âmbito do Império. STARK, Rodney. O crescimento do cristia-nismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006.6 Deserto é “um lugar simbólico, a periferia do mundo. Lugar de despojamento, de pobreza, de reclusão, de renúncia dos prazeres da vida, em oposição ao lugar do poder, dos prazeres do reino do dinheiro. Lugar da negação da mundaneidade que parecia enfraquecer o entusiasmo das primeiras gerações. Lugar da tentação, da provação, da luta contra os demônios” (LIBÂNIO, 1995, p. 31).

7 Também se disse que o heroísmo da vida no deserto sucedeu o martírio, impossível, então, no âmbito de uma igreja ligada ao poder; tal fenômeno contribuiu para o desenvolvimento do monaquismo, mas não o suscitou, pois este é anterior à ultima perseguição e à Igreja cons-tantiniana; houve um desenvolvimento progressivo das correntes de ascetismo nos séculos precedentes. Esta é a opinião de Mondoni, 2001, p. 87.

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que representava o ponto alto da ascen-são espiritual. O mártir é a excelência do cristianismo. Quando chegou a paz e o acolhimento por parte do Império, o cristianismo instalou-se confortavelmen-te no mundo e os bispos na corte. Além disso, “as ondas de conversões, muitas vezes superfi ciais ou interessadas, tanto nas massas quanto nas elites, não podiam deixar de trazer no seu bojo o afrouxa-mento da tensão espiritual no interior da Igreja” (DANIELOU, 1966, p. 278).

São da mesma opinião V. Grossi e A. Di Berardino (1984, pp. 158-159), para os quais o movimento monástico sucede o martírio, podendo demonstrar no novo contexto a possibilidade de sofrer por Cristo como fi zeram os már-tires. Para estes autores, a vida monásti-ca vem enlaçada ao martírio e é o modo pelo qual se exprime o novo heroísmo na Igreja. Enquanto o martírio é o sofri-mento de um momento, a vida monásti-ca é um contínuo martírio (o cotidianum martyrium exposto por Jerônimo em sua Epístola 3,5 e 108,31).

Deve-se dizer, no entanto, que uma série de fatores convergentes pode ofe-recer uma explicação razoável sobre a origem desse novo modo de viver o cris-tianismo.

Antes do mais é preciso considerar que, na primeira metade do século III, o cristianismo teve uma relativa liberdade (não há nenhuma grande perseguição até Décio, em 249) e o Império viveu uma época de insegurança e miséria crescen-tes. Isso levou as comunidades eclesiais a um crescimento e, consequentemente,

a um “afrouxamento das exigências do fervor evangélico inicial” (CASTILLO, 2008, p. 22):

Muitas pessoas acorreram a batizar--se porque nas comunidades cristãs encontravam a segurança e a paz que a sociedade do Império não lhes podia oferecer, pois este sofria um alarmante processo de decomposição. Este proces-so produziu-se desde Marco Aurélio até Constantino, ou seja, desde meados do século II até começos do século IV. Mas é claro que numa situação como essa, deverão ter sido muitos os que sentiram um enorme desamparo: os bárbaros ur-banizados, os camponeses chegados às cidades em busca de trabalho, os solda-dos licenciados, os arrendatários arrui-nados devido à infl ação e os escravos al-forriados. Para todas essas pessoas fazer parte da comunidade cristã devia ser o único meio de conservar o respeito para consigo mesmas e dar algum sentido à própria vida. Mas como é lógico, seme-lhante êxito das comunidades teve um preço demasiado alto. Porque, ao entra-rem na Igreja tantas pessoas que vinham impelidas mais por medo (ou por outros interesses) do que por motivos especi-fi camente evangélicos, inevitavelmente as comunidades deterioraram-se na sua autenticidade (CASTILLO, 2008, pp. 22-23).

Isso, ainda segundo Castillo (2208, p. 25), explicaria por que, no século III, começou a perceber-se por parte de al-guns cristãos a necessidade de um re-gresso ao evangelho e de abandonar a convivência com os demais cristãos, fu-gir para o deserto e começar um modelo alternativo de viver a fé em Jesus Cristo.

Há uma variedade imensa de mo-vimentos e estilos de vida. Não se pode

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mais, segundo Grossi e Di Berardino (1984, pp. 163-164), repetir uma impos-tação histórica que deriva o monaquismo da experiência eremítica de Antão que foi transformada por Pacômio e refor-mada por Basílio. A variedade permitiu o surgimento espontâneo e independen-te de diversas formas de vida eremítica e cenobítica e o estilo de vida não se deve a uma ou outra mente brilhante. O que temos, no entanto, é que no Egito se conformaram dois grandes modelos que, graças à literatura transmitida, traduzida e difundida, assegurou propaganda am-pla, transformando Antão e Pacômio nos “arquétipos” do monasticismo primitivo.

4. OS ANACORETAS

Esta denominação vem do grego anachoresis, que expressa a ação de reti-rar-se ou afastar-se do lugar onde se está ou indicar o lugar do refúgio para o qual alguém vai, independente do motivo.

É importante dar-se conta que essa nomenclatura não foi invenção dos cris-tãos. Anachoresis é a palavra que se utili-zava no Egito, desde a época dos faraós, para designar a fuga de camponeses e outras pessoas marginais de seu lugar de residência para outra aldeia, templo ou deserto, para escapar da pressão fi scal, do serviço militar ou de outras obriga-ções.

Como anotou Castillo,

Tratava-se, portanto, da fuga do próprio ambiente e dos consequentes compro-missos econômico-sociais. Daí que, com frequência, este fenômeno tenha

acontecido entre pessoas desarraigadas, devedores, bandidos ou descontentes em geral com a ordem social imperante. Por isso, a anachoresis era uma forma de protesto e, com freqüência, a única saída que restava às pessoas com problemas de tipo social, administrativo ou fi scal (2008, p. 32).

Do ponto de vista cristão, a anacho-resis realiza-se pelo abandono do lugar, onde a pessoa estava instalada na cidade, e dos negócios a que se encontrava vin-culada, bem como pelo afastamento do quadro político-administrativo onde se realizavam ditos negócios, para dedicar--se “ao exercício da ascese” (cf. CAS-TILLO, 2008, pp. 34-35).

O estilo de vida que os cristãos ado-tam ao deslocar-se para o deserto, não é em si inovador, segundo Danielou (1996, p. 279), pois:

Anacorese, literalmente, é subir ao de-serto... É o recurso comum no Egito da-quele tempo para todos os que tinham motivo de fugir à sociedade, fossem criminosos, bandidos, devedores insolú-veis, contribuintes perseguidos pelo fi s-co, associados de toda espécie. Durante a perseguição, os cristãos recorreram a este expediente (na Capadócia, por exemplo, os avós de Basílio).

A opção pela vida eremítica, ou ana-corética, é marcada por uma ruptura:

Ruptura com a própria instalação, com o mundo social e os seus múltiplos compromissos, com as instituições e o sistema estabelecido, inclusive com os vínculos interiores que todos trazemos e que, naquela cultura, se exprimiam como fuga e morte dos próprios dese-jos e até do próprio corpo (CASTILLO 2008, p. 36).

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A marginalidade do cristianismo foi resultado das resistências sociais e das perseguições do Império romano. As mulheres eram atraídas pelo movimento cristão, no interior do qual podiam des-frutar de uma liberdade que não possuíam na cultura dominante8. Este também foi, segundo Swan (2005, p. 13), um dos fato-res do desenvolvimento das tradições ere-míticas e monásticas entre as mulheres, quando houve a ascensão do cristianismo da marginalidade, da vivência familiar nas casas para os altos extratos sociais e para a basílica pública. Este movimento signifi cou, para um grupo de cristãos, que a Igreja corria o risco de perder suas características proféticas e que algumas conversões seriam motivadas simples-mente pela conveniência ou oportunismo político (cf. SWAN, 2005, p. 15).

Por outro lado, o fato de o cristia-nismo movimentar-se para uma assimi-lação do modelo social vigente signifi -cou, para as mulheres, perda de espaço e de liderança, pois no modelo patriarcal é o homem quem ocupa os encargos de liderança. Enquanto diminuía o espaço na comunidade eclesial, “o deserto e o mosteiro ofereciam às mulheres maior senso de autonomia física e espiritual” (SWAN, 2005, p. 16)9.

A decisão pela vida eremítica signi-fi cava que a candidata se confi ava a uma mãe ou pai espiritual de quem aprendia a portar-se como monja ou eremita:

No processo de ensino da mãe – feito mais pelo exemplo que por palavras – formava-se uma profunda ligação espi-ritual. A discípula rezava quando a mãe rezava. Trabalhava junto à mãe, trançan-do cestos de vime, cordas e indumentá-ria, distribuindo comida e dinheiro aos pobres, do mesmo jeito da mãe. Os as-cetas empenhavam-se em manter-se em tudo e por tudo com o trabalho das pró-prias mãos (SWAN, 2005, p. 17).

A opção pela vida ascética no de-serto, apesar de representar uma ruptura com o modelo eclesial, não era um mo-vimento que se isolava da Igreja local ou universal. De acordo com Swan, aconte-ce exatamente o contrário, sendo bastan-te valorizado:

Muita gente vinha buscar direção es-piritual e conselhos. Os bispos envol-viam os ascetas nos árduos debates teológicos. Monges e eremitas, quando se apresentava a oportunidade, eram se-melhantes aos evangelistas na busca de converter os não crentes ao cristianismo (2005, p. 19).

Os anacoretas retomavam o ideal de entrega total ao seguimento de Jesus. Antão é o protótipo desse modelo. Foi imortalizado por Atanásio, bispo de Ale-xandria.

8 Um documento não cristão indica que mulheres assu-miam papéis importantes nas comunidades primitivas. Plínio, o jovem, em sua correspondência com o Impe-rador Trajano, reporta a existência de líderes escravas: “Julguei necessário procurar saber, também por meio da tortura, de duas escravas, chamadas de ministras, o que havia de verdadeiro, mas não consegui apanhar nada que a existência de uma superstição perversa e desenfreada”.9 Joyce Salisbury publicou um interessante estudo de perspectiva feminista evidenciando o progressivo con-trole que a estrutura patriarcal submeteu a vida eremí-

tica e monástica feminina. A virgindade e a castidade feminina, segundo a autora, representavam uma ruptura com o modelo social vigente e a afi rmação da liberdade e autonomia da mulher, mas que aos poucos foram sen-do tolhidas pela estrutura eclesiástica. Cf. SALISBURY, Joyce. Pais da Igreja: virgens independentes. São Pau-lo: Scritta, 1995.

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5. A VIDA CENOBÍTICA

No início do século IV, nasce uma nova maneira de viver o monaquismo. Trata-se dos cenobitas, que, à diferença dos anacoretas que viviam isolados e na solidão, juntavam-se em mosteiros e vi-viam em comunidade.

Pacômio10 foi o iniciador dessa orga-nização. Ele nasceu no Egito por volta de 292, de família pagã, converteu-se e foi batizado em 313. Depois de viver alguns anos (sete, segundo Danielou, 1966, p. 283) como anacoreta, começou a reunir para viver em comum gente que vivia so-litariamente nas proximidades do deserto. Até sua morte em 346, fundou nove co-munidades masculinas e duas de mulhe-res (cf. DANIELOU, 1966, p. 282).

Enquanto os anacoretas viviam por conta, seguindo a orientação de um “Pai”, os irmãos do cenóbio submetiam--se a uma Regra que o próprio Pacômio escrevera, a qual pormenorizava, em 194 artigos, os detalhes da vida cotidiana dos irmãos.

A estrutura do mosteiro é assim des-crito por Danielou (1966, p. 283):

Fechado por um cinto de muralhas, o mosteiro pacominiano compreendia, além da capela e dependências, uma sé-rie de casas reunindo uns 20 monges sob a autoridade de um preposto assistido por um auxiliar; três ou quatro casas for-mavam uma tribo, o conjunto obedecen-do ao superior que, com seu assistente,

assegurava a direção espiritual da comu-nidade e o bom andamento dos serviços gerais, necessariamente bem desenvol-vidos (padaria, cozinha, enfermaria) para o bom funcionamento dos quais as diversas casas delegavam cada semana o número necessário de monges.

Por outro lado, é importante salien-tar que o mosteiro pacominiano não era construído no deserto propriamente dito. A aglomeração era organizada em lugar afastado das cidades, mas próximo a fon-tes permanentes, com possibilidade de cultivo da terra, de onde os membros po-diam tirar o próprio sustento. O mosteiro possuía a estrutura de um acampamento militar romano: um muro dentro do qual estão conjuntos habitacionais para 20 a 40 monges, vários serviços e um lugar para reunião. São comunidades com muitos membros, isto é, centenas sob a guia de um superior comum e de supe-riores para os vários grupos (cf. Grossi e Di Berardino, 1984, p. 166).

Parece que desde o princípio a vida cenobítica trouxe inquietações ao Impé-rio, pois um grande número de pessoas se tornavam refratárias à sociedade:

Sabemos por testemunhas daquele tem-po que os monges são acusados de ser gente inútil para o Estado ou de difundi-rem seu fanatismo. Mais ainda, o Impe-rador Valente, em 373, ordenou que vol-tassem às cidades os funcionários que se ocultavam entre os monges. E no ano 377, obrigou todos os monges de Nitria ao serviço militar. Por seu lado, Teodó-sio tentou obrigar todos os monges a cumprirem as suas obrigações sociais, mas fracassou nos seus intentos (CAS-TILLO, 2008, pp. 62-63).

10 A cronologia de Pacômio não é unânime. Seguimos, exceto o indicado, os dados oferecidos por GRIBO-MONT, J. Pacomio, em Dicionário Patrístico de Anti-guidades Cristãs. Petrópolis: Vozes, 1993.

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Esta visão pode também advir do papel assumido pelo movimento ceno-bítico, pois em muitas ocasiões acabou sendo refúgio para os “anacoretas” so-ciais, aqueles que se afastavam da cida-de para se livrar de dívidas ou de penas. Castillo (2008, p. 64) recorda que Pacô-mio, a certa altura, se perguntou:

Não é o cenóbio o refúgio em que en-contram salvação eterna os assassinos, os adúlteros, os magos, os pecadores de todo o gênero? Quem sou eu para expul-sar um irmão deste abrigo? Não mandou o senhor perdoar sem limites? E daí em diante tomou a decisão de corrigir os de-linquentes em vez de os expulsar.

Ao que tudo indica, a ruptura com a sociedade signifi ca também rompi-mento com seu modo de produção e de relações. Por isso, o monge vive sempre do próprio trabalho, não consente em pedir, mendigar, nem depender econo-micamente de ninguém (cf. CASTILLO, 2008, p. 65).

Pacômio deu as coordenadas para a vida monástica que se estruturou no Oriente com Basílio e no Ocidente com Agostinho e Bento11.

6. O MONAQUISMO URBANO

Talvez estejamos, já no século IV, diante de um movimento de reforma – dos tantos que a vida monástica construi-rá e aqui não temos tempo de analisar. Foi Basílio de Cesareia quem trouxe o mosteiro para a cidade, lugar, segundo

ele, onde os cristãos poderiam ser mais úteis que no isolamento solitário do de-serto.

A inovação fundamental da Regra Basiliana está no fato de reconhecer que o homem é um “ser comunitário” e não um indivíduo solitário. Por isso, Basílio afi rma e insiste que quem procura Deus de verdade não deve levar uma vida so-litária, pois essa vida não tem outro fi m que não seja buscar cada um a sua pró-pria utilidade. Isto é, quem vive sozinho, na realidade, procura é o seu próprio pro-veito e o seu próprio interesse (cf. CAS-TILLO, 2008, p. 42).

Basílio propõe o quadro da vida da comunidade de Jerusalém (At 2; 4) como ideal do mosteiro, colocando o acento na obediência, no dever de renunciar a própria vontade, no abandono confi ante nas mãos do superior (cf. DANIELOU, 1966, p. 285).

A referência à comunidade apostóli-ca, especialmente retratada nos Atos dos Apóstolos, como forma de vida, supunha uma forte decisão pessoal de seguimen-to (deixar tudo, abandonar tudo, vender tudo, conformar-se a Cristo) e uma expe-riência forte de vida comunitária. Tanto uma quanto outra haviam-se perdido, na comunidade cristã, especialmente depois da virada constantiniana (313) e da ofi -cialização do cristianismo como religião do Império (380).

Por isso, Basílio não concebe a vida do monge diferente daquela de toda a comunidade cristã. Queria que em seus mosteiros houvesse escola e hospedaria. Em sua regra fala expressamente do de-

11 Pela infl uência que a vida e a Regra de Bento exerce-ram no Ocidente, dedicar-lhe-emos um estudo particular a ser publicado em breve.

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ver da hospitalidade e dá orientações so-bre o edifício, sua localização, os modos de acolher, as pessoas encarregadas para o serviço e o rito a seguir (Cf. FALESIE-DI, 1995, p. 78). Inicia-se a prática das hospedarias, enfermarias, distribuição de alimentos, pois é na cidade que se encon-tram os pobres.

7. À GUISA DE CONCLUSÃO

O que se percebe, até este ponto da história, é que os cristãos e cristãs que empreenderam o rumo do deserto ou da vida monástica na cidade, fi zeram-no por um desejo de ruptura com a Igreja e com a sociedade. Apareceram como movimento de protesto. Tornaram-se, no início, ícone do seguimento radical de Jesus, conforme proposta transmitida pelos evangelhos. Ou, como afi rma Da-nielou (1966, p. 386):

Em meio a uma sociedade cristã, ou que se pretende cristã, mas que é ou se sen-te ameaçada pelo espírito do mundo ou pela tibieza, o monge lá está para repre-sentar o ideal mesmo do evangelho em todo o seu rigor e a recusa a todo com-promisso, o chamamento à perfeição, à estrada estreita, à loucura da cruz; mas

este ideal é também plenitude de vida espiritual, entusiasmo, efusão do Espí-rito.

Desse modo, a vida monástica apa-rece na Igreja como um movimento mar-cado pela marginalidade e pela utopia. De um lado, é um movimento espontâ-neo, livre, desorganizado, à margem da sociedade e da Igreja. Por outro lado, torna-se modelo contrastante com o exis-tente, tanto do ponto de vista eclesial, quanto social.

Outro aspecto que convém eviden-ciar é que tanto o ascetismo dos primei-ros séculos, quanto o monaquismo que se desenvolveu posteriormente, têm ambos caráter fundamentalmente leigo e não sacerdotal (cf. Grossi e Di Berardi-no, 1984, p. 160).

É importante não esquecer que essa experiência profética foi empreendida por homens e mulheres. Para elas, tan-to a vida solitária (mesmo que, às vezes, por segurança tivessem que se disfarçar de homens) quanto a organização das co-munidades foram modos de garantir - e no caso da comunidade cristã de recupe-rar - a liberdade, a autonomia e o prota-gonismo que lhes era negados pela so-ciedade patriarcal e pela igreja imperial.

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BIBLIOGRAFIA

CASTILLO, José M.O futuro da Vida Religiosa: das origens à crise atual. Lis-boa: Paulus, 2008.DANIELOU, Jean e MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a são Gregório Magno. Petrópolis: Vo-zes, 1966.FALESIEDI, Ugo. Le Diaconise: i ser-vizi assistenziali nella chiesa antica. Roma: Augustinianum, 1995.GROSSI, Vitorino e DI BERARDINO, Angelo. La chiesa antica: eclesiologia e istituzioni. Roma: Borla, 1984.GUY, J.C. Apophtegmes des Pères: in-troduction. Paris: Cerf, 1993. Col. Sour-ces Chrétiennes 387.

LIBANIO, João Batista. Vida Religiosa: sempre a renascer. São Paulo: Paulinas, 1995.MONDONI, Danilo. História da Igre-ja na Antiguidade. São Paulo: Loyola, 2001.SALISBURY, Joyce. Pais da Igreja: vir-gens independentes. São Paulo: Scritta, 1995.SWAN, Laura. Le Madri del Deserto: detti, vite e storie di donne del cristia-nesimo dele origini. Milano: Gribaudi, 2005.

Endereço:[email protected]

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A ESPIRITUALIDADE BENEDITINA1

Ir. Roberta Peluso, osbMosteiro da Santíssima Trindade

Santa Cruz do Sul – RS

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Resumo: Descreve a espiritualidade beneditina reportando-se às origens da Ordem e à Regra de São Bento, sua referência específi ca. Mostra uma espiritualidade que permeia a oração, o trabalho, o acolhimento dos hóspedes e a vida comunitária, dando um acento espe-cial à paternidade ou maternidade espiritual; não falta uma referência à dimensão ecológica.

Palavras-chaves: Espiritualidade beneditina, monge/monja, abade/abadessa, paternida-de/ maternidade espiritual, salmodia, liturgia das horas.

1. ATRAÇÃO PARA O ABSOLU-TO E PARA O ETERNO

É inerente ao ser humano a busca

pelo Transcendente. Nas mais diversas culturas e religiões podemos encontrar pessoas que se entregam à busca de um contato mais profundo com a Divindade. Usualmente chamamos essas pessoas de monges ou monjas. Nosso imaginário se desloca para os monges budistas do Oriente ou os yogues da Índia, embora dentro de nossa riquíssima tradição cristã a presença dos monges e monjas sempre tenha sido fundamental para a busca da identidade e do estilo de vida cristãos. A vida monástica cristã, que em sua moda-

lidade ocidental tem como principal re-presentante a espiritualidade beneditina, possui como característica principal a atração para o Absoluto e para o Eterno.

O cerne da espiritualidade benediti-na está na Regra de São Bento, escrita por volta do ano 530. É um documento de cerca de 1500 anos de vida, pois des-de que foi escrita, ela foi praticada e vi-vida pelos fi lhos e fi lhas de São Bento ao longo dos séculos. A Regra de São Bento inicia com uma catequese batismal, que se encontra no Prólogo. Ela ressalta o processo de purifi cação interior como um caminho pascal, uma vez que toda a disciplina e ascese monásticas devem le-var à união do monge e da monja com o

1 Palestra proferida no Simpósio de Espiritualidade Franciscana sobre Espiritualidades Cristãs: riquezas e complementariedade, realizado na ESTEF, de 28 de se-tembro a 01 de outubro de 2010.

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Cristo Ressuscitado. Eis porque a Páscoa está no coração da experiência monásti-ca beneditina de Deus.

A estrutura fundamental de um mos-teiro beneditino gira em torno do Abade (comunidades masculinas) ou Abadessa (comunidades femininas) e da comuni-dade (RB 1-3), bem como do objetivo da vida monástica: a busca de Deus por meio das boas obras (RB4). São Bento representa a dinâmica da espiritualidade beneditina com uma escada, que sempre é usada na tradição cristã como um sím-bolo de ligação entre a terra ao céu (RB 7,5-9). Este caminho se faz pela obedi-ência, pelo silêncio e pela humildade, virtudes fundamentais para o monge e a monja.

Alguém pode se perguntar como um documento tão antigo qual a Regra de São Bento pode estar em uso em nos-sos dias? Será que os beneditinos são anacrônicos? O segredo da vitalidade da Regra de São Bento está no fato de ela estar baseada na Sagrada Escritura, em especial nos Evangelhos, e de também propor um estilo de vida para quem quer seguir o Evangelho de uma maneira mais intensa. Além disso, São Bento conside-ra o ser humano em sua totalidade, a pró-pria palavra monge vem de monos que signifi ca um, daí que monge é aquele que é unifi cado para ser um só com Deus. Uma outra característica está no fato de a Regra ser uma obra aberta, o que permitiu sua adaptação ao longo destes 1500 anos. Pode-se falar de uma adap-tação histórica, geográfi ca, antropológi-ca e cultural da Regra de São Bento, e

como consequência, do estilo de vida be-neditino. Este último elemento traz uma dinâmica de transformação da espiritua-lidade beneditina, de modo que ela pode se adaptar às necessidades espirituais do ser humano de todas as épocas. Entre-tanto, essa dinâmica de adaptação pede que se saiba distinguir o que é essencial do que é secundário, bem como o que é fundamental do que transitório, para que não se perca a identidade própria da espi-ritualidade e sua efi cácia. Isto exige uma sabedoria evangélica muito profunda!

2. VIDA BENEDITINA A espiritualidade beneditina pode

ser compreendida pela busca plena de Deus. Esta busca é feita por meio da oração, do trabalho, do acolhimento dos hóspedes e do próximo, da vida comu-nitária e da paternidade ou maternidade espiritual.

Contudo, São Bento ensina um modo de pensar e agir no qual a experi-ência de Deus é transferida para a prática da existência: é no cotidiano que a vida monástica se desenvolve. O monge e a monja beneditinos têm os pés no chão, e sabem que a qualidade da oração está vinculada à qualidade da relação do monge consigo mesmo e com o próxi-mo. Nesta perspectiva, São Bento defi ne o mosteiro beneditino como uma “esco-la de serviço do Senhor” (RB Prol. 45), pois ali o monge e a monja aprendem a ouvir a Deus e a pôr em prática a sua Palavra. Neste sentido, a vida monástica beneditina, por ser uma escola de escuta

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e de prática da Palavra de Deus, une-se à proposta da V Conferência de Aparecida de “ser discípulo e missionário” de Cris-to na América Latina e no Caribe.

Outro aspecto da vida beneditina foi ressaltado pelo Papa Paulo VI, quando desejava que “o mosteiro fosse sempre frequentado como casa de paz e de ora-ção onde os homens se encontrem a si mesmos e Deus dentro deles”. O mon-ge e a monja só podem encontrar a Deus dentro deles se fi zerem, iluminados pela Escritura, um laborioso trabalho interior de autoconhecimento, pois o conheci-mento de Deus passa pelo conhecimento de si mesmo. Santo Agostinho já dizia que queria conhecer a si mesmo assim como era conhecido por Deus. Ora, este conhecimento de Deus e de si mesmo se dá por meio da Palavra de Deus, que oferece em Jesus Cristo seu modelo mais sublime.

3. ESPIRITUALIDADE CRISTO-CÊNTRICA O lema da Assembleia Nacional da

CRB de 2010 foi “De olhos fi xos em Je-sus” (Hb 12,2). Fixar o olhar em Jesus é a proposta para todas as comunidades religiosas de nosso país. E os beneditinos são convidados a fi xar os olhos em Jesus por toda a sua vida. São Bento ensina aos seus fi lhos e fi lhas, desde o começo, que o caminho da vida beneditina se percorre amando a Cristo sem restrição.

Neste sentido, Jesus Cristo é o cen-tro vital para o qual tudo converge no

mosteiro. Todos os que estão no mostei-ro: o irmão e a irmã, o hóspede, o abade e a abadessa, o pobre, o doente, o próximo signifi cam a presença viva de Cristo. São Bento pede na Regra: “Nada antepor ao amor de Cristo” (RB 4,21). Os monges e monjas beneditinos encontram sua inspi-ração no Cristo da vida oculta de Nazaré, no Cristo orante e no Mistério Pascal de Cristo (Paixão, Morte e Ressurreição). Estar com o olhar fi xo em Jesus também leva à estabilidade espiritual na qual o coração do monge ‘pousa’ no Senhor: Cristo é seu deleite e sua alegria!

4. VIDA DE ORAÇÃO

Esse amor profundo pelo Cristo se manifesta na vida de oração, que é o eixo em torno do qual gira o mosteiro. Cristo pode ser encontrado no pobre, no próxi-mo, no doente, no hóspede, no irmão e na irmã, mas é na ação litúrgica que Ele se manifesta em sua plenitude: pela Li-turgia vamos ao Cristo; e pela Liturgia Cristo vem a nós. A ação litúrgica é o pólo em torno do qual se organiza inte-riormente a busca de Deus, pois ao lon-go do Ano Litúrgico vive-se o Cristo em seus mistérios. Deste modo os benediti-nos e as beneditinas adquirem uma visão litúrgica da vida e do mundo e, por meio dela, realizam a unidade de toda a sua vida espiritual. A Eucaristia, por sua vez, é o centro da vida litúrgica do mosteiro.

A oração feita no mosteiro pode ser comunitária, que se dá na celebração comunitária da Liturgia das Horas (RB 8-18). Como a oração é a maior obra do monge e da monja, São Bento lhes

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pede: “Nada antepor ao Ofi cio Divino” (RB 4,55; 43,3). A oração pode ser tam-bém pessoal (RB 19-20), especialmente a Leitura Orante, que é uma leitura me-ditada e saboreada da Palavra de Deus. Essa oração pessoal é feita na pureza de coração e na compunção das lágrimas (RB 20,3). Para tanto é preciso apren-der a escutar, a ouvir o que Deus quer nos dizer. “Escuta” é a primeira palavra que São Bento escolheu para iniciar sua Regra. E ele quer também que o mon-ge e a monja estejam inteiros, atentos, concentrados quando estão rezando, por isso ele escreveu uma frase que se tornou uma espécie de slogan para quem quer saborear a oração: “Que na salmodia, nossa mente concorde com a nossa voz” (RB19,7).

5. HARMONIA ENTRE TRABA-LHO E ORAÇÃO

Com razão a expressão ora et labo-ra é atribuída aos beneditinos, embora ela não apareça na Regra de São Bento. O dia no mosteiro é dividido entre traba-lho e oração. O trabalho pode ser tanto manual quanto intelectual, e precisa ter a característica de ser compatível com a vida de oração. Ele também tem como objetivo o sustento da comunidade mo-nástica e supre as necessidades do mos-teiro. Como não visa o lucro, a ambição e a competitividade não servem de pa-râmetro. Na espiritualidade beneditina, o trabalho está em função da oração. Ele é o meio pelo qual o monge e a monja se reconhecem cooperadores de Deus na

obra da Criação e na realização do Reino de Deus. É por meio do equilíbrio entre oração e trabalho que a ação humana se torna contemplativa e a contemplação adquire valor dinâmico.

Outro aspecto do trabalho benediti-no se encontra em serem os monges e as monjas amigos dos livros. Diz-se entre os beneditinos que os fi lhos de São Bento cristianizaram a Europa com a cruz, com o livro e com o arado. São, na verdade, as três principais frentes de trabalho: a evangelização, a instrução e a agricultu-ra ou auto-sustento. Sempre os mosteiros beneditinos foram centros de cultura e de preservação dos valores cristãos. A arte feita nos mosteiros visa a evangelização e a beleza, como meio para se chegar a Deus. Se há artistas no mosteiro, orien-ta São Bento, “que executem suas artes com toda a humildade, para que em tudo seja Deus glorifi cado” (RB 57,1.9).

6. PATERNIDADE OU MATER-NIDADE ESPIRITUAL

O Papa João Paulo II dizia que “nos-

sa sociedade é uma sociedade sem pais”. Ele próprio se tornou uma referência pa-terna para a juventude do mundo inteiro, por isso é tão amado por ela. A paterni-dade ou maternidade espiritual é fecun-da e geradora de vida. Quando se coloca em segundo plano esta dimensão da vida espiritual, certamente ela se torna estéril e não dá frutos. São Paulo escreveu aos tessalonicenses: “Bem sabeis que exor-tamos a cada um de vós como um pai a seus fi lhos” (1Ts 2,12). E em outra pas-

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sagem aos coríntios: “Ainda que tivés-seis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, pois fui eu quem pelo Evangelho vos gerou em Cristo Jesus” (1Cor 4,15). Este ‘gerar em Cristo Jesus’ é a chave de compreensão da paternida-de ou maternidade espiritual, tão cara à espiritualidade monástica desde os seus primórdios. Bebendo na fonte dos anti-gos monges, São Bento chama aquele que chega ao mosteiro de ‘fi lho’: “Escu-ta, fi lho, os preceitos do mestre e inclina o ouvido do teu coração” (RB Prol,1). Com a abertura do coração para um pai espiritual, o monge começa a ser gerado em Cristo, por meio do Evangelho, pois é a Palavra de Deus que ilumina a dire-ção espiritual entre o abade e o monge, entre a monja e sua abadessa.

O abade ou a abadessa exercem a sua autoridade no mosteiro com doçura e fi rmeza, considerando a dimensão espi-ritual de cada um, que deve ser preferida ao que é transitório e terreno. Os monges e monjas, por sua vez, dedicam uma obe-diência/audição própria de fi lhos e fi lhas. O amor fi lial e paternal nesta relação de obediência é fundamental, pois a obedi-ência é uma questão de amor: pede que se esteja pronto a colocar a própria vida nas mãos de Deus.

O abade e a abadessa também fa-zem no mosteiro o papel de pastor. Eles exercem um pastoreio espiritual e devem “empregar extraordinária solicitude e empenhar-se com toda a sagacidade e in-dústria, para que não se perca nenhuma das ovelhas a si confi adas” (RB 27,5). Para tanto, aconselha São Bento que “o

abade procure ser mais amado que te-mido” (RB64,15), que se lembre de sua própria fragilidade; que se adapte aos di-versos temperamentos, enfi m, que “saiba mais servir que presidir” (RB 64,8).

Assim, a maternidade e a paterni-dade espiritual, o “gerar em Cristo” cria o vínculo entre os irmãos e as irmãs no mosteiro, dando à comunidade monás-tica beneditina um caráter de família espiritual. O beneditino e a beneditina deixam sua família natural, para então formar em seu mosteiro uma família es-piritual fecunda e geradora de vida.

7. DIMENSÃO ECOLÓGICA

Certamente, São Bento não tinha a consciência planetária que temos hoje. Não conhecia televisão e internet. Os meios de transporte mais velozes de seu tempo eram os cavalos, e a época das caravelas ainda estava por vir. Mas São Gregório Magno, em seu II Livro dos Diálogos, conhecido como “Vida e Mi-lagres de São Bento”, relata que, certa noite, enquanto seus monges dormiam, São Bento teve uma visão: “estando à ja-nela em prece a Deus onipotente, de sú-bito, na calada da noite, São Bento olhou para cima e viu uma luz que se projetava do alto e dissipava a escuridão da noi-te, brilhando com tanto esplendor que, apesar de raiar nas trevas, superava o dia em claridade. Mas, a esta visão seguiu-se uma coisa admirável, pois como depois ele mesmo contou, também o mundo in-teiro lhe apareceu ante os olhos, como que concentrado num só raio de sol”.

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São Gregório Magno explica assim este ‘rapto místico’ de São Bento: “Para a alma que vê o Criador, é pequena toda a criatura. Quando digo, porém, que o mundo todo foi concentrado diante de seus olhos, não estou querendo dizer que o céu e a terra tenham sido reduzidos, mas sim que a alma do vidente é que foi dilatada, e, arrebatada em Deus, pôde ver sem difi culdade tudo o que está abaixo de Deus. Portanto, àquela luz exterior que brilhou ante os olhos, corresponde uma luz interior que brilhou dentro da alma”. São Bento nos mostra por onde precisa caminhar a espiritualidade ecológica: em ver o mundo com os olhos de Deus. Caso contrário, cria-se apenas um novo discurso teológico para antigos proble-mas da humanidade. Adquirir o olhar de Deus sobre a Criação, sobre a vida, sobre si mesmo e sobre o outro pode nos levar a encontrar as soluções que precisamos para nosso dias.

Também as coisas são sinais do amor de Deus para com suas criaturas. Em nossa sociedade do descartável, par-te o coração do monge beneditino o ‘jo-gar fora’, o ‘usar pela metade’ que leva ao desperdício, mal tão típico de nossa sociedade de consumo, e é fonte de de-sigualdades sociais e econômicas. Uma frase que bem exprime esta consciência ecológica da espiritualidade beneditina se pode encontrar no cap. 31 da Regra: “Que todos os utensílios do mosteiro se-jam considerados como vasos sagrados do altar”.

Sabe-se que o problema da fome no mundo é mais uma questão de distribui-ção do que de falta de alimentos. A nova dimensão ecológica da teologia cristã se preocupa com este aspecto também. So-bre a solução das desigualdades sociais por meio da partilha podemos encontrar inúmeros exemplos nos Pais da Igreja, em especial São Basílio Magno e San-to Agostinho, bem como no Novo e no Antigo Testamento. Neste ponto pode-se lembrar novamente a Regra, quando São Bento, citando os Atos dos Apóstolos, lembra: “Repartia-se para cada um con-forme lhe era necessário” (RB 34,1).

O caminho da espiritualidade be-neditina é, portanto, uma proposta para ver a Criação com os olhos do Criador. Quem quer seguir os passos de São Ben-to é convidado a ter reverência com a na-tureza, a contemplar sua beleza e a res-peitar sua verdade. Não foi isto o que fez nosso querido São Francisco, patrono da Ecologia? Que os santos fundadores de nossas ricas espiritualidades cristãs nos mostrem o bom caminho para a vida e, do céu, intercedam por todos nós!

Paz e Bem!

Endereço da Autora:

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ESPIRITUALIDADE CISTERCIENSE1

Pe. Bernardo Maria, cistercienseMosteiro Nossa Senhora de Nazaré

Rio Pardo - RS

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Resumo: Depois de breve referência às origens da Reforma cisterciense (Cister, Fran-ça), derivada da Ordem beneditina, descreve sua espiritualidade e os autores que a notabiliza-ram, entre eles São Bernardo de Claraval e Guilherme de Saint-Thierry. Distribui os escritos dos autores cistercienses entre literatura ascético-mística, literatura teológica e literatura ho-milética. O texto conclui com uma síntese da espiritualidade cisterciense primitiva.

Palavras-chaves: Cister, cisterciense, ordem beneditina, abadia, abade, regra, encarna-ção.

INTRODUÇÃO Nos inícios de 1098, vinte e um

monges apresentaram-se para seguir o abade Roberto de Molesme até uma propriedade doada para a construção de um Novo Mosteiro, na região francesa da Borgonha. O lugar onde se iniciou a construção do mosteiro já possuía nome: Cîteaux (em latim: Cistercium). Retor-nar à verdadeira pobreza evangélica, ao trabalho manual, e ao mais autêntico es-pírito da Regra de São Bento (que rege a vida dos monges)! A abadia de Cister foi fundada para tal fi m. Os fundadores, saídos da abadia beneditina de Molesme, incialmente não pensavam em fundar

uma nova Ordem monástica, mas em recuperar-se das faltas contra a pobreza, rejeitando a aceitação de títulos e de ou-tros benefícios eclesiásticos, e restabele-cendo o tão desejado equilíbrio entre a vida litúrgica e o trabalho.

Apesar do ideal de retirar-se do mun-do, os monges cistercienses tornaram-se parte importante da sociedade e se inte-ressaram pelos problemas relativos a ela. Os costumes primitivos dos cistercienses foram repetidamente adaptados às reali-dades de um mundo em contínua evolu-ção; os monges permaneceram, contudo, fi rmes e fi éis no interior dos princípios originais.

A espiritualidade cisterciense en-contra na Regra de São Bento o essencial

1 Palestra proferida no Simpósio de Espiritualidade Franciscana, sobre o tema Espiritualidades cristãs, reali-zado na Estef, de 28 setembro a 01 de outubro de 2010.

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de suas características, mas há algumas particularidades: olhar atento sobre a hu-manidade de Cristo; devoção especial à Virgem Maria; simplicidade manifestada pelo despojamento na liturgia, no canto e na arquitetura; um lugar especial para o trabalho manual.

1. UMA ESPIRITUALIDADE DA ENCARNAÇÃO

Quando nos dedicamos a refl etir sobre a vida espiritual, e aqui particu-larmente sobre a vida espiritual cristã, somos surpreendidos por situações apa-rentemente contraditórias, nem sempre muito perceptíveis aos principiantes, seguidamente mais aplicados à prática de exercícios espirituais do que à refl e-xão sobre o seu signifi cado e origem. À primeira vista, parece contraditório nos propormos viver uma vida no espírito estando em um corpo material e mortal. Ocorre, porém, que essa contradição não é absoluta. A carne tem sim aspirações contrárias ao espírito, e o espírito tem sim aspirações contrárias à carne, opon-do-se eles reciprocamente, de maneira que não fazemos o que queremos (Cf. Gl 5,17), mas opor espiritual e material, considerar o material – incluído o corpó-reo – como “oposto” e não “com”, e não “unido”, no sentido profundo de uma unidade que nos é indicada pela antropo-logia bíblica, resulta em uma espirituali-dade desumana e não cristã2.

É verdade que o homem sente em si uma profunda divisão, sente que nele existem diversas aspirações e tendências, boas e más, “espirituais” e “carnais”, que lutam para conquistá-lo3. Não se trata, porém, da luta, ou da oposição entre as partes do homem, mas sim de uma luta do próprio ser humano, enquanto pre-tende apoiar-se nas suas possibilidades, opondo-se àquelas de Deus4. Aqueles que vivem segundo a carne, procuram tudo o que agrada à carne. Aqueles que vivem segundo o Espírito, tendem às coisas do Espírito. Daí que o homem car-nal, o homem no qual não habita o Espí-rito, é inimigo de Deus, na medida em que as tendências da carne são hostis a Deus. A espiritualidade cristã, portanto, requer uma vida segundo o Espírito, em luta com as forças da carne, e por isso a vida espiritual do cristão traz em si um germe de atividade e de dinamicidade, sem que, voltamos a repetir, as partes do homem disputem entre si como entida-des autônomas, posto que “o espírito e a matéria no homem não são duas nature-zas unidas, mas a união deles forma uma única natureza”5: em nosso “culto espi-ritual” (Rm 12,1), enquanto o espírito se eleva pela santidade e pela oração que constituem uma oferenda sacrifi cal, o corpo daquele que serve ao Senhor e aos irmãos converte-se em templo e em altar dessa oferenda viva, santa e agradável a

3 Cf. AUGÉ, Matias. Ritorno alle Origini. Lineamentei di spiritualità dell’antico monachesimo. Roma: Editrice Rogate, 1984, p. 18-19.4 Id., p. 19.5 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 365.

2 Cf. G. GRASSO. Liturgia e spiritualità. Rifl essione te-ológica. AA. VV. Liturgia e spiritualità. Torino: Marietti Edit., 1981, p. 26, in: AUGÉ, Matias. Ritorno alle Origi-ni. Lineamentei di spiritualità dell’antico monachesimo. Roma: Editrice Rogate, 1984, p. 11-12.

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Deus6. Para sermos profundamente es-pirituais, é indispensável, portanto, que sejamos profundamente humanos, por-que o homem não é apenas um espírito desencarnado. Daí podermos então falar de uma “espiritualidade da encarnação”, o que implica discorrer sobre um dos mistérios centrais da vida cristã, e que al-gumas vezes se tornou critério de carac-terização da verdadeira fé cristã: “todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus” (1Jo 4,2).

Com relação a esse tema, importan-tes instrumentos da espiritualidade du-rante a Idade Média foram os sermões, entre os quais os de São Bernardo de Claraval, Abade cisterciense, que ex-pressam uma doutrina própria sobre a humanidade de Cristo. Para Bernardo:

Cristo é a Forma do homem: assim o é pela sua natureza divina e assim se faz pelo homem no mistério da encarnação e em todos os seus mistérios. O pecado deformou o homem, mas o Verbo assu-miu, por condescendência, uma forma humana, uma deformação. Imitando a humanidade do Verbo, na acessibilidade dos seus mistérios, e pela sua efi cácia, o homem se conforma a ele, se reforma, passando da deformação à reassunção da forma original, até a defi nitiva trans-formação. Um processo de con-forma-ção, que está unido a um processo de es-tética, de beleza cristã. O tema da beleza cristã não é periférico, mas intrínseco à teologia de Bernardo. Converter-se é embelezar-se, é receber o esplendor da

7 Tradução nossa. “Cristo è la Forma dell’uomo: lo è per la sua natura divina e lo diviene per l’uomo nel mistero dell’incarnazione, e in tutti i suoi misteri. Il peccato ha deformato l’uomo: il Verbo ha assunto una forma uma-na, una deformazione, per condiscendenza. Imitando l’umanità del Verbo, nell’accessibilità dei suoi misteri, e per la loro effi cacia, l’uomo si conforma a lui, si rifor-ma, passando dalla deformazione alla riassunzione della forma originale, fi no alla defi nitiva trasformazione. Um processo di con-formazione, che è insieme un processo di estética, di bellezza cristiana. Il tema della bellezza non è periferico, ma intrinseco alla teologia di Bernar-do. Convertirsi è abbellirsi, è ricevere lo splendore della gloria del Padre. Estetica e teologia a questo livello” (BIFFI, Inos. Cristo desiderio del Monaco. La costru-zione della Teologia. Biblioteca di Cultura Medievale. Milano: Jaca Book, 1998, p. 107).8 Tradução nossa. “Esta falta de sabiduría de la mujer ex-cluyó el sabor del bien, porque la malicia de la serpiente envolviò la insipiencia de la mujer. Pero allí donde la malicia creyó que había vencido por un momento, allí mismo lamentará por siempre que ha sido vencida. Pues la Sabiduría invadió de nuevo el corazón y el alma de

6 Cf. MARTÍN, Julián López. No Espírito e na Verda-de. Introdução Teológica à Liturgia. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 311, v. I.

glória do Pai. Estética e teologia em um nível7.

A vida, a espiritualidade cristã, é a experiência dessa con-versão, dessa his-tória ou drama, com que os eventos da salvação são interiorizados e revividos. É clara a solidez bíblica e teológica dessa espiritualidade, que fez Bernardo dizer:

A falta de sabedoria da mulher excluiu o sabor do bem, porque a malícia da serpente envolveu a ignorância da mu-lher. Porém, ali onde a malícia acreditou que havia vencido por um momento, ali mesmo lamentará para sempre que tenha sido vencida. Pois a Sabedoria invadiu de novo o coração e a alma da mulher, para que os deformados pela mulher na ignorância sejam reformados pela mulher na sabedoria. Esta [a sabedoria] vence continuamente a malícia nos espí-ritos em que entrou, exterminando, com um agradável sabor, o sabor do mal que ela [a malícia] introduziu .

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la mujer, para que los reformados por la mujer en la in-sipiencia sean reformados por la mujer en la sabiburía. Esta vence continuamente a la malicia en los espíritus que invadió, exterminando con un sabor exquisito el sa-bor del mal que ella introdujo” (SAN BERNARDO DE CLARAVAL. Serm. 85 – Sobre el Cantar de los Canta-res, 8. Obras Completas de San Bernardo. Madrid: Bi-blioteca de Autores Cristianos [B.A.C.], 1987, p. 1053, v. V)9 Cf. LE BAIL, Anselm; MIKKERS, Edmundus; et al. Spiritualité Cistercienne: Histoire et Doctrine. Paris: Beauchesne, 1998, p. 433. Bibliothèque de Spiritualité n. 15.10 Id. p. 433.11 Id. p. 433.

2. PRIMEIROS AUTORES

A vida e a vocação cistercienses no curso dos tempos deixaram traços nos escritos espirituais e teológicos que a Ordem produziu tanto nos períodos de fervor e renovação, quanto nos de re-cessão ou decadência9 pois a produção literária cisterciense nunca se interrom-peu totalmente ao longo dos séculos. A espiritualidade é a expressão, por meios diversos, da vida espiritual da Ordem tal qual ela foi ensinada e posta em prática nos mosteiros, desde as origens até os nossos tempos10. Ela não é necessaria-mente um bloco doutrinal bem defi nido, nem estável, mas, antes de tudo, uma re-alidade dinâmica que deve se adaptar à vida de uma época, à vida da Igreja, e àquela de cada povo. Em uma palavra: deve integrar os elementos novos sem trair a inspiração própria e autêntica das origens11. Assim orientada, a espirituali-dade cisterciense está em harmonia com a exortação do documento Perfectae Ca-ritatis: “Sejam, pois, fi elmente conheci-dos e observados o espírito e as inten-ções específi cas dos Fundadores, como

também as sãs tradições” (PC 2).

O elemento principal, poderíamos assim dizer, no qual se exprime a espiritualida-de da Ordem Cisterciense, ou sua vida espiritual, é justamente a literatura espi-ritual e teológica que a mesma Ordem produziu no curso dos [mais de] nove séculos de sua existência. Isso parece de tal forma verdadeiro que a história da sua literatura coincide em grande parte com aquela da sua espiritualidade12.

Nos textos dos autores cistercienses é possível distinguir diferentes gêneros literários, cada um ligado de formas di-ferentes à espiritualidade propriamen-te dita, alimento interior dos monges e monjas da Ordem. Os gêneros mais abundantes são os da ascética e mística, da teologia e da homilética.

A literatura ascética e mística com-preende os escritos que tratam explicita-mente da vida espiritual, mais concen-trada na teoria do que na prática, e mais frequente nos inícios de Cister13.

Nossa Ordem é uma cidade bem for-tifi cada e cercada por todas as partes com boas observâncias, que são como muralhas e torres para que não nos en-gane nosso inimigo nem nos separe do exército de nosso Imperador. Que muro é a pobreza! Como nos defende contra a soberba do mundo, contra a vaidade e contra o mau e condenável luxo! Que torre o silêncio, que resiste aos assaltos das disputas, das rixas, das desavenças e

12 Tradução nossa. “L’élément principal, nous venons de le dire, dans lequel s’exprime la spiritualité de l’ordre ou sa vie spirituelle, est bien la littérature spirituelle et théologique, que l’ordre a produite au cours des neuf siècles de son existence. Cela semble tellement vrai que l’histoire de sa littérature coïncide en grande partie avec celle de sa spiritualité” (Id., p. 433-434).13 Id., p. 434

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da detração! E o que dizer da obediên-cia, da humildade e da rusticidade das vestes? O que dizer da frugalidade dos alimentos? São muros, são torres contra os vícios, contra os assaltos de nossos inimigos14.

A literatura teológica propriamente dita é frequentemente, nas épocas pos-teriores, a expressão da vida espiritual e intelectual da Ordem. Por vezes ela ex-prime uma vida autenticamente monás-tica, e por outras ela é testemunho das atividades exercidas ou assumidas pela Ordem15.

Quem será capaz de vigiar e observar com diligência seus estímulos internos, que nele [no coração] se agitam ou nele nascem, de modo que em cada sentimen-to ilícito de seu coração possa discernir claramente entre a paixão de seu espírito e a mordedura da serpente? Eu creio que não o consegue nenhum mortal, a não ser que, iluminado pelo Espírito Santo, receba aquele dom especial que o Após-tolo designa como discernimento dos espíritos, entre os diversos carismas que enumera. Por muito cuidado que empre-

14 Tradução nossa. “Nuestra Orden es una ciudad bien fortifi cada y cercada por todas partes con buenas obser-vancias, que son como murallas y torres para que no nos engañe nuestro enemigo ni nos separe del ejército de nuestro Emperador. ¡Qué muro es la pobreza; cómo nos defi ende contra la soberbia del mundo, contra la vanidad y el lujo malo y condenable! ¡Qué torre el silencio, que resiste los asaltos de las disputas, las riñas, las desaven-cias y la detracción! ¿Y qué decir de la obediência, de la humildad y rusticidad de los vestidos? ¿Qué de la fruga-lidad de los alimentos? Son muros, son torres contra los vicios, contra los asaltos de nuestros enemigos” (ELRE-DO DE RIEVAL. Sermón 3 – en la Natividad del Señor, 7. Sermones Litúrgicos: primera colección de Claraval. Burgos: Monte Carmelo, 2008, p. 57-58. Biblioteca Cis-terciense, v. 24, Tomo I).15 LE BAIL, Anselm; MIKKERS, Edmundus; op. cit., p. 433

gue em guardar seu coração, como diz Salomão, e em examinar com vigilantís-sima tensão todos os seus movimentos interiores, ainda que se tenha exercitado nisso talvez durante muito tempo e que tenha muita experiência, será incapaz de diagnosticar seu interior e discernir em si o mal congênito do mal semeado. Por-que, quem pode perceber suas faltas? Tampouco nos interessa em demasia saber de onde procede o mal que existe em nós, desde que saibamos que existe. Velemos e oremos, contudo, para não consentir nele, venha de onde venha. Contra essas duas maldades, suplica o Profeta, dizendo: “Absolve-me do que para mim está oculto, e preserva o teu servo dos delitos alheios”. Eu não posso dar-vos o que não recebi. E o que não re-cebi, vos confesso, é saber como poderia estabelecer uma distinção segura entre o que gera o coração e o que semeia o ini-migo. O certo é que ambos são maus e procedem do mal, ambos estão no cora-ção, mas não nascem os dois do coração. Tenho a certeza de que tudo isso existe em mim, mas não tenho a mesma certe-za para atribuir uma coisa ao coração e outra ao inimigo. Porém, como já disse, não é isso o perigoso. Existe outra coisa na qual equivocar-se seria não só peri-goso, mas culpável. Por isso, necessita-mos fi xar uma norma segura, para não atribuirmos a nós mesmos o divino que há em nós, crendo que um pensamento nosso é uma visita do Verbo. Porém, como distam entre si o mal e o bem, da mesma forma distam mutuamente estas duas coisas. Nunca procederá o mal do Verbo, nem o bem sairá do coração, a não ser que antes o gere o Verbo16.

A literatura homilética é dupla: uma

16 Tradução nossa. “¿Quién sera capaz de vigilar y obser-ver con diligencia sus estímulos internos, que se agitan en él o nacen de él, de modo que en cada sentimiento

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nos chega através de manuscritos que não foram publicados na Idade Média, e testemunham o ensinamento dos abades às suas comunidades. A literatura homi-lética posterior, impressa, oferece um en-sinamento do mesmo gênero ou aquele que os cistercienses prodigalizaram aos fi éis confi ados aos seus cuidados no mi-nistério paroquial17.

Não queremos, ó irmãos, que ignoreis de todo a norma da vossa existência e o valor do vosso gênero de vida. Muitos, de fato, curiosos pela vida dos outros, e tranquilos quanto à própria morte, quando encontram irmãos mais simples agridem-nos com pequenas perguntas presunçosas e, assumindo a voz com a qual a serpente falou à nossa primeira mãe, dizem: ‘Por que vos foi imposto trabalhar tanto, fazer tanta abstinência,

ilícito de su corazón pueda discernir claramente entre la pasión de su espíritu y la morderura de la serpien-te? Yo creo que no lo consigue ningún mortal, a no ser que iluminado por el Espíritu Santo, reciba aquel don especial que el Apóstol designa como discernimiento de espíritus entre los diversos carismas que enumera (Cf. 1Cor 12,10). Por mucho cuidado que ponga en guardar su corazón (Cf. Pr 4,23), como dice Salomón, y en exa-minar con vigilantísima tensión todos sus movimientos interiores, aunque se haya ejercitado en ello quizá du-rante mucho tiempo y tenga mucha experiencia, será incapaz de diagnosticar su interior o discernir entre sí el mal congénito y el mal sembrado. Porque ¿quien conoce sus faltas? (Sl 18,13). Tampoco nos interesa demasiado saber de donde procede el mal que existe en nosotros, mientras sepamos que existe. Velemos y oremos, en cambio, para no consentir en él, venga de donde venga. Contra estas dos maldades suplica el Profeta diciendo: Absuélveme de lo que se me oculta y preserva a tu sier-vo de los delitos ajenos (Sl 18,13). Yo no puedo daros lo que no he recibido. Y lo que no he recibido, os lo con-fi eso, es saber cómo podría estabelecer una distinción segura entre lo que engendra el corazón y lo que siembra el enemigo. Lo cierto es que ambos son malos y proce-den del malo, ambos están en el corazón, pero no nacen los dos del corazón. Tengo la certeza de que todo esto

existe en mí, pero no tengo la misma certeza para atri-buir una cosa al corazón y outra al enemigo. Pero como ya he dicho, no es estol o peligroso. Existe otra cosa en la que equivocarse no solo sería peligroso, sino incluso culpable. Por eso necesitamos concretar una norma se-gura, para no atribuirnos a nosotros lo divino que hay en nosotros, creyendo que un pensamiento nuestro es una visita del Verbo. Pero como distan entre sí el mal y el bien, igual distan mutuamente estas dos cosas. Nunca procederá el mal del Verbo, ni el bien saldrá del corazón a no ser que antes lo engendre el Verbo” (SAN BER-NARDO DE CLARAVAL. Serm. 32 – Sobre el Cantar de los Cantares, 6-7. op. cit., p. 471-473, v. V).17 Cf. LE BAIL, Anselm; MIKKERS, Edmundus; op. cit., p. 433.18 Tradução nossa. “Non vogliamo, o fratelli, che igno-riate del tutto la norma della vostra esistenza e il valo-re del vostro genere di vita. Molti infatti, curiosi della vita degli altri e tranquili sulla propria morte, quando incontrano fratelli più semplici li sfi ancano con piccole domande fatue e, assumendo la voce con cui il serpente parlò alla nostra prima madre, dicono: ‘Perché vi è stato ingiunto di lavorare tanto, fare tanta astinenza, obbedire a degli uomini, mantenere il silenzio con gli altri, riu-nirvi a parte in piccole comunità, disprezzare in questo

obedecer aos homens, manter o silêncio para com os outros, reunir-vos à parte em pequenas comunidades, desprezar assim a vida comum das pessoas’? Ó curiosidade frívola ou maliciosa! ‘Por que’ – disse o diabo a Eva – ‘Deus vos ordenou que não comêsseis da árvore do conhecimento do bem e do mal’? A as-tuta maldade, através da fenda de uma tal sutileza, penetrou na mente simples da pequena mulher, e aquela ingênua simplicidade, não sabendo dar o motivo da ordem divina, não conseguiu repelir a sugestão ardilosamente persuasiva. Por isso, amadíssimos, desejamos que, como diz o santo Apóstolo Pedro, este-jais prontos e instruídos de modo a sa-ber responder a ‘quem vos pede a razão’ que sustenta o ‘vosso’ gênero de vida e a vossa obediência18.

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modo la vita ordinaria della gente’? O curiosità frivola o maliziosa! Perché, disse il diavolo a Eva, Dio vi há comandato di non mangiare dall’albero della conos-cenza del bene e del male? (Gn 3,1; cf. 2,17). L’astuta malignità, attraverso il buco di un tale cavillo, penetrò nel cervello semplice della donnetta, e quell’ingenua semplicità, non sapendo rendere ragione del comando divino, non riuscì a respingere l’asserzione furbesca-mente persuasiva. Perciò, amatissimi, desideriamo che, come dice il beato apostolo Pietro, siate pronti e istruiti così da saper rispondere a chiunque vi chiede la ragione che sostiene il vostro genere di vita e la vostra obbe-dienza” - Cf. 1Pd 3,15; RB 58,17: o monge é chamado no mosteiro a prometer estabilidade, conversão dos cos-tumes e obediência (ISACCO DELLA STELLA. Serm. 50 – Sermone secondo per la festa dei santi Pietro e Pa-olo, 1-2. I Sermoni – volume secondo. Milano: Paoline, 2007, p. 302-303)..

Quando nos aproximamos dos pri-meiros autores cistercienses, é impor-tante que nos comportemos como quem se aproxima de uma casa, fazendo ini-cialmente um reconhecimento exterior e percebendo que é uma construção an-tiga, familiarizando-se com a sua planta e com a sua arquitetura, que não são do nosso século XXI. Para falar sem ima-gens, digamos que em meio aos autores cistercienses há um modo de pensar e de expressar-se que responde a um momen-to histórico em particular. Até aí, nada de extraordinário. A importância de conhe-cer o estilo de um autor, o seu contexto histórico e cultural, e o gênero literário da sua obra não é mais posta em discus-são, porque é uma necessidade prática de quem busca uma interpretação hones-ta dos textos. Sustentar a necessidade de uma introdução aos autores cistercienses signifi ca sobretudo sublinhar a necessi-dade de distinguir, nos seus escritos, a doutrina do modo no qual é apresenta-da19. A esse respeito poderíamos recor-dar, por exemplo, o que afi rma o Papa

Pio XII na sua encíclica Divino affl ante Spiritu sobre a Escritura:

O intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles antigos tempos do Oriente, e com o auxílio da história, da arqueologia, etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daque-las épocas remotas20.

É claro que não se pode comparar o esforço de interpretação das Sagradas escrituras com o dos textos dos primei-ros autores cistercienses, que exigem um esforço muito menor, já que esses mesmos autores estão muito mais pró-ximos de nós no ambiente e no tempo. Encontramos em São Bernardo a sagaz região francesa da Borgonha, e em Isaac da Stella o refi nado humor inglês21. Es-ses autores, por estarem mais próximos de nós, são mais facilmente abordáveis, principalmente se não pusermos em rele-vo aquilo que nos separa, mas, ao contrá-rio, se dermos uma atenção mais solícita, como no ecumenismo, àquilo que nos aproxima22.

O presente comentário, que não é mais que uma minúscula introdução, não pode pretender mais do que apenas gerar um estímulo à leitura dos autores cister-cienses primitivos, convidando o leitor a entrar naquela “casa” e conhecer alguns dos seus habitantes. Devido ao curto es-

19 Cf. FRACHEBOUD, André. I Primi Spirituali Cister-censi. Roma: Borla, 1991, p. 7-8.20 PIO XII, Carta Encíclica Divino Affl ante Spiritu n. 20. Documentos da Igreja – Documentos de Pio XII. São Paulo, Paulus: 1998, p. 221.21 Cf. FRACHEBOUD, André. op. cit., p. 8.22 Id .p.8.

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paço de que dispomos para esta expo-sição, não será possível discorrer sobre todos os autores cistercienses, que até o século XVII já tinham sido contados em um número maior do que quinhentos.

Sobrecarregado pelo número dos espi-rituais do século XVII sobre os quais deveria escrever, Henri Bremond aplica a eles a expressão “turba magna”, do Apocalipse. ‘Eles – diz o autor – repre-sentam uma multidão inumerável, uma via láctea dos contemplativos’. Dom Leclercq serve-se da mesma expressão para indicar os autores beneditinos do século XII. Sem exagerar, podemos re-tomá-lo de nossa parte. De fato, Charles de Visch, prior do mosteiro das Dunas, na Bélgica, redatou no século XVII o elenco dos escritores da Ordem, conhe-cidos até aquele tempo. Publicou-o num volume, inicialmente em 1649, em Dou-ai, e depois em 1656, em Colônia, sob o título de Bibliotheca scriptorum sacri ordinis cisterciensis, elogiis plurimorum maxime illustrium adornata. E, até a sua morte, Visch quis ter atualizada uma obra que contava já com 430 páginas. É a origem do seu Auctarium que comple-ta, e na ocasião retifi ca, a sua exposição e que somente em 1926 foi publicado pelo Pe. Canivez di Scourmont, em Cistercienser-Chronik. O número dos autores catalogados nesta Bibliotheca vai além de quinhentos23.

Não é o caso neste momento de

23 Tradução nossa. “Sopraffatto per il numero de-gli spirituali del XVII secolo di cui avrebbe dovuto scrivere, Henri Bremond, applica loro l’espressione dell’Apocalisse: ‘turba magna’. ‘Essi’, dice, ‘rappre-sentano una folla innumerevole, una via lattea di con-templativi’ [Hist. litt. du sentiment relig. en France, t. VI, p. 111. “Turba magna” è anche il titolo della 2a parte del volume]! Dom Leclercq si serve della mede-sima espressione per indicare gli autori benedettini del XII secolo [Hist. de la spirit. chrét., t. II, p. 211]. Senza

esagerare, possiamo riprenderlo a nostra volta. Infatti, Charles de Visch, priore del monastero delle Dune in Belgio, ha redatto nel XVII secolo l’elenco degli scritto-ri dell’ordine, conosciuti a quel tempo. L’ha pubblicato in volume, in un primo tempo nel 1649 a Douai, poi nel 1656 a Colonia, sotto il titolo di Bibliotheca scriptorum sacri ordinis cisterciensis, elogiis plurimorum maxime illustrium adornata. E, fi no alla sua morte, Visch ha voluto tenere aggiornata un’opera che contava già 430 pagine. È l’origine del suo Auctarium che completa, e all’occasione rettifi ca, il suo dire e che soltanto nel 1926 fu pubblicato dal P. Canivez di Scourmont, in Cister-cienser-Chronik [“Bibliothecae Scriptorum S. O. Cist... Auctarium continens plurimus adhuc alios eiusdem Or-dinis scriptores tam antiquos quam recentiores...”, Cist. Chron. 38 (1926) pp. 82ss, 122, 151, etc. L’auctarium è anche stato pubblicato a parte]. Il numero degli au-tori recensiti in questa Bibliotheca è oltre cinquecento” (FRACHEBOUD, André. op. cit., p. 142-143)..24 Na impossibilidade de dar aqui a lista detalhada das edições completas ou fragmentárias desses autores, indicamos apenas onde encontrar em Migne, Tissier e “Sources Chrétiennes” os textos dos escritos principais.

reproduzir um tal elenco. De qualquer maneira, esse número supera em mui-to o da época das origens cistercienses. Dado que não se deseja aqui redigir uma história literária de Cister, cremos ser su-fi ciente enumerar em ordem alfabética os autores primitivos mais importantes, tendo ao lado o ano da morte de cada um deles24.

Adão de Perseigne,1221 - P.L. 211 / S.C. 66Elredo de Rievaul, 1167 - P.L. 184, 195 / S.C. 60, 76Amadeu de Losanna, 1159 - P.L. 188 / S.C. 72Arnoldo de Bohéries,1200 - P.L. 184Balduíno de Ford, 1190 - P.L. 204 / S.C. 93-94Bernardo de Claraval, 1153 - P.L. 182-185–Ed.Crít. LeclercqCesário d’Heisterbach, 1245

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(+/-) - Tissier IIEstêvão Harding, 1134 - P.L. 166Garnier de Rochefort, após 1226 - P.L. 205Goffredo d’Auxerre 1188 P.L. 185Gilberto d’Hoyland, 1172 - P.L. 184Guerrico d’Igny, 1157 - P.L. 185 / S.C. 166,202Guilherme de Saint-Thierry, 1148 - P.L. 180, 184, 185 / S.C. 61, 82, 223Helinando de Froidmont, após 1230 - P.L. 212Henrique de Claraval, 1189 - P.L. 204Isaac da Stella, 1169 - P.L. 194 / S.C. 130, 207João de Ford, 1214 - Corpus Christiano-rum, cont. med. XVII-XVIIIOdão de Morimond, 1161 - P.L. 188Ogero de Locédio, 1214 - P.L. 184Serlom de Savigny, 1158 - Tissier VI

Na “multidão inumerável”, Dom Anselmo Le Bail25 distinguia quatro au-tores, que de bom grado chamava de “os quatro evangelistas de Cister”: Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint-Thierry, Elredo de Rievaulx e Gherrico d’Igny. Para ele eram mestres incomparáveis, superiores a todos os outros, em primeiro lugar em razão da sua época: Deus lhes havia suscitado já nas origens da Ordem,

como que para formular-lhe a doutrina espiritual26. Em segundo lugar, foram incomparáveis pela importância do seu trabalho. Guerrico, entre os quatro, foi aquele que escreveu menos; os outros nos deixaram obras de considerável di-mensão, ricas de doutrina e de conside-rações práticas sobre a vida cisterciense. Em fi m, seja pela difusão dos seus escri-tos, ou pela extensão da sua infl uência, esses quatro autores merecem ocupar um lugar à parte27.

3. A ESPIRITUALIDADE DE CISTER PRIMITIVA

A espiritualidade cisterciense, como dissemos, não é necessariamente um bloco doutrinal bem defi nido, nem es-tável, e por esse motivo assume matizes particulares ao longo da história. Dado que o surgimento de Cister remonta ao ano de 1098, o conjunto desses mais de 900 anos poderia ser dividido em quatro períodos de mais destaque em sua his-tória: 1. A espiritualidade de Cister Pri-mitiva (1098-1250); 2. A espiritualidade cisterciense sob a infl uência da escolás-tica; 3. Do Concílio de Trento à Revo-lução Francesa; e 4. Da Renascença aos séculos XIX e XX28.

A espiritualidade cisterciense du-rante os séculos XII e XIII é marcada pela coerência da doutrina e pela unida-de interior entre a teoria e a prática da

25 †1956. Abade do mosteiro belga de Notre Dame de Scourmont entre 1913 e 1956. Sonhava poder escrever um dia uma “história literária de Cister”. Em 1927 pu-blicou um estudo sobre “espiritualidade cisterciense”, onde esse termo provavelmente é usado pela primeira vez (Cf. ALTERMATT, Alberic. Patrologia Cistercien-se: iniciação aos autores cistercienses. Collegium Inter-nationale Sancti Bernardi in Urbe. Notas do Curso de Formadores da Ordem Cisterciense, Pro manuscripto, Roma, 2002).

26 Cf. FRACHEBOUD, André. op. cit., p. 145.27 Id .p.145.28 Cf. LE BAIL, Anselm; MIKKERS, Edmundus; op. cit., p. 436-546.

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vida monástica29. Podemos constatar nas obras dos grandes autores que, respeita-da a sua visão pessoal da vida monástica, mostram eles em suas obras essa unidade profunda, nutrida por uma mesma vida de observâncias monásticas e litúrgicas, pela doutrina da Sagrada Escritura e pe-los ensinamentos dos Padres da Igreja e do monaquismo. Essa unidade se ma-nifesta igualmente nas construções das abadias e na vida econômica. Esses di-versos aspectos se complementam para fazer da vida cisterciense uma expressão típica da vida monástica30.

Os autores espirituais desse primei-ro período situam-se todos, e cada um à sua maneira, nesse quadro. À imitação de São Bento, de quem eles desejaram seguir a Regra e a vida, consideram o mosteiro como uma “escola do serviço do Senhor” (Regra de São Bento – Pró-logo, 45: dominici schola servitii). Dife-rentemente das escolas catedrais e das canônicas, “os cistercienses não cons-truíram para si uma concepção escolar da vida monástica, mas uma concepção monástica da vida de escola”31.

Já São Bento tinha anunciado no início da Regra que tinha a intenção de abrir uma escola do serviço divino: dominici schola servitii. Os cistercienses tinha muitas razões para retomar essa expres-são, dando-lhe um sentido novo. No sé-

29 Id., p. 475.30 Id. p. 47531 Tradução nossa. “i Cistercensi non si sono fatti una concezione scolare della vita monastica, ma uma conce-zione monástica della vita di scuola” (GILSON, Étien-ne. La Teologia Mistica di San Bernardo. Milano: Jaca Book, 1995, p. 69.

32 Tradução nossa. “Già San Benedetto aveva annuncia-te all’inizio della Regola che aveva intenzione di aprire una scuola del servizio divino: dominici schola servitii. I Cistercensi avevano molte ragioni per riprendere questa espressione dandole un senso nuovo. Nel XII secolo la Francia si popola di scuole dove si insegnano le scien-ze profane e le lettere antiche. Non esiste solo Saint--Vorles, dove il Giovane Bernardo aveva studiato e il cui programma doveva aver ben presto sorpreso o almeno inquietato il suo animo avido di Cristo, ci sono anche Parigi, Reims, Laon, Chartres, tanti altri nomi celebri, i cui maestri però sono sempre gli stessi: Cicerone, Vir-gilio, Ovidio, Orazio, portavoci eloquenti di un mondo che non aveva letto il Vangelo. Perché non richiedere un altro maestro, l’único che ha parole di vita eterna? Unus est enim magister vester (Mt 23,8); l’uomo non ha che un maestro, il Cristo: magister vester unus est, Christus (Mt 23,10). Cîteaux, Chiaravalle e Signy si mettono quindi contro Reims, Laon, Parigi e Chartres, scuole contro scuole, e rivendicano, in terra cristiana, i diritti di un insegnamento più Cristiano di quello con cui veniva inquinata una gioventù avida di Cristo” (GIL-SON, Étienne. op. cit., p. 66-67.

culo XII a França povoa-se de escolas onde são ensinadas as ciências profanas e as letras antigas. Não existe apenas Saint-Vorles – onde o jovem Bernardo estudou e cujo programa devia ter bem cedo surpreendido, ou ao menos inquie-tado o seu ânimo ávido de Cristo –, mas temos ainda Paris, Reims, Laon, Char-tres, tantos outros nomes célebres, cujos mestres, porém, são sempre os mesmos: Cícero, Virgílio, Ovídio, Horácio, porta--vozes eloquentes de um mundo que não havia lido o Evangelho. Por que não reclamar um outro mestre, o único que tem palavras de vida eterna? “Unus est enim magister vester” (Mt 23,8); o ho-mem não tem senão um mestre, o Cristo: “magister vester unus est, Christus” (Mt 23,10). Cister, Claraval e Signy põem--se, portanto, contra Reims, Laon, Pa-ris e Chartres, escolas contra escolas, e reivindicam, em terra cristã, os direitos de um ensinamento mais cristão do que aquele com o qual vinha sendo corrom-pida uma juventude ávida de Cristo32.

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33 Cf. LE BAIL, Anselm; MIKKERS, Edmundus; op. cit., p. 475.34 Cf. LEKAI, Louis J. I Cistercensi: Ideali e Realtà. Fi-renze: Emmesse Grafi ca, 1989, p. 279.35 Id. p 279.36 Id. p.279

37 LE BAIL, Anselm; MIKKERS, Edmundus; op. cit., p. 437-439.

Os autores dessa primeira época nomeiam muito frequentemente os seus mosteiros como schola, e isso tem um duplo sentido: como o lugar onde se aprende e onde se ensina, onde o monge desempenha a sua tarefa principal: a pro-cura e a experiência de Deus33.

Nesta exposição, vamos nos deter apenas no primeiro período, por ser mais representativo e mais infl uente. Aqui a espiritualidade cisterciense manifesta-se claramente nos documentos primitivos da época da fundação. Nos primeiros do-cumentos, as virtudes sublinhadas com maior força parecem ser as da pobreza, da simplicidade e de um distanciamen-to das formas de envolvimento com o mundo34. A pobreza e a simplicidade ex-trema, em cada etapa da vida dos funda-dores, foram consequências naturais das circunstâncias árduas nas quais vieram a se encontrar, construindo um novo mos-teiro em uma região inóspita e edifi can-do uma nova comunidade com um novo espírito. A separação completa do mun-do comportou um duro trabalho manual para todos os monges, enquanto que nos outros mosteiros contemporâneos isso era assegurado pelos servos35. Uma tal fadiga humilde e extenuante torna-se uma outra característica típica da Or-dem, mas depois de alguns anos preci-sou ser compartilhada com um número crescente de irmãos conversos36.

Os principais elementos de uma es-piritualidade cisterciense, que emer-gem desses documentos primitivos são os seguintes37:1. A reverência à Regra de São Bento,

expressa de diversas maneiras: a) a observância da Regra (Exordium Parvum = E.P., Prólogo); b) inspira-dos pela graça divina, não cometer mais faltas contra essa Regra (E.P. 3,5); c) levar uma vida mais severa e mais retirada (E.P. 12,5; 13,2); d) re-jeitar tudo o que não está de acordo com a pureza dessa Regra (E.P. 14), etc.;

2. A solidão, chamada também here-mum, é especialmente mencionada como o ambiente onde aquela ob-servância da Regra será realizada. Essa solidão é descrita sobretudo no capítulo 3 do E.P. e nos capítulos 15 e 17 para justifi car a sua explicação da Regra. Ela deve servir à quies mo-nástica, ou paz monástica (E.P. 11,4; 14,5), necessária para a orientação da vida contemplativa: “Dessa forma, quanto mais livres fordes das agi-tações do mundo e de seus deleites, mais desejareis agradar a Deus com todas as forças de vosso espírito e de vossa alma” (E.P. 14,9);

3. O desejo de ser “pobres com Cristo pobre” (E.P. 15,9) determina as suas relações com o exterior do mosteiro e faz do monge o soldado de Cristo, apto a exercer a milícia espiritual de Cristo (E.P. 14-15). Essa pobreza não

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é somente material, mas é também a imitação de Cristo pobre no despo-jamento. Há um tesouro de virtudes que essa pobreza ajuda a descobrir (E.P. 16). A mesma pobreza exige também a sobriedade com relação à liturgia (E.P. 17).

Se todos esses elementos constituem o essencial do monaquismo cisterciense e da sua espiritualidade, é preciso dizer que não surgiram de meras circunstân-cias históricas, ou de algum julgamento irrefl etido, mas que desde as origens es-sas ideias fundamentais desenvolveram--se pela meditação, pela lectio divina e por um contato vivo com as fontes mo-násticas e patrísticas38. A reforma de Cis-ter e o seu sucesso não foram somente uma questão de observância, ou de or-ganização, mas antes de um aprofunda-mento, de uma busca da verdade e da au-tenticidade nas aspirações monásticas39. Na Regra de São Bento, os cistercienses encontraram as verdadeiras fontes de sua nova vida: a Sagrada Escritura e os escritos dos Padres da Igreja e do mo-naquismo cristão. É impressionante ver como os primeiros monges de Cister se aplicavam ao estudo da Sagrada Escri-tura, de São Gregório, Orígenes, Santo Agostinho, João Cassiano entre outros, e isso frequentemente através do trabalho minucioso dos copistas40.

O papel de Maria está igualmente integrado nas considerações teológicas dos autores cistercienses. Ela é mediado-

38 Id. p. 437-439.39 Id. p. 437-439.40 Id. p. 437-439.

41 Id., p. 483.42 Cf. LEKAI, Louis J. I Cistercensi: Ideali e Realtà. Fi-renze: Emmesse Grafi ca, 1989, p. 279.

ra entre Deus e o homem por sua partici-pação no mistério de seu Filho, por sua intercessão em nosso favor e também porque ela é imagem, modelo e mãe da Igreja e de cada um dos fi éis. A devoção mariana dos cistercienses apóia-se nes-sas considerações dogmáticas41.

Não obstante o forte espírito de aus-teridade ascética abraçada pelos monges de Cister, essa pequena comunidade em um mosteiro remoto conseguiu formar uma coleção de hinos autênticos, reali-zar a revisão das melodias gregorianas, uma edição crítica da Bíblia e a redação de um texto jurídico duradouro42.

Os cistercienses estabeleceram, en-fi m, um tipo de síntese entre a longa tra-dição monástica a partir da Regra bene-ditina até as reformas monásticas de seu tempo, e a doutrina teológica, ascética e mística dos Padres da Igreja e dos pais do monaquismo cristão. Essa síntese é a força da sua espiritualidade e do seu en-sinamento doutrinal.

Endereço do Autor:Mosteiro Cisterciense - Rio Pardo - RS

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1 Frei Arno Frelich é membro da Ordem dos Frades Menores, na Província São Francisco de Assis, no RS; licenciado em fi losofi a pela FAFIMC; bacharel em teo-logia pela ESTEF; mestre em teologia pelo Pontifício Ateneu Antonianum, de Roma, e professor na ESTEF.

UM OLHAR PANORÂMICO NA ORIGEM DA ESPIRITUALIDADE MENDICANTE

Arno Frelich1

Mestre em Teologia, Professor na Estef_________________ _________________

Resumo: A espiritualidade mendicante nasce dentro de um contexto social e eclesial movimentado, cheio de desejos de novidade, mudanças, novas relações. A denominação fra-ternitas (fraternidade) não é algo a designar somente novas formas de vida religiosa, é tam-bém usada para designar novas associações sociais. A realidade das “comunas”, o comércio nascente e a “peregrinação” de ideias renovadoras, muitas vezes assumidas pelos movimen-tos pauperísticos, darão um chão para o desenrolar da mendicância. Aqui enfocamos mais o franciscanismo, sem deixar de colocá-lo no contexto maior de outras fundações. A fraterni-dade e a pobreza absoluta, ideais dos renovadores, tomarão expressões particulares em cada experiência da mendicância

Palavras-chaves: espiritualidade; mendicância; pobreza evangélica; fraternidade; liber-dade.

INTRODUÇÃO

Como diz o título, aqui se coloca-rá uma rápida visão panorâmica sobre a espiritualidade mendicante, querendo somente sentir o contexto e o vigor de seu surgimento.

A espiritualidade mendicante nasce num momento histórico de novidades, a sociedade feudal está em mudança.

Há quatro séculos o mundo vivia sob o regime do feudalismo. A grande massa do povo simples, essencialmente rural, encontrava sua subsistência e segu-rança na subordinação a um “senhor”, de quem explorava as terras e ao qual prestava um juramento de vassalagem econômica e social. Esta sociedade se caracterizava pela estabilidade. Ganha-va suas raízes na terra. Ninguém podia abandonar a terra à qual estava ligado: o vassalo não podia abandoná-la e o senhor não tinha o direito de vendê-la. Na língua francesa, o manoir (habitação do senhor, castelo), o mas (habitação do camponês), o manse (terras que o cam-ponês cultivava) e o manant (o próprio

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camponês) são termos da vida cotidiana da época, oriundos da mesma palavra la-tina “manere” que signifi ca permanecer: todas essas palavras exprimem a mesma exigência de estabilidade. Solidamente estruturada de cima para baixo, a socie-dade feudal oferecia a cada ser, a cada categoria, um lugar bem defi nido e imu-tável. À sombra dos castelos fortes que a protegiam contra eventuais invasores, esta sociedade não conhecia outro movi-mento a não ser o giro das estações e pa-recia destinada a ser eterna (LECLERC, 1983, p. 13).

À estabilidade social e econômica agregue-se a estabilidade religiosa, com suas festas, liturgias, monastérios e de-mais organizações.

Esta vida social, profundamente marcada pelo ritmo da terra e da estabi-lidade, começa a ser inundada de novas forças advindas de acomodações econô-micas. Associações de artesãos e comer-ciantes iniciarão o surgimento das comu-nas, burgos e outros vilarejos que darão origem ao modo urbano de vida.

O surgimento e o desenvolvimento rá-pido do mundo urbano, dominado pelos comerciantes, constituem uma verdadei-ra revolução no seio da velha sociedade feudal e rural. É um mundo novo que se insinua e se instala no antigo, pro-vocando uma reviravolta em todos os costumes. Ao lado de pessoas vivendo da terra, ligados a um trabalho regular e estável, explode o mundo dos comer-ciantes, marcado por sua mobilidade, sua atividade livre, seu espírito de lu-cro e de empreendimento e, sobretudo, pela circulação do dinheiro (LECLERC, 1983, p. 17).

Este estilo de vida, no entanto, não fi ca confi nado aos comerciantes. A so-

ciedade e a religião colhem dos viajantes e comerciantes os ideais novos de liber-dade e de fraternidade. As organizações dos novos grupos sociais, também dos religiosos, serão denominadas “fraterni-dades”, “confrarias” ou “comunidades” (LECLERC, 1983, p. 22).

Quais as características desses novos relacionamentos sociais? A aspiração profunda do movimento comunal é, evidentemente, a da liberdade: liberda-de para que as cidades se administrem por si próprias, liberdade de circulação de bens e de pessoas (o homem não está mais preso a um determinado território). Quer-se também uma certa igualdade nas relações humanas. Na sociedade feudal os relacionamentos sociais eram por demais hierarquizados. Eram rela-ções de vassalo para suserano. O con-trato feudal sempre ligava um inferior a um superior. Criava relacionamentos de subordinação e de dependência. Quem possuía a terra era o “senhor”. Quem vi-via na terra eram seus vassalos, embora a títulos diferentes. Na parte ínfi ma da escala social, encontra-se esta catego-ria de camponeses que era conhecida como a dos “servos”. Precisavam de permissão de seus senhores para via-jar, para se casar, para ter alguma coisa e dela dispor. O próprio senhor, muitas vezes, era vassalo de outro senhor, mais poderoso que ele, ao qual devia home-nagem e fi delidade. No sistema feudal o homem era sempre “homem de outro homem”. Desta forma a sociedade toda se apresentava como um a pirâmide de relacionamentos humanos, tendo como base a posse da terra (LECLERC, 1983, p. 20-21).

A sociedade vai passando por trans-formações, as quais, por sua vez, criam mecanismos de sobrevivência e de de-

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tenção do poder. A comuna, surgida do ideal de relações igualitárias, não se mostrará assim tão fi el ao sonho ori-ginal. Em pouco tempo se constatarão manobras para se perpetuar determinada família ou determinado grupo nos cargos de administração e de mando, havendo a diferenciação entre grupos políticos e econômicos, surgindo uma grande parte de excluídos do sistema2.

Em relação a isto e a uma Igreja ain-da atrelada aos parâmetros feudais não tarda a reação. Os movimentos paupe-rísticos serão a resposta, não comunal, ao anseio de fraternidade e igualdade, bem como a contestação do acúmulo de riqueza por parte da Igreja. Estes movi-mentos desejam e pregam a mudança das estruturas, sustentadas pela opulência das riquezas materiais, dando a entender, no modo de pensar simples, o abandono do verdadeiro cristianismo evangélico, que não mais se importa com os irmãos.

A espiritualidade nascida com as Or-dens mendicantes vem marcada pelo in-

fl uxo dessa realidade em transformação e de contestação, bem como pelas ideias circulantes nesse meio. Assim, o aspecto da pobreza professada com radicalidade, a ponto de vetar qualquer tipo de posse, torna-se marca na nova proposta de vida consagrada. Talvez esta seja a caracterís-tica mais marcante da mendicância, que se confi a ao pedir esmolas para o susten-to de seus membros, o que será, de certa forma, crítica à avidez clerical e social (tanto feudal, como comerciante).

As Ordens mendicantes tomam a de-signação de fraternidades (fraternitas) e de frades (fratres), bebendo dos anseios do tempo, mas também para mostrar a diferença com o monaquismo hierarqui-zado, organizando-se em comunidade, sem a fi xação de moradia, o que as difere das comunas, criando um estilo de vida de família no “convento” (BLASUCCI, 1988, p. 238).

Para compreender a espiritualida-de mendicante será importante olhar os movimentos pauperísticos da época, que na sua maioria foram condenados como heréticos.

1. MOVIMENTOS LAICAIS PAUPERÍSTICOS NO CAMINHO EVANGÉLICO

Para compreender a espiritualida-de mendicante será importante olhar os movimentos pauperísticos da época, que na sua maioria foram condenados como heréticos.

2 “Na verdade, não é a ideia de progresso social que está na origem do movimento comunal, nem mesmo o repú-dio do sistema feudal. Nascidas do enriquecimento de comerciantes, as comunas têm como fi nalidade primeira assegurar o desenvolvimento desta riqueza. De fato, são dominadas pelo dinheiro. Este último desempenha um papel preponderante na nova economia como também na vida política da cidade. Possibilita aos mais ricos da burguesia monopolizar os cargos municipais e, assim, assenhoriarem-se do poder e ditar leis. Designados de “grandes” ou “patrícios”, esses ricos burgueses têm em suas mãos toda administração e toda jurisdição. Distin-guem-se do povo “comum”. Em muitas cidades, a fi m de estarem certos de que nenhum indesejável entrasse em suas fi leiras, estabelecem o princípio da cooptação na renovação dos cargos municipais. O governo urbano é um governo plutocrático, que acaba sendo oligárquico, com as mesmas famílias se perpetuando no poder” (LE-CLERC, 1983, p. 23)..

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A necessidade de uma reformatio in capite et in membris era continuamente ventilada com preocupação e urgência na Igreja, prolongando-se com insistên-cia até a reforma protestante, que, no en-tanto, moveu-se em bem outra direção e com grande desastre para a Igreja (BLA-SUCCI, 1988, p. 242).

A sede de reforma, com um retorno às origens, pululou em vários movimen-tos agregadores de ideais e propostas, e capazes de conclamar o povo simples. Com diferenças de radicalidade conver-giam no aspecto da pobreza e da pre-gação, normalmente feita por todos os membros do movimento.

1.1 ALBIGENSES OU CÁTAROS

Difundiram-se a partir da França, da cidade de Albi. A designação de cátaros vem de sua raiz grega que indica pureza.

[...] intentavam inaugurar uma renova-ção na Igreja com um retorno ao cristia-nismo primitivo mediante uma profi ssão de vida comunitária e de pobreza, do ce-libato, da pregação itinerante e de uma forte austeridade. Mas as suas doutrinas constituíam uma ameaça para a Igreja e a civilização cristã, também pelo seu grande proselitismo (BLASUCCI, 1988, p. 242).

Talvez tenha sido o mais forte dos movimentos, contra o qual se realizou uma cruzada. Dele participou não so-mente o povo simples, mas também a nobreza que cultivava um espírito anti--eclesial.

Sua doutrina é considerada, por al-guns pesquisadores, como continuação

do maniqueismo, infl uxo que se pode perceber na base de suas ideias, as quais são vistas como reação às reformas gre-gorianas (SANTONJA, 201, p. 73-74).

1.2 PÁTAROS OU PATARIANOS

Surgiram na Itália, liderados por clérigos milaneses. Apegaram-se às Sa-gradas Escrituras para justifi car seu esti-lo de vida e criticar a riqueza e a hierar-quia eclesiais. Tiveram pouca duração.

1.3 PEDROBRUSIANOS

Seguidores de Pedro de Bruys. Apresentam-se como pregadores de uma nova doutrina, desprezando o Antigo Testamento. Concebem a Igreja como uma simples agremiação de pessoas que acreditam no Evangelho, negando toda hierarquia e exterioridade. Por isso, não têm local para a celebração nem mesmo culto. O batismo é reservado somen-te para a idade adulta, e mesmo assim como uma limpeza corporal, e poder de perdoar os pecados. A salvação somente se dava pela fé. Negavam ainda o valor da Eucaristia e do Matrimônio. Pregam contra a “insultante riqueza dos clérigos” (SANTONJA, 2010, p. 71-72).

1.4 ENRICANOS

Movimento inciado pelo Monge En-rico, de Cluny, assume a mesma postura do anterior, porém, se de Bruys ainda ad-mitia o pecado original e a obra meritória

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de Cristo, Enrico vê o pecado de Adão e Eva como pessoal. Justifi cou ainda a de-sobediência à Igreja, afi rmando que ela exerce um poder já perdido.

Depois de sua prisão, retornou ao mosteiro e abdicou de suas ideias, mas elas já haviam feito estrada.

1.5 VALDENSES

Fundado por Pedro Valdo, este mo-vimento iniciou bem, buscando a pobre-za evangélica para seguir o Cristo nu. Seu fundador fez traduzir os evangelhos e alguns outros escritos bíblicos e dos Santos Padres.

Não acatou as proibições de pregar vindas da autoridade eclesiástica, pois considerava a pregação um direito de to-dos e não um privilégio de poucos. Des-te modo passaram a negar a hierarquia, deixando os leigos livres para exercer a pregação, a celebração eucarística, a confi ssão dos pecados. Num primeiro momento não queriam fundar uma igreja própria, mas com o contágio dos calvi-nistas se organizaram, com hierarquia e local de culto, existindo ainda hoje.

1.6 HUMILHADOS

Ramo lombardo dos Valdenses. Com a iniciativa de Inocêncio III retor-naram à comunhão eclesial, aceitando um estilo de vida austero, em casa, com a faculdade de pregar aos seus membros, e, quando convidados pelos prelados, nas Igrejas locais.

2. AS ORDENS MENDICANTES: UM CAMINHO EVANGÉLICO

As Ordens mendicantes darão novo impulso espiritual à Igreja, colocando em realce a totalidade da vida cristã en-volvida com a missão de evangelizar, seja pelo exemplo, por obras ou pela pa-lavra. É de notar o envolvimento ativo das mulheres nesse movimento eclesial.

2.1 SÃO DOMINGOS

Com a constatação da necessidade de uma pregação mais qualifi cada para combater a heresia dos cátaros por meio de pregadores permanentes3, Domingos de Gusmão (1170-1221) inicia a Ordem dos Pregadores “cuja fi nalidade é não so-mente a santifi cação de seus membros, mas também a salvação das almas me-diante a pregação das verdades da fé” (ZOVATTO, 1993, p. 129). Inicia sua obra com o apoio de mulheres converti-das (BLASUCCI, 1988, p. 315), as quais tornam-se monjas e sustentam as frater-nidades iniciais, antes da aprovação pon-tifícia.

Sendo a maioria de seus seguidores membros da vida monástica, acolherá ra-pidamente os elementos deste estilo de vida, abstraindo a estabilidade, substituí-da pela itinerância, bem como diminuin-

3 Já a Corte francesa e os cistercienses, a partir de Ber-nardo de Claraval, haviam se dado conta de “que o problema da heresia cátara não se reduzia a alguns pregadores itinerantes, como o monge Henri, mas que enfrentavam grandes multidões de ‘tisserands ariens’, as quais contavam com o apoio de uma nobreza anticle-rical” (SANTONJIA, 2010, p. 72).

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do o trabalho manual, para dedicar-se ao estudo, tudo em vista da conversão dos hereges. Os outros elementos da Regra de Santo Agostinho, que adotaram, serão interpretados conforme o novo estilo, pois a mesma, por seu aspecto genérico, se presta a várias interpretações (BLA-SUCCI, 1988, p. 316).

Não obstante seu caráter itinerante, “reivindica ser uma Ordem contemplati-va, a qual, porém, diferentemente do an-tigo monaquismo, transmite aos outros os frutos da própria contemplação [...] e na qual seus religiosos são, por assim di-zer, ‘contemplativos em voz alta’” (ZO-VATTO, 1993, p. 130).

Uma primeira característica dos Do-minicanos é a intelectualidade doutrinal e contemplativa, exercendo um papel preponderante na teologia, como verda-deira ciência da fé. O estudo é parte inte-grante da atividade contemplativa, a qual visa preencher a vida do pregador, para depois “transbordar” aos ouvintes como sabedoria vivenciada.

Uma segunda característica “é cons-tituída pela vida militante, apostólica, batalhadora” (ZOVATTO, 1993, p. 130), constituindo-se como missionária. O do-minicano trava uma batalha pela verdade da fé, com a sede de partilhar o tesouro encontrado.

A oração, incluindo o Ofício Divi-no, é vivida na articulação do afeto, do intelecto e da alegria espontânea, levan-do à formação interior que é externada em palavras justas e santas, vencendo, deste modo, à tentação intelectualista

Por conseguinte, ele será um homem que reza, antes de ser alguém que fala, eloquentemente, das coisas sagradas. Aos falar, a alma do frade dominicano, sedenta de Deus, efundirá ao seu redor a mesma fonte na qual ele mesmo se desalterou. Aos outros difundirá a supe-rabundância de sua contemplação, numa partilha espiritual. Esta intuição do cô-nego São Domingos parece ser a síntese mais iluminadora da originalidade da espiritualidade dominicana (ZOVATTO, 1993, p. 131).

A pobreza mendicante também ca-racteriza a espiritualidade dominicana. Admitida, num primeiro momento, a pos-se coletiva, já em 1220 foi renunciada.

Três palavras qualifi cariam a pobreza dominicana, segundo as circunstâncias da pregação itinerante da Ordem: pe-dites, a pés descalços; ostiatim, mendi-gando de porta em porta; locus incertus, sem morada fi xa, em coerência com o documento de aprovação episcopal de 1215: “O seu propósito religioso - isto é, dos Pregadores - é de andar a pé pre-gando a palavra da verdade evangélica na pobreza evangélica” (BLASUCCI, 1988, p. 317).

Cabe notar que a mendicância era vetada aos clérigos, e os monges a ti-nham em segundo plano, devendo valer--se do trabalho manual para garantir seu sustento. Essa pobreza mendicante, logo após a morte do fundador, deu espaço a bens e propriedades, justifi cadas pela atividade intelectual e missionária. Mais tarde, um movimento de reforma condu-ziu a Ordem dos Pregadores a uma po-breza mais radical, sem contudo causar divisões.

Ainda é importante notar que ape-

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sar de não ser propriamente considerada cristocêntrica, a espiritualidade domini-cana vê o Cristo “nosso irmão, amigo e Esposo” (BLASUCCI, 1988, p. 319) como o único meio de se chegar a Deus, sendo a conformação com a vida terrena de Cristo o objetivo da ascese.

Expressão feminina desta vertente mendicante é Santa Catarina de Sena, leiga dominicana, que desempenhou grande atividade intelectual na luta pela unidade da Igreja 4.

2.2 SÃO FRANCISCO DE ASSIS

São Francisco de Assis (1182-1226), fi lho de comerciante e, ele mesmo, bom comerciante, sente o desejo de seguir o Senhor sem amarras. Abandona tudo para iniciar uma vida de penitência.

No seu itinerário, aparece menos intelectualista que Domingos, entrando pela via da mística afetiva. “A dimensão afetiva predomina sobre a cognitiva, e o impulso fervoroso sobre a profundidade intelectual. A ‘contemplação’ francis-cana é própria dos ‘pobres’, dos ‘sim-ples’, não dos teólogos, ou, se assim se preferir, dos ‘sábios’ segundo o espírito” (ZOVATTO, 1993, p. 132). Confi gura--se mais como um estado de espírito que uma organização.

Penso ser oportuno relevar as duas no-vidades trazidas pelo franciscanismo: antes de tudo, a opção radical de vida evangélica, fundada, sobretudo, na po-

4 Hoje vemos seus seguidores, dominicanos e dominica-nas, espalhados pelo mundo, engajados na luta pela ilu-minação da fé dos cristãos. Nomes por nós conhecidos são Frei Tito e Frei Beto.

breza absoluta; a seguir, o ter codifi cado esta escolha do pauperismo com a apro-vação da Cúria romana, num momento histórico em que a Santa Sé mostrava-se reticente com o pulular de movimentos pauperísticos, muitas vezes anticuriais (ZOVATTO, 1993, p. 133).

A pobreza absoluta será marca do franciscanismo, bem como a luta cons-tante por ela, internamente ao movimento e com a Igreja. É o que nos faz constatar Santa Clara de Assis, a qual “peleou” e consegui o “privilégio da pobreza”, sem esquecer que, inicialmente, a Ordem, por ela fundada, chamava-se Ordem das Da-mas Pobres. Pobreza decantada nas suas cartas a Inês de Praga. Francisco pare-ce ter trazido de sua condição burguesa o conhecimento do mal que o dinheiro pode gerar. Na sua aversão ao dinhei-ro e ao acúmulo, fará do trabalho uma regra de vida para o sustento próprio e dos irmãos (RB 5), os quais não parecem ser somente os frades, mas também os pobres e os que se põem à mesa. Como paga pelo trabalho, recebem o necessá-rio, exceto dinheiro.

A espiritualidade franciscana dará “condições de um estilo de vida tipica-mente não clerical, e indicando no lai-cato, que então estava apenas emergin-do, grandes possibilidades de presença efi caz e de ação participativa na vida da Igreja” (ZOVATTO, 1993, p. 133). No contato com o povo simples e pobre, vi-vendo sem posses e não participando da hierarquia, os frades terão grande infl u-ência social, pregando a paz num contex-to de guerras. Isso tudo vivido na alegria.

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O ascetismo, em lugar de exaltar os aspectos austeros, reveste-se da alegre superação de si mesmo pelas realidades que abandona, encontrando, destarte, a única maneira de se sentir superior às coisas, sem ser por elas dominado. Sub-jacente a esta posição está o sentido da bondade do universo, porque ele é obra de Deus, e igualmente a superação de um implícito dualismo, uma vez que agora a natureza se concilia plenamente com a graça, e a graça com a natureza (ZOVATTO, 1993, p. 134).

A fraternidade com a natureza é fru-to de uma visão da beleza e da bondade de Deus, presentes em todas as criaturas, mais da experiência destas.

Fraternidade universal e vivenciado-ra da paz, na qual o perdão não somente é pedido, mas oferecido, até para quem não o pede. É o que Francisco propõe a um Ministro, em uma carta escrita a ele. Supera aqui o ciclo de superioridade, co-locando a humildade com força doadora do perdão. Francisco era desejoso de que todos tivessem um lugar próximo a si e não se sentissem afastados ou excluídos (2Cel 1935).

É também a partir desta visão que Francisco celebrará e falará do Cristo, reconstituindo cenas incidentes corpo-ralmente no Verbo: encarnação (presépio vivo em Greccio), cruz (tau usado como assinatura e pintado nas paredes), e na presença pessoal no sacramento do altar.

Há em Francisco e nos seus segui-dores um cristocentrismo com fortes tra-ços de humanidade, de modo a ser facil-mente acolhido e vivido pelo povo.

5 Cel = Segunda vida de São Francisco segundo Tomás de Celeno.

6 UVC = Ultima Vontade escrita para Santa Clara.7 Adm = Admoestações.

A um cristocentrismo que passava pelo crivo os mistérios mais humildes da vida de Cristo unia-se o outro lado do ideal da mensagem franciscana: a frater-nidade universal, segundo a qual todos os homens estão unidos por relações de harmoniosa solidariedade, onde apa-recem incluídos também os animais... (ZOVATTO, 1993, p. 135).

Este cristocentrismo, mais tarde elaborado teologicamente em termos de primado por João Duns Scotus, não será separado da devoção mariana. De fato, Maria será modelo de pobreza para Fran-cisco e, a partir dele, não se poderá falar do Cristo sem lembrar de sua mãe. Por ela nos vem o Filho do Altíssimo.

Se Francisco não escreve muito so-bre ela, no entanto, deixa um legado nas orações e no fato de tê-la colocado como Advogada da Ordem. Advogada pobre, pois não se pode desfazer desta ligação: “Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza do Altíssimo Senhor nosso Jesus Cristo e de sua san-tíssima Mãe, e nela perseverar até o fi m” (UVC 16).

Faz parte ainda do cristocentrismo franciscano a importância eucarística. Francisco dedica várias vezes espaço e tempo em seus escritos para o tema, dei-xando entrever a sua compreensão sim-ples e profunda de um sacramento ligado à encarnação e a humanidade do Filho de Deus que se humilha todos os dias, des-cendo do seu trono celeste para as mãos de quem comunga (Adm 17).

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Esta fraternidade universal toca não somente homens e mulheres que deixam tudo para ingressar na vida consagrada, mas também homens e mulheres que continuam em suas casas. Não é novi-dade, pois assemelha-se ao movimento dos Humilhados na Lombardia, mas é um modo novo de pensar e de organizar a vida cotidiana em família, participando de um movimento de renovação. Expres-são desta realidade é a Beata Ângela de Foligno, leiga e mística. Com uma refl e-xão centrada sobre a Cruz, é chamada de “Mestra dos Teólogos”.

A escola espiritual franciscana carac-terizou-se, desde as origens, por um emer-gente caráter de amor terno e infl amado a Jesus Cristo, realizado mediante uma vida austera, simples e heroicamente evangéli-ca. A assiduidade na conformação a Cris-to, numa visão cristocêntrica radical, faz da pobreza a via mestra para assumir os traços de Cristo, propondo uma vida mís-tica ardente e uma rígida prática ascética (ZOVATTO, 1993, p. 137).

Mística e ascética rígidas, mas simples, que conquistaram milhares de pessoas em pouco tempo, pois podia-se viver o evangelho no próprio cotidiano, ligados à Igreja, mesmo que “contestan-do” sua riqueza pelo estilo de vida.

Outra marca do franciscanismo é a missionariedade, fruto da itinerância e da pobreza absoluta, mas nascido de modo especial da vontade de levar Deus a to-das as pessoas, primeiro pelo exemplo de vida, depois pela palavra explícita. Neste ínterim, e embasado na fraternidade, há a ordem de não entrar em disputa com nin-

guém, mas viver humildemente entre to-dos, também entre os infi éis. Este modo de pensar a missão diferenciava-se da atitude da Igreja ao patrocinar cruzadas.

Santa Clara de Assis evidenciará outra característica da espiritualidade franciscana, a esponsalidade; traduzida em atitude para chegar à conformação com o Cristo, bem como à acolhida do Evangelho. Viver como esposa pobre e humilde do Cordeiro. Isto tudo em vista do tema central na espiritualidade claria-na: o seguimento de Cristo.

Antes da morte de Francisco já ha-viam difi culdades, as quais levaram a diversas compreensões e interpretações da Regra. Muitas foram as tentativas de reformas, mas o resultado fi nal foi a diversifi cação dos ramos do movimen-to franciscano e o surgimento de muitas Congregações que hoje formam a Famí-lia Franciscana.

2.3 OUTRAS ORDENS MENDICAN-TES

Os Dominicanos e os Franciscanos não foram os únicos movimentos que re-sultaram em Ordens Mendicantes.

a) A antiga Ordem do Carmelo ini-ciada por alguns eremitas no Monte Carmelo (Palestina), inspirando-se na atividade contemplativa e apostólica do profeta Elias, recebe uma regra e uma aprovação em 1226, dando acento à con-templação. Com a fuga para o ocidente por causa das perseguições, os carmeli-tas recebem novos elementos, sem dei-xar a intuição original, entrando para a

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pobreza mendicante, mais como princí-pio individual, podendo a comunidade ter posses dentro dos princípios da aus-teridade.

A marca carmelitana na espirituali-dade se dará pela sua devoção mariana, voltada de modo especial para a virgin-dade da Mãe de Deus; também refl ete so-bre a concepção imaculada. O escapulá-rio será símbolo da relação do carmelita com Maria.

Mais tarde conhecerá nova reforma com Tereza d’Ávila (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591).

b) Outra Ordem é a dos Servos de Maria, os Servitas. Teve início semelhan-te aos franciscanos. Seus sete fundadores eram comerciantes, que se reuniram com o propósito de uma vida contemplativa, sem intuito de formar uma nova Ordem. Mas com a chegada de discípulos e de conselhos por parte do Bispo de Floren-ça e de pregadores, de modo especial do dominicano Pedro de Verona, assumi-ram a Regra de Santo Agostinho, com as constituições dos Premonstratenses adaptadas pelos dominicanos, agregan-do um capítulo sobre a Virgem Maria, à qual se consagram como servos e da qual portam o hábito de viuvez (entendida como afastamento do Filho crucifi cado).

As características de sua espiritua-lidade podem ser resumidas assim: “po-breza evangélica, espírito penitencial, humildade, recolhimento, o cuidado dos irmãos necessitados, além do serviço à Virgem” (BLASUCCI, 1988, p. 340).

A Ordem dos Servitas cresce na Igreja, no silêncio, por causa da forte

marca contemplativa, mas mantém uma atividade forte na missão e na refl exão. Sinal disso são os muitos teólogos a ser-viço da instrução, dentre eles, em nosso país, Frei Clodovís Boff.

c) Os Eremitas Agostinianos nasce-ram da junção de vários grupos de eremi-tas, movimento de união que iniciou em 1244 e terminou em 1256. Assumiram a Regra de Santo Agostinho com consti-tuições próprias tendo como fundamento a comunidade primitiva de Jerusalém, com acento evangélico-eclesial. Pos-suem uma forte marca mariana, consi-derando a Virgem como a “primeira fun-dadora da vida religiosa” (BLASUCCI, 1988, p. 341).

No caminho de Santo Agostinho destacam três primados: o do amor, o da caridade e o de Cristo, tendo como mo-delo de fraternidade a Trindade.

Com reformas posteriores, também se dividiu em grupos autônomos.

d) Os Mínimos, fundados por São Francisco de Paula, em 1474. Primeira-mente inspirada no franciscanismo, li-gam elementos beneditinos, franciscanos e agostinianos, passando de um eremitis-mo pessoal a uma vida mais comunitária (em estilo cenobítico), acrescida de um estilo quaresmal (abstinência de carne), com uma regra escrita pelo próprio fun-dador e aprovada pela Igreja, depois de acréscimos papais, quebrando a norma do Concílio de Latrão VI de não aprovar novas regras. Sua marca espiritual está em oferecer à Igreja uma vida de humil-dade e de penitência.

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A MODO DE CONCLUSÃO

A espiritualidade mendicante carre-ga a marca da pobreza absoluta, que se pode considerar como resposta às críti-cas feitas pelos movimentos pauperísti-cos à Igreja, mas também, por sua vez, se tornam críticos não somente ao estilo de vida eclesial abastado, como também ao estilo nascente de vida ávida de riqueza dos comerciantes e das comunas. O pedir esmola será a marca principal das Ordens mendicantes para manter a característica da pobreza; o franciscanismo colocará o pedir esmola junto ao trabalho manual.

A vida em fraternidade, entendida como relação interpessoal, também será fruto dos anseios da sociedade. Fruto, porém, que vingará por seu encontro profundo com o Evangelho, ou seja, por um encontro fecundo entre os anseios de homens e mulheres com Jesus Cristo (LECLERC, 1983, p. 10). A contempla-ção será passo e alimento desse encon-tro, nela se encaminhará o testemunho de vida em que humano e divino (evangéli-co) se tornam uma só realidade. Daqui a nova compreensão e, principalmente, a conquista da liberdade radical, a qual canta os louvores do Senhor no abando-no de tudo.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, São Francisco de. Admoesta-ções. In Fontes franciscanas e clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 95-104.______. Regra Bulada. In Fontes fran-ciscanas e clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 157-165.______. Última vontade escrita a Santa Clara. In Fontes franciscanas e claria-nas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 191.BLASUCCI, A.; CALATI, B.; GRÉ-GOIRE, R. La spiritualità del medievo. Roma: Borla, 1988.CELANO, Tomás de. Segunda vida de São Francisco. In Fontes franciscanas e clarianas. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 300-441.LECLERQ, Eloi. São Francisco de As-sis: o retorno ao evangelho. Petrópolis: Vozes, 1983.SANTONJA, Pedro. Herejías medieva-les: cátaros e valdenses. Estudios Fran-ciscanos. Barcelona, vol. 111, n. 448, p. 71-118, jan./ago. 2010.ZOVATTO, Pietro. Experiência espiri-tual na história. In. SECONDIN, Bruno; GOFFI, Tullo (orgs.). Curso de espiritu-alidade: experiência, sistemática, proje-ções. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 113-202.

Endereço do autor:[email protected]

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OBLATOS DE SÃO FRANCISCO DE SALES

Pe. Carlos Martins de Borba, osfs1

Mestre em Teologia, Professor na Estef_________________ _________________

A FUNDAÇÃO DOS OBLATOS

Os Oblatos de São Francisco de Sa-les foram fundados em Troyes (França), no dia 12 de Outubro de 1875, pelo Padre Luis Brisson, sob a inspiração da Madre Maria de Sales Chappuis (a Boa Madre). É um instituto religioso clerical de votos simples de Direito Pontifício.

Padre Luiz Brisson nasceu em Plancy (França), no dia 23 de junho de 1817. Estudou no Seminário Menor e Maior de Troyes (França). Foi ordena-do sacerdote no dia 19 de dezembro de 1840. Depois de um período como in-terino, é capelão no mosteiro da Visita-ção, de outubro de 1843 a julho de 1884, onde se encontra com a Madre Maria de Sales Chappuis.

Madre Maria de Sales Chappuis, religiosa eminente e superiora notável, há muito tempo, aspira pela fundação de uma Congregação de sacerdotes, anima-dos pelo espírito de São Francisco de Sa-les e vê, na pessoa do capelão, o instru-mento escolhido por Deus para esse fi m. A repugnância e as resistências de Padre Brisson só cedem diante da manifestação evidente da vontade divina; no entanto,

ele espera mais de vinte anos o sinal pro-videncial antes de resolver-se a começar.

Foi graças à persistência desta irmã da Visitação que - uns 250 anos depois da fundação por São Francisco de Sales das Irmãs da Visitação - que o sacerdote Luís Brisson, fundou os Oblatos de São Francisco de Sales, uma comunidade de sacerdotes e irmãos, dedicados a viver e a divulgar o espírito e os ensinamentos de São Francisco de Sales. Padre Brisson fundou também uma comunidade de ir-mãs com o mesmo nome, Oblatas de São Francisco de Sales.

Assim começa a Congregação dos Oblatos de São Francisco de Sales!

“Eis aí a fonte da qual os Oblatos de-vem haurir o seu espírito...”, dizia Madre Chappuis. Somos “fi lhos da Visitação”, ou seja, fi lhos de uma Congregação con-templativa fundada por São Francisco de Sales e por Santa Joana Francisca de Chantal. Nascemos num Mosteiro.

São Francisco de Sales foi o santo da suavidade e da douçura. É doutor do Amor de Deus. Foi um grande reforma-

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dor, pregador, escritor, missionário, pas-tor, diretor espiritual... Com muito tra-balho e dedicação, tornou-se o santo do diálogo afetuoso e respeitoso com todos. Ele tinha toda autoridade para afi rmar o que afi rmou: “É pelo diálogo e o amor que derrubaremos os muros de Genebra e não pela espada”. Ou ainda: “Juntam--se mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre”.

O que é específi co na doutrina de São Francisco de Sales é que, para ele, o amor não é somente o fi m, mas o gran-de meio de toda a vida cristã. No dizer de seus amigos, São Vicente de Paulo e Santa Joana de Chantal, São Francisco de Sales foi uma imagem impressionante do Salvador: “Foi um dos que melhor repro-duziu a imagem do Salvador na terra”.

Da grande amizade entre Francisco de Sales e Joana de Chantal nasceu a Es-piritualidade Salesiana, que basicamente consiste num grande amor a Deus, que nos leva a amar o próximo. É por isso que somos convidados e mesmo desafi ados a “fazer tudo por amor, nada à força”.

ESCRITOS E ESPIRITUALIDA-DE DE FRANCISCO DE SALES

Entre os principais escritos do santo temos de mencionar:

Palestras íntimas - refl exões de fé e vida de Francisco com as irmãs da Visi-tação, nos anos da fundação.

Tratado do Amor de Deus - obra clássica de nosso pai Francisco de Sales, onde ele procura descrever o nascimento

e o desenvolvimento do amor de Deus em nossas vidas.

Introdução à Vida Devota ou Filo-téia - livro de orientação espiritual para pessoas que desejam andar no caminho do amor de Deus, por meio de uma vida devota, unindo a fé com a vida. Esta obra tem suas origens no trabalho de direção espiritual de Francisco, por meio de car-tas.

Sua espiritualidade e mística é pen-sada e elaborada para quem vive no meio do mundo. É uma espiritualidade propos-ta ao homem e à mulher que vivem nos afazeres do dia a dia. Essa era a intenção de Francisco de Sales ao fundar a Ordem da Visitação: visitar os pobres e necessi-tados a exemplo de Maria que visita e sai para servir Isabel. É uma espiritualidade para leigos e leigas. Neste sentido, ele foi um grande precursor do Concílio Vatica-no II ao ressaltar a santidade a que são chamados todos os fi éis batizados.

Os Oblatos se propõem a seguir ra-dicalmente Jesus Cristo servindo a Igreja no mundo de hoje, vivendo e divulgando a doutrina salesiana. “Não somos apenas imitadores de São Francisco de Sales, mas também os continuadores de sua obra”.

Dizia a Madre Maria de Sales Cha-ppuis: “Os Oblatos deverão espalhar as maravilhas da graça de Deus no mun-do. O Salvador estará neles, e, com Ele, produzirão grandes efeitos da graça. Por meio deles o Salvador voltará ao mun-do, e vê-lo-ão caminhar sobre a terra...”. “Vós sois os escolhidos para esta grande obra, e o Salvador não se servirá de ou-

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tros, a sua vontade está bem determinada sobre este ponto”.

Deus mostrou à boa mãe o que os Oblatos deveriam ser para corresponder à sua vocação: eles deverão trabalhar “sem apegar-se, e deixar espaço para que o Salvador esteja neles e em suas obras. Eles deverão identifi car-se com Ele e as-sumir suas diversas inclinações... rece-ber dele o movimento para agir e falar”.

O nosso carisma é o espírito de São Francisco de Sales e o meio privilegia-do de adquiri-lo é o Diretório Espiritual para as ações de cada dia. A prática fi el desse diretório foi estabelecida para os Oblatos pelo Pe. Brisson como o meio específi co de retraçar em si a imagem de São Francisco de Sales, sendo este a imagem de Nosso Senhor.

Pe. Brisson nos pediu para vivermos o Diretório e propô-lo ao mundo de hoje. “O Diretório, que era o grande meio de santifi cação de São Francisco de Sales... deve, pois, inspirar o espírito da Congre-gação e ser o fundamento dela; só pelo Diretório seremos Oblatos de São Fran-cisco de Sales”.

Fomos fundados para servir à Igreja e ao Reino onde for preciso. Não temos um campo pré-determinado para realizar o nosso carisma. O serviço à Igreja po-derá revestir-se de todas as formas que nossa época exigir. A Igreja nos pede para não nos isolarmos do mundo, para não limitar nossas obras, mas nos ocu-par com todo tipo de atividade apostólica que ajudem a melhor servir.

ONDE NOS ENCONTRAMOS

Atualmente, encontramo-nos em 18 países: Canadá, Estados Unidos, Haiti, México, Equador, Brasil, Uruguai, Ho-landa, França, Suiça, Alemanha, Áustria, Mônaco, Itália, Benin, Namíbia, Índia e África do Sul.

“Os Oblatos são chamados a situar--se na sociedade humana tal qual é e a cristianizá-la por todos os meios possí-veis. Empenhamos-nos especialmen-te em fomentar a justiça para com os oprimidos e espezinhados e isso através de qualquer forma de apostolado ou de esforço reconhecidamente apropriado” (C.12).

Como Oblatos, somos chamados a Viver Jesus no meio do mundo. Em fun-ção disso, atuamos no serviço paroquial, movimentos sociais, formação para a vida religiosa oblata, educação, assesso-ria bíblica, serviço social, saúde...

Pe. Brisson dizia: “Não somos re-ligiosos para nós mesmos, senão para a Igreja, a fi m de revelarmos, cada vez mais, a ação, a luz e as graças do Salva-dor”.

Se os Oblatos forem fi éis ao Caris-ma Salesiano, dizia a Boa Madre, eles “reimprimirão o Evangelho” e “ver-se--á de novo o Salvador andando sobre a terra”.

O nome Oblato signifi ca “doação”, “entrega”, “oferta” de si mesmo a Deus no serviço aos outros, principalmente os mais pobres e desprezados. Lembra o ofertório da missa. Como o pão e o vinho

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(oblatas) são ofertados e transformados em Corpo e Sangue de Cristo, assim é a nossa vida, isto é, entrega total para visu-alizar a presença do Salvador no mundo. O ofertório é a “oblação” da vida a Deus no serviço libertador em prol dos irmãos e irmãs.

A FAMÍLIA SALESIANA A espiritualidade de São Francisco

de Sales teve ressonância positiva em seu tempo e conserva seu vigor ainda hoje. Tanto assim que, em diferentes da-tas, foram surgindo em torno dela como em torno de uma grande fonte, diversos grupos que se reportam, cada um a seu modo, ao carisma de São Francisco de Sales e que juntos formam a constelação que podemos denominar de família sale-siana (cf. gráfi co).

1885Salesianas do

Sagrado Coração

1889MissionáriasSalesianas da

VirgemImaculada

1876Filhos de

São Francisco de Sales

1876Sacerdotes deSão Francisco

de Sales

1872Filhas deSão Fcode Sales

1872Filhas de

São Francisco de Sales de Lugo

1875Oblatos de

São Francisco de Sales

1868Oblatas de

São Francisco de Sales

1876Colaboradores

Salesianos

1868Irmãs de

Dom Bosco

1848Salesianos Dom Bosco

1838Misionários

de SFS

1682Visitação de Gent

1948Instituto

Secular São Fco de Sales

1610Visitandinas

A FAMÍLIA SALESIANA

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ESPIRITUALIDADE DAS IRMÃSDE SANTA CATARINA

Ir. Veronice Weber1

_________________ _________________

Resumo: Resume a história da Congregação das Irmãs de Santa Catarina, virgem e már-tir, e de seu carisma. Fundada em 1571 por Regina Protmann, na Prússia Oriental, é uma das primeiras tentativas bem-sucedidas de organização feminina da vida religiosa ativa.

Palavras-chaves: Beguinas, Espiritualidade, mística esponsal, núcleo fundante, vida contemplativa, vida ativa.

A Congregação das Irmãs de Santa Catarina foi fundada por Regina Prot-mann, nascida em 1552, em Braunsberg, Prússia Oriental, hoje Braniewo, Polô-nia. Foi uma das primeiras congregações de vida religiosa da diaconia - serviço da caridade, contemplativa e ativa. A congregação foi fundada em 1571, sen-do aprovada a primeira constituição em 1583, pelo Bispo Martinho Cromer, dio-cese do Ermland, e a aprovação papal em 1602, pelo Núncio Apostólico Cláudio Rangoni, na Lituânia.

O contexto eclesial da época da fundação é marcado por forte crise. Há confusão religiosa, divisão do cristianis-mo, expansão do protestantismo, refor-ma e contrarreforma. Regina Protmann

vive de 1552 a 1613, época da Reforma, incluindo o Concílio de Trento (1545 a 1563), grande marco da restauração ca-tólica. Muitas dioceses se extinguiram, aderindo ao protestantismo. A diocese do Ermland foi uma das únicas da região a permanecer católica. A partir de 1565, a diocese, especifi camente Braunsberg, recebia padres jesuítas.

A espiritualidade na época da Refor-ma se caracteriza pelo esforço na busca de um cristianismo equilibrado entre teo-centrismo e antropocentrismo; época de santidade fundada no ideal de perfeição e heroicidade; forte tendência individu-alista: a oração mental é o eixo da nova espiritualidade, e a oração particular, afetiva e contemplativa é sua nota essen-cial; há expansão mística; muitas práti-cas espirituais: mortifi cação, penitência, jejum e fl agelação, orações unidas ao sa-crifício e à ascese, obediência e pobreza. A espiritualidade da Reforma é bíblica e

1 Pertencente à Congregação das Irmãs de Santa Catarina,V.M., a Autora tem especialização em Forma-ção para a Vida Religiosa e em Música. O texto aqui apresentado é uma contribuição dada no Simpósio de Espiritualidade Franciscana, realizado na Estef, de 28 de setembro a 01 de outubro de 2010.

Cadernos da ESTEF 45 (2010-2) 51-54

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patrística, buscando de diferentes modos aprofundar os mistérios de Cristo.

Mesmo sendo fortemente pessoal, a espiritualidade se abre ao apostólico--missionário e gira entre dois polos: vida contemplativa e vida ativa. Toda história da Reforma é uma luta contínua de equi-líbrio entre duas forças íntimas e vitais de toda espiritualidade social e eclesial: contemplação e ação.

Situando a Vida Religiosa feminina no contexto eclesial da época, destacam--se experiências muito signifi cativas. Estava em gestação um novo tipo de Vida Religiosa feminina. Diante da in-quietação com as pessoas necessitadas, há iniciativas de vida apostólica. Saúde, educação e o especial atendimento aos pobres são elementos fortes.

Em 1216 são aprovados pela Igreja os Beguinários, uma espécie de conven-tos nos quais mulheres piedosas viviam em comunidade, sob a direção de um sa-cerdote, monge ou frade da localidade. Não faziam votos, mas uma promessa, após dois anos de noviciado, de viver a castidade e a obediência. As Beguinas, assim denominadas, dedicavam-se ao cuidado dos enfermos, ensinamento das crianças, assistência aos pobres e cultivo da piedade. Situavam-se num meio ter-mo entre a vida laical e vida consagrada da época. Em Braunsberg, no tempo da fundação de Regina Protmann ainda ha-via algumas Beguinas, mas esse modo de vida foi se extinguindo.

Mesmo com o desabrochar da Vida Religiosa feminina ativa, em 1566, com a constituição Circa Pastoralis, de São

Pio V, o despertar da mulher para o servi-ço apostólico sofre duro golpe. Na Igre-ja, ainda, o único lugar possível para a mulher não casada era o convento, com estrita clausura. A mulher consagrada é vista como esposa de Jesus Cristo, for-çada a viver sua vida na clausura como única forma de fi delidade ao Senhor. Além da visão da Igreja institucional, a vida consagrada feminina fora da clau-sura, em meio o povo, também era inca-bível para os familiares das jovens que desejassem seguir o novo modo de vida religiosa.

Em 1552, época de muitos confl itos, guerras, cisma da Igreja, tempo de Re-forma e Contra-reforma, nasceu Regina Protmann. Seus pais, Peter Protmann e Regin Tingels, eram honestos e respeita-dos em Braunsberg e na diocese do Er-mland. Eram ricos, de antiga e honrada descendência. Sua família era profunda-mente cristã e engajada na Igreja local, dedicada à Santa Catarina de Alexandria. Regina recebeu boa formação religiosa e esmerada educação, destacando-se nisso a atuação dos sacerdotes jesuítas.

Em sua juventude Regina era incli-nada às vaidades. Sentia prazer na bele-za de seu corpo, de suas vestes e de seus dons. Era pessoa determinada e muito inteligente.

Aos 19 anos, o brilho da graça di-vina começou a luzir no coração de Regina. Envolvida e tocada pelo amor gratuito de Deus, abandona totalmente as vaidades do mundo, deixando a casa paterna e rompendo com todas as segu-ranças humanas e naturais. Com duas

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companheiras, foi morar numa casa po-bre, para abraçar uma vida de pobreza e de comunhão com seu Senhor e Deus.

Regina percebeu os apelos de Deus e respondeu a Ele com fi delidade. Sen-tiu-se inclinada à oração, para discernir e acolher o apelo que Deus lhe fazia. Agra-ciada por um profundo amor a Deus, fi el ao impulso do Espírito Santo, aberta aos sinais dos tempos, conheceu as necessi-dades da Igreja e do seu povo.

Ao ver a pobreza dos que estavam fora dos muros de Braunsberg, foi ao seu encontro. Transpôs a clausura, servindo com amor e desprendimento aos pobres, doentes e abandonados. Aceitou educar meninas em seu convento, elevando a dignidade da mulher pobre. Também zelou com amor pela casa de Deus, cui-dando dos paramentos, toalhas e velas do altar da igreja Santa Catarina.

Regina não tinha pensado, a prin-cípio, em fundar uma congregação reli-giosa, mas impelida pelo Espírito, con-duzida pela graça de Deus, se tornou fundadora de um novo estilo de Vida Religiosa feminina, comunidade apostó-lica de vida contemplativa e ativa. Aos poucos, outras jovens se juntaram a Re-gina e suas companheiras. Cresciam no amor fraterno e na união. Eram “um só coração e uma só alma”.

A comunidade eclesial se fez sen-tir no momento de escolher o nome da Congregação. A Igreja de sua comuni-dade local era dedicada a Santa Catari-na de Alexandria V.M., muito cultuada pelo povo de Braunsberg. Desde criança aprendeu a venerá-la. A santa da Igreja

em que Regina fora batizada e alimenta-da em sua vida de fé, foi escolhida por Regina como protetora de suas Irmãs: Congregação das Irmãs de Santa Catari-na, virgem e mártir.

A dimensão da mística esponsal e martirial de Santa Catarina de Alexan-dria, VM, marcou a espiritualidade de Regina.

A Bem-aventurada Regina Prot-mann, na Igreja e na sociedade de seu tempo, expressou o dom de seu caris-ma e espiritualidade de forma criativa e signifi cativa transpondo a clausura e fundando uma comunidade apostólica de vida contemplativo-ativa, servindo os pobres, doentes e abandonados com amor e desprendimento, fundando esco-las para meninas e elevando a dignidade da mulher, zelando com amor pela casa de Deus, vivendo em comunidade frater-na e tendo uma vida santa.

O núcleo fundante da congregação está na experiência de Regina, que bus-cou uma vida de profunda comunhão com Deus, seu Senhor, em aliança es-ponsal com Jesus Cristo, “seu amantís-simo Esposo”.

Sua espiritualidade cristocêntrica teve como alicerce a aliança esponsal com Jesus, seu “amantíssimo Esposo”; o extraordinário amor e comunhão com Jesus Eucarístico; o amor à Palavra de Deus, com acento particular no Mistério Pascal; o total abandono à vontade de Deus e a docilidade às moções do Espí-rito Santo, segundo o lema que adotou: “Como Deus Quer”.

As Irmãs de Santa Catarina, VM, a

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partir do núcleo fundante e espiritualida-de de sua fundadora, propõem-se viver a espiritualidade congregacional com destaque na consagração, em profunda comunhão com Deus, na aliança espon-sal com Jesus Cristo, Servo obediente; participação do Mistério Pascal, tendo a Eucaristia como fonte de vida, de doação e serviço oblativo; meditação da Palavra de Deus, particularmente a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo; vida as-

cética, na docilidade ao Espírito Santo, tornando visível o “Como Deus Quer”; obediência e abandono à vontade de Deus; vivência da caridade cristã na vida fraterna e apostólica; eclesialidade; amor traduzido em serviço: educação, saúde, inserção pastoral e social.

Endereço da Autora:[email protected]

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ESPIRITUALIDADE DA CONGREGAÇÃODAS IRMÃS FRANCISCANAS DENOSSA SENHORA APARECIDA

Ir. Salete Dal Mago1

_________________ _________________

O fi m do século XIX e início do sé-culo XX são marcados por correntes de pensamento, oriundas da Europa, que tentam defi nir os rumos da vida de nos-so País. Dentre elas, o liberalismo e o positivismo. Ambos tiveram infl uência nos meios intelectuais, particularmente no Rio Grande do Sul. A característi-ca principal desse período é constituída pela preocupação dominante da hierar-quia católica com a presença da Igreja na sociedade brasileira. Tratava-se de criar uma ordem política e social fundamen-tada nos princípios cristãos. Mesmo de forma lenta, a Igreja do Brasil iniciava um processo de renovação de suas estru-turas. Um dos aspectos que se eviden-ciou nesse período foi a afi rmação de leigos no exercício da missão apostólica.

Dom João Becker começou a pro-mover reuniões de intelectuais gaúchos com a fi nalidade de conquistar espaço

para a instituição católica na esfera polí-tico-social do país. Surgiu daí, em 1927, o Instituto Católico de Belas-Letras e de Ciências que passou a articular os encon-tros e palestras sobre assuntos literários, científi cos e fi losófi cos. Frei Pacífi co foi o assistente do Instituto2.

Para a educação e o desenvolvimen-to cultural da juventude, a Igreja apelou para Congregações Religiosas da Euro-pa, que vieram em grande número para o Brasil. Entre 1880 e 1930, vieram ao Brasil 93 congregações, quase todas do Continente europeu. Outras 22 congre-gações foram fundadas aqui mesmo no Brasil, no início do século XX. Entre es-tas, a Congregação das Irmãs Francisca-nas de Nossa Senhora Aparecida.

Na época, a Vida Religiosa desem-penhava funções altamente prezadas pela sociedade, tornando-se um forte

1 A Autora é mestra em Teologia e pertence à Congrega-ção das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Apareci-da. O texto é o resultado de sua participação no Simpó-sio de Espiritualidade Franciscana realizado na Estef, de 28 de setembro a 01 de outubro de 2010.

2 Ver “Ecos do VII Centenário...”, de Fr. Pacífi co de Bel-levaux escrevendo ao Provincial. Cadernos da Estef, n. 35 (2005), p.128-129. No mesmo Caderno, p.122-127, cf. palestra de D. João Becker sobre o “Apostolado francis-cano no RS”.

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atrativo para a juventude feminina. A Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida surgiu nesse contexto com propósito de ser uma con-gregação bem inculturada e voltada ao atendimento das pessoas que não vinham sendo assistidas na sociedade, surdo-mu-dos, cegos e outros.

A identidade da Congregação já apa-rece no nome escolhido: “Irmãs Francis-canas” - porque assume a espiritualidade de Francisco de Assis, segundo a Re-gra da Terceira Ordem Regular de São Francisco de Assis. “De Nossa Senhora Aparecida” - porque, nascida no Brasil, a Congregação escolhe Maria como mãe, padroeira e modelo, e quer estar em pro-funda empatia com a índole do povo que vive nesta terra.

Sua forma de vida e missão fun-damentam-se no seguimento de Jesus Cristo, pobre, humilde e crucifi cado. O seguimento discipular do Mestre conduz as Irmãs à missão de servir os pobres e abandonados. Maria as protege nesse caminho, como orienta a fundadora Ma-dre Clara: “Unidas sob o manto da que-rida Mãe, prometemos-lhe honrar-lhe o nome de ‘Aparecida’, sendo aparecidas na humildade, na caridade, na pobreza e na obediência. Apareçamos onde não transita muita gente, lá no porão, onde ninguém se acotovela. Desapareçamos das fachadas, onde já há bastante gente”.(CMC, SI, D 30/A, 7 1949).

Junto com o carisma que lhe deu nome e identidade, a Congregação her-dou uma espiritualidade, força em que ela vive e se move. Pois espiritualidade é

viver segundo o Espírito, no seguimento de Cristo. Isto tem infl uxo nas pessoas para se tornarem melhores, mais huma-nas, fraternas, solidárias, abertas; e se traduz numa relação de amizade com Deus, o “único necessário”, o absoluto pelo qual vale dar a vida.

Os fundadores, Madre Clara Maria de Azevedo e Souza e Frei Pacífi co de Bellevaux, queriam uma ‘’Congregação nacional com espírito franciscano”. A es-piritualidade franciscana é uma forma de viver o Evangelho de Cristo, do jeito de Francisco de Assis. Ele “deixou-se guiar pelo espírito do Senhor e seu santo modo de operar” abraçando o caminho de Je-sus Cristo pobre, humilde e crucifi cado, numa vida de radical pobreza e simplici-dade. Assim deu origem a uma vida re-ligiosa no meio do povo das periferias, tendo por convento o mundo, e por ir-mãos todas as pessoas, especialmente os pobres.

Essa espiritualidade é a base que ilumina a nova Congregação, que, en-tretanto, apresenta confi guração própria. Destacamos a seguir, algumas caracterís-ticas da espiritualidade franciscana que são assumidas pela Congregação.

1. ESPIRITUALIDADE FRAN-CISCANA

1.1 O EVANGELHO COMO REGRA DE VIDA

Francisco cultivava uma abertura sincera à Palavra de Deus. Desejava pe-netrar a fundo em cada letra da Sagrada

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Escritura, para viver seu espírito. A Pala-vra era-lhe luz, fundamento, referência. Mantinha um profundo respeito e grande amor ao Evangelho: “Ninguém me mos-trou o que deveria fazer, mas o altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test 14).

1.2 A CONTEMPLAÇÃO

Francisco deixou-se transformar, colocando a mente, a alma e o coração em Jesus Cristo. Centrou afetivamente em Deus toda sua capacidade de com-preender, de amar e de viver. Deixou-se olhar por Deus, alimentando uma relação pessoal com ele, com as Irmãs e Irmãos, e com todas as criaturas, evitando qual-quer apropriação. Concentrou sua vida no inefável TU de Deus: Tu és santo, tu és grande... Vivia imerso na contempla-ção de Deus, presente em tudo que o ro-deava.

1.3 A FRATERNIDADE

Francisco intuiu bem: ‘Deus é nosso Pai e nós somos todos irmãos’. Passou a viver em fraternidade, ligado aos ir-mãos com ternura e amor. Um dos fun-damentos da fraternidade é o mistério de Encarnação, em que o Filho de Deus “esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhan-ça humana” (Fl 2,7). É Deus que se en-carna, se faz menor entre os menores. A fraternidade constrói-se quando a pessoa se coloca como menor, sendo capaz de

acolher os outros como são: “Não quei-ras da parte deles outra coisa, a não ser o quanto o Senhor te conceder. E ama-os em tudo isso; e não queiras que sejam cristãos melhores” (Mn 7).

A fraternidade franciscana não se limita aos que participam no mesmo pro-jeto de vida; ao andarem pelo mundo, os frades devem levar consigo uma alma fraterna, disposta a relações novas com todos.

1.4 A MINORIDADE

A minoridade caracteriza e qualifi ca a vida em fraternidade. Fundamenta-se na maneira de ser de Deus, manifestada na pessoa de Jesus. “Sendo de condi-ção divina, não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar... mas humilhou-se e foi obediente até a mor-te e morte de cruz” (cf. Fl 2 6-8). Fez--se pobre, humilde, despojado, menor; e ensinou aos discípulos este modo de ser. Francisco o assumiu por inteiro e orien-ta o seu grupo: “ninguém se denomine prior, mas todos, sem exceção, sejam chamados de irmãos menores. E um lave os pés do outro” (RnB 6, 3-4).

Contemplando o “despojamento do Filho de Deus, particularmente no Pre-sépio, na Eucaristia e na Cruz, Francisco propõe-se a segui-lo com radicalidade. Assumiu como sua e transmitiu a seus Irmãos uma maneira própria de viver o Evangelho, seguindo o Cristo pobre, hu-milde e crucifi cado” (Doc. da Espiritu-alidade, 34). A minoridade impregna de amor e respeito a vida fraterna e fecunda

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todo relacionamento. Francisco instau-rou uma vida fraterna muito singular, feita de espontaneidade, respeito, aten-ção mútua, cortesia, amabilidade, cari-dade e ampla liberdade.

1.5 A VIDA APOSTÓLICA

Jesus Cristo, o enviado do Pai, con-cretiza o plano de salvação num projeto de ‘vida em abundância para todos’ (cf. Jo 10,10). Com outras pessoas envolve--se na missão: “Ide por todo mundo, pro-clamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15). Tocado por Deus, Francisco, iniciou esse projeto de vida a partir da conversão no encontro com o leproso e com o crucifi cado, quando o Senhor lhe diz o que fazer: “vai e restaura a minha casa...” (2Cel 10,4).

A forma como Francisco iria exer-cer a missão lhe é revelada mais tarde, na Porciúncula, quando escuta o Evangelho em que o Senhor envia os Apóstolos em missão. Na alegria de ter encontrado a resposta, ele exclama: “É isso que eu quero, é isso que procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração” (1Cel 22,3). De modo simples, Francisco e seus confrades anunciam o Evangelho, como fi zeram Jesus e seus Apóstolos. E lembra aos irmãos o envio de Jesus: “Quando os Irmãos vão pelo mundo, nada levem pelo caminho, nem bolsa, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem bastão” (RnB 14,1).

Para Francisco, ‘deixar o mundo’ ti-nha sentido de conversão, e ‘ir pelo mun-do’ tinha o sentido de evangelizar, me-

diante o testemunho e a palavra; exige, porém, a prioridade do testemunho sobre a palavra: “todos os irmãos preguem pe-las obras” (RnB 17,3).

Em Santa Clara, a apostolicidade é centrada na oração, na consagração to-tal ao Senhor. Porém ela incentiva Fran-cisco quanto à dimensão apostólica da pregação. Francisco alertava seus irmãos a exercerem com alegria a missão, espe-cialmente junto aos mais pobres: “E de-vem alegrar-se quando conviverem entre pessoas insignifi cantes e desprezadas, entre os pobres, fracos, enfermos, lepro-sos e os que mendigam pela rua” (RnB 9,2; TOR 21).

Outro elemento importante do Evan-gelho em que Francisco fundamenta sua missão é o ‘anúncio da paz’. Cristo cha-mou de bem-aventurados os construtores da paz, anunciou a paz denunciando toda forma de injustiça. São Francisco empe-nhou-se em criar uma cultura universal de paz, a partir de seu testemunho: “São ver-dadeiramente pacífi cos aqueles que, por tudo o que sofrem neste mundo, conser-vam a paz, na alma e no corpo por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Ad 15).

O desejo de nossos fundadores, Madre Clara Maria de Azevedo e Sousa e Frei Pacífi co de Bellevaux, foi fundar “uma congregação bem franciscana e bem brasileira” ou seja, bem incultura-da. Herdamos estas características como Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida. Com algumas peculiaridades: a “Vida em Betânia”, o exemplo de Marta e Maria e seu irmão Lázaro, em compa-nhia do Mestre, o Divino Hóspede.

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2. ESPIRITUALIDADE FRAN-CISCANA APARECIDA

2.1 VIDA EM BETÂNIA, CENTRO INSPIRADOR

O centro inspirador da Congregação Aparecida, fundamenta-se em Lucas 10, 38-42, onde Jesus ensina um modo de viver voltado para o ‘único necessário’. Nossos fundadores batizaram nossas ca-sas de “Betânias”, porque “outrora Jesus descansava em Betânia, na casa de Mar-ta e Maria”. Assim em nossas casas, ele “deve descansar entre as Martas-Marias (Constituições da Congregação, 5). Nas Betânias as Irmãs serão Martas-Marias: “Martas pela atividade e Marias pelo re-colhimento e pela união com Deus”.

“Nossas Betânias são espaços teolo-gais e lugares privilegiados para aconte-cer a experiência de Deus. Sendo centros de espiritualidade e missão, caracteri-zam-se como lugares de acolhida, sim-plicidade, sensibilidade, caridade, ora-ção, silêncio interior e exterior, ambiente bem cuidado. Tudo há de lembrar que o Senhor está presente, que a Betânia é a sua casa. O Divino hóspede deve descan-sar em nosso meio, para nos ouvir, nos falar e nos enviar. É uma questão de aco-lhida, criar espaço favorável em nós e ao redor de nós. É nosso espaço de vida e de missão” (Doc. da Espiritualidade, 45).

2.2 O SER MARTA-MARIA

Nossos Fundadores nos legaram uma espiritualidade de escuta, de obedi-

ência e de adesão à Palavra, a ser viven-ciada no seguimento discipular do Se-nhor. O Santo Evangelho é sumamente valorizado, especialmente quando Ma-dre Clara fala da responsabilidade de ob-servar os votos pronunciados, com a mão sobre a “Carta de Nosso Senhor, o Evan-gelho”. O texto de Lucas 10, 38-42, que mais fortemente perpassou a experiência espiritual dos Fundadores, foi assumido como inspiração evangélica, dando o toque de originalidade à espiritualidade das Irmãs Franciscanas de Nossa Senho-ra Aparecida.

O Evangelho registra a atitude das duas irmãs em relação ao Hóspede Jesus. Marta recebe o Mestre e quer oferecer--lhe hospitalidade digna. Mas o clima é de preocupação e ansiedade, movida pela necessidade de não lhe faltar nada. Marta mostra efi ciência, no entanto, o ideal de efi ciência, quando cultivado com rigi-dez, faz perder o equilíbrio, a visão de conjunto, o essencial. Faz perder a ‘me-lhor parte’, que existe em cada pessoa.

Maria colocou-se aos pés de Jesus para escutá-lo, para alimentar-se de sua Palavra, de sua presença, numa atitude de quem o honra como Mestre. Por isso escolheu parar, sentar-se e conceder a si mesma um tempo interior. A ‘melhor parte’, escolhida por Maria consiste em olhar na direção dele.

Jesus não censura Marta por traba-lhar. Questiona-lhe sua inquietação, sua agitação interior que difi culta a união com Deus e com as pessoas com quem convive.

Ser Marta, sem deixar de ser Maria.

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“Marta e Maria são como dois olhos de um mesmo olhar, ambos olhando na di-reção do único Senhor”. Com isso somos convidadas diariamente a criar uma cul-tura de interioridade, de escuta, de aco-lhida e de serviço apostólico generoso. A centralidade na pessoa de Jesus Cristo possibilita viver com olhar contemplati-vo e servir com generosidade e alegria (DE, p. 69-77).

2.3 O DIVINO HÓSPEDE

Para Madre Clara, a Missa é a ‘ora-ção máxima’. Convida as Irmãs a fazer da Eucaristia o centro de suas vida: “Fa-çamos do sacrário, com novo fervor, o centro de nossa vida”. A Eucaristia será acentuada pelo Vaticano II e por João Paulo II como fonte e centro da Vida Cristã. Madre Clara comunga com o pensar da Igreja de seu tempo, em que se valoriza o esplendor dos sacrários, dos ostensórios, das vestes litúrgicas. Nesse contexto surge a expressão ‘Divino Hós-pede’. Jesus Eucarístico torna-se o Di-vino Hóspede, a partir da frase de Dom João Becker: “Deixo Nosso Senhor aos cuidados das Senhoras”, fato que marca o início de nossa Congregação (24 de junho de 1928). Inicia-se daí um novo convívio, um novo programa de vida: as Irmãs tornaram-se “guardas de honra do Divino Hóspede”. Nasce uma forma própria de cultivar a espiritualidade eu-carística nas Betânias da Congregação, onde Jesus é o Divino Hóspede. “Dessa presença surge um modo próprio de ser, de conviver com Ele, de relacionar-se

com as coirmãs, com os demais, e de ir em missão”(DE, 53).

As dimensões da Eucaristia não se fi xam no sacrário mas se abrem ao compromisso de comungar com os mais abandonados; de lutar pela inclusão de todos à mesma mesa; de comungar com os que estão afastados da mesa do pão, da justiça, dos direitos. Viver a espiritu-alidade de Jesus Hóspede em nossas Be-tânias signifi ca comungar sua vida, dada em sacrifício, tornando-nos, com Ele, oblação e ação de graças ao Pai.

2.4 A CARIDADE, VIRTUDE RAINHA

A caridade, o amor é da essência do Carisma e Espiritualidade das Irmãs Franciscanas de N. S. Aparecida. Essa é a primeira lição que Frei Pacífi co dá às irmãs dizendo: “Não viremos a folha sem sabermos essa lição”. O apelo à ca-ridade vem, pois, da origem da Congre-gação. É sua base e fundamento. “Nossa missão específi ca baseia-se inteiramente no preceito da caridade: amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e men-te, com todo vigor, e ao próximo como a si mesmo. Este preceito expressa-se no exercício da missão, feita com generosa dedicação e com carinhoso acolhimento das pessoas sem lugar e sem vez na so-ciedade” (Projeto da Formação, 31).

Nossos fundadores deixaram claro qual a espiritualidade desejam na Con-gregação e que eles mesmos vivem. Ma-dre Clara o expressa assim: “Lembremo--nos que a espiritualidade franciscana se

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concentra na Caridade”. A riqueza maior das irmãs e formandas, a alegria de uma Betânia está no amor que nela reina. “A caridade, manifestação do amor de Deus, expressa-se de muitas formas: na simpli-cidade, na humildade, na alegria, no di-álogo, na obediência, na disponibilidade e em muitas outras virtudes, pois, aquele que tem uma e não ofende as outras, tem todas” (Saudação às Virtudes, 6). Nossas Constituições mostram o que signifi ca viver isto na prática: “Viver a caridade de forma criativa em comunhão, solida-riedade, espírito de pertença e amor fra-terno, somando os dons de cada Irmã” (Constituições da Congregação, 35).

Por isso, os fundadores recomenda-vam tanto essa rainha das virtudes: As Irmãs devem ter umas para com as outras os sentimentos da mais cordial caridade. É um programa a ser recomeçado todos os dias: uma vida nova no amor.

2.5 BETÂNIA, VIDA EM MISSÃO

O desejo de servir ao próximo é marca de nossos fundadores, particu-larmente, em relação as ‘classes mais abandonadas’. Alicerçada no Carisma, a Congregação faz sua opção fundamen-tal: “assume como lugar social as classes mais abandonadas, excluídas, marginali-zadas” e reassume com a Igreja a “evan-gélica opção preferencial pelos pobres, participando da transformação liberta-dora do povo... comprometendo-se com o anúncio do Reino pelo serviço, pela palavra, sobretudo pelo testemunho de vida” (Projeto da Missão, 50).

Assumindo o lugar social das clas-ses mais abandonadas, cresce uma espi-ritualidade de missão, solidária com os empobrecidos e marginalizados, os que não têm lugar nem vez na sociedade, e procura “sentir-se feliz por estar entre os mais pobres e fracos”.

A missionariedade está no coração de qualquer forma de Vida Consagrada (VC 25). Madre Clara, sempre aberta aos apelos da Igreja, buscava “uma inserção sempre renovada”. Hoje somos inter-peladas a levar o Evangelho para além fronteiras, a diferentes culturas, buscan-do servir com alegria e disponibilidade, de modo simples, acessível e solidário (cf. PM, 46 e 50).

No seguimento de Jesus Cristo po-bre, humilde e crucifi cado, somos de-safi adas a assumir um modelo de Vida Religiosa libertador, profético, de com-promisso social e solidário, evangelizan-do de maneira simples e acessível, num testemunho alegre e em fraternidade, sendo mensageiras da PAZ e do BEM.

Nosso ser apostólico deve ser itine-rante, para chegar às pessoas mais ne-cessitadas, tendo com todos, acolhida e bondade, e cultivando, como Francisco, uma imagem positiva da pessoa, que é imagem do Filho de Deus. A exemplo da Mãe Aparecida, exercitamo-nos no processo de inculturação no anúncio da Boa Nova do Reino, assumindo uma es-piritualidade encarnada, integrada e in-tegradora. “A espiritualidade da missão encontra sua fonte no amor e na minori-dade evangélica que nos torna solidárias onde estamos e atuamos, bem como no

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modo de ser e de servir: simples, acessí-vel, alegre, disponível” (DE, 68).

Endereço da Autora:[email protected]

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PRÁXIS E DOUTRINA DO SENSUSFIDELIUM NO VATICANO II1

Wilson Dallagnol_________________ _________________

Resumo: Este é o segundo de uma série de três textos sobre o sensus fi delium. Faz uma abordagem histórico-teológica de sua construção doutrinal, com especial destaque ao trata-mento dado no Concílio Vaticano II. Menciona debates e põe em relevo dois textos concilia-res com referência ao tema, isto é, a Lumen Gentium e a Dei Verbum. Conclui pontualizando algumas relevâncias.

Palavras-chaves: Sensus fi delium, sensus fi dei, Vaticano II, Magistério eclesial, Lumen Gentium, Dei Verbum.

O sensus fi delium é um sujeito es-sencial no interior da prática eclesial. Sua história e elaboração teórica na teo-logia mostra ser uma categoria eclesioló-gica que precisa ser levada a sério quan-do se abordam os temas que envolvem os agentes portadores da Revelação de Deus.

O presente estudo contempla um dos eventos mais signifi cativos no inte-rior da Igreja. Queremos averiguar, rela-tar e refl etir sobre como o sensus fi delum foi apresentado no Concílio Vaticano II. De antemão dizemos que ele aparece li-gado à vida da Igreja (Lumen Gentium - tratado sobre a Igreja), ligado à Palavra

de Deus (Dei Verbum - sobre a Revela-ção) e com menos incidência, embora importante, ligado à inserção da Igreja no mundo (Gaudium et Spes).

Nosso estudo percorrerá o seguinte caminho: começamos com algo sobre o contexto em que aconteceu o Concílio Vaticano II; em seguida, não podemos ignorar a prática pastoral participativa e colegial, fraterna e alegre do papa João XXIII, que, com seu carisma e simpli-cidade, encantou o mundo; em terceiro lugar, veremos a questão do sensus fi de-lium na prática e na defi nição doutrinal do Vaticano II: breve síntese dos debates conciliares, evolução textual de LG 12 e DV 8b, uma hermenêutica destes textos signifi cativos, terminando com uma vi-são sobre os efeitos do sensus fi delium na prática e no espírito do mencionado concílio.

6 Este é o segundo artigo sobre o sensus fi delium, histó-ria teológica e evolução da práxis e doutrina. A primeira parte é incompleta sem esta, pois dá-se uma evolução em sua compreensão teológica depois do Concílio Vati-cano II. O artigo anterior está em Cadernos da Estef, n. 44, 2010/1, pp. 60-79.

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1. CONTEXTO DO VATICANO II

Não se pode dissociar o Vaticano II da pessoa do Papa João XXIII. Convém começar por ele, pois foi quem entendeu a necessidade de escutar a voz do Espí-rito a falar nos fatos da vida concreta, do mundo e da Igreja. Mais interessante que os documentos é considerar a maneira como o papa procurou envolver toda a Igreja na realização do Concílio.

O contexto histórico desse evento eclesial mostra que existia um clima fa-vorável para a Igreja viver na proximi-dade com as pessoas e com toda a hu-manidade. A convocatória do Concílio suscitou uma expectativa além dos limi-tes da Igreja. Reunida ela em concílio, não se ausenta do mundo. E a ação dos católicos transparece, mesmo que não se veja o rosto dos teólogos ou o que se passa nos conventos, ou mesmo que não se conheçam as encíclicas nem se parti-cipe da vida da Igreja. E “num mundo atormentado com mil problemas gravís-simos, de fome e ignorância, de ameaças de guerra, de ódios raciais, de subde-senvolvimento, de imperialismos eco-nômicos, políticos e sociais, a ação dos católicos torna-se muito mais urgente” (MADRIGAL, 2002, p. 51). Um grupo de padres e leigos fi zeram um Sympo-sium, em 1962, cujo tema central era a autoridade. No capítulo que trata da au-toridade dos concílios, P. Fransen (1964, p. 88) inclui a questão do sensus fi delium no âmbito da comunhão na mesma fé, o que quer dizer que a comunhão se dá ao

redor do mesmo senso comum e se ex-prime nas Igrejas, que estão sempre em comunhão com o testemunho apostólico recebido.

2. GAUDET MATER ECCLESIA: O CARISMA E A SIMPLICI-DADE DE JOÃO XXIII

A humildade e o carisma pessoal de João XXIII estão em sintonia com o Povo de Deus, e vão além das frontei-ras católicas, graças a sua simplicidade e afabilidade que suscitaram vasto con-senso, “restituindo um rosto evangélico e autenticamente humano ao papado” (BEOZZO, 1995, p. 405). O Vaticano II mostra uma Igreja em concílio, a partir e com a inspiração do Espírito Santo. É um fato que João XXIII, eleito papa, em 28.10.1958, pouco esperou para anunciar ao mundo seu desejo de realizar um Con-cílio. O Povo de Deus recebeu a proposta do com surpresa e alegria. “João XXIII mostrava rumos muito claros e apontava para uma mudança radical na orientação tomada pela Igreja, pelo menos desde o Concílio de Trento” (COMBLIN, 2002, p. 6).

O “papa bom” gostava de associar o Vaticano II a um novo Pentecostes na Igreja, signifi cando uma virada na vida da Igreja, especialmente pela mudança do método dedutivo para um método in-dutivo, no qual se aceita a história como parte da vida da Igreja. O Vaticano II é o acontecimento espiritual do século XX. Para responder às solicitações do Espírito e às expectativas do mundo mo-

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derno, era preciso a estatura humana de João XXIII, numa síntese de humilda-de e coragem. No discurso inaugural, o papa camponês expressa o desejo de que o Concílio marque um “retorno às fon-tes” e dê atenção à questão da Revela-ção diante de tantas perspectivas inéditas (PHILIPS, 1967 (II), p. 295). Ele teve a coragem de realizar o aggiornamento2 daquilo que tanto queria, não obstante a confusão inevitável e largamente difusa no período de transição, que provocou, aqui e ali, reações mais profundas do que se esperava. O Concílio tornou-se mo-tivo de alegria para o próprio papa que o convocou e para o povo de Deus, que pôde ver uma nova estação na Igreja: fulgurou como «um dia cheio de luz es-plendíssimo», qual aurora de uma época nova da Igreja (cf. CASALE, 1998, p. 8).

E João XXIII convida os Padres Conciliares a usar de misericórdia, mais que severidade: “A Igreja sempre se opôs aos erros; os condenou com a máxi-ma severidade. Agora, a esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia antes que a da severidade. Ela prefere ir ao encontro dos necessitados mostran-do a validade da sua doutrina” (JOÃO XXIII, 1962, p. 57).

João XXIII é um papa aberto e dia-logal, capaz de compreender os anseios do mundo em mudança. E mostra que o caminho da Igreja é a pessoa humana, independente de sua situação: “Hoje, mais do que nunca, somos chamados ao

serviço da pessoa humana como tal, não só dos católicos. A defender, sobretudo, em todos os lugares, os direitos humanos e não só os da Igreja católica” (ALBE-RIGO, 1987, p. 494). A maneira como João XXIII exercitou a autoridade não suscitou resistências. Para uma acolhida da proposta evangélica, somos obriga-dos a reconhecer que as disposições de espírito e certa psicologia simpática são indispensáveis.

No processo de preparação do Con-cílio, João XXIII se dirige a todos os bispos católicos para solicitar a sua par-ticipação ativa, vivendo de modo pleno o exercício da colegialidade no estudo das questões. O certo é que “João XXIII, de sua parte, não tinha determinado tema algum para o Concílio, mas havia con-vidado os bispos do mundo a propor as suas prioridades, de modo que das expe-riências vivas da Igreja universal emer-gisse a temática da qual o Concílio se deveria ocupar” (RATZINGER, 2000, p. 66). Não consta que o papa tenha inspi-rado algum dos documentos na fase pre-paratória. É preciso ter respeito à meto-dologia das coisas.

“Tudo vem do alto e deve propagar--se no plano horizontal. Mas também com isto se perde de vista que o desen-volvimento horizontal será sempre uma relação de infl uxo da força vertical; en-tretanto, estas noções, que devem ser bem usadas... sob pena de fi carem ime-diatamente esvaziadas de qualquer sen-tido. Será preciso recordar que nossa re-fl exão se mantém no plano religioso? É quase impossível a um incrédulo radical

2 O termo aggiornamento é mantido na forma italiana pelo signifi cado de que vem imbuído; “aggiornare” sig-nifi ca colocar em dia, atualizar-se, renovar-se, estar em permanente atualização.

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assimilar as noções de um dado revela-do e de sua elaboração teológica” (PHI-LIPS, 1967 (II), p. 326).

A forma de organização do traba-lho preparatório, por meio das diversas comissões, bem como a distribuição das tarefas e funções, mostra uma maneira de compreender o jeito de ser e fazer na Igreja. Trata-se de uma Assembleia mun-dial, com a participação diversifi cada de grupos nacionais, observadores de outras Igrejas, peritos e ouvintes. Muitos órgãos ajudaram a animar a própria Assembleia: os órgãos diretores, os moderadores, o secretariado geral, as dez comissões conciliares. Não menos importante foi o processo de participação e a liberdade de decisão que tiveram os Padres Con-ciliares, até na mudança substancial de alguns documentos. As comissões são eleitas em Assembleia, com certa parida-de entre os nomeados e a representação (cf. AUBERT, 1994, pp. 159-231). “Três anos de laboriosa preparação, abertos à consulta mais ampla e profunda das condições modernas da fé e da prática religiosa e de vitalidade cristã e católica especialmente” (JOÃO XXIII, 1962, p. 35). Era tempo de abertura ao mundo, de unidade dos cristãos e de diálogo.

O processo de participação e de li-berdade, durante o Vaticano II, permitiu a formação de grupos informais de estu-do e debate, como o coetus internationa-lis patrum3 . Eram grupos que se forma-

vam por terem as mesmas convicções e visões quanto ao mundo e à Igreja, tais como: “Igreja dos pobres”, “Aliança universal”, “conferência dos delegados”, “área curial”, “grupo francês”, “grupo latino-americano”, “grupo dos superio-res religiosos”, “grupo dos bispos reli-giosos”, “grupo dos bispos missioná-rios” (cf. RAGUER, 1996, pp. 220-247).

João XXIII, na abertura do Concí-lio em 1962, assim expressa seu júbilo na Gaudet mater Ecclesia (Alegra-se a mãe Igreja): “Veneráveis irmãos, a santa mãe Igreja alegra-se porque, por singu-lar dom da Providência, chegou o dia no qual o Concílio Ecumênico Vaticano II aqui, junto ao sepulcro de São Pedro, so-lenemente inicia, sob a proteção da Vir-gem Santíssima, no mesmo dia em que se celebra a sua divina maternidade” (pp. 32-33). A defi nição da Igreja como mãe e mestra aparece, nos pronunciamentos de João XXIII conjugados. Fala-se da “Igreja mãe e mestra de todos os povos, solícita com as exigências do quotidia-no das pessoas” (JOÃO XXIII, 1961, prólogo). Ou ainda: “A Igreja demons-trou ser mater et magistra... vivendo a ordem temporal sob a luz de Cristo, que ela mesma revela às pessoas, as conduz a descobrir em si mesma o próprio ser, a própria dignidade e o próprio fi m” (JOÃO XXIII, 1962, pp. 12-13).

3 O Coetus Internationalis Patrum foi um grupo de es-tudo/trabalho, que reunia alguns dos participantes do Concílio Vaticano II. Monsenhor Marcel Lefebvre, Su-perior-Geral dos Espiritanos, António de Castro Mayer, bispo de Campos (Brasil), Geraldo de Proença Sigaud,

arcebispo de Diamantina (Brasil), Giuseppe Siri, cardeal de Gênova, Alfredo Ottaviani, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Arcadio Maria Larra-ona, o cardeal Ernesto Ruffi ni, de Palermo, o cardeal Michael Browne e o cardeal Antonio Bacci fazim parte deste grupo, assim como 250 outros prelados partici-pantes do Concílio. Este grupo formou-se em reação às infl uências progressistas manifestadas no Concílio.

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“A gaudet mater Ecclesia, com toda a autoridade do magistério de João XXIII, tornou-se o elemento catalisa-dor dos fermentos teológicos que nes-tes pareceres seriam colocados todos os demais” (RUGGIERI, 1993, p. 262). Assim, no Vaticano II emerge de toda a Igreja a consciência eclesial existente, bem como, aquilo que acontece no mun-do. Por isso que o Vaticano II pode ser um verdadeiro exemplo de escuta e prá-tica do sensus fi delium.

“Antes de elaborar o programa do Concílio, João XXIII decide fazer uma ampla consulta: os bispos, as Congre-gações romanas, as Universidades Ca-tólicas, são convidadas a exprimir suas preferências a respeito dos temas que desejariam discutir. Esta consulta desen-volvida, como era de esperar, movimen-tou um número impressionante de cen-tros de interesse e de sugestões. Todas as respostas são impressas: os 15 volumes em quatro não fi cam aquém de 9.250 páginas. Os adendos somam 8.972 pro-postas… As diversas comissões come-çam a trabalhar no verão de 1959. São compostas de bispos de diversos países e se valem da ajuda de teólogos, chamados ofi cialmente de peritos ou expert. A com-posição destes grupos possui um caráter mais decididamente internacional que em 1870, quando o trabalho foi confi ado principalmente a teólogos romanos. No decurso do Vaticano II todas as decisões, incluídas aquelas das comissões, são to-madas pelos bispos, mediante votos de-liberativos” (PHILIPS, 1967 (I), p. 13).

O Vaticano II representou um verda-

deiro exercício do sensus fi delium, pois no Concílio acontecia uma conspiratio profunda entre o sentido cristão da co-munidade eclesial (sensus fi dei) e o ma-gistério da hierarquia, pois o Concílio supõe necessariamente fé viva e atuante da comunidade dos crentes. Acontece que, no Concílio, “os bispos são a re-presentação viva da Igreja católica es-tendida por todo o mundo. O Concílio é obra humana e obra do Espírito de Deus” (MADRIGAL, 2002, p. 52-53).

Mais que os documentos, o Vaticano II foi uma prática “conciliar” que trans-cendeu o texto, sendo um trabalho e um esforço coletivos, que ajudam a apresen-tar a doutrina da Igreja num momento importante da história. As conferências episcopais e as igrejas locais tiveram uma efervescência muito grande duran-te e depois do Concílio, seja no estudo dos esquemas, nas diferentes instâncias pastorais e eclesiais, seja por suas arti-culações e debates durante o Concílio e nas sessões intermediárias. Os bispos o fazem por meio do contato com os fi éis, por meio de cartas pastorais e visitas (cf. VILANOVA, 1998, pp. 478-507).

3. A DOUTRINA DO SENSUS FIDELIUM NO VATICANO II

A prática, na Igreja, está acima da teoria, embora esta ajude a iluminar e a discernir as práticas. Mas, o que re-almente decide é a prática. Por isso, no ponto anterior, descrevemos a prática “conciliar” do Vaticano II, a qual, com

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seu processo de realização do consenso eclesial elaborou uma série de documen-tos, decretos e declarações que expõem a doutrina da Igreja no atual momento his-tórico. Cabe agora, sob o corte do sensus fi delium, ver o que o Vaticano II declarou solenemente a respeito.

3.1 BREVE HISTÓRICO DOS DEBA-TES CONCILIARES SOBRE O SENSUS FIDELIUM

No esquema De Ecclesia, da Co-missão Preparatória, distribuído em 23.11.1962 e apresentado à Assembleia Conciliar em 01.12.1962, a questão do sensus fi dei (fi delium) aparece no capí-tulo VIII, sobre A autoridade e a obedi-ência na Igreja (cf. AS, I, IV, 1965, pp. 13.122-125). Note-se que, aqui, o sensus fi dei somente diz respeito ao estado de ânimo em receber de forma obediente a doutrina do Magistério. Aparece também a referência à Bula Munifi centissimus Deus (de Pio XII), recordando que se ha-via consultado a Igreja no que se referia à Assunção de Maria aos céus. A nota segue advertindo o perigo de confun-dir senso da fé com a chamada opinião pública (SANCHO BIELSA, 1979, pp. 110-111). Nesta compreensão, o sensus fi dei possui um papel basicamente passi-vo e mais na ordem do colocar em prá-tica aquilo que a autoridade competente ordenou (cf. RUGGIERI, 1996, p. 322).

No período de discussão do textus prior, da Lumen Gentium, debatia-se a noção de sensus fi dei ativo ou passivo. Eram várias as posições. Uma delas,

representada por Dom Hervás (Ciudad Real), sustenta certo caráter ativo do sensus fi dei, já que ajuda ao Magistério, pressentindo alguma vez as verdades contidas no depósito da Revelação (cf. SANCHO BIELSA, 1979, p. 122). Ain-da faltava uma visão mais comunional da Igreja. Entra em debate a questão da obediência dos leigos e a questão do sen-sus fi dei, bem como a intervenção pro-videncial do Cardeal Suenens, sobre os carismas na Igreja, que ajuda a iluminar uma melhor compreensão da questão.

O Cardeal Koenig destaca, no capí-tulo VII, sobre O Magistério da Igreja-, que a infalibilidade na fé à universalida-de do Povo crente pertence, o qual não é um mero receptor, mas, como comu-nidade dos fi éis, infl ui na doutrina do Magistério autêntico (cf. AS, I, 4, 1970, p. 133). Igualmente, a posição de D. M. McGrath destaca a necessidade de inver-ter a ordem, no sentido de colocar em evidência, não o agir, mas o ser e conde-nando a concepção piramidal de Igreja, bem como a submissão cega dos fi éis à hierarquia (cf. AS, II, 3, 1970, p. 204). D. P. Barracina Estevan, destaca que, na Igreja, os leigos não são cristãos de segunda categoria (cf. AS I, 4, 1970, p. 353).

Nos debates do textus emendatus, D. A. Carli, fala da liturgia como lugar para celebrar a fé, reconhecendo que, em matéria de fé e moral, a Igreja goza de indefectibilidade graças ao senso sobre-natural da fé presente em todos os fi éis (cf. AS II, 1, 1970, p. 332). Nas emendas a esse texto, signifi cativas são as suges-

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tões dos bispos da Gália (centro oriental), quando falam da infalibilidade do Sumo Pontífi ce, dos fi éis e dos bispos, como a infalibilidade da Igreja de Cristo (cf. AS II, 1, 1970, p. 585). Na mesma linha são as sugestões de D. A. Carli, quando afi rma que toda a Igreja é portadora de um sobrenatural senso da fé (cf. AS II, I, 1970, p. 641), seguindo-se neste particu-lar também D. A. Tabera Araoz (cf. AS II, 1, 1970, p. 740; cf. AS II, 2, 1970, p. 629; cf. AS II, 3, 1970, pp. 92-94).

Signifi cativa e infl uente é a inter-venção de Dom P. Cantero (Huelva, Espanha), ao afi rmar que o sensus fi dei possui um fundamento e origem teoló-gico-eclesial, sendo que o supremo Ma-gistério da Igreja não pode errar, quando trata do sensus fi dei que pertence a toda a Igreja. Existe um infl uxo do sensus fi dei na vida interna e externa da Igreja de Cristo, importante para que se con-cretize o autêntico magistério na Igreja. Apresenta assim o conceito de sensus fi dei: um dom sobrenatural, proveniente do Espírito Santo, que pertence a todo o Povo de Deus, presente em cada fi el e no conjunto dos fi éis, que opera como um instinto na busca da verdade em matéria de fé e moral, evitando erros de fé ou en-tão captando e aprofundando as verdades da fé, aplicando-as mais profundamente na vida cotidiana. Mostra igualmente que as raízes do sensus fi dei são a própria constituição interior do corpo de Cristo, que é a Igreja. O Espírito Santo é quem age para incitar e sustentar o sensus fi dei. Ao mesmo tempo, existe uma estreita re-lação entre sensus fi dei e magistério da Igreja (cf. AS II, 3, 1970, pp. 283-286).

Pode-se notar, comparando os textos emendatus e defi nitivus, que o Concílio usou muitos elementos colocados por Cantero.

“O senso da fé, explica D. Cantero, é um dom sobrenatural do Espírito Santo, outorgado ao Povo de Deus em seu con-junto e aos membros desse Povo. Atua como instinto da fé, descobrindo o erro e penetrando os mistérios da fé. Origina--se no fi el mediante o ensinamento, mas igualmente mediante a ação interior do Espírito Santo. Assim, por vezes, acon-tece que os fi éis tenham da fé uma inte-ligência mais clara que os teólogos. Eles não são meramente passivos ao ensina-mento. O magistério deve escutar o que o Espírito Santo inspira aos fi éis” (AS II, 3, 1970, pp. 284-285).

São igualmente signifi cativas as emendas apresentadas por Dom Silva Hernandez (cf. AS II, 3, 1970, pp. 408-409), Dom H. Gómez (cf. AS II, 3, 1970, pp. 467-468), D. McEleny (cf. AS II, 3, 1970, pp. 504-505), Dom Dr. Nežič (cf. AS II, 3, 1970, p. 512) e Dom A. Sé-pinski (cf. AS II, 3, 1970, p. 546). Na inter-sessão de 1963-1964, a sub-comis-são se reúne para ultimar os preparativos em vista da apresentação do esquema De Ecclesia e, após a leitura de algumas crí-ticas, Parente propôs substituir a expres-são sensus fi dei por consensus fi delium, proposta não aprovada (cf. VILANOVA, 1998, p. 433).

Essa evolução no pensamento so-bre o sensus fi dei e o sensus fi delium nos debates conciliares tem refl exos nos documentos do Vaticano II, onde encon-

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tramos diversas referências ao sensus fi -delium ou a ele relacionadas (cf. LG 12; DV 8.15; GS 7; PO 9; AG 9.11; OT 16), sensus catholicus (AA 30), sensus chris-tianus fi delium (GS 52), sensus christia-nus (uma sensibilidade autenticamente cristã, GS 62), sensus religiosus (NA 2; DH 4; GS 59), sensus Christi et Eccle-siae (AG 19) e instintus (SC 24; PC 12; GS 18). Este sensus se expressa na cons-ciência cristã e na consciência cristã dos leigos na função real (LG 36), ou se trata de um espírito verdadeiramente cristão (SC 14). Manifesta-se no testemunho de vida (LG 35), na celebração litúrgica (SC 14), no senso cristão dos fi éis, quan-do promovem o matrimônio e a família (GS 52).

Para sermos breves ao apresentar a compreensão do sensus fi delium no Vati-cano II, optamos por confrontar os textos de Lumen Gentium 12 e Dei Verbum 8, sendo que o primeiro aparece mais no contexto do capítulo sobre o Povo de Deus e o segundo se insere no interior da grande Tradição da Igreja, a qual é igual-mente fundamental, pois progride com a ajuda do sensus fi delium. Convém recor-dar que os autores não são unânimes em interpretar este texto conciliar. Uns o en-caram na ótica do sensus fi dei, outros na do sensus fi delium. Partilhamos da posi-ção dos que entendem que o Vaticano II quis expressar, com o senso sobrenatural da fé, o sujeito coletivo da Igreja, neste caso seria o sensus fi delium.

Prima Radactio Textus Prior39. § 2 [De opinione publica in Ec-

clesia]. Est quidem in Ecclesia Christi, ut bene notum est, quidam supernatura-lis sensus fi dei populi universi christiani, qui semper bonus est et indefectibilem peculiaremque pro-prietatem constituit catholicae Eccle-siae: ex alto provenit, et nihil aliud est nisi consensus fi delium et pastorum in rebus fi dei et morum, au-thentico magisterio gubernatus. Ultima-tim exsuscitatur a Spiritu Sancto, qui, dum eidem magisterio adest in catholica doctrina proponenda, idem in fi delibus operatur ut doctrinam propositam oboe--dienti animo accipiant, recte intelligant, et profundius scrutentur; eoque pluri-mum divina missio salvifi ca Ecclesiae adiu-vatur (AS I, 4, 1965, 63).

24. §§ 5-7: Ecclesia tota, quae Deo offert fructum labiorum confi tentium no--mini Eius (cf. Heb. 13, 15), et in creden-do indefectibilis est, hanc suam peculia-rem proprietatem etiam in supernaturali sensu fi dei universi populi christiani ma-nifestat.

Hic sensus fi dei, quo omnes sunt docibiles Dei (cf. Io. 6, 45), coalescit ipsorum con-sensu fi dei et morum, ‘ab Episcopis usque ad extremos laicos fi de-les’, ut dicit S. Augustinus. A Spiritu ve-ritatis excitatus, idem sensus fi dei verbo Dei scripto et tradito sub Eius assistentia inhaeret, et a Magisterio ducitur ac sus-tentatur, cui credentes active respondent, veritatem fi dei profundius perspiciendo, et in vita fi delium aplicando.

3.2 EVOLUÇÃO TEXTUAL DE LG 12:

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Prima Radactio Textus Prior

Propterea, in Ecclesia atque apos-tolatus incrementum, Spiritus dat fi de-libus varia dona et munera ad servi-tium seu ‘diakoniam’, secundum illud: ‘Unusquisque, sicut accepit gratiam, in alterutrum illam administrantes, sicut boni dispensatores multiformis gra-tiae Dei’ (1 Pt. 4, 10). Quae charismata sive clarissima sive etiam simpliciora et latius diffusa, cum sint necessitati-bus Ecclesiae apprime accommodata et profi cua, cum gratiarum actione ac consolatione accipienda sunt. Dona autem extraordinaria non sunt teme-re exspectanda, neque praesumptorie ab eis sperandi sunt fructus operarum apostolicarum; sed iudicium de eorum genuinitate et ordinato exercitio rec-toribus Ecclesiae humiliter submitten--dum est, monente Apostolo: Omnia autem honeste et secundum ordinem fi ant (Cor. 14, 40) (AS II, 1, 1970, 259-260).

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Textus emendatus Textus defi nitivus

12. (olim n. 24, §§ 5-8). [De sensu fi dei et charismatibus in populo chris-tiano]. Populus Dei sanctus de munere quoque prophetico Christi participat, vivum Eius testimonium maxime per vitam fi dei ac caritatis diffundendo, et Deo hostiam laudis offerendo, fructum labiorum confi tentium nomini Eius (cf. Heb. 13, 15). Universitas fi delium, qui unctionem habent a Sancto (cf. 1 Io. 2, 20 et 27), in credendo falli nequit, atque hanc suam peculiarem proprietatem mediante supernaturali sensu fi dei to-tius populi exercet, cum «ab Episcopis usque ad extremos laicos fi deles» (S. Augustinus, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980) universalem suum consen-sum de rebus fi dei et morum exhibet. Illo enim sensu fi dei, qui a Spiritu ve-ritatis excitatur et sustentatur, Populus Dei sub ductu magisterii, cui fi deliter obsequens, iam non verbum hominum, sed vere accipit verbum Dei (cf. 1 Th. 2, 13), semel traditae sanctis fi dei (cf. Iud 3) indefectibiliter adhaeret, recto iudicio in eam profundius penetrat ea-mque in vita plenius applicat (AS, III, 1, 1970, 185-186).

Populus Dei santus de munere quoque prophetico Christi paricipat, vivum Eius testmonium maxime per vitam fi dei ac caritatis diffundendo, et Deo hostiam laudis offerendo, fructum labiorum confi tentium nomini Eius (cf. Heb 13, 15). Universitas fi delium, qui unctionem habent a Sancto (cf. Io 2, 20 et 27), in credendo falli nequit, atque hanc suam peculiarem proprie-tatem mediante supernaturali sensu fi -dei totius populi manifestat, cum «ab Espiscopis usque ad extremos laicos fi deles» (cf. S. Augustinus, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980) universa-lem suum consensum de rebus fi dei et morum exhibet. Illo enim sensu fi dei, qui a Spiritu veritatis excitatur et sus-tentatur, Populus Dei sub ductu sacri magisterii, cui fi deliter obsequens, iam non verbum hominum, sed vere accipit verbum Dei (cf. 1Ts 2, 13), «semel tra-ditae sanctis fi dei» (Iud 3), indefectibi-liter adhaeret, recto iudicio in eam pro-fundius penetrat eamque in vita plenius applicat (LG 12a: AS III, 1970, 793).

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TEXTO DEFINITIVO TRADUZIDO

“O Povo santo de Deus participa também do múnus profético de Cristo, pela difusão do seu testemunho vivo, sobretudo através da vida de fé e de ca-ridade, e pelo oferecimento a Deus do sacrifício de louvor, fruto de lábios que confessam o Seu nome (cf. Hbr 13, 15). O conjunto dos fi éis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2, 20.27), não pode enganar-se no ato de fé. E ma-nifesta esta sua peculiar propriedade me-diante o senso sobrenatural da fé de todo o Povo quando, ‘desde os Bispos até os últimos fi éis leigos’ (Santo Agostinho), apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes. Por este senso da fé, excitado e sustentando pelo Espí-rito da verdade, o Povo de Deus – sob a direção do sagrado Magistério, a quem fi elmente respeita – já não recebe a pa-lavra de homens, mas verdadeiramente a Palavra de Deus (cf. 1Tes 2, 13); apega--se indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (cf Jd 3); e, com reto juízo, penetra-a mais profun-damente e mais plenamente a aplica na vida” (LG 12a).

Na Assembleia conciliar, o texto so-bre o “senso sobrenatural da fé de todo o Povo” não alcançou muito consenso, nem todos os sufrágios. O temor era de dar asas às tendências iluministas e aos movimentos revolucionários derivantes de falsos profetas. Essa apreensão tinha suas razões, já presentes na própria Es-critura, mas não pode minimizar a ação do Espírito Santo, no Povo de Deus. Já

na introdução se estabelece um nexo en-tre o sacerdócio comum e a missão pro-fética de Cristo, da qual todo o Povo de Deus torna-se participante (cf. PHILIPS, 1967 (I), pp. 167-168).

Tem-se a impressão, ao olhar LG 12, que o texto parece algo natural e fácil de ser construído. No entanto, a coloca-ção de cada palavra, o cuidado no estilo e esmerada sistematização que se observa, tudo faz crer que, ali, houve um longo trabalho, com muito diálogo, esforços, redefi nições, retoques... para que o texto pudesse chegar a amadurecer como uma obra. Por isso que é importante entender “a sua dimensão exata, suas matizes, a intenção, o verdadeiro alcance e o senti-do objetivo” (SANCHO BIELSA, 1979, p. 105).

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Textus Prior Textus Emendatus

Viva haec Traditio in Ecclesia sub assis-tentia Spirtus Sancti profi cit (Vat. I, Dei Filius 4: Dz 1800 (3020). Crescit enim tam rerum quam verborum tra-ditorum intelligentia, tum ex contem-platione credentium, qui ea conferunt in corde suo (cf. 2, 19 et 51), tum ex intima spiri-tualium rerum experientia. Ecclesia scilicet, volventibus saeculis, mulierem illam evangelicam imitatur, quae abscondit fer-mentum in farinae satis tribus, donec fermentatum est to-tum (cf. Mt 13, 33; Lc 13,21) (AS, IV, 1, 1970, 349).

Haec quae est ab Apostolis Tra-ditio sub assistentia Spiritus Sancti in Ecclesia profi cit (Vat. I, Dei Filius 4: Dz 1800 (3020): crescit enim tam re-rum quam verborum traditorum per--ceptio, tum ex contemplatione et studio credentium, qui ea conferunt in corde suo (cf. 2, 19 et 51), tum ex intima spiritualium rerum quam expe-riuntur intelligentia. Ecclesia scilicet, volven-tibus saeculis, ad plenitudinem divinae veritatis uugiter tendit, donec con-summentur verba Dei in ea (cf. 1 Cor. 13, 10; Apoc. 17, 17) (AS, IV, 1, 1970, 349).

Os debates sobre a origem divina da Tradição foram fomentados por Dom I. Rupp (cf. AS, III, 3, 1970, pp. 246-248), Dom R. Silva Henríquez (cf. AS, III, 3, 1970, pp. 427-428), Dom P. Meouchi (cf. AS, III, 3, 1970, pp. 853-854) e Dom P. Philippe (cf. AS, III, 3, 1970, p. 863). Quanto à intelligentia perceptio (ato de perceber ou entender) ou intelligentiam attingere (entendimento), temas impor-tantes na questão do sensus fi delium e sua relação com a Sagrada Escritura, o Magistério e a Tradição, são tratadas por Dom I. Rupp (cf. AS, III, 3, 1970, pp. 247-248), Dom A. Larraona (cf. AS, III, 3, 1970, p. 426), Dom Cl. Micara (cf. AS, III, 3, 1970, p. 793) e Dom M. Bro-wne (cf. AS, III, 3, 1970, pp. 187-188).

Ao mesmo tempo, existe um temor e cer-ta oposição quanto à inclusão da questão da experientia, pois a Igreja, com seu magistério defensivo, vinha de um lon-go combate contra o modernismo e não aceitava “as coisas do mundo” (cf. M. BROWNE, in AS III, 3, p. 187; cf. MI-CARA, in AS III, 3, p. 920; cf. RUFFINI, in AS III, 3, p. 145; cf. CONSTANTINI, in AS III, 3, p. 194; cf. CALABRIA, in AS III, 3, p. 595).

3.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICO TEX-TUAL DE DV 8B

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Textus Prior Texto (tradução brasileira)

Haec quae est ab Apostolis Tradi-tio sub assistentia Spiritus Sancti in Ec-clesiae profi cit (Vat. I, Dei Filius 4: Dz 1800 (3020): crescit enim tam rerum quam verborum traditorum perceptio, tum ex contemplatione et studio cre-dentium, qui ea conferunt in corde suo (cf. Lc 2, 19 et 51), tum ex intima spi-ritualium rerum quam experiuntur in-telligentia, tum ex praeconio eorum qui cum episcopatus successione charisma veritatis certum acceperunt. Ecclesia scilicet, volventibus saeculis, ad pleni-tudinem divinae veritatis iugiter tendit, donec in ipsa consummentur verba Dei (DV 8b: AAS 58 (1966), 821).

Esta Tradição, oriunda dos Após-tolos, progride na Igreja sob a assistên-cia do Espírito Santo (Vat. I, Dei Filius 4: Dz 1800 (3020): cresce, com efeito, a compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas, seja pela contemplação e estudo dos que creem, os quais as meditam em seu coração (cf. Lc 2, 19.51), seja pela íntima com-preensão que desfrutam das coisas es-pirituais, seja pela pregação daqueles que com a sucessão do episcopado re-ceberam o carisma seguro da verdade. A Igreja, pois, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que se cumpram nela as palavras de Deus.

3.4 UMA INTERPRETAÇÃO DE LG 12A E DV 8B

Segundo Kasper, LG 12 é um dos textos conciliares mais importantes para entender a problemática da criteriologia teológica. A doutrina do consensus fi dei é um critério de verdade, um ponto focal, com uma perspectiva sincrônica. Aqui se recupera aquela perspectiva apontada por J. H. Newman, quando mostra que ao sensus e ao consensus fi dei da Igre-ja correspondem certa autonomia em relação ao Magistério. Esta autonomia possui seu fundamento na imediata ação do Espírito Santo nos crentes. O ensina-mento conciliar mostra que entre Magis-tério e ação do Espírito Santo existe uma

recíproca alteridade (cf. FERNANDEZ DE TROCONIZ, 1985, pp. 21-22).

O primeiro agente da Igreja - Povo de Deus é o Espírito Santo e a comunida-de está sob seu infl uxo. Assim, os crentes fazem por si a distinção entre a verda-deira doutrina e a heresia, porque estão iluminados interiormente. Acontece que “é o Espírito Santo quem suscita o senso da fé, que o sustenta continuamente com um dom de discernimento entre a verda-de revelada e o erro, em harmonia com o magistério que o mesmo Espírito confere aos bispos” (PHILIPS, 1967 (I), p. 173). O fato de a ação ser de Deus, por meio do Espírito Santo, faz com que o sensus seja supernaturalis.

O Povo santo de Deus é portador

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do Espírito (cf. LG 12). Aqui estamos no campo delicado dos carismas, tema tipicamente paulino. O sentido teológico que nos abre LG 12 é que o Espírito se manifesta na comunidade local, em todos os membros do Povo de Deus, o qual so-mente é entendido dentro do dinamismo e do profetismo de Jesus. Assim a Igreja toda, como Povo de Deus, é carismática porque o Espírito concede e sustenta os carismas, que resultam em ministérios e serviços para a edifi cação de toda a co-munidade eclesial. Esta manifestação do Espírito de Cristo começa na base ecle-sial, pois é uma “experiência” feita a par-tir da comunidade local (cf. VELASCO, 1996, pp. 371-387).

O sensus fi delium é colocado, no contexto da LG, dentro do capítulo que trata do Povo de Deus e é um dom do Espírito da verdade que atinge todos os membros deste Povo. Isto signifi ca que o Povo de Deus possui o dom da interpre-tação, da mediação e da transmissão da Revelação. É algo do Povo cristão, en-quanto comunidade daqueles que, pelo Batismo e Crisma, participam do múnus de Cristo. Este se fundamenta na ação do Espírito Santo, que age na Igreja. O Magistério ofi cial da Igreja não perde sua competência de guiar, discernir e coordenar, também com a assistência do Espírito Santo.

A LG 12 (O senso da fé e os ca-rismas no Povo cristão) remete-nos ao múnus profético do Povo de Deus, onde nos mostra o sensus fi dei da comunidade cristã e o lugar dos carismas na vida da Igreja. O texto contempla duas posições:

aquela que vê no sensus fi delium um in-fl uxo do Espírito e outra segundo a qual este sujeito exercita também um infl uxo ativo, seja na proposição autoritativa da verdade de fé da parte do Magistério, seja na compreensão e no aprofunda-mento do depósito revelado (cf. ACER-BI, 1975, pp. 350-351).

“O fundamento teológico do sensus fi dei está na propriedade da Igreja, que é conduzida pela verdade do Espírito, e que não pode abdicar da vida de salvação e de levar a ver perfeitamente o mistério. É preservada do erro pela assistência do Espírito. A infalibilidade da Igreja cren-te aparece então como indefectibilidade, possuidora que é da verdade revelada mediante a fé de toda a Igreja. O Espírito Santo acorda no Povo de Deus… o dom de uma fé indefectível, e toda a Igreja a põe em prática mediante o sensus fi de-lium. O senso da fé é o senso da Igreja inteira, não de uma de suas partes, ou de um grau superior ou inferior: é o senso da totalidade. É dentro do senso da fé, função da totalidade, que se coloca a es-pecífi ca função do Magistério. O texto não afi rma a dependência da infalibili-dade da Igreja daquela do Magistério; a função de causa do senso da fé e da garantia de infalibilidade de adesão da Igreja à verdade é atribuída ao Espírito (a Spiritu veritatis excitatur et susten-tatur - suscita e sustenta pelo Espírito da verdade); a função do Magistério é apresentada como guia do senso da fé, despertado pelo Espírito (sub ductu ma-gisterii – sob a direção do magistério): instância autoritativa de disciplina e de regulamentação, portanto, não é fonte”

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(ACERBI, 1975, pp. 351-352).A LG 12 destaca a função proféti-

ca dos fi éis e a dimensão comunitária da Igreja; a função ativa do sensus fi dei; a circularidade entre o Magistério e o sen-so dos fi éis; e o sensus fi dei não é mera opinião pública, pois é suscitado, ani-mado e sustentando pelo Espírito Santo. Toda a refl exão do sensus fi dei anterior ao Vaticano II foi assumida por este. Adota o princípio da universalidade dos fi éis, dando ao sensus fi dei uma signifi -cação importante dentro da Igreja. O que está implicado nesta manifestação do sensus fi dei, ou seja o seu conteúdo, é o que diz respeito à fé e à moral. Ao mes-mo tempo, na função do sensus fi delium se inclui o exercício da diversidade dos ministérios e carismas e se quer expres-sar sua manifestação comunitária e sua atualização no tempo e na história. Des-se modo, o sensus fi delium movimenta uma reciprocidade de escuta, acolhida e confi rmação da verdade revelada (cf. RI-GAL, 1997, pp. 285-288). Uma vez que todo o Povo de Deus participa da condi-ção profética de Cristo, nele se exercita o sensus fi delium.

O Vaticano II reconhece a existência do sensus fi delium como um dom sobre-natural da fé, o qual possibilita a todo o Povo de Deus a infalibilidade em matéria de fé e moral. Se, de um lado, o Vaticano I concentra a questão da infalibilidade no sumo Pontífi ce, o Vaticano II fala da totalidade da Igreja como Povo de Deus como infalível na fé. Na verdade, o Va-ticano I procurou colocar ao centro de sua atenção o problema da infalibilidade

na fé da Igreja, mas o que prevaleceu foi a infalibilidade pontifi cia. O senso co-mum ou o conhecimento comum da fé de todo o Povo de Deus deve ser enten-dido no contexto teológico dos dons do Espírito Santo. Partindo de LG 12 e DV 8, podemos notar que o testemunho de fé é prioritariamente comunitário. É o “nós” da Igreja quem confessa o credo, onde o magistério pastoral acontece e é serviço por meio e no seio da comunhão do povo crente (cf. FUENTE, 2001, pp. 238-239).

“A universalidade dos fi éis está pro-vida do sensus fi dei através da unção do Espírito que o suscita e sustenta; eles não podem errar no crer quando exprimem o consenso universal em coisas de fé e de costumes. O Povo de Deus, guiado pelo Magistério, através do sensus fi dei, é co-locado em condição de compreender a Palavra de Deus e de aderir indefectivel-mente à fé transmitida, na qual se insere retamente e que pratica na sua vida... O sujeito da participação no múnus proféti-co é o Povo de Deus, na linha dos núme-ros precedentes do mesmo capítulo, no qual é realizado um chamado à Aliança de Deus com o Povo de Israel e da Nova Aliança que tem seu fundamento em Cristo; nesses números são descritas as características do povo messiânico (LG 9) e se afi rma que o novo Povo é Povo sacerdotal (LG 10) que exercita esta sua índole, por graça e por virtude (LG 11)” (BIONDO, 1989, pp. 68-69).

A LG 12 recupera um dado da Tra-dição, confi rmado pela defi nição de al-guns dogmas, em base do testemunho do

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sensus fi delium. A ação do Espírito Santo “produz nos fi éis aquele senso da fé do qual os Padres e Santo Tomás falam fre-quentemente e cujo tema o Vaticano II retomou no capítulo da Lumen Gentium sobre o Povo de Deus” (VITALI, 2001, pp. 699-670). O sensus fi delium não é uma nova fonte de Revelação, nem um sentido humano ou obra humana, mas é obra do Espírito Santo, o qual conce-de aos fi éis uma intimidade maior com a Revelação de Deus. O sensus fi delium não cria, mas percebe, aprofunda e aceita a Revelação. Não se trata propriamente de Palavra de Deus, mas de resposta a ela. Não pode ser algo autônomo, pois está em obediência a Deus e sua Palavra, onde está também o magistério pastoral (cf. KÜNG, 1965, p. 48).

Falar de sensus omnium fi delium (senso de todos os fi éis) como regula fi -dei (norma de fé) é colocar no centro do debate o sujeito da Tradição. É a Igreja, como totalidade dos fi éis, que se torna testemunha da Tradição. Ao falar de sen-so da fé, deve-se distinguir entre a capa-cidade pessoal de conhecimento de cada batizado (sensus fi dei) e a função eclesial de testemunho da fé, que é própria do conjunto dos batizados (sensus fi delium). Estamos diante dos elementos subjetivo e objetivo da fé da Igreja, mesmo que ambos estejam conectados um ao outro, sendo que um é condição para o outro.

“O primeiro (sensus) diz que o co-nhecimento em questão é relativo à fé e, em sentido objetivo, se refere aos conte-údos da fé; em sentido subjetivo indica a fé que sente, a fé que pensa, isto é, a

capacidade do crente de saber as coisas da fé. O genitivo plural fi delium indi-ca, ao invés, o conjunto de quantos, em força do batismo, fazem parte da Igreja. Assim, sensus fi dei concerne às análises das potências da fé no crente e indica o crente em particular como sujeito de uma capacidade de conhecimento; sen-sus fi delium diz respeito ao todo como sujeito de uma função eclesial de inteli-gência da fé; a Igreja, como sujeito de tal função, determina o signifi cado objetivo e especifi camente eclesial do consensus fi delium como voz da Tradição” (VITA-LI, 2001, p. 224).

O que é importante aqui é não se-parar a fé objetiva da Igreja de sua re-cepção subjetiva e da compreensão que encontra na Igreja. A autenticidade das manifestações do sensus fi dei deve pos-suir sua referência ao elemento mais ob-jetivo da fé da Igreja. Por isso que a fé da Igreja não é projeção ou objetivação de emoções subjetivamente religiosas, mas encontro dos testemunhos objetivos da fé da Escritura e da Tradição.

Passemos a interpretar o texto da Dei Verbum 8b. Aqui, o sensus fi delium é colocado como elemento importante no progresso da Tradição, pois se trata de uma função signifi cativa e decisiva de conhecimento da Revelação. Seria a íntima experiência das coisas espirituais (cf. VITALI, 1993, 22). A DV 8 mostra a evolução do dogma na Igreja. Na ver-dade, a Tradição Apostólica compreende todo o conjunto da Revelação divina, tanto oral como escrita, transmitida pe-los Apóstolos. O progresso da Tradição

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acontece de três modos: o primeiro é pela contemplação e refl exão, com destaque para a atividade intelectiva dos crentes, que percebem e descobrem as verdades reveladas; o segundo modo é a íntima experiências das coisas espirituais, que Santo Tomás chama de vivência afetiva ou conatural ou afi nidade ou ainda lu-men fi dei (luz da fé); o terceiro modo é o múnus da sucessão apostólica, como carisma que guarda a verdade da fé, ou seja, a pregação e a acolhida por parte do Magistério eclesial (cf. MARTÍNEZ, 1969, pp. 245-247). Estes três modos são interrelacionados, de modo a contribuir um para o crescimento do outro.

Em seu primeiro esquema, a Comis-são teológica não inclui os passos da re-cente refl exão teológica, pois considera sufi ciente a colocação, clara e unitária, bem como o testemunho dos catecismos e as encíclicas recentes, e sustenta toda a questão da Tradição por meio da Sa-grada Escritura. Nisso está presente uma atitude defensiva. No segundo esquema, a fórmula das fontes foi substituída pela fórmula tridentina, ou seja: o Evangelho é a fonte de toda a verdade salvadora e da doutrina dos costumes. A Tradição ganha uma caráter mais amplo e profundo, sen-do entendida como algo mais real, vivo, impressa e ativa na vida da Igreja. Fica mais evidente a doutrina conciliar: a Re-velação, sua transmissão e atualização através da Tradição, sua realização em forma de Escritura, AT e NT, e Escritura na vida da Igreja. No terceiro esquema, a Tradição ganha um caráter mais dinâmi-co, sendo colocada junto com a Sagra-da Escritura, para uma constante e per-

manente intelligentia. O dinamismo da Tradição encontra-se em conexão com a Tradição viva: «para que o Evangelho se conserve sempre vivo e pleno na Igre-ja» (DV 7); «todo o necessário para uma vida santa e para uma fé crente» (DV 8); «a Igreja com seu ensinamento, sua vida e seu culto.... as palavras dos Santos Padres testemunham a presença viva da Tradição, cujas riquezas passam à práti-ca e à vida da Igreja» (DV 8); «porque a voz viva do Evangelho ressoa» (DV 8). O sujeito que transmite a Tradição é a Igreja em seu todo, como um organismo vivo. Além de a Tradição ser algo vivo e dinâmico, os sujeitos que a transmitem são todos ativos e não meramente passi-vos (cf. SCHÖKEL, 1969, pp. 266-299).

O texto conciliar de DV 8b remete: à «inteligência enquanto experiência», à «inteligência baseada na experiência», à «experiência enquanto inteligência» e à «inteligência recebida como experiên-cia». Aqui se deve entender que a inte-ligência como experiência é mais ligada à ascética, às experiências das cosias essencialmente espirituais. No segundo caso, a inteligência é um ato segundo, precedido pela experiência. Ela é fruto da própria experiência. No terceiro caso, a experiência precisa da inteligência, pois o ser humano quer compreender (in-teligentia) aquilo que vive (experintia). No último caso, talvez o mais próximo do texto conciliar, trata-se de uma «in-teligência experiencial». A intelligentia quam experiuntur é vista como o sensus fi dei e ou sensus fi delium, que está em estreita relação com LG 12. A partir da «inteligência experiencial das coisas es-

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pirituais» (DV 8b), a teologia está cons-tantemente desafi ada a tornar-se sempre mais uma fi des quaerens intellectum (a fé que procura entendimento), e uma hermenêutica do vivido da fé, abstrain-do da frieza da racionalidade, trazendo sempre maiores consequências vitais, no compromisso de fé (cf. SORRENTINO, 1998, pp. 156-162.174).

A DV 8b remete para o aspecto di-nâmico da Tradição, que é algo vivo na Igreja. Algo também vivido (experimen-tado) e que dá sabor sempre novo e que possui uma “inteligência” sempre maior, especialmente aquela nascida da prática sacramental. Por seu lado, o episcopado possui o carisma do ensinamento, que exerce na pregação da Tradição Apos-tólica. Assim, toda a Igreja, ao longo do tempo, vai entrando sempre mais em posse da verdade plena, que é a Palavra de Deus. Todos na Igreja levam adiante a Tradição (cf. LATOURELLE, 1969, pp. 362-264).

3.5 OS EFEITOS DO SENSUS FIDE-LIUM

As decorrências da aceitação e va-lorização de sensus fi delium, segundo LG 12 e DV 8, são grandes e comprome-tedoras para a vida da Igreja. Não foi o Vaticano II que inventou a LG 12, o que este fez foi redescobrir uma doutrina já presente no juízo eclesial universal, sen-do, portanto, uma voz da Tradição.1. Um dos primeiros efeitos do sensus fi -

delium é o surgimento da própria Igre-ja, na qual os fi éis, em base à mesma

“sensação” ou “percepção” primária da realidade de Deus, que é dada no ato de fé, respondem encontrando--se e congregando-se em comunida-de eclesial. Estamos diante daquilo que ao longo da história aconteceu com os discípulos de Jesus, os quais, a partir das experiências originárias da fé pascal, do encontro vivo e real com o Ressuscitado, impulsionados pelo Espírito de Deus, voltaram a Je-rusalém e depois partiram em missão anunciando aquele que é o evento fundante de nossa fé comum. É aqui que tem origem a Igreja, na qual es-tão acumuladas as experiências pré--pascais e pós-pascais, que dizem res-peito ao que aconteceu com Jesus de Nazaré. É no núcleo da ressurreição e nas experiências decorrentes dela que reside o ponto crucial da cons-tituição da Igreja, sendo, acima de tudo, resultado de uma experiência comunitária da fé. E mais, como nos lembra J. H. Newman, «foi o sentir da fé do povo crente que, no século IV, salvou a Igreja do arianismo, con-tra os bispos» (VELASCO, 1996, pp. 258-259).

2. Um segundo efeito do sensus fi delium, consequência da formação da assem-bleia (ekklesia), será aceitar a Palavra de Deus. Sendo sobrenatural, suscita-do e sustentado pelo Espírito da ver-dade, como um dom da graça, estrei-tamente ligado à fé, o sensus fi delium, como posse comum de todo o Povo de Deus, aceita não a palavra dos ho-mens, mas, como realmente é, a Pala-vra de Deus. Aqui o Povo de Deus é

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habilitado a reconhecer a Palavra de Deus em si mesma, mesmo que seja transmitida com palavras humanas. A graça age no Povo de Deus e este acolhe a Palavra da verdade. O senso sobrenatural da fé é um dom da gra-ça para discernir a Palavra de Deus e reconhecê-la como ela é.

3. Outro efeito do sensus fi delium do Povo de Deus é o de aderir de forma indefectível à fé uma vez transmitida aos santos. Aqui temos o fundamen-to daquela qualidade inerrante da fé de todo o Povo de Deus, em força da qual a totalidade dos fi éis não pode enganar-se no ato de crer. O senso da fé confere uma espécie de instinto para reconhecer a presença do erro e para rejeitá-lo. A Igreja, ao longo da história, precisou tratar de inúmeros confl itos e tensões, por desvios da reta doutrina, desenvolvendo con-comitantemente o elemento da infa-libilidade. Segundo a teologia da in-falibilidade, é o próprio Jesus quem promete a condição de infalível à Igreja (cf. Mt 16, 18; 28, 20; Lc 22, 32; Jo 14, 16.26; 16, 13), pois com ela sempre está o Espírito da verdade. O senso da fé exercita o seu infl uxo na comunidade graças à ação do Es-pírito Santo. Trata-se da efi cácia do dom coletivo de Deus. O Povo de Deus, demonstrando unanimidade em questão de fé e moral, exprime o senso sobrenatural da fé, excluindo toda forma de erro, porque assistido pelo Espírito Santo, garantido pela universitas fi delium (cf. PHILIPS, 1967 (I), pp. 169-170). A infalibili-

dade do magistério e a infalibilidade do Povo de Deus é a mesma infali-bilidade, substancialmente, o que vai diferenciá-las é o exercício. Poderia o Espírito da verdade esquecer de cum-prir a sua missão? (Tertuliano). Pois o mesmo age sobre todos na Igreja. Para H. Valdenfels, a LG 12 não fala de infalibilidade, mas de inerrância e indefectibilidade. A totalidade dos fi éis é que não pode enganar-se no crer (in credendo falli nequit). Des-sa forma, “a Igreja é indefectível e, portanto, também infalível, pois pos-sui a sua segurança na fi delidade de Deus. Ele é, de fato, o fundamento de toda infalibilidade; na sua autoridade é que nós cremos” (WALDENFELS, 1987, p. 627).

4. O quarto efeito do sensus fi delium, se-gundo LG 12, é que o Povo de Deus com reto juízo penetra a Palavra de Deus na sua profundidade. A pura exegese bíblica ou o raciocínio teoló-gico não foram capazes de chegar à certeza de fé da Imaculada Conceição e Assunção de Maria. Esta certeza foi fruto de um juízo guiado pelo senso sobrenatural da fé. Aqui se pode in-vocar Santo Tomás, com a conatura-lidade das “coisas” da fé, inerentes à pessoa humana, por meio da formula-ção de justos juízos coerentes com a mesma fé.

5. Outro efeito do sensus fi delium é que o Povo de Deus pode aplicar a Palavra de Deus à vida de forma coerente e plena. Os frutos do dom da crescente percepção da Palavra de Deus exige

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das pessoas de fé resistir e combater os males do tempo presente. É um passo metodológico e vital, conse-quente de uma convocação, feita por Deus. Trata-se do necessário testemu-nho de vida, feito a partir da fé em Deus.

6. Um sexto e último efeito do sensus fi delium é o progresso ou desenvol-vimento da Tradição. Acontece que a Tradição, oriunda dos Apóstolos, progride na Igreja sob a assistên-cia do Espírito Santo. Acontece um crescimento na compreensão das coi-sas e das palavras transmitidas, pela contemplação e pelo estudo dos que creem, bem como pela íntima com-preensão que desfrutam das “coisas espirituais”, e, ainda, “pela pregação daqueles que com a sucessão do epis-copado receberam o carisma seguro da verdade” (DV 8). Estamos diante de uma realidade que é uma inteli-gência experiencial, baseada no vi-vido. E isto conduz incessantemente à plena verdade, que é uma compre-ensão sempre mais profunda da Re-velação. Na realidade, o desenvolver--se do dogma possui altos e baixos e existem também momentos obscuros, mesmo que nestes a Palavra não este-ja extinta do meio do povo crente. Em tal sentido, o progresso da Revelação, na consciência dos crentes (evolução do dogma), é homogêneo.

“A evolução do dogma católico, se-gundo o texto conciliar (DV 8), acontece por meio de três fatores: o primeiro é a refl exão (contemplatio) e o estudo dos

crentes, ou seja, a teologia, entendida como atividade inspirada pela fé e regu-lada pela ciência, que procura compre-ender e fazer compreender, com todos os recursos da razão humana, o mistério da salvação, como emerge da Escritura e é interpretado pela Igreja. O terceiro (sic) fator refere-se evidentemente áquilo que na teologia do último século se chama de magistério, isto é, o serviço da mis-são dos Apóstolos e dos seus sucessores, guiados pelo Espírito, de fi elmente cui-dar e infalivelmente declarar o depósito da fé. O segundo (sic) fator manifesta-mente alude ao senso da fé, e é este que queremos melhor compreender. Agora, devemos contentar-nos pela descrição que encontramos num outro texto conci-liar, segundo o qual o senso da fé é um conhecimento, suscitado e mantido pelo Espírito da verdade, pelo qual o Povo de Deus adere indefectivelmente à fé uma vez por todas transmitidas aos Santos, com reto juízo penetra nela, e mais pro-funda e plenamente a aplica na sua vida” (ALSZEGHI, 1987, pp. 139-140).

O sensus fi delium deve ser lido numa estreita relação com o magistério pastoral da Igreja, sempre na ótica de LG 12. Dentro da economia cristã da salvação, estão agindo juntos o sensus fi dei (sensus fi delium) do Povo de Deus e a autoridade que internamente garante a autenticidade. O sensus fi dei do Povo de Deus, desde os bispos ao último dos fi éis leigos (cf. SANTO AGOSTINHO, De Praedestinatione Sanctorum 14, 27: PL 44, p. 980; Contra Faustum, 11, 2: PL 42, p. 246), declara o Vaticano II, é uma participação na função profética de

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Cristo, por meio de um testemunho vivo.Pode-se falar de um senso comum

dos fi éis, como realidade condicionante e vinculante ao magistério eclesial. Sen-do obra do Espírito Santo, o senso da fé, sob a orientação do magistério, exprime--se no consenso da doutrina apostólica, que goza da infalibilidade. Em vista de uma ação coerente com a fé cristã, “to-dos os membros da comunidade, sejam os fi éis como os pastores, de modo di-ferente e complementar, são dotados de um sobrenatural senso da fé, em força do qual, a Igreja, de modo certo e infalível, adere à verdade de Deus” (SALVATORI; CAMPANILE, 1991, p. 83). Assim, o Povo de Deus é a comunidade daqueles que, no Batismo, tornaram-se participan-tes das missões sacerdotal, profética e real de Cristo e, como tal, manifestam, professam e testemunham a fé, coeren-tes com seu estado de vida. Todos são chamados de fi éis (christifi deles). Dessa forma, o Povo de Deus possui um sen-sus verdadeiro e sobrenatural da própria fé, que lhe garante a infalibilidade. É preciso entender que o texto LG 12 fala de um senso sobrenatural da fé e de um consenso universal em matéria de fé e de costumes, mostrando que existe certa distinção e relação entre os dois.

“Tenho a impressão que hoje se ouve muito pouco falar de que a totalidade dos fi éis não pode errar em seu ato de crer e de que esta promessa da indefectibilida-de, que repousa sobre o senso sobrenatu-ral da fé (sensus fi dei) do Povo de Deus, abarca desde os bispos até o último dos fi éis leigos. É, sem dúvida, a afi rmação

central da LG 12, em que sobressai a participação de todo o Povo de Deus na função profética de Cristo: ‘com a fi na-lidade de que anuncieis as grandezas da-quele que os chamou da obscuridade à sua luz admirável’ (1Pd 2,9). Em outras palavras, que os crentes na Igreja - lei-gos, presbíteros e bispos - estão na busca comum da verdade, que estão nesse mes-mo caminho quando pretendem anunciar e viver o Evangelho (cf. LG 35)... Pelo sensus fi delium, o corpo inteiro contribui com, recebe de e enriquece o ministé-rio daqueles que dentro da comunidade exercem a episkopé, cuidando da memó-ria viva da Igreja’. Efetivamente - como assinala a LG 12 - o sensus fi dei / sensus fi delium está sob a guia do Magistério” (MADRIGAL, 2002, p. 333).

A LG afi rma a existência do sacer-dócio comum dos féis, por meio do qual todos os membros do Povo de Deus - in-clusive a hierarquia -, em força do pró-prio batismo (LG 10), estão constituídos numa mesma dignidade cristã. A orde-nação não anula a condição batismal. O que acontece é que os que são investidos do ministério ordenado participam, no sacerdócio de Cristo, de forma diferen-ciada em relação ao sacerdócio batismal. Quando se fala da realidade do sujeito do sensus fi delium existente nos crentes, não se menospreza nem se esvazia o mú-nus ministerial do magistério.

“O discernimento realizado pela Igreja torna-se a oferta de uma orien-tação para que seja salvaguardada e re-alizada toda verdade e a plena dignida-de do matrimônio e da família” (JOÃO

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PAULO II, 1981, n. 5). Assim, a tarefa do senso da fé é contribuir no discerni-mento, sendo ele um dom que o Espírito dá a todos os fi éis (cf. 1Jo 2,20) e é, por-tanto, obra de toda a Igreja, respeitando a diversidade dos vários dons e carismas, todos possuem uma responsabilidade própria, a de cooperar para uma mais profunda inteligência e atuação da Pala-vra de Deus. Não é tarefa só dos pasto-res realizar o discernimento evangélico, mas todos são chamados a realizar isto em função da graça que cada um recebeu de Cristo, pois foram constituídos suas testemunhas e estão providos deste sen-so da fé e da graça da Palavra (cf. At 2, 17-18; Ap 19, 10), para que o Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar e social.

“O senso sobrenatural da fé (LG 12: EV I, 316) não consiste porém somente ou necessariamente no consenso dos fi -éis. A Igreja, seguindo Cristo, procura a verdade, que nem sempre coincide com a opinião da maioria. Escuta a consciência e não o poder, e nisto defende os pobres e desprezados. A Igreja pode valorizar também a pesquisa sociológica e estatís-tica, quando se revela útil para colher o contexto histórico no qual a ação pasto-ral deve desenvolver-se e para conhecer melhor a verdade; tal pesquisa, por si só, porém, não deve ser tida sem mais como expressão do senso da fé” (JOÃO PAU-LO II, 1981, 5).

É dever do ministério apostólico assegurar a Igreja na verdade de Cristo, estimulando e promovendo “o senso da fé em todos os fi éis, vigiar e julgar au-

toritativamente a genuinidade das suas expressões, educar os crentes a um dis-cernimento evangélico sempre mais ma-duro (cf. LG 12: EV I, 317; DV 10: EV I, 886s)” (JOÃO PAULO II, 1981, n. 5).

Toda a renovação eclesiológica que vai acontecendo, nos anos ’60 e ’70, dá um novo alento e uma nova imposta-ção ao tema do sensus fi delium dentro da teologia. É a partir do contexto ecle-sial e eclesiológico do Vaticano II que o sensus fi delium irá ganhando espaço. A emergência do tema do sensus fi dei (fi de-lium) que aparece nos anos ’90 se expli-ca é mais pelo “confl ito entre teologia e magistério. De uma parte, a teologia que reivindica autonomia do magistério e li-berdade na pesquisa; de outra, o magisté-rio que intervém para tirar, ou ao menos limitar o fenômeno da contestação e do dissenso na Igreja” (VITALI, 1993, p. 20). No caso latino-americano, a cami-nhada das comunidades, das Conferên-cias Episcopais, do CELAM, da Teolo-gia da Libertação, tudo vai favorecendo uma nova tomada de consciência quanto à missão do sensus fi delium na vida da Igreja.

Na retrospectiva que acabamos de fazer, do sensus fi delium, vemos que o Povo de Deus realmente é portador de um dinamismo vivifi cante para a Igre-ja e exulta de alegria quando a sua fé é confi rmada pelos pastores e os erros são condenados segundo a Tradição apostó-lica herdada. A teologia moderna man-teve silenciado o sensus fi delium, por causa de sua compreensão racionalista e academicista que ela tinha da fé eclesial.

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Mas, nos últimos tempos, o tema está ga-nhando espaço na vida Igreja como tam-bém na própria refl exão teológica.

É certo que muitos teólogos, espe-cialmente a partir do século XVI, sus-tentaram que o depósito da fé tinha sido confi ado à hierarquia e davam aos fi éis uma infalibilidade apenas passiva, reser-vando à hierarquia o ensinamento ativo.Outros teólogos, porém, como Möhler e Newman, foram nos mostrando que o sensus fi delium é atribuição essencial de toda a Igreja, porque toda a Igreja é su-jeito que recebe e transmite a Revelação: assim, o corpo dos fi éis experimenta uma força, vinda, não apenas do infl uxo dos pastores, mas sim da ação do Espírito Santo.

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COMENSALIDADE EUCARÍSTICA

Luciano de Souza SantoEstudante de Teologia da Estef

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Resumo: O artigo disserta sobre a temática da comensalidade eucarística, que é fonte de solidariedade, partilha e comunhão, capaz de criar uma cultura de solidariedade onde todos tenham acesso ao pão e ao Pão da vida.

Palavras-chaves: Eucaristia, comensalidade eucarística, comensais, mesa, comunhão, partilha, solidariedade.

A comensalidade tornou-se ao longo dos tempos um dos principais caminhos para se promover uma partilha solidária. Através da comensalidade pode-se conhecer o caráter de uma sociedade: “saber o que, onde, como, quando e com quem as pessoas comem, é co-nhecer o caráter de sua sociedade” (CROS-SAN, 1995, p 82). Além do mais, ela nos leva à comunhão de vida. “Consumir comen-salmente é comungar com os outros que co-migo comem. É entrar em comunhão com as energias escondidas nos alimentos, com seu sabor, seu odor, sua beleza e sua densidade” (BOFF, 2006 Vol. III, p. 18).

Veremos neste texto algumas caracterís-ticas da comensalidade eucarística, levando em conta a prática libertadora de Jesus, que partilha o alimento (Jo 6,1-15) e se revela como o pão da vida (6,35). Pão que alimenta, sacia, cria e recria pessoas solidárias.

1. COMENSALIDADE

Tentamos precisar o sentido do termo. “Comensalidade signifi ca comer e beber jun-

tos ao redor da mesma mesa”1 (BOFF, 2008). É o comer e beber juntos, sentados à mesa como comensais, família, comunidade. As-sim, celebram o estar juntos, a casa comum, formando uma família de irmãos e irmãs que partilham o pão (cf. BOFF, 2006 Vol. III, p. 09). A comensalidade é uma das práticas mais antigas do ser humano2.

Essa comensalidade que nos fez hu-manos, continua ainda hoje a fazer-nos sempre de novo humanos. Por isso, im-

1 Para Crossan (1995, p. 82), comensalidade não é apenas uma simples refeição em conjunto, um companheirismo de mesa. Comensalidade vem de “mensa”, palavra latina para dizer mesa. Signifi ca as regras da mesa e da alimen-tação como modelos em miniatura das regras de asso-ciação e socialização.2 Segundo Boff (2008), no artigo Comensalidade: refazer a humanidade, publicado na revista eletrônica América Latina en Movimento, a comensalidade é tão central na vida humana, que está ligada à sua própria essência, que faz lembrar quando nossos antepassados antropóides, cerca de sete milhões de anos atrás, saíam para coletar frutos, sementes, caça e peixes. Não conseguiam comer individualmente tudo que conseguiam reunir. Tomavam os alimentos e os levavam para o grupo, onde pratica-vam a comensalidade.

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porta reservar tempos para a mesa em seu sentido pleno da comensalidade e da conversação livre e desinteressada. Ela é uma das fontes permanentes de refazi-mento da humanidade hoje globalmente anêmica (BOFF, 2008).

A comensalidade supõe solidarieda-de e cooperação de uns com os outros, fato que permitiu ao ser humano dar o salto da animalidade para a humanida-de. “Foi só um primeiríssimo passo, mas decisivo porque coube a ele inaugurar a característica básica da espécie humana, diferente de outras espécies complexas” (BOFF, 2006 Vol. III, p 16). A partir dela, durante milênios, homens e mulheres “fazem e refazem continuamente as re-lações que sustentam a família” (BOFF, 2008).

Crossan (1995, p. 83) defende a ideia de que a comensalidade é um ato de comer juntos, onde a mesa não se tor-na lugar de discriminações verticais e se-parações laterais da sociedade, mas sim lugar onde os corpos se encontram pra comer e conviver, sem discriminação de pessoas, como fazia Jesus com os exclu-ídos de seu tempo.

E como havia mulheres presentes, especialmente mulheres solteiras, a acusação seria de que Jesus come com prostitutas, qualifi cação padrão da difamação para qualquer mulher fora do controle masculino apro-priado. Todos esses termos – cole-tores de impostos, prostitutas – são neste caso termos depreciativos para aqueles com quem, na opinião dos difamadores, a associação aberta e livre deveria ser evitada (CROS-SAN, 1995, p 83).

Jesus apresenta uma nova proposta de comensalidade, em que todas as pes-soas que o aceitam estão livres para sen-tar-se à mesa com ele, na comensalidade aberta que ele provoca com os excluídos de seu tempo.

A comensalidade de Jesus vai tor-nando-se celebração eucarística, direta-mente ligada a uma dimensão social, de partilha do pão, de reunião comunitária, que deve acontecer sem distinções de classe ou de pessoas (Léon-Dufour 1984, p. 39). Ideia comungada por Crossan:

Pense, por um momento, se mendi-gos baterem a sua porta, sobre a di-ferença entre dar a eles comida para levarem, convidá-los para comerem na cozinha, levá-los para a sala de refeições para comerem à noite com sua família ou fazê-los voltar no sá-bado à noite para um jantar com um grupo de seus amigos (CROSSAN, 1995, p. 82).

Há diferentes formas de saciar a fome e de se fazer uma refeição. Por aí temos pistas para caracterizar o que ve-nha ser uma refeição de comensalidade.

1.1 CARACTERÍSTICAS DA COMEN-SALIDADE

Para que comensalidade seja verda-deira é necessário que a refeição esteja li-gada a algumas virtudes humanas, como hospitalidade, acolhida, convivência. “Hospitalidade e convivência se concre-tizam maximamente em comensalidade” (BOFF, 2005, p. 100).

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A hospitalidade é uma das mais belas virtudes do ser humano, diz Boff (2005, I, p. 78-84). Baseando-se no po-eta Públio Óvilo (43-37 d.C.), ele narra o Mito da Hospitalidade, uma aventura mitológica de Júpiter, pai-criador do céu e da terra, e seu fi lho Hermes, príncipe da criação, que decidiram andar pelas terras dos mortais, despistados de suas formas e de seus poderes, e se encarnaram na fi -gura de dois esfarrapados caminhantes. Andaram pelos mais diversos lugares, aldeias, cidades, mendigando para matar a fome. Nada conseguiram nas casas lu-xuosas onde a comida estava sobrando. Encontraram alimento e hospitalidade lá onde menos podiam esperar, numa chou-pana muito pobre, habitada por um casal de velhinhos. Embora passando necessi-dade, eles partilham o que têm com os dois caminhantes, depois de tê-los aco-lhidos da forma mais caridosa.

Tal mito ajuda a discernir como hos-pitalidade e comensalidade acontecem nas situações mais frágeis. Na maioria das vezes quem acolhe são os pobres. Quem pede também são pobres, anda-rilhos e famintos. Isso faz com que a comensalidade aconteça de forma natu-ral entre eles (BOFF, 2005, p. 93-94). A hospitalidade se torna, assim, caminho de partilha e comunhão entre pobres. A culminância, no processo da hospitali-dade, convivência, respeito, tolerância, é alcançada com a comensalidade. “A hospitalidade abre a porta e acolhe. A convivência permite sentar juntos, coe-xistir e intercambiar. Uma é tão impor-tante quanto a outra, pois se prolongam e se complementam” (BOFF, 2006 vol. II, p. 9).

O ato de acolher e conviver se con-cretiza ao máximo na comensalidade. Quando entramos em um ambiente e so-mos bem acolhidos e convidados a parti-cipar da mesa, nos sentimos parte daque-le grupo que nos acolhe. Era desta forma que os primeiros cristãos se organizavam e idealizavam a celebração da comensa-lidade eucarística (cf. At 2,42-47).

1.2 A COMENSALIDADE EUCARÍS-TICA NO INÍCIO DO CRISTIA-NISMO

Tanto nos Atos dos Apóstolos (At 2,42-47) quanto nos escritos de Paulo, especialmente a primeira carta aos Co-ríntios (1Cor 11,17-34), descrevem-se momentos celebrativos fortes de comen-salidade entre os primeiros cristãos.

Alguns autores entendem que essa comensalidade não era tão pacífi ca as-sim. Para Comblin (1988, p. 13), os ju-deus que também faziam parte das co-munidades, tinham horror de colocar-se à mesa com os pagãos. Tinham medo de contaminar-se. Já que a comunidade de mesa era de certa forma muito íntima em sua comunicação e participação, quem comesse com o outro, naturalmente, en-trava em diálogo e comunhão com ele. Os judeus procuravam evitar qualquer tipo de aproximação. O problema, para eles, não estava propririamente na aceita-ção de Jesus por parte dos pagãos, mas o ter de assentar-se à mesa para comer com eles. Até mesmo Paulo e Pedro, seguido-res das tradições judaicas, têm confl itos entre si por causa disso (Gl 2,11-14).

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Nesse período, no Antigo Mediter-râneo, duas práticas eram bem comuns. A primeira consistia na luta pelo controle do pouco excedente agrário existente. A escassez de alimento e, portanto, fome e desnutrição transformavam-se não raro em epidemia. O que existia estava con-centrado nas mãos dos ricos da cidade, a maioria judia (Crossan, 2004, p.457).

A segunda prática comum era a far-tura e o status da parte dos poucos abas-tados, em contraste com a fome genera-lizada das pessoas.

O poder era o poder de comer. As divi-sões da sociedade coincidiam, de manei-ra transparente, com gradações de aces-so a víveres: mais comida, mais variadas e mais bem preparada no topo; menos comida e menos variada em direção ao fundo... É uma época em que a ideia de comer era, inevitavelmente, uma forma de segundo pensamento sobre a socieda-de e suas clamorosas divisões (CROS-SAN, 2004, p. 457).

Fica fácil, assim, entender o discur-so do pão da vida (Jo 6,22-35) e outros que Jesus faz a respeito de comida. Dis-cursos que encontramos principalmente nos evangelhos sinóticos, que, de ma-neira tímida, vão se encarnando na vida das pessoas e mudando a mentalidade da sociedade da época. Sabemos, por exem-plo, que algumas das primeiras comuni-dades se organizaram em torno de uma refeição semanal, partilhada, que rece-beu, mais tarde, o nome de Eucaristia.

O livro dos Atos dos Apóstolos e os es-critos de São Paulo nos dão notícia de que a comunidade cristã se reunia no primeiro dia da semana, que depois se chamaria “domingo”, “dia do Senhor”,

para celebrar o que eles chamavam “a fração do pão”, em obediência ao man-damento do senhor: “fazei isto em me-mória de mim” (ALDAZÁBAL, 2002, p. 103).

Essas comunidades se reuniam com laços de solidariedade ao redor da mesa, em momentos “de alta e sossegada co-mensalidade” (CROSSAN, 2004, p. 457). Tais refeições se distinguiam de qualquer outro tipo de refeição. Dife-rentes da refeição familiar, que só reunia um pequeno grupo de parentes e amigos, pessoas ligadas à família. Diferentes também das refeições de anfi triões, que convidam a muitos, mas bancando tudo sozinhos, sem propiciar a partilha.

Para mim, o que tem importância pri-mordial na Tradição da refeição em comum é a refeição completa e nor-mal, que, como refeição compartilhada comunitária, simboliza a presença de Deus participativo na vida e na morte de Jesus. Uso essa expressão refeição partilhada para distingui-la de refeições de família ou das refeições de anfi trião alternadas (CROSSAN, 2004, p. 458).

É bem provável que nas primeiras comunidades, como nas de hoje, algu-mas lideranças, geralmente mais abas-tadas, disputassem lugares de destaque nas reuniões. Ofereciam o que tinham, patrocinavam sozinhas as refeições na tentativa de subornar a comunidade em busca de posições. Paulo enfrentou esse fato na comunidade de Corinto.

O que Paulo enfrentou em Corinto, era algo provavelmente novo - a saber, pos-sibilidade dos patrocinadores rivais, não muitos, mais, portanto, alguns membros abastados que competiam uns com os

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outros por posição de autoridade base-ada em proteção (CROSSAN, 2004, p. 464).

Para Paulo, a Ceia do Senhor - euca-ristia deve ser uma refeição compartilha-da em que pobres e ricos participam da mesa tenham com os mesmos direitos. Mesmo que a maior contribuição para as refeições devesse provir dos ricos, isso não deveria causar desunião, inferiori-dade de uns, privilégios de outros, mas promover a fraternidade e a justiça en-tre todos. A comunidade compartilhava a comida que tinha disponível, transfor-mada em ritual, mas também realizava e materializava a justiça (CROSSAN, 2004, p. 462).

A comunidade tem em mente que Jesus, ao mesmo tempo em que se de-clara o “Pão da Vida” (Jo 6,35), se doa como alimento a todos os fi lhos e fi lhas de Deus na Ceia eucarística. Mas todo o que se reúne em torno à mesa da partilha e da comunhão para comer e beber, deve já estar comprometido com o projeto de Deus e carregar em seu ser o desejo de partilha, solidariedade, fraternidade, motores da comensalidade eucarística. Aproximar-se dessa mesa exige de cada comensal um compromisso fora dela, tanto antes como depois, qual seja, de participar, solidariamente, na vida do outro, principalmente do pobre.

Josete Rech (2006, p. 73) mostra a comensalidade eucarística introduzin-do a pessoa no mistério pascal da vida de Jesus; e, participando deste mistério, tornar-se criadora de comunhão, justiça, paz, solidariedade. Pela comensalidade

eucarística a pessoa testemunha o verda-deiro amor de Deus, ou seja, passa a agir com o mesmo espírito de Jesus.

O sinal do pão, bem como o confl ito referido acima entre Pedro e Paulo, mos-tra que as comunidades aderiram a um modelo inclusivo no qual encontraram a solução para a fome do povo:

Não se fala mais em pobre, porque na comunidade cristã mais pobre, o escân-dalo da distância imensa entre ricos e po-bres está superado pelo estabelecimento da “comunhão” (koinonia) (COMBLIN, 1988, p. 35).

Os pobres encontravam segurança na comunidade, pois os ricos estavam ali para partilhar com eles os seus bens3. Pode ser que o relato que chegou até nós, dessa realidade, seja uma idealização do autor dos Atos dos Apóstolos. Mas tal idealização vem ao encontro da realida-de, favorecendo uma interpretação mais comensal da Eucaristia, ocasionando a junção entre refeição e Eucaristia.

1.3 JUNÇÃO DE CEIA COM-PARTILHADA E CEIA EU-CARÍSTICA

A junção entre refeição comparti-lhada e Ceia eucarística aconteceu e há de acontecer de forma natural, pois uma

3 “[...] uma refeição fraterna, que dava aos membros mais pobres da comunidade a possibilidade de ter a sua por-ção cotidiana de alimento e, ao mesmo tempo, de tomar parte na memória de fé, no gesto de amor e na esperan-ça de Jesus. Solidariedade, fraternidade e celebração da fé fundiam-se juntas na única refeição” (FABRIS, 1991, p.77).

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é complemento da outra4.A solidariedade e a partilha devem levar o cristão à Euca-ristia, e esta deve ser para ele o sustento e fonte de toda ação. Isso faz com que a refeição se torne sagrada, uma ação de graças e um agir solidário.

Entre os essênios, no tempo de Je-sus, havia também a prática de refeições comunitárias. Crossan se pergunta se, entre eles, era a partilha ou a simples presença comunitária que tornavam tais refeições sagradas.

Era precisamente a participação comu-nitária de refeições essênias ou cristãs que tornava a comida e bebida usual sagrada, que transformava a presença do Deus judaico uma refeição usual? (CROSSAN, 2004, p. 470).

As refeições comunitárias só rece-bem o nome de Eucaristia pelo fi m do primeiro século e início do segundo, com a Didaché e os escritos de Santo Inácio. Antes, nas comunidades nascentes, ela era conhecida como “fração do pão” (cf. At, 2,42). A comunidade dava estes no-mes por que Eucaristia era sinônimo de uma refeição aberta, que formava laços comunitários. Formava assim a comuni-dade da mesa que partilha o alimento da unidade, o Pão da Vida. Por isso Paulo a chamava de “mesa do Senhor”. A vida das primeiras comunidades sempre este-ve pautada por momentos de refeições. A mesa tornou-se, assim, um lugar de encontro, de ação de graças, lugar euca-rístico.

O nome que esta celebração recebe no NT é “fração do pão” e “ceia do Se-nhor”. Ambos se referem ao marco de uma refeição. Paulo também a chama “mesa do Senhor”, “cálice do Senhor”. Só em fi ns do século I e princípios do século II, com a Didaché e os escritos de Santo Inácio, passar-se-á para o nome que depois será mais comum: o de “Eu-caristia”, que aponta mais para a bên-ção e a ação de graças (ALDAZÁBAL 2002, p. 27).

A mesa eucarística é um lugar plano por natureza, signifi cando que todos têm direitos iguais à refeição comunitária. É um ambiente frequentado por pessoas que se amam, onde não há pobre nem rico, homem ou mulher, são apenas pes-soas diferentes que partilham do mesmo alimento, dignamente. Ao redor dela, ninguém fi ca de fora nem há desigual-dade, pois sobre ela está Aquele que é o Pão vivo, que serve o alimento a todos.

2 A CEIA EUCARÍSTICA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Como vimos, a Ceia do Senhor é plenamente refeição, dom e partilha, que também não deixa de ter um caráter simbólico e ritual. Parece-nos que não há como separar as duas dimensões. Parece que, na comunidade de Corinto, criou--se uma refeição com certo ritual que, de certo modo, acabou com a refeição parti-lhada da refeição ritual simbólica.

Para a comunidade paulina a mesa eucarística deveria promover a liberta-ção do pobre em sua totalidade; entre-tanto, em algumas comunidades o que acontecia era o contrário. Os ricos, que

4 Para L. Susin, (1995, p 89), vida e eucaristia deve ser complemento para a outra: “A eucaristia, “pão da vida”, alimenta com a vida eterna. Por isso transforma a vida em eucaristia”.

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5 O texto base do XVI Congresso Eucarístico Nacional (Brasília, p. 36-37) refere-se a essa realidade.

não trabalhavam, tinham folga de tempo, obviamente chegavam mais cedo às ce-lebrações. Enquanto os pobres, que tra-balhavam o dia todo para garantir o pão, chegavam quando a celebração já tinha começado, e os ricos já tinham comido a melhor parte, senão tudo. Voltavam para casa com fome, pois só restaram para eles as sobras da mesa, um pouco de vi-nho e pedaços de pão. Isto leva a questio-nar, como faz Boff (1984, p. 104-107): “Que sentido tem celebrar a memória de Jesus numa comunidade onde oprimidos e opressores se encontram lado a lado? Como celebrar dignamente a eucaristia num mundo de injustiças e de violações dos direitos humanos?”

A Ceia do Senhor deve ser uma refei-ção compartilhada como Patrocínio, na qual ricos e pobres alimentam-se juntos, mas, naturalmente a comida e a bebida, no todo ou em sua maior parte, deve vir dos ricos. Entretanto acontece que os ri-cos que não trabalham chegam antes dos pobres que trabalham e juntos comem o que trazem ou o que o anfi trião prepara para eles. Quando os pobres chegam, não resta mais nada para eles, por isso, “enquanto um passa fome [os pobres], o outro [os ricos] fi ca embriagado (CROS-SAN, 2004, p.465).

Nas primeiras comunidades havia má distribuição da refeição5.

Quem viu claramente esta incongruên-cia foi Paulo. Ele constata que na comu-nidade de Corinto há divisões e injus-tiças. Nas reuniões alguns se avançam, comem e se embriagam enquanto outros passam fome (1Cor 11,17-22). Quando

ocorre isto, não se pode celebrar a Ceia do Senhor (1Cor 11, 20) (BOFF, 1984, p. 109).

Todos que conseguem ver na co-mensalidade eucarística uma extensão do Reino de Deus, devem tomar consci-ência de que os elementos necessários à vida humana, como pão, água, vestuário, educação, saúde, e especialmente comi-da e bebida, devem estar disponíveis a todos.

Se alguém insiste, ativamente, que a comensalidade pública é o Reino de Deus, que alimento e bebida, as bases materiais da vida humana, precisam estar igualmente disponíveis a todos, por ordem de Deus, deve estar pronto para alguma forma de eliminação social (CROSSAN, 2004, p. 471).

Portanto, o pão partilhado com todos é o que garante a sacramen-talidade eucarística, elemento que traz vida nova. A ceia não é Ceia do Senhor quando não for compar-tilhada, ou quando alguém não tem acesso ao alimento necessário para viver dignamente. Um pedaço de pão e um pouco de vinho têm sim sua função dentro da celebração, pois fazem parte do simbólico e do ritual da refeição eucarística. O pão e o vinho devem resumir, não substituir, a Eucaristia e a refeição compartilhada, diz Crossam (2004, p. 475). Do contrário, não é mais Ceia do Senhor.

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2.1 EXCLUSÃO DA CEIA EUCARÍS-TICA

Um dos maiores questionamentos nas comunidades cristãs, hoje, é a exclu-são de algumas pessoas da comensalida-de eucarística. Elizabeth Fiorenza (1982, p.127) traz à tona este questionamento sobre as pessoas que são privadas da co-munhão eucarística por viverem em si-tuação de irregularidade face às leis da Igreja6. Em contrapartida dá livre acesso à Eucaristia aos exploradores do povo.

Cabe perguntar se não é chegado o tem-po em que a nossa igreja, corresponden-do ao nível de consciência alcançado acerca do pecado social e das injustiças institucionais que clamam ao céu, deva regular acesso à celebração eucarísti-ca negando-o a notórios opressores do povo e a pessoas que são agentes de em-presas exploradoras da vida dos pobres (BOFF, 1984, p. 116).

Por outro lado encontramos pesso-as que vivem em comunidades retiradas, onde as celebrações eucarísticas são pou-co frequentes. Vanildo Zugno (2005, p. 69), entende que uma refl exão pastoral que se pode fazer em relação a isso está no campo ministerial. A Igreja só consi-dera válida a Eucaristia celebrada por um ministro devidamente ordenado, homem, celibatário. Isso faz com que muitas pes-soas e comunidades fi quem impedidas de uma participação mais regular na euca-ristia. Pouco adianta, diz Boff, o povo se acolher e conviver, se não pode comer e beber junto, ou seja, celebrar a comensa-lidade eucarística (2006 v. III, p. 14).

A Igreja declara que a Eucaristia é a fonte e ápice de toda vida cristã7 (SC 10; cf. LG 29). A grande pergunta que nos interpela é como podemos ser Igreja de comunhão e participação sem celebrar a comensalidade eucarística? Fiorenza menciona a postura de um grupo de Te-ologia Feminista que se organizou para superar algumas dessas barreiras.

Por isso as feministas cristãs começaram a romper as leis canônicas feitas por ho-mens e partindo o pão e compartilhando o cálice na comunidade, por um lado, e a levantar-se em protesto público recusan-do-se a participar em ritos de ordenação e comunhão eucarística (FIORENZA, 1982, p. 127).

Essa ação organizada forçou teólo-gos a aprofundar a questão, visto que não se pode celebrar a Eucaristia como um mero rito simbólico estrutural excluin-do pessoas por participarem de algum tipo de pecado: estaremos cometendo discriminação sócio-teológica (cf. FIO-RENZA, 1982, p. 127-128). Muitos se perguntam pelo valor real da Eucaristia, lembrando que Jesus Cristo, ao colocar--se à mesa (cf. Lc 7,34; 15,2; Mt 9,10-13; Mc 2,15-17), na maioria das vezes era para comer com os considerados pe-cadores8.

6 Cf. ZUGNO, V.L. Sacramentos: Deus na vida da gente. Estef, 2005, p. 69.

7 A eucaristia é o “sacramento dos sacramentos”, em que o corpo de Cristo manifesta todas as energias de sua transfi guração e “realiza” seu Ministério na Igreja. É nele que nos reunimos no dia do Senhor para viver a sua Pás-coa na intensidade da fé e na alegria da festa (CORBON, 181, p. 112).8 A comensalidade de Jesus com os pecadores se trans-formava em lugar privilegiado para a realização de ações proféticas, que encarnavam o amor de Deus para com os pecadores e, com isso, rompiam defi nitivamente com os padrões culturais e religiosos do seu tempo, marcados

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por um alto grau de discriminação. [...] Comendo com os pecadores Jesus denunciava a situação de injustiça que se instalava ao redor da mesa. De fato, por trás da psicose da higiene e da pureza dos alimentos e dos ob-jetos escondia-se um agravante ainda maior: não era só questão de higiene, mas de discriminação e de desprezo pelas pessoas, sobretudo as mais pobres (GUIMARÃES, 2006, p. 13).

2.2 A EUCARISTIA É HOJE UMA REFEIÇÃO?

Outro questionamento atual levanta-do por Crossan (2004, p.459) com respei-to à Eucaristia é se realmente ela é uma refeição. O fato de ser celebrada apenas com um pequeno pedaço de pão, feito de trigo e água, e com um simples gole de vinho, que geralmente se restringe ao presidente da celebração, faz Crossan se perguntar: a Eucaristia é uma refeição válida? E responde (2004, p.458-459) que tudo depende da ótica, das circuns-tâncias e da realidade em que a comu-nidade e as pessoas estiverem inseridas. Aqueles que sempre tiveram meios de sustentabilidade, comida em abundância, do tipo que quisessem e quando quises-sem, não veem na eucaristia (farinha e água) uma fonte de alimento, pois estão acostumados com a fartura. Já os que não têm acesso a alimentação de qualidade e que se desdobram para conseguir a pão de cada dia, não raro passando fome, tais pessoas conseguem ver na Eucaristia, no pequeno pedaço de pão e no simples gole de vinho o Cristo eucarístico, o “Pão da Vida” (Jo 6,35) que alimenta para a vida eterna. O pouco que se torna muito.

Refeição como realidade ou refeição como metáfora não tem a mesma res-sonância para duas experiências de vida

tão díspares. A eucaristia como refeição ou o céu como banquete, não desperta o interesse dos que sempre foram bem alimentados (CROSSAN, 2004, p. 459).

É evidente que, em toda sociedade, uns têm mais acesso à alimentação que outros e que nós vivemos em grande de-sigualdade social. Também é evidente que as celebrações eucarísticas, hoje, es-tão muito distantes das tradicionais refei-ções comunitárias partilhadas do ínicio do cristianismo, onde se partilhava tudo que se tinha, e todos comiam e fi cavam satisfeitos. Pode-se dizer que as refei-ções das primeiras comunidades eram símbolos da presença de Cristo dando-se como alimento à comunidade, através da fartura sobre a mesa.

Para as comunidades de hoje, a hós-tia (farinha de trigo e água) consagrada é o símbolo da presença de Cristo euca-rístico, na vida das pessoas e da comuni-dade. No entanto surge aqui outro ques-tionamento: por que simbolizar o “Pão da Vida” (Jo 6,35) com um alimento que não é alimento e não alimenta?

A eucaristia cristã é hoje um bocado e um gole. Não é uma refeição real. Natu-ralmente, você pode responder que isso é sufi ciente para simbolizar a presença de Jesus e de Deus na comunidade de fé. Mas por que simbolizar a divindade por meio de um alimento que não é alimen-to? Talvez o não-alimento simbolize um não Jesus e um não-Deus? (CROSSAN, 2004, p. 462).

Podemos dizer também que a Euca-ristia é uma refeição simbólica. É um si-nal visível que revela uma realidade não visível, mistério que não conseguimos alcançar com os nossos sentidos huma-

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nos, mas somente pela fé. O que, pois, torna esse símbolo sagrado? Como uma quantia de farinha misturada com água e um cálice de vinho pode se transformar em corpo e sangue de Cristo? Que dife-rença existe entre refeição feita na famí-lia com a celebração eucarística?

Está claro que a eucaristia é uma refei-ção simbólica. Mas isso signifi ca que deve ser um bocado e um gole simbóli-cos de uma refeição real ou uma refeição real simbólica da presença de Deus? E o que torna essa refeição real tão simbóli-ca? O que torna essa refeição real dife-rente de uma refeição real em qualquer lar cristão em ação de graças? (CROS-SAN, 2004, p. 462).

Para que a essas refeições, tanto a comunitária, em que há partilha de ali-mento e comida de verdade, como a que é feita com um pequeno bocado de pão e um simples gole de vinho, se tornem, realmente sacramento de Cristo euca-rístico, é necessário que elas não sejam somente comida e bebida para o estôma-go, mas alimentem a esperança, o prazer de estar juntos, partilhando a vida, as difi culdades, as alegrias, o alimento, e celebrando a vida comunitária, pois só comunga verdadeiramente com Cristo aquele e aquela que comunga verdadei-ramente com o irmão e irmãs, principal-mente com os mais necessitados, e inde-fesos (BOFF, 1984, p. 110).

2.3 A EUCARISTIA SACRAMENTO DE COMUNHÃO

A Eucaristia tem como característica a partilha e a união entre os comensais. A comensalidade eucarística torna-se um

ritual que liga a comunidade à memória de Jesus e possibilita a esta experimentar a distribuição solidária de alimento, re-produzindo ou reinventando, assim, o es-pírito que movia as primeiras celebrações eucarísticas das comunidades cristãs.

Cada um trazia para a refeição comuni-tária o que podia e, assim, não importava o que acontecesse, todos tinham certeza de pelo menos uma Eucaristia - uma re-feição digna de louvores, digamos - por semana (CROSSAN, 2004, p. 466).

Assim a Eucaristia instituída du-rante uma refeição, em torno da mesa, tornou-se um rito de nutrição, além de dar ao alimento partilhado em comuni-dade um valor sagrado, pois, no pão par-tilhado se manifesta a divindade de Jesus (LÉON-DUFOUR, 1966, p. 271), que multiplica o pão (Jo 6,1-15) e que o dis-tribui entre seus discípulos e discípulas (Jo 21,13).

A Eucaristia não pode ser considera-da como uma simples refeição. Jesus faz dela um momento sagrado, sacramento de comunhão. No relato da multiplica-ção dos pães, que foram distribuídos à multidão, os pães evocam o espírito de generosidade com o qual Jesus se dá no sacramento da Eucaristia. E com o dis-curso do pão da vida autoriza mais ain-da o sentido eucarístico dessa passagem (LÉON-DUFOUR, 1984, p. 291).

A refeição comunitária adquire ca-racterísticas sagradas quando a comuni-dade reunida em torno da mesa renova os gestos e as palavras de Jesus. Este gesto de comer juntos transforma-se em algo mais que uma refeição ordinária, depen-

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dendo da motivação de cada comensal. Transforma-se em Ceia do Senhor.

Quando se renovavam as palavras e os gestos do Senhor para entrar em co-munhão com sua presença misteriosa mediante o pão e vinho, transformando assim uma comida ordinária em comida do Senhor (1 Cor 11,20-34) (LÉON--DUFOUR, 1966b, p. 271).

O XVI Congresso Eucarístico Na-cional (Brasília, 13-16 de maio 2010) faz uma síntese da importância da eucaristia na vida da comunidade, baseando-se na perícope dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). O lema: “Fica conosco Se-nhor” (Lc 24,29) é a mesma súplica das comunidades de hoje. Assim como aque-les dois discípulos, que descem de Jeru-salém rumo a Emaús, após a trágica mor-te de Jesus, desanimados, abatidos, não percebem a presença do Ressuscitado que caminha com eles “explicando-lhes o sentido de tudo o que havia aconteci-do, numa verdadeira ‘liturgia da palavra’ sentiram transformarem-se as trevas da desilusão em esperança luminosa no pro-fundo de seus corações” (p.59). Mesmo assim os discípulos não conseguiram ver o Senhor, mesmo depois de uma longa refl exão.

A caminhada chega ao fi nal e os seus olhos continuam fechados. O que fazer? E agora? Eles ainda estão cegos e o caminho está quase na sua reta fi nal.

Jesus fez de conta que ia prosseguir o caminho, os discípulos sabiam que ca-minhar durante a noite era perigoso. Por isso o convidam a fi car: “Quando chega-ram perto do povoado para onde iam, ele fez de conta que ia adiante. Eles, porém,

insistiram: ‘Fica conosco, pois já é tar-de e a noite vem chegando’. Ele entrou para fi car com eles” (Lc 24,28-29). O convite é espontâneo, aceito sem contra-dição. Caso contrário... “fi co pensando no que teria acontecido se eles não o ti-vessem convidado. Na certa, estariam lá em Emaús até hoje, sem que os olhos se abrissem, sem que o tivessem reconhe-cido. E nada teria mudado” (DREHER, 1993, p. 48). Pois o ouvir não foi sufi -ciente. As Escrituras iluminam, fezem até arder o coração. Mas não passou disso.

Quando se puseram à mesa para par-tilhar o pão, certamente, as lembranças das práticas de Jesus vieram à memória: multiplicação dos pães (cf. Jo,6,1-15; Lc 9,11-17); o pão nosso de cada dia (Lc 11,3); quantos empregados na casa do meu pai têm pão com fartura (Lc15,17); última Ceia antes da paixão e morte (Lc 22,19). E quando Jesus, ali com eles, ressuscitado, junto à mesa, abençoa e re-parte pão, retoma a prática e os gestos concretos que eles já conheciam, fi cou fácil reconhecê-lo.

Depois que se sentou à mesa com eles, tomou o pão, pronunciou a bênção, par-tiu-o e deu a eles. Neste momento, seus olhos se abriram, e eles o reconheceram. Ele, porém, desapareceu da vista deles. Então um disse ao outro: “Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 30-32).

É a prática comunitária e a convi-vência que abre os olhos. Não bastou o conhecimento e a partilha da palavra, que fez o coração deles arder... É na prática da partilha, da solidariedade, do afeto

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que se abrem os olhos à realidade. “Te-oria só esquenta o coração” (DREHER, 1993, p.53).

Com os olhos agora abertos à reali-dade e à vida, Jesus desaparece da frente deles. Depois de ter-se aproximado, es-cutado, partilhado e de ter sido reconhe-cido no partir do pão, deixa sua alegria e coragem aos discípulos/as. Para Dreher, Jesus já cumpriu sua missão. “Jesus de-saparece. E pode desaparecer por que se tornou desnecessário. Seu objetivo foi atingido. Os discípulos sabem agora que a história não acabou” (1993, p. 54) e que eles precisam fazer sua parte. “Re-conhecendo-o na fração do pão, gesto eminentemente eucarístico, partem para anunciar aos irmãos a vitória da vida so-bre a morte” (XVI CONGRESSO, 2010, p. 60).

Deste modo podemos perceber que a comensalidade eucarística, mais do que um mero momento ritual, pode tornar-se um importante elemento de integração humana e social, de organização da co-munidade e busca de alternativas para a sobrevivência diante da fome física, emocional e espiritual.

A importância das refeições está em suas consequências. No próximo ponto, veremos que a comensalidade da Euca-ristia não deve ser resumida apenas num culto. Ela deve estender-se em ações de partilha, de novas relações de solidarie-dade no cotidiano das famílias, das co-munidades de fé.

3 EUCARISTIA E SOLIDARIE-DADE

A realidade descrita por João, no quarto sinal, e depois complementada no diálogo do pão vivo, é a mesma que os pobres de hoje enfrentam em seu co-tidiano: a miséria e fome fazem parte da vida do povo. No Brasil, milhões de pes-soas sobrevivem sem o mínimo necessá-rio para viver com dignidade9, enquan-to uma pequena minoria acumula, sem razão, grande parte dos bens e do pão, roubando a vida do povo.

Jesus, no Evangelho de João e nos demais também, aponta para uma co-mensalidade solidária. Deixa bem claro que a partilha começa e acontece mais naturalmente entre os pequeninos e po-bres (cf, Jo 6,9). No entanto, também é necessário lutar para que a vida do pobre prevaleça, para que a injustiça social não exclua mais o pobre da mesa, para que todos possam compartilhar o pão da jus-tiça, fruto da comensalidade eucarística.

Hoje, no mundo10, vivem cerca de 831 milhões de pessoas em situação de desnutrição. No Brasil, em 2006, tínha-mos 53 milhões de pessoas pobres e 21 milhões pessoas na mais absoluta misé-ria (cf. BERTOLDI, 2006, p. 17). Se-9 Segundo pesquisa do IBGE, 32,6% dos municípios bra-sileiros tinham, em 2003, mais da metade de sua popula-ção vivendo em extrema pobreza, porém estima-se que esse número aumentou consideravelmente, acredita-se haver hoje no país cerca 56,9 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza e 24,7 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza.10 Vivemos em uma sociedade fl agelada, com 800 mi-lhões de famintos, quase dois bilhões de subnutridos, com um bilhão de pessoas sem água potável sufi ciente, e dois bilhões sem água tratada (BOFF, 2006 v. III, p. 14).

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gundo Frei Betto (2005, p. 8), a cada dia morrem no mundo aproximadamente 24 mil pessoas, vítimas da fome, e a cada minuto, uma criança com menos de cin-co anos de idade. Contrapondo-se com esta realidade, nota-se que em todo pla-neta gastam-se milhões em campanhas que combatem a morte precoce e prema-tura, como câncer, acidentes de trânsito, violência, entre outros11. E se deixa de lado a questão da fome, que mata muito mais gente. Para Frei Betto, a explicação é muito simples:

Só encontramos uma explicação, e ela é cínica: ao contrário de todos aqueles fatores, a fome faz distinção de classe. É como se nós, os bem nutridos, dis-séssemos: “Que os miseráveis morram de fome, isso não nos atinge” (BETTO 2005, p.8).

Toda fome é saciada por comida, não há outra maneira de ser. A fome constitui parte da vida do ser humano. Conforme Méndez (2005, p. 11), nós so-mos seres famintos: “Nós somos ao co-mer, porque sem comer morreremos. Ser humano é ter fome. Não ter fome é estar morto”. Para Müller (2005 p. 70), a fome desperta o desejo pelo outro, levando a estender a mão a quem tem o pão, a dar pão a quem tem fome. Uma relação de aproximação com o outro, relação soli-

dária. A fome não deve prevalecer, a ale-gria de todo faminto é que a fome seja removida. Pois, só há satisfação humana quando o pão/alimento e o pão da justiça são reais para todos.

Multiplicar os pães é a solução dada por Jesus no combate à fome (Jo 6,1-15). Jesus faz o convite a organizar-se em pe-quenos grupos (comunidades) e dividir o pouco que se tem. No Brasil, um projeto do governo federal tenta seguir essa pro-posta de Jesus, o Fome Zero12. Para Frei Betto este projeto responde muito bem à dinâmica do Reino de Deus: “que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

Costumo dizer que o projeto fome zero é a versão política da multiplicação dos pães e dos peixes realizados por Je-sus para benefi ciar a multidão faminta. Quem reparte o pão, partilha Deus. Por isso Jesus ensinou a orar “Pai Nosso” e “Pão Nosso”. Não fazer do pão algo só para si, mas para todos, pois Ele veio para que todos tenham Vida e Vida em abundância (BETTO, 2005, p. 8).

A Eucaristia deve abrir os olhos de todo cristão a esta realidade, e motivar a todos para a campanha de saciar a fome do povo. Além do culto eucarístico nas igrejas em sua dimensão sacramental, é necessário prolongá-la no culto existen-cial, vivido cada dia na sociedade me-diante a condivisão dos bens materiais com os necessitados. “Como Jesus que

11 No dia 11 de setembro de 2001, quando terroristas jo-garam aviões contra as Torres Gêmeas, em Nova York, e um contra o Pentágono em Washington, morreram cer-ca de 3 mil pessoas. Foi uma atrocidade que paralisou a humanidade. No mesmo dia, exatamente 16.400 crianças abaixo de cinco anos morreram de fome e desnutrição, cinco vezes mais do que o número de mortos pelo terro-rismo. No dia seguinte e nos outros dias, sucessivamen-te, durante todo um ano, 12 milhões de crianças foram vitimadas pela fome e ninguém fi cou estarrecido diante desta catástrofe humana (BOFF, 2006 v. III, p. 14-15).

12 Todas as famílias benefi ciadas, cadastradas pelo go-verno, recebem, mensalmente, uma doação de R$ 73,00, entregue diretamente à mulher, para a compra de alimen-tos. E mais R$ 15,00 cada fi lho em idade escolar, todas têm o dever de manter os fi lhos na escola, alfabetizar adultos analfabetos e estar em dia com o programa de saúde da gestante e das crianças (BETTO, 2005, p. 9).

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condivide o pão e o vinho, oferecendo--se ao Pai e a nós, também nós devemos condividir o que temos com quem neces-sita para comemorar sua doação” (GUI-MARÃES, 2006, p. 12).

Eucaristia é sinônimo de comunhão, é comungar a vida do outro, é comun-gar a vida de Jesus Cristo. A reunião em torno da mesa eucarística consolida esse momento de comunhão, estabelece laços de fraternidade e compromisso com o próximo, quando se dá espaço a todos. Se houver esta atitude, jamais os pobres passarão fome nem haverá divisões entre os que têm e os que não têm na comuni-dade (cf. BOFF, 1984, p. 110).

Eucaristia é amor, é compromisso com a vida. Por isso, ao recebê-la, o cris-tão e a cristã não devem fi car de braços cruzados. Jesus, o “pão da vida”, nos impulsiona a lutar para que os corações humanos se abram de modo que todos tenham o pão sobre a mesa, e uma mesa em que haja diálogo, alegria, amizade e perdão (cf. BERTOLDI, 2006, p. 20).

O pão da palavra e o pão eucarístico, alimento bíblico e pão da vida, tornam--se ao mesmo tempo alimento material e espiritual que nutre a fé do cristão e o convoca à partilha e à solidariedade. A Eucaristia enquanto pão se torna misté-rio da fé, sacramento de vida e fonte de inspiração para a doação e serviço em defesa da vida.

O pão, “alimento bíblico”, é ao mesmo tempo a coisa mais material, mais cor-poral e mais espiritual na espiritualida-de cristã, a eucaristia, o mistério da fé, é pão. Por este motivo o sacramento é também um sinal de nossa natureza so-

cial da busca do pão – a boca da criança, o seio da mãe – e sinal das mais primor-diais formas de justiça e dom (SUSIN, 2005, p. 5).

Jesus disse: “Eu sou o pão da vida quem vier a mim nunca mais terá fome” (Jo 6 35). A fome do povo, na Eucaristia, é absorvida na abundante graça de Deus. Quem participa dessa refeição torna-se parte dessa graça, é convidado a compar-tilhar essa graça para que todos possam ser saciados. Para entender a Eucaristia é fundamental entender de amor social. A eucaristia é o gesto mais sublime da es-timulação à solidariedade (cf. GUIMA-RÃES, 2006, p. 10).

A refeição em comum tem esse as-pecto importante de tornar-se real sendo compartilhada. O ponto alto não está na questão do alimento, mas sim no gesto de se reunir comunitariamente para par-tilhar. É o verdadeiro gesto de solidarie-dade que a Eucaristia deve provocar em seus comensais.

O segundo elemento da Tradição da Refeição em Comum é igualmente im-portante. É tanto uma refeição real como refeição compartilhada. Há uma ênfase, não simplesmente no pão, mas no ato de partir o pão e isso é símbolo da co-munhão, passando-o para todos. O pão não está, por assim dizer, simplesmen-te ali sobre a mesa. É partido e passado para todos. Há também uma ênfase não simplesmente no vinho, mas antes no cálice. Considero isso também símbolo eucarístico. (CROSSAN, 2004, p. 475).

A Eucaristia está plenamente ligada à dimensão social, relacional e comu-nitária. Sendo a celebração do mistério pascal de Jesus, que se fez Pão da Vida,

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é a celebração da mesa da partilha, da verdadeira solidariedade do Filho de Deus com a humanidade. Ao participar da mesa da celebração eucarística, temos o compromisso de lutar conjuntamen-te para haver partilha nas comunidades e em toda sociedade. É impossível não partir, daí, para o compromisso ético, so-cial e político. O compromisso é parti-lhar com os injustiçados.

Precisamente com os pobres e os que sofrem! A adoração exprime um aspecto essencial no mistério eucarístico, mas por si só não basta; é necessário que a adoração se torne uma partilha (CAN-TALAMESSA, 2005, p. 107).

A celebração da Eucaristia deixa a desejar quando não favorece a solidarie-dade e a partilha concreta com os mais pobres. A comunidade que, a partir da comensalidade eucarística, se motiva para a missão de levar pão aos mais ne-cessitados e mobiliza-se para reverter as estruturas de injustiça social pecamino-sas, faz com que o Reino de Deus se faça presente aqui e agora.

O reino de Deus trata de comida e bebi-da, isto é, da justiça divina para corpos materiais aqui na terra material. Não vi-vemos só de pão. Mas o pão nunca está sozinho (CROSSAN, 2004, p. 460).

No dizer de Léon-Dufour (1966, p. 273), a Eucaristia é o sacramento do sa-crifício de Cristo, sacramento da carida-de, da união de todos em torno do corpo de Cristo. E quando comungamos pela solidariedade e amor, que se estendem às necessidades dos pobres, comungamos infalivelmente o Cristo que nos pobres se escondeu e se identifi cou (cf. BOFF, 1984, p 113).

A Eucaristia é o fomento da vida cristã, é o ponto vital da comunidade reunida, que busca forças para superar os desafi os cotidianos, que a torna mais fra-terna e solidária com os que têm fome e sede de justiça e vida digna. A Eucaristia abre os olhos para a partilha e solidarie-dade que transforma.

A eucaristia é o centro vital do universo, capaz de saciar a fome de vida e felici-dade: “aquele que se alimenta de mim, viverá por mim” (Jo 6, 57). Nesse ban-quete feliz participamos da vida eterna e, assim, nossa existência cotidiana se converte em Missa prolongada. Porém, todos os dons de Deus requerem dispo-sição adequada para que possam produ-zir frutos de mudança. Especialmente exigem de nós espírito comunitário, que abramos os olhos para reconhecê--lo e servi-lo nos mais pobres: “No mais humilde encontramos o próprio Jesus” (DA, 354).

Os discípulos missionários e as discípulas missionárias de Jesus Cristo, alimentados com o pão da vida, devem lutar cotidianamente para que a vida se manifeste, principalmente nos mais ne-cessitados, que gritam por mais vida. As-sim sendo, a mesa do pão partilhado se torna lugar do encontro com o Ressusci-tado, que se deixa reconhecer na partilha e doação cotidiana.

CONCLUSÃO

Jesus se colocou à nossa mesa, se faz um comensal. A mesa da Eucaristia é a mesa da comunidade, da comensali-dade, da vida e da esperança. Comer do mesmo pão e à mesma mesa é compro-

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meter-se com o outro, a outra, que junto realiza tal ato. Entretanto, para toda pes-soa cristã, a comensalidade eucarística é vocação à solidariedade humana e plane-tária, eclesial e social.

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A PRIMEIRA APÓSTOLA

Luis Alberto Méndez GutierrezEstudante fi nalista do Curso de Teologia

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Resumo: O autor faz uma sucinta contextualização do Evangelho de João nas comuni-dades onde surgiu, menciona hipóteses sobre o possível autor e procura identifi car a fi gura do Discípulo Amado. Menciona a situação da mulher no mundo judaico, o espaço dado a ela no evangelho de João e, sobretudo, a acolhida que encontra no tratamento inclusivo de Jesus. Por fi m, descreve Maria Madalena como a escolhida de Jesus, sua discípula e apóstola, de grande signifi cado no cristianismo.

Palavras-chaves: Discípulo Amado, comunidade joanina, apóstola, discípula.

A fi nalidade do presente trabalho é fazer uma refl exão a partir da impor-tância que têm as mulheres na Sagrada Escritura, na história de libertação e na vida do cristianismo. Mostrar como elas sempre foram membros ativos na vida das comunidades cristãs. Jesus assume a causa das mulheres num mundo onde urge criar relações de sujeitos, de solida-riedade e de justiça social. Maria Mada-lena foi uma mulher forte, que imbuída do espírito que tinha em comum com o mestre Jesus, é protagonista de uma his-tória de amor que liberta e faz o próximo livre e sujeito de ação. Jesus lhe confere o apostolado e a envia a anunciar a to-dos a boa notícia. Torna-se apóstola dos apóstolos e das apóstolas.

1. EVANGELHO DE SÃO JOÃO

1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO

Depois da morte de Jesus, seus se-guidores e suas seguidoras reuniram--se em seu nome e, sempre que faziam isto, o Ressuscitado lhes aparecia. Eles colocavam em prática tudo aquilo que Jesus lhes tinha ensinado e, desse modo, as comunidades cristãs espalhavam-se pela Galileia, Jerusalém e Samaria, e se misturavam com os judeus que viviam na diáspora. Essas comunidades cristãs se caracterizavam por serem plurais pela diversidade de culturas e de povos que as constituíam (KONINGS, 2000, p. 34).

As primeiras comunidades eram formadas por judeus que pensavam em Jesus como sendo o Messias, o profeta

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esperado, mas sem ter uma conotação divina. A isto se denomina uma espiritu-alidade de baixo. Depois, surge uma cris-tologia que pensa em Jesus como fi lho de Deus, uma espiritualidade do alto, a que vai provocar confl itos entre muitos judeus que consideravam isso uma blas-fêmia (BROWN, 1983, p. 25).

O Evangelho de João tem caráter judeu--cristão da Palestina. Vê-se pela exatidão na topografi a da Judéia e de Jerusalém. Ele foi se formando através das comunidades perifé-ricas, nos ambientes judaicos. Num primeiro momento, graças à pregação oral de algum dos discípulos de Jesus. Isso aconteceu apro-ximadamente no século I depois da morte de Jesus (KONINGS, 2000, p. 35).

1.2 AUTORIA

1.2.1 O APÓSTOLO Difi cilmente o apóstolo João será

o autor do quarto Evangelho, pois, até era difícil que estivesse vivo nesse ini-cio de segundo século. Como em todos os escritos bíblicos é difícil identifi car os autores. Se a obra se atribui a seu nome, é com a intenção de lhe assegu-rar maior credibilidade. Quer-se reforçar, desse modo, seu valor e sua importância. O caráter apostólico do evangelho não quer dizer que ele realmente tenha sido escrito por um Apóstolo, mas que, por trás desse escrito, está a fé dos Apósto-los, que é um escrito sério, que tem seu fundamento nas primeiras comunidades cristãs. A intenção, quando se coloca o nome de um Apóstolo, é dar autoridade e peso à obra. Por trás dessa pessoa, pode

haver toda uma comunidade de homens e mulheres (KONINGS, 2000, p. 31).

1.2.2 A COMUNIDADE

Está claro que a obra é anônima, não proporciona dados para identifi car o au-tor, nem possibilita desvendar a identida-de do Discípulo Amado (DA). Há vários candidatos à autoria deste Evangelho. Certos autores pensam em João, fi lho de Zebedeu, outros entendem que não se deve pensar numa pessoa única, mas num grupo ou comunidade de homens e mulheres que estão por trás do Discípulo Amado (TUÑI; ALEGRE, 1995, p.142).

1.2.3 O DISCÍPULO AMADO

O DA é um arquétipo, é uma fi gura idealizada. Claro que com isso não quere-mos dizer que ele não tenha existido. João pode ter existido sim e encarnado estas qualidades. Todavia, alguns autores pen-sam que essa personifi cação seria de um grupo determinado, o dos primeiros cris-tãos e cristãs que se opunham aos judeus e à instituição (LELOUP, 2001, p. 21).

1.3 CARACTERÍSTICAS

As comunidades caracterizam-se como sendo de periferia, constituídas pelos expulsos das sinagogas: israelitas, samaritanos, gregos. São comunidades que não têm poder porque foram despro-vidas de liderança. Elas são anônimas, marginalizadas e excluídas do espaço

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ofi cial. As comunidades joaninas são de resistência, perseguidas e minoritárias. Organizam-se em torno da liderança do Discípulo Amado (WEILER, 1998, p. 96-97).

João não está contra a lei, mas a compreende como entolé, serviço à vida e ao amor. A entolé contrapõe-se às nor-mas e, por isso, quando João exorta a que se amem, é porque a comunidade está separada, dividida e fragilizada. Por esse motivo insiste no amor. O amor tem que ser integrador, passando por todas as dimensões, como opção de vida. Ele consiste numa ação prática, decidida e consciente em favor de uma pessoa ou de um objeto escolhido (WEILER, 1998, p. 102-103).

1.4 AS FONTES

Cabe destacar que, segundo alguns estudiosos, João não usa a fonte dos sinóticos diretamente, mas quer com-pletá-los, histórica ou teologicamente, resolvendo alguns fatos e acentuando outros. Já outros estudiosos, depois de confrontar os relatos da Paixão, chegam à conclusão de que João não conheceu os sinóticos, mas utilizou uma tradição independente e com o mesmo valor his-tórico. J. Blinzler pensa que João teve contato pelo menos com o Evangelho de Marcos e que sua intenção não foi com-pletar os sinóticos nem corrigi-los, mas escrever um evangelho completo, exata-mente como os outros e com um objetivo particular (FABRIS, 1995, p. 260).

Para João, as comunidades apostó-

licas que se baseiam nos sinóticos não têm a experiência do amor e, por esse motivo, entram em confl ito entre si, por interpretações cristológicas e éticas. A intenção do Evangelho de João é mostrar um Jesus que veio para todos e, por meio dele, podemos chegar a Deus através do amor concreto pelo irmão. Para João não é importante amar a Deus, o importante é que esse amor se revele na comunidade. O amor mútuo revela-se na comunidade: ele é concreto e por meio dele vivencia-mos o mistério e o amor de Deus (ULL-MANN, 1998, p. 104-105).

1.5 TEMAS CENTRAIS

Os aspectos centrais deste Evange-lho são: o tema da Criação e da Páscoa--aliança. O tema da criação dá a chave de leitura e interpretação da vida de Jesus. A ideia é fazer coincidir a sua obra com a semana da criação. “Ao dia seguinte” (Gn 1,29) etc, chegar ao sexto dia, que é a criação do homem, coincidindo com o ínicio da obra de Jesus (MATEOS; BARRETO, 1989, 6-7).

Toda a vida de Jesus, até sua morte, fi ca sob o signo do sexto dia; podemos ver que esse dia encerra toda a sua vida, a sua obra e também a sua hora fi nal. Também estão presentes neste Evan-gelho os temas da vida e da luz, com a intenção de contestar os gnósticos, que também investigam na linha da criação (MATEOS; BARRETO, 1989, p. 7).

O segundo tema presente no evan-gelho é o da Páscoa/Aliança que nos remete ao Êxodo, incluindo o cordeiro,

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o santuário, a tenda, a Lei, a passagem do mar, o monte, o maná. O seguimento do caminho de Jesus se liga com o tema do Messias. Os temas da Criação e da Aliança estão entrelaçados desde o prin-cípio da atividade de Jesus. Quando se fala de Jesus homem e fi lho de Deus, está presente a criação; o tema Filho de Deus indica a realização do projeto de Deus; a designação de Filho une as duas de-signações. A união entre criação e Mes-sias mostra aspectos da teologia judaica (MATEOS; BARRETO, 1989, p. 8).

2. A MULHER NO MUNDO JU-DAICO

As mulheres passavam por um des-conforto e insatisfação pela vida que levavam e que tinham de aceitar de qualquer maneira. Elas estavam insatis-feitas porque não “existiam”, diante da sociedade, não tinham uma vida digna. Sabiam que, segundo as leis sociais e morais vigentes, nada mereciam e que sempre iam perder e nunca teriam reco-nhecidos seus direitos, pelo fato de serem mulheres. Por isso, várias mulheres vão procurar maneiras alternativas e estraté-gias para sair da situação. Para isso terão de enfrentar estruturas políticas e religio-sas. Elas transformam a situação de não--poder em exercício do poder. A salvação passa pelo corpo que é lugar de danação. É na negação e na alienação do corpo que as mulheres sentem a opressão e a falta de direitos reconhecidos. É através da sexualidade assumida que a mulher con-quista seu espaço. Negar o socialmente

esperado e determinado, quebrar alguns esquemas viciados e dados como verda-de absoluta e inquestionável, é assim que a mulher marginalizada ocupa o centro. A maioria das mulheres que aparecem na Bíblia, tem coragem de buscar liber-tação. Não espera que a salvação lhes venha de fora. A salvação está presente nas própias mulheres. Na sua margina-lidade, elas são salvadoras de si mesmas e de suas comunidades marginalizadas (PEREIRA, 1997, p. 9-10).

2.1 EM CASA Em casa, a mulher não podia pro-

nunciar a benção nem antes nem depois da comida, e a sua palavra não tinha va-lor para testemunhar. Como não tinha nenhum tipo de instrução, limitava-se aos trabalhos domésticos, convertendo--se em escrava de seu marido. Essa reali-dade era acentuada na classe social mais elevada. De maneira contrária, acontecia nas classes populares, em que a mulher, além desta carga social, tinha de ajudar o marido nos trabalhos do campo (BAU-TISTA, 1993, p. 33).

O homem tinha direito de mandar, castigar e dispor da mulher, e ela devia chamá-lo de “dono’ ou “senhor”. A vida da mulher esgotava-se com a materni-dade que lhe dava certa segurança e, em alguns casos, lhe assegurava bem-querer e respeito. Só nas classes sociais mais abastadas, algumas mulheres tinham di-reitos econômicos, podiam gastar parte de seu dote e, quando fi cavam viúvas, tinham direito a um dote que era fi xa-

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do pelos doutores da Lei (BAUTISTA, 1993, p. 35).

2.2 PROPOSTA DE JESUS Diante desse contexto podemos di-

zer que Jesus começou uma verdadeira revolução ao acolher mulheres dentro de seu movimento e nas comunidades, onde eram instruídas e valorizadas como pessoas dignas. Tornavam-se verdadei-ras discípulas, com personalidade e ci-dadania, dentro de um mundo patriarcal. Jesus reage contra a desigualdade social desabonadora da mulher e condena todo tipo de preconceitos que favorecia os pri-vilégios masculinos. Jesus é possuidor da Boa Nova, da esperança, principal-mente para os desfavorecidos, neste caso a mulher, para colocá-la em pé de igual-dade com o homem. Os evangelistas dão testemunho de que elas foram membros, com plenos direitos, dentro das comu-nidades, e Jesus queria a restauração da sua plena dignidade (BAUTISTA, 1993, p. 39-40).

2.3 JESUS INCLUI AS MULHERES

Enquanto a lei judaica negava à mulher qualquer direito, Jesus as instrui como suas discípulas contra a vontade dos discípulos. As mulheres recebem o batismo, que é conferido igualmente a todos, rompendo assim com a tradição da circuncisão e o rito de iniciação ex-clusivamente masculinos. A mulher é in-serida na comunidade com o fundamen-to da igualdade e do amor, superando as

diferenças discriminatórias de gênero. Com o batismo, a mulher passa a fazer parte do rito de iniciação, lembrando que, na tradição judaica, ela não fazia parte de nenhum rito e era marginalizada na sinagoga. Jesus integra-a e a coloca no centro (BAUTISTA, 1993, p. 53).

2.4 JESUS ACOLHE AS MULHERES

Jesus era bem recebido pelas mu-lheres, em suas casas, e elas gostavam de segui-lo, porque as tirava da miséria social, da escravidão do “não ser” para o “ser”, para a existência, e lhes garan-tia um valor social. Ele as acolhe naquilo que reivindicavam. Não é Jesus que tem uma proposta de inclusão da mulher no mundo judaico. São as próprias mulhe-res que sabem o que precisam para ter espaço dentro da sociedade e Jesus acei-ta sua proposta e as apoia. As mulheres gostavam de Jesus porque as libertava da opressão familiar, social e religiosa, por isso elas o recebiam em suas cassas. “Je-sus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e fi cou escutando a sua palavra” (Lc 10, 38-39).

2.5 AS MULHERES NAS PRIMEIRAS COMUNIDADES

Elas sentiam-se valorizadas, porque

eram escutadas, tinham voz ativa, eram protagonistas e começavam a sentir-se parte do mundo. Mas, na época em que se redigia o Evangelho de João, elas sen-

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tiam-se frustradas novamente: tudo co-meçava a voltar ao passado, coisa que as fazia sofrer muito. Tinham recebido de Jesus os ensinamentos, tinham aprendi-do com o Mestre que elas eram capazes de serem independentes e que tinham um potencial escondido que precisa ser colo-cado para fora. Sentiam-se fortes. Eram elas que em nome de Jesus, às escondi-das, partilhavam o pão, o mel, o leite, tudo o que tinham. Na partilha ensinada por Jesus, estava a possibilidade de so-brevivência.

São essas mulheres que, lideradas certamente por Maria Madalena e Marta (Jo 12, 2-7) e agindo em nome do Senhor Jesus, que nunca as abandonou e que fi -cou com elas em Jerusalém, formam agora as primeiras comunidades cristãs. Quando os discípulos voltavam, depois de algum tempo, e viam aquelas famílias reunindo-se em nome de Jesus, identi-fi cavam no meio dessas comunidades domésticas a presença dEle, principal-mente na partilha do pão (BOHN GASS, 2005, p. 17-18).

2.6 A MULHER NO EVANGELHO DE JOÃO

A mulher aparece sempre de forma positiva, sendo testemunha na missão de Jesus, inclusive como protagonista. Po-demos perceber que, nos momentos em que aparecem as mulheres no evange-lho, há um clima de esperança, de afe-tividade, de envolvimento humano e de reconhecimento da importância de uma vida integrada, em todas as dimensões.

Elas fazem parte das comunidades que estavam se formando a partir de uma nova lógica estrutural, a do amor, menos hierárquica. A mulher encontra, em Je-sus, acolhida e cria-se um ambiente de afetividade, de criatividade e de amor. Há uma valorização da pessoa humana como mulher, um valor que ultrapassa os valores culturais daquele momento.

3. MARIA MADALENA, A ES-COLHIDA POR JESUS

Sobre Maria Madalena sabe-se pou-co, só a partir dos Evangelhos. Não se sabe nada com certeza sobre a sua vida anterior, a não ser que vinha de Mágda-la. Não se sabe de nenhuma ligação sua com algum homem, somente com Jesus. Isto tem levado a várias leituras e espe-culações a respeito de algum possível ro-mance, simplesmente por nada se dizer de sua situação. Por outro lado, nada se sabe, e não são válidas as possíveis hi-póteses, porque não se têm argumentos concretos. Não se pode provar que foi casada com alguém, nem se era jovem, solteira, que tivesse escolhido não se casar, ou que fosse viúva ou repudiada (SEBASTIANI, 1995, p. 39).

3.1 SEGUNDO OS APÓCRIFOS

Nos evangelhos apócrifos podemos perceber a ideia de que Maria Madale-na se tornou a discípula de Jesus quando se tornou transmissora da gnose, da luz. Ela era a Mestra que ensinava a partir da participação que teve junto a Jesus.

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No Evangelho de Maria Madalena, por exemplo, Pedro reconhece que ela era a amada de Jesus. Por isso pede a ela que lhe fale sobre os ensinamentos que o Mestre tinha revelado só a ela. Esta ati-tude do Mestre incomoda a Pedro porque revela a preferência que Jesus tinha por Maria Madalena, desde quando apareceu aos Apóstolos; e ela destaca-se, no gru-po, ao fazer a maioria das perguntas a Je-sus o qual lhe responde com elogios por sua sabedoria em perguntar (FREITAS, 2009, p. 212).

3.2 PRESENTE EM TODOS OS EVANGELHOS

É difícil encontrar uma unidade de

pensamento e concordância para alguns personagens e colocá-los num mesmo lugar. Porém, com Maria Madalena isso acontece nos evangelhos. Maria Madalena é mencionada nos quatro evangelhos canô-nicos, praticamente nas mesmas situações, principalmente junto à cruz.

Em Marcos (15,39-41) diz-se que “o ofi cial do exército, que estava na frente da cruz, viu como Jesus tinha expirado [...]. Aí estavam também algumas mu-lheres, olhando de longe. Entre elas es-tavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago”.

Mateus nos relata que “grande nú-mero de mulheres estava aí, olhando de longe. Elas haviam acompanhado Jesus desde a Galileia, prestando-lhe serviços. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria Mãe de Tiago e a mãe dos fi lhos de Zebedeu” (Mt 27,55-56).

No evangelho de Lucas se diz: “En-tão Jesus deu um forte grito [...] e expirou [...] Todos os conhecidos de Jesus, assim como as mulheres que o acompanhavam desde a Galileia, fi caram à distância, olhando essas coisas” (Lc 23, 46,49).

3.3 MARIA MADALENA DISCÍPULA

Maria Madalena está presente na vida de Jesus nos momentos mais mar-cantes. É a discípula que ama o Mestre e se torna a primeira testemunha da Res-surreição, a portadora da Boa Notícia. Podemos, assim, considerá-la a primeira discípula de Cristo. Os quatro evange-lhos canônicos mencionam Maria Ma-dalena, praticamente nas mesmas situa-ções. No Evangelho de João, podemos perceber que está acentuada a ideia de ser ela a primeira testemunha da ressur-reição. Ela não é citada como sendo uma apóstola, discípula, mas podemos reco-nhecer-lhe esse título, porque ela aparece sempre em primeiro lugar. No evangelho de João, Maria Madalena vai ao túmu-lo no primeiro dia da semana, como, no primeiro dia da semana, na nova criação, o Alfa e Ômega se tornam unos. Com a ida ao túmulo Maria Madalena recebe o anúncio da nova criação, da nova aliança entre Deus e os homens.

As mulheres, no caso Maria Ma-dalena, sempre estiveram presentes no movimento dos cristãos. Elas são as en-carregadas da missão antes de qualquer outro. Há uma investidura para um pa-pel apostólico. Em comparação com os apóstolos, elas os precedem até na fé.

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Maria Madalena acreditou. A precedên-cia é relevante. Sabemos que as mulhe-res não tinham valor social e a sua pala-vra não tinha valor de testemunha; mas é a elas que Jesus encarrega de sua missão, dando-lhes uma importância signifi cati-va. Por isso penso que Maria Madalena teria o direito de ser a primeira Apóstola.

Chamar pelo nome é típico dos re-latos de missão. Maria Madalena reco-nhece o Ressuscitado quando se sente chamada pelo nome: ‘Maria’. Ela virou--se e exclamou, em hebraico: ‘Rabi” (Jo 20,16). Na cultura semita pronunciar o nome de alguém constitui um ato de propriedade por parte de quem chama. Quando Jesus chama Maria Madalena, quer lhe dizer: “És minha, tu me perten-ces”. Jesus a chama pelo nome habitual, e ela responde como costumava respon-der a Jesus: “Mestre”. Ela experimenta que a presença de Jesus antes, na convi-vência cotidiana, não era a plenitude do relacionamento. Testemunhar a ressur-reição é uma vitória interior sobre o ape-go a uma fase superada (SEBASTIANI, 1995, p. 225-26).

3.4 MARIA MADALENA APÓSTOLA

Podemos perceber, claramente, a importância que Maria Madalena teve na vida e na missão de Jesus. A questão que nos colocamos é: por que Maria Ma-dalena, tendo um papel tão importante, desaparece depois do anúncio da ressur-reição? Parece que os evangelistas como que tiram-na de cena. É-lhe tirado o pro-tagonismo que Jesus lhe tinha dado du-

rante toda sua missão terrena. Ao morrer, Jesus desaparece, ela também. A questão está em tentar entender que os evange-listas sabiam da importância que Maria Madalena tinha para Jesus e para os pri-meiros cristãos. Por isso, ela aparece de forma clara e sugestiva. Qual é o motivo pelo qual ela deixa de ser essa referência tão importante, e no lugar dela passem a ser os discípulos?

Os evangelistas são unânimes nos relatos ao pé da cruz. Temos que desta-car, também, que eles são unânimes nos relatos da ressurreição. Ela vai para co-locar óleo no corpo morto de Jesus (Mt 28.1-10), (Mc 16. 1-8), (Lc 24. 9-10) e (Jo 20,1-18). Um gesto íntimo, em que recebe a graça de ver Jesus ressuscitado. Lembrando que Apóstolo é aquele que recebe, de Jesus, o mandato da pregação missionária, é aquele que foi testemunha ocular da vida e dos fatos de Jesus. Maria Madalena é a primeira Apóstola, porque foi ela quem por primeiro, não só viu, mas falou, manteve a relação profunda que tinha em comunhão com o ressusci-tado. Ela foi a primeira a ver o ressusci-tado. Por isso, podemos dizer que ela é a fundadora do cristianismo. Se o cris-tianismo é a crença na morte e ressurrei-ção de Jesus e se Maria Madalena foi a primeira em ver a morte e a sua ressur-reição de fato ela iniciou o cristianismo. Os Apóstolos se fazem presentes na res-surreição porque Maria Madalena vai em sua procura e lhes anuncia. Ela é a única que tem a graça de receber o ressuscitado sozinha. Não há ninguém quando Jesus se aproxima. Ela não precisa de nenhu-ma testemunha. A sua palavra tem valor

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supremo. As outras aparições do Ressus-citado aconteceram quando os discípulos estavam juntos.

APÓSTOLA DOS APÓSTOLOS

Podemos perceber que a Maria Ma-dalena é conferida uma situação privile-giada. Ela recebe o mandato de ir anun-ciar, e não o recebe de qualquer pessoa. É o próprio Jesus quem lhe confere. Neste sentido Jesus lhe confi a uma mis-são apostólica. Ela faz todo o processo: amarga a morte, vê o túmulo vazio, de-pois, vê o Ressuscitado. Ao perfazer esse processo, ela se torna parturiente, dá à luz a Boa Nova e diz: “Jesus Vive!!!” Ela gesta a comunidade cristã e coloca no mundo a possibilidade de ser apóstola e apóstolo. Os discípulos acreditaram por-que ela anunciou (TEPEDINO, 1990, p. 104-105).

Maria Madalena prepara o terreno aos discípulos. Ela é a enviada. Quan-do o ressuscitado aparece, eles já estão preparados para recebê-lo, porque Maria Madalena já tinha preparado o coração deles. Maria Madalena não poderia dei-xar de lado a obra começada por Jesus. Pelo amor que a unia ao Mestre, deve ter dedicado o resto da sua vida a manter o Espírito do Senhor nas comunidades de iguais.

Em Maria Madalena, conseguimos ver, claramente, a preferida de Jesus. Não só ela, mas a comunidade que ela liderava, principalmente depois da mor-te de Jesus. Fica-nos, porém, a dúvida: foi só a Maria Madalena, pessoalmente,

que Jesus apareceu, ou foi à Comunida-de de Maria Madalena? Fica claro que seu nome aparece em todos os evange-lhos. Portanto, ela é Apóstola, e, de igual modo, todas as outras mulheres também, porque foram testemunhas do Ressus-citado. Assim como temos a sucessão apostólica masculina, deveríamos ter também a sucessão apostólica feminina. Porque foi do agrado do Ressuscitado: “Vai e anuncia aos meus irmãos” (Mt 28, 10).

A missão que Jesus lhe dá, é aceita e levada muito a sério por Maria, tanto que Pedro a escuta, acredita nela e vai até o túmulo. Se não tivesse acreditado, não teria ido até lá. O fato de sair e ir ao túmulo é um indício de que tinha acre-ditado na palavra de Maria Madalena. Portanto, seu testemunho tem valor e, através dele, os discípulos fazem sua ex-periência do Ressuscitado.

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Endereço do Autor:[email protected]

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RELIGIOSOS LEIGOS: QUEM SOMOS?

Vanildo Luiz Zugno, OFMCapMestre em Teologia, professor na Estef

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Resumo: Depois de assinalar algumas mudanças pelas quais a Vida Religiosa (VR) está passando, o autor se propõe a repensar a identidade dos religiosos leigos a partir do paradig-ma trinitário onde a relação é o que faz a identidade. No âmbito eclesial, esta reconstrução da identidade exige um novo paradigma eclesiológico capaz de superar uma eclesiologia hierár-quica em favor de uma igreja-comunidade-de-iguais. No âmbito social, as relações com os setores populares marginalizados é o espaço onde os irmãos leigos poderão reconstruir sua identidade.

Palavras-chaves: Vida Religiosa; Religiosos leigos; Identidade; Igreja; Sociedade.

1 MUDANÇAS QUE EXIGEM A RECONSTRUÇÃO DE IDEN-TIDADES

A Vida Religiosa (VR) na América Latina e Caribe, dentro do movimento que resultou na realização do Concílio Vaticano II e, no Continente, a Confe-rência Episcopal de Medellín e as sub-sequentes Conferências do Celam, está passando por um profundo, bonito e – por que não dizê-lo? – muitas vezes, sofrido processo de redescobrimento de sua identidade.

Processo que inclui um momento negativo – talvez o mais doloroso – de desconstrução de uma determinada iden-tidade que já não responde às novas rea-lidades vividas na região. E, o que torna a tarefa ainda mais difícil, a necessidade

de, simultaneamente, ensaiar a cons-trução de uma nova compreensão de si mesma. E isso sob a pressão da urgência dos tempos e das situações... Tarefa que, mesmo tendo começado antes do próprio Concílio, ainda está a caminho e que, como todo processo, se não for bem con-duzido e levado adiante com o devido vigor, pode correr o risco do retrocesso.

Nesse processo, ao pôr-se a cami-nhar juntamente com a Igreja que já não se pensa a si mesmo em oposição, mas em diálogo com a sociedade, a VR se dá conta, por um lado, que já não pode se-guir vivendo como uma eclesíola ou sei-ta. Por outro lado, também se dá conta que, dentro do mundo em que lhe cabe viver e dentro da catolicidade da Igreja, tem sua contribuição específi ca a dar en-quanto VR.

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Caminhar em Igreja permitiu à VR redescobrir, além do específi co da VR como um todo, também uma grande di-versidade de carismas e a riqueza que cada um deles, em diálogo com os ou-tros, pode aportar ao conjunto da VR e à Igreja.

Por outro lado, ao inserir-se na so-ciedade e, nela, tomar parte nas lutas por libertação do povo pobre, a VR também redescobriu sua dimensão místico-pro-fética e a necessidade de, para torná-la real e explícita, desfazer-se de estruturas, modos de vida, esquemas mentais, teolo-gias, espiritualidades... que, na realidade concreta do Continente, já não são sinal da presença do Reino de Deus.

As lutas dos afrodescendentes e in-dígenas desafi aram a religiosos e reli-giosas que trazem no seu corpo – muitas vezes de modo inconsciente ou oculto – as marcas dos 500 anos de uma mes-tiçagem forçada, a redescobrir-se como afroamericanos/as ou fi lhos e fi lhas dos povos originários destas terras e, a partir desta consciência, a pôr-se numa dinâ-mica de resgate da cultura e dos direitos destes povos e, consequentemente, tam-bém seu direito de expressar a própria fé cristã com as formas e os conteúdos que lhe são próprios.

A proximidade com as mulheres do povo e suas lutas fez com que muitas Religiosas – o grupo mais signifi cativo da VR – se ponha a repensar sua própria condição de mulheres e a comprometer--se na superação das estruturas machis-tas tanto no âmbito da mesma VR, quan-to da Igreja e na sociedade.

O Concílio Vaticano II, ao repensar o ser da Igreja, chamou também a aten-ção para a realidade eclesial dos leigos. Reconheceu sua plena condição eclesial a partir da teologia do batismo e sua ci-dadania eclesial através da participação nos conselhos nos distintos níveis ecle-siais e, principalmente, por sua missão no mundo.

Neste contexto de mudanças muito rápidas e profundas em que não sempre houve o tempo, coragem ou força para a devida assimilação, a VR, assim como a Igreja, nos damos conta que, além de seres humanos e cristãos, concretamen-te, somos homens ou mulheres, negros, negras, brancos, brancas, índios, índias, clérigos, leigos ou leigas... e que temos a necessidade de, nas novas circunstâncias sociais e eclesiais, reconstruir nossas identidades.

No específi co da VR, nos damos conta que somos homens e mulheres – e para muitos isso foi uma surpresa e, em alguns casos, até um trauma! – e que, em razão disso, há uma VR feminina e uma VR masculina. E que, entre os religiosos homens, há clérigos e há leigos.

E nos damos conta também de que há religiosos leigos vivendo em Congre-gações exclusivamente laicais e outros vivendo em Congregações ou Ordens onde também há clérigos... E que estas duas situações concretas, no repensar a identidade dos religiosos leigos, fazem grande diferença.

Em resumo, não há apenas uma identidade a reconstruir, mas múltiplas identidades, pois, a VR, mesmo sendo

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uma, se apresenta sempre e cada vez mais plural e multiforme.

Tentaremos aqui colaborar na tarefa de repensar a identidade dos religiosos leigos. Nossa refl exão se dará a partir de nossa condição pessoal que é a de um irmão leigo vivendo numa Ordem reli-giosa em que a maioria de seus membros é clérigo. Isso, temos consciência, con-dicionará nossa refl exão que, sem deixar de ser particular, quer colocar-se em diá-logo com outras experiências.

2. O PARADIGMA TRINITÁRIO COMO POSSIBILIDADE DE RECONSTRUÇÃO DE IDEN-TIDADE NA VR

A identidade de todo cristão e toda cristã tem necessariamente, desde o pon-to de vista da fé, como seu eixo articula-dor, o modo de ser do Deus no qual acre-dita. Assim sendo, nosso paradigma para pensar a identidade não pode ser diferen-te do que sustenta a experiência cristã, o Deus-Trindade.

No ser de Deus, cada uma das pes-soas que o confi guram – Pai, Filho e Espírito – tem sua identidade ao dar-se plenamente aos outros e, no mesmo mo-vimento, reciprocamente, acolher plena-mente o ser dos outros. É o que a teologia trinitária costumou chamar de pericorese trinitária1.

Ou seja, o modo de ser do Deus--Trindade nos ensina que a identidade 1 Cf. BOFF, Leonardo, A Trindade, a sociedade e a Liber-tação. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 156-192. Noutra pers-pectiva diferente, Vita Consecrata, cap. I, também situa a VR no ser trinitário de Deus.

não é construída a partir de si mesmo, mas a partir do outro. Paradoxalmente, a identidade é constituída na relação com o outro. Em outras palavras, somos ca-pazes de construir nossa identidade na medida em que olhamos, interpelamos e interagimos com os outros e outras e nos deixamos por eles e elas olhar, interpelar e provocar.

Como então, a partir deste paradig-ma trinitário pericorético, resgatar nossa identidade de religiosos leigos na Igreja e na sociedade? Como acabamos de di-zer, com certeza não o lograremos se fi -carmos olhando-nos a nós mesmos...

É a partir de uma análise de nos-sas relações com os outros modos de ser – tanto na VR, como na Igreja e na sociedade – buscando perceber como sentimos os outros e as outras – homens, mulheres, indígenas, afrodescendentes, crianças, jovens, adultos, anciãos, cam-poneses e camponesas... – e como eles e elas nos sentem; como seu modo dis-tinto de ser nos interpela e como nosso ser religioso leigo os e as interpela; como atuamos em relação a eles e elas, e como nos deixamos afetar por suas ações sobre nós, a partir daí poderemos sentir, pen-sar e atuar nossa identidade de religiosos leigos.

2.1 A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES NA VR E NAS RELAÇÕES ECLESIAIS

Até pouco tempo, cada Congregação ou Ordem era quase sempre um mundo à parte que não se misturava com as outras

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Congregações ou Ordens. Distância que, às vezes, se tornava competição, seja para mostrar-se mais importante que os outros no interior da Igreja ou na socie-dade, seja para arregimentar vocações e clientes para as obras educativas, de saú-de ou de assistência social.

Mais recentemente, a VR está ten-tando caminhar pelos sendeiros da inter-congregacionalidade. Às vezes, nestes tempos de crise e escassez de vocações e recursos, faz-se intercongregacionali-dade forçado pela necessidade... porém, pode ser que, como diz o dito popular, “das baixas intenções, vem o melhor re-sultado”.

Seja qual for a motivação que leva religiosos e religiosas de diferentes con-gregações a atuar conjuntamente, o fato é que, ao pormo-nos lado a lado, vamos percebendo a riqueza da variedade de carismas e, ao mirar que os outros e ou-tras são diferentes de nós, vamos redes-cobrindo nossas próprias identidades na volta às fontes e na atualização dos ca-rismas no confronto com as novas reali-dades dentro da dinâmica da refundação da VR.

O mesmo acontece nas relações eclesiais. É analisando nossos sentimen-tos, nossas buscas e nossas ações nas relações com os outros componentes do corpo eclesial – clérigos de diversos ní-veis, leigos e leigas em seus diferentes modos de ser e status eclesial, cristãos e cristãs de outras confi ssões eclesiais e também crentes de outras religiões e até mesmo pessoas que não têm um referen-cial religiosos – e tentando perceber o modo como eles e elas nos sentem, nos

interpelam e atuam em relação a nós, que vamos construindo nossa identidade de religiosos leigos na Igreja.

Nesta convivência vamos perceben-do a riqueza, mas também o tenso e às vezes doloroso das relações eclesiais. Tensões e sofrimentos que não podem ser simplesmente ignorados ou escondidos, mas devem ser assumidos com clareza e consciência cristã para que possam ser superados. É nessas relações que somos formados e vamos reconstruindo nossas identidades. Em meio a tudo isso vamos descobrindo o lugar que nos corresponde na vida real da Igreja e, nela, como são nossas relações com os outros e outras. E, o que é mais importante, vamos refl e-tindo sobre estas relações e sobre como identifi cá-las cada vez mais com o para-digma trinitário.

E, como vimos anteriormente, a Igreja, enquanto instituição humana, ain-da vive relações assimétricas, onde uns “podem” e valem mais e outros “não po-dem” ou valem menos. As razões para isso são várias e se mesclam no claro-es-curo da construção eclesial: históricas, teológicas, culturais, de gênero, sexo, raça, idade... Apesar de ser essa uma si-tuação contrária à vontade divina de uma Igreja-comunidade-de-iguais, sempre há alguma formulação teológica que a sus-tenta, dado que a teologia é, como toda ciência, uma construção humana condi-cionada pela situação de quem a produz.

Para nos ajudar a compreender as assimetrias na Igreja e o lugar onde a VR leiga masculina se localiza, fazemos uma adaptação do esquema eclesiológi-co proposto por E. S. Fiorenza2.

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2 Los Caminos de la Sabiduría. Una introducción a la interpretación feminista de la Biblia, Santander, Sal Ter-rae, 2004, p. 179.

Neste esquema piramidal que re-trata o que a autora chama de Modelo Romano Constantiniano Patriarcal de Igreja, vemos que a VR feminina e os religiosos homens se encontram numa situação muito semelhante. Ambos os grupos estão localizados num território intermediário da Igreja onde se mesclam submissão e dominação. Para usar uma imagem, poderíamos dizer que se encon-tram numa “terra de ninguém” ou, numa fi gura teológica, estão “no limbo”.

As religiosas, neste paradigma de Igreja, sofrem uma dupla submissão. Por sua condição feminina, encontram-se

submissas aos homens. Por sua condição leiga, encontram-se em condição inferior na relação aos homens clérigos. Porém, por sua condição de virgens, têm um lugar privilegiado em relação às outras mulheres. Primeiramente, em relação às mulheres esposas e mães e, com muito mais distância, em relação às mulheres não-casadas, mães solteiras, separadas, lésbicas, prostitutas e outras mulheres marginalizadas...

Os religiosos leigos, por sua vez, pela sua condição masculina e pelo celi-bato, estão numa posição privilegiada em relação a todo tipo de mulher, inclusive as religiosas. Porém, por sua condição de leigos, estão inferiormente situados

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em relação aos clérigos, sejam estes do clero secular ou religioso, e inclusive aos clérigos de suas congregações ou ordens, no caso de religiosos leigos vivendo em congregações mistas.

Como se pode ver no esquema, na Igreja há setores que vivem uma situação de défi cit de cidadania eclesial. Por um ou outro fator, não podem viver ativa e ple-namente sua pertença ao Povo de Deus. Ali estão os leigos, homens ou mulheres e, entre estas, as religiosas, os negros e negras, os povos indígenas, os separados e separadas, casais vivendo em segunda união ou em outras situações irregulares diante do Direito Canônico, as mães sol-teiras, os e as homossexuais, os e as que pertencem a outras igrejas cristãs, etc.

Numa situação de tensão intra-ecle-sial, quem está num espaço intermediá-rio tem duas opções: colocar-se do lado de cima, dos que podem; ou colocar-se do lado debaixo, dos que não podem. Concretamente, a tentação de clericali-

zação da VR leiga masculina é grande e real. Afi nal, quem não gosta de estar do lado de cima da pirâmide? Aceitar essa solução, no entanto, seria negar a própria identidade...

A alternativa, a nosso modo de ver, é outra. É intensifi car as relações com os que estão abaixo. É na relação com estes setores marginais da Igreja que os religiosos leigos podem reconstruir sua identidade de modo que possam ser, nas suas realidades específi cas, uma presen-ça profética de um novo modo de ser Igreja. Uma Igreja que já não se pense de modo hierárquico, mas de modo frater-no-sororal, igualitário, onde a diferença de condição e de carisma sirva, não para a negação, mas para a edifi cação de todo o corpo eclesial e, nele, dos que parecem ser os membros mais débeis e necessita-dos de cuidado (1Cor 12,23).

Um novo modo de ser Igreja que po-deria ser assim representado:

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2.2 A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES NAS RELA-ÇÕES SOCIAIS

Há outro espaço onde também se constrói a identidade dos religiosos lei-gos: são as relações sociais. Com efeito, sempre é bom lembrar que nem a Igreja nem a VR estão fora do mundo. Por bem ou por mal, sempre estamos inseridos numa realidade social, nela somos e com ela interagimos. Mesmo se tentarmos nos afastar da sociedade e romper toda relação com ela, seguiremos sendo, mes-mo que simbolicamente, funcionais ou disfuncionais a ela.

Toda realidade social, por mais sim-ples e tranquila que possa parecer, tem sempre um grau de complexidade e de tensão. Em todas as realidades sociais há diversos atores com diferentes identida-des e com distintos e até contraditórios interesses. Se assim não fosse, já estaría-mos vivendo o Reino de Deus...

Enquanto religiosos leigos, nossa identidade também se constrói no modo de sentir, interpelar e atuar ante e/ou com os diversos atores sociais, tanto ativa como passivamente.

Historicamente, a VR, tanto em sua primeira confi guração na vida monásti-ca, como na segunda, a VR mendicante, e na terceira, a VR missionária que sur-ge com a modernidade, sempre nasceu e construiu sua identidade na aproximação aos grupos eclesiais e sociais margina-lizados em seus respectivos momentos históricos .

Com o tempo, no entanto, tanto as

Ordens religiosas do primeiro e segundo ciclo, como as Congregações do terceiro ciclo, estabeleceram relações privilegia-das com os grupos sociais intermédios e superiores da sociedade e, nessas novas relações, reconstruíram suas identidades e se relocalizaram em um novo lugar so-cial, na maioria dos casos distante dos pobres e excluídos da sociedade. A cle-ricalização da VR foi, ao mesmo tempo, causa e consequência inevitável desta deslocação eclesial e social.

Os religiosos leigos, pela sua con-dição de marginalidade na Igreja, foram, em muitos casos, os que mantiveram la-ços e relações com os setores sociais e eclesiais que, como eles, eram margina-lizados na Igreja e/ou na sociedade.

No período pós-conciliar, dentro da dinâmica da inserção da VR, religiosos e religiosas reataram suas relações com se-tores populares marginais e, como vimos acima, começaram a reconstruir suas identidades plurais na unidade da VR.

Ao lado das religiosas que foram, sem sombra de dúvida, as pioneiras e as mais radicais nesse processo, os religio-sos leigos também tiveram uma presença signifi cativa no mundo da inserção. Sua presença solidária e ativa nas lutas dos camponeses, negros, indígenas, sem--terra, sem-teto, moradores de rua, de-pendentes químicos, migrantes... fi zeram com que fossem vistos com outros olhos – como bons, do lado dos pobres; como maus, do lado dos ricos – e assim se co-meçasse a construir uma outra identida-de da VR leiga masculina.

Foi um processo de uma minoria

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profética, mas que, cremos, assinala o caminho por onde temos que seguir e aprofundar se queremos reconstruir a identidade da VR e da VR leiga que nos ponha outra vez nos caminhos das ori-gens de um novo modo de ser Igreja em busca de uma Nova Sociedade que seja antecipação do Reino de Deus.

PARA IR TERMINANDO...

Tempos de crise são sempre tempos de oportunidades. A crise da identidade da VR e, o que aqui nos interessa, da VR leiga masculina, é rica em oportunidades para a reconstrução de identidades.

O trabalho teórico, em nosso caso, teológico, é sempre importante neste momento. Temos que, a partir de nos-sa condição laical, recolocar as grandes questões teológicas. Seja para libertar a teologia (cf. SEGUNDO, 1978) das amarras que lhe foram postas, seja para resgatar velhos paradigmas teológicos que nos permitam viver a originalidade da proposta de Jesus.

Seguindo o acima proposto e pen-sando-o a partir da rica tradição da VR latinoamericana naquilo que mais a ca-racteriza, a opção pelos pobres e a luta contra toda forma de pobreza e morte,

vemos que a reconstrução da identidade da VR masculina leiga pode dar-se sobre dois eixos: na aproximação, diálogo e cooperação com os setores marginaliza-dos na Igreja, e na aproximação, diálogo e cooperação com os setores marginali-zados na sociedade.

BIBLIOGRAFIA

BOFF, Leonardo. A Trindade, a so-ciedade e a Libertação. Petrópolis: Vo-zes, 1986.

DOCUMENTOS DO VATICANO II. Constituições, decretos e declara-ções. Petrópolis, Vozes, 1966.

FIORENZA, E. S. Los Caminos de la Sabiduría: una introducción a la inter-pretación feminista de la Biblia. Santan-der: Sal Terrae, 2004, p. 179.

NERY, Irmão. Revisitando os três ciclos da história da Vida Consagra-da. Convergência, Rio de Janeiro, ano XXVI, n. 339, pp. 25-42, jan/fev 2001.

SEGUNDO, Juan Luis. A Liber-tação da Teologia. São Paulo: Loyola, 1978.

Endereço do Autor:[email protected]

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IRMÃO LEIGO: IDENTIDADE E MISSÃO

Frei Edson Matias, OFMCap._________________ _________________

As diferenças constituem um dos pilares de qualquer construção de iden-tidade. Para nós cristãos, movidos pelo desejo de um mundo cada dia mais justo, a diversidade é riqueza incontestável e necessária às comunidades. Nesse con-texto a vocação do Irmão Leigo é um dom e uma riqueza para as igrejas. Ela se apresenta como uma forma específi ca de viver dentro da missão em um carisma específi co. Ela, por excelência, mostra a originalidade e profetismo da Vida Re-ligiosa.

Sabemos que nas diversas congre-gações essa vocação tem suas especifi ci-dades. Nas congregações que são forma-das por irmãos parece não ocorrer tantas crises com relação à identidade. Tudo está ali: formação religiosa, acadêmica, carisma, etc. Entretanto, nas congrega-ções ditas ‘mistas’, os confl itos na for-mação da identidade são acentuados. A ordem franciscana é um exemplo claro dessa realidade. O ideal de Francisco de Assis, da fraternidade evangélica, logo foi turvado em sua fonte. Clérigos e lei-gos começaram um disputa pelo controle da Ordem.

No capítulo de 1239 vemos que os clérigos “julgavam não desfrutar da po-

sição que mereciam” (DESBONNETS, 1987, p.125). E assim, a fraternidade, que originariamente estava reconcilia-da, livre de divisões, reassume o antigo vício. Um dos pilares dessa mutação da Ordem foi o Ministro Geral Aymon de Faversham. Ele pode ser considerado o segundo fundador da ordem, dando a esta uma estrutura clerical. Desse mo-mento em diante começam as nomea-ções de bispos franciscanos e em pouco tempo já eram dezenas pela Europa.

Com a clericalização da ordem, os irmãos leigos fi caram impedidos de as-sumir cargos. Ou seja, somente podia dirigir a Ordem quem tivesse recebido da Igreja o ministério sacerdotal. A Or-dem reveste-se assim da mesma roupa da Igreja hierárquica. Não que isso seja terrível ou um erro, mas não é próprio do carisma franciscano. Em outras palavras, estamos há séculos vivendo, e agora ten-tando desfazer um desvio de rumo de nosso carisma.

Dentro desse contexto em que nos encontramos desperta a refl exão sobre a identidade e missão dos irmãos leigos dentro da ordem franciscana. Um dos primeiros passos dessa refl exão deve ser essa consciência histórica. Encontramo-

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-nos em um percurso errôneo de nosso carisma. Várias experiências nos últimos anos vêm apontados outros caminhos. Como a criação da Comissão Interfran-ciscana (OFM, OFMConv, OFMCap) para o Estudo da Ordem Franciscana como “Instituto Misto”. Essa comis-são, em 1997, lançou um estudo sobre a Identidade da Ordem Franciscana no Momento de sua Fundação, na tentati-va de ofi cializar um pedido à Santa Sé para que reconheça a Ordem franciscana como mista.

É dentro desse contexto de luzes e sombras que nos encontramos e consti-tuímos nossa identidade e nossa missão.

Falar em identidade nessa conjuntu-ra apresenta-se complicado. Como disse-mos acima, somos constituídos a partir da diferenciação, mas isso não quer di-zer confl ito frequente, como observamos na história entre leigos e clérigos. A di-ferença deve se estabelecer na unidade em uma constante dialética. Todos nós somos sedentos de signifi cado para nos formar como pessoas. Quando ingressa-mos na Ordem queríamos ser frades fran-ciscanos. Aos poucos fomos percebemos que os confl itos existem e nos pergunta-mos sobe nossa vocação ou sobre aquilo que intuímos como nosso caminho. Para uns, isso acontece de forma tranquila, mesmo enfrentado barreiras e diferen-ciações pejorativas. Outros, entretanto, sofrem por se sentirem sempre cobrados em resultados para serem aceitos na Or-dem. Tal necessidade surge normalmente do embate entre pastoral paroquial e de-mais atividades. Em muitos lugares ou-

tras formas de atividade evangelizadora não são reconhecidas como trabalho pela fraternidade local. Começa-se, assim, uma busca de identidade do irmão leigo, pois ser aceito e acolhido naquilo que faz reforça ou enfraquece a formação da identidade.

Talvez, neste ponto de nossa refl e-xão, seja necessário discutir sobre nos-so carisma primeiro e nossa missão: o anúncio do evangelho pelo testemunho. A evangelização - que é nossa ‘obra’ por excelência - “Realiza-se por meio do testemunho e por meio do anúncio do mistério de Cristo...” (III CPO, 4). Não é simplesmente por meio de atividades que realizamos nossa missão. Elas fazem parte de nosso dia-a-dia, mas produção não quer dizer evangelização. A voca-ção do irmão leigo deve ser aprofundada nesse sentido. A evangelização - dentro da pastoral e da missão - somente se re-aliza pelo testemunho. Em nosso mundo por vezes confundimos evangelização com propaganda e marketing. O Evan-gelho que professamos não é uma marca ou um produto que se vende, mas antes é uma forma de vida. Todos aqueles que vivem em conformidade com Cristo, evangelizam.

Não há dúvidas que é necessário refl etir sobre evangelização, missão e pastoral na construção da identidade do irmão. Refundar nosso carisma como fraternidade proposta por Francisco de Assis, contribui para tal dinâmica.

Em tempos recentes começaram a existir grupos dentro da Família fran-ciscana que passaram a dialogar sobre

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o caráter misto de nosso carisma; mas também percebemos um retrocesso ao conservadorismo dentro de nossas ins-tituições, onde a fi gura do irmão volta a ser vista como coadjuvante. Por isso, é urgente levar adiante a refl exão dos Ministros Gerais na carta de 1994 sobre nossas origens. Não podemos perder de vista o que foi inspirado naquela ocasião. Sem tais refl exões e abertura fi cará difí-cil tratar da identidade do Irmão leigo e sua missão, pois tudo vem pré-estabele-cido por um erro de percurso em nossa história.

Outro ponto de que precisamos to-mar consciência é que nossa missão e identidade situam-se hoje em contextos diferentes do tradicional, marcado pela paróquia e pela catequese. “Antes os meios clássicos eram igrejas, capelas, escolas e hospitais... Hoje estão presen-tes também contextos novos, que exigem respostas e formas também novas”, dizia no fi nal dos anos 70 o III Capítulo Ple-nário da Ordem (n. 16). Hoje estamos no meio popular, nas universidades, na po-lítica, nos movimentos sociais, no traba-lho com a juventude, etc., nossa identi-dade não pode continuar sendo moldada pela paróquia. Em recente Carta sobre a Missão, o Ministro Geral alerta: “Hoje as coisas mudaram radicalmente não só na Igreja e na Ordem, mas também no cam-po político e econômico” (2009, p. 3).

O protagonismo em nossa missão é importantíssimo nesse caminho. Não é em ambiente de fl ores que se vai andar, é antes na fadiga de um novo despertar da vida religiosa, que tem como centro

o profetismo. Nossa Igreja hoje não é constituída

circularmente, mas hierarquicamente. Nossa ordem também assim se encontra. Com isso confundimos cargos com ca-rismas ou com evangelização. Os minis-térios são úteis e necessários, mas eles não podem ser absolutizados em si mes-mos. Uma senhora de nossa comunidade pode exalar mais evangelho do que mui-tos líderes religiosos institucionalizados em sua missão. Não se forma uma iden-tidade evangelizadora buscando reco-nhecimento e cargos, mas se disponibi-lizando. O frade “não se apresenta como superior nem como inferior, mas como irmão. Não se impõe, mas se dispõe” (III CPO, 18). Esteja onde for: na Igreja, na faculdade, nos movimentos sociais, o ir-mão leigo deve exalar o bom perfume de Cristo Jesus.

Por fi m, ao trabalhar sobre a identi-dade e missão do irmão leigo francisca-no, percebemos que toda essa realidade é plástica. Podemos dizer que a identidade é uma não fi xação, uma quase ‘não iden-tidade’. Talvez a palavra melhor para qualifi car tal realidade seja ‘abertura’ ou ‘gratuidade’. Não se faz algo para ter identidade, pois assim agindo já se fi xa-ria o que deve ser dinâmico. Somos em Cristo antes mesmo de sermos. Isso deve constituir nossa missão e nossa identida-de. Em outras palavras: “Nossa fraterni-dade franciscano-capuchinha, tendo em si mesma a tensão da fraternidade uni-versal, é chamada, por sua própria índo-le, a testemunhar uma vida transformada, expressão de ‘relações redimidas’” (Car-

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ta, 2009; cf. VII CPO). É dessa vivência que podemos falar em evangelização e identidade.

BIBLIOGRAFIA

JÖHRI, Mauro. Carta circular so-bre a Missão. Roma, 2009.

DESBONETS, Théophile. Da in-tuição à instituição. Petrópolis: Cefepal, 1987.

III Conselho Plenário da OFMCap: Vida e atividade missionária, 1978.

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CRÔNICAS

MUDANÇA NA DIREÇÃO DA ESTEF_________________ _________________

Em 31 de agosto de 2010 foi empossada a nova direção da Estef, para o período de quatro anos. Como Diretor foi nomeado o Prof. Dr. Frei Aldir Crocoli (recondu-zido) e, como vice, o Prof. Me. Frei Faustino Paludo. Deixou a vice-direção a Profa. Dra. Irmã Lúcia Weiler. Seguem alguns pronunciamentos.

PRONUNCIAMENTO DELÚCIA WEILER

(ao deixar a vice-direção)

PAZ e BEM a todas e a todos!A ESTEF, sua mística, a dinâmi-

ca da circularidade - simbolizada pelas abelhas laboriosas na colméia teológica, como evoca a estrutura da Escola - seus princípios pedagógicos, sua proposta e seu jeito de fazer Teologia circularam nas minhas veias e fi zeram arder meu coração, quando iniciei aqui minha ca-minhada no magistério teológico.

Quando assumi há quatro anos no dia 1° de setembro de 2006, a função de vice-diretora, neste mesmo auditório eu dizia que era um serviço que estava assu-mindo porque acreditava no potencial de um trabalho de equipe. Na época pensa-va que era por três anos, mas foram qua-tro. Lembrava também que assumia na condição de marcar uma diferença repre-sentando na direção a signifi cativa par-

cela de mulheres estudantes na ESTEF. Também estava na condição de fazer eco, na equipe diretiva, de vozes e espiri-tualidades que não eram especifi camente franciscanas, como é a marca da Escola, desde o próprio nome que a caracteriza e visibiliza. Mas me identifi quei – ou fui identifi cada e quase assimilada – com o jeito franciscano-capuchinho. Quando fi cava sozinha na direção chegavam a perguntar: “Só tu de capuchinho aqui?”

Hoje olhando para esses quatro anos posso dizer que aprendi muito. Fizemos uma ótima caminhada conjunta, não sem confl itos e tensões, mas de muita comu-nhão, alegria, esperança. Novas inicia-tivas foram ousadas e hoje a ESTEF se apresenta como grande força de irradia-ção na sua responsabilidade e impacto social, espiritual, teológico, enfi m, em

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todas as dimensões da vida. Gratidão a Deus por tudo!

Aqui quero deixar registrado meu agradecimento à entidade mantenedora, Fundação São Lourenço de Brindisi, por apostar e confi ar em mim neste serviço. Um obrigado também à Congregação Irmãs da Divina Providência que me apoiou e liberou para uma dedicação mais intensa na ESTEF nestes quatro anos.

Um muito obrigada à equipe direti-va, em especial a você, Frei Aldir Croco-li, por tudo. Não posso nomear detalhes, porque você já sabe e Deus sabe ainda melhor do que nós da sua dedicação a esta Escola.

Aqui quero reconhecer um limite meu... não foi possível ajudar a dividir a carga de tarefas burocráticas e mesmo a representação externa da Instituição. E a causa disso não foi outra senão minha condição de mulher, no quadro institu-cional estrutural da Teologia. Também já falamos sobre isso e em parte foi um dos critérios que pesou sobre minha decisão, antes mesmo de ser feita a indicação, de não continuar nesta função. Desejo-lhe um renovado vigor e ânimo, com a bên-ção generosa de Deus Pai e a proteção de Maria mãe da Providência, para assumir o serviço de Direção da ESTEF.

A você, Frei Faustino, desejo muitas bênçãos de Deus e uma experiência tão enriquecedora quanto a que eu tive nesta mesma missão de vice-diretor. Os mes-mos desejos de bênção são extensivos a toda a equipe do Núcleo Estruturante da Escola que será constituído nos pró-

ximos dias.Meu muito obrigada a vocês, co-

legas professoras e professores, pelo incentivo, mas também pelas críticas e reivindicações que possibilitaram bus-cas mais arrojadas. A CPA pelo seu olhar avaliativo perseverante e dedicado.

E muito obrigada a vocês, estudan-tes, que são a razão de nossa jornada. Obrigada pelos desafi os, pelos diálogos, pelas brigas, enfi m, por tudo. Ao DA-BARC agradecimento especial pelos bons diálogos.

E um obrigado muito especial ao corpo técnico-administrativo – quase todo constituído por mulheres de muita garra e dedicação, como diz Milton do Nascimento, com a estranha mania de ter fé na vida, aconteça o que acontecer.

Na Biblioteca: Karem, Grace e An-dréa, sem esquecer Aricélia.

Na Secretaria: Juliana e Luciane, sem esquecer Cristiane.

Na manutenção e limpeza: Eva Au-drei e Almir.

O que seria a Escola sem vocês. Muito obrigado não somente em meu nome, mas em nome de toda equipe dire-tiva deste quadriênio.

Enfi m, gostaria de dizer uma pa-lavra de ânimo para todas e todos nós: continuemos apostando nesta proposta alternativa da ESTEF. Quando se vi-veu uma experiência tão intensa como foi essa vivida nestes quatro anos, não dá para sair igual... O compromisso de colaborar aumenta. Obrigada àqueles e àquelas que confi aram, indicando meu

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nome para continuar na equipe diretiva. Não estou me despedindo, apenas, como diz alguém, continuarei olhando e cola-borando no todo da ESTEF a partir de outras trincheiras.

Com o Evangelho de Jesus Cristo, tão bem assimilado por Francisco e Cla-ra de Assis, queremos renovar o desejo de beber da fonte universal do amor e da sabedoria de Deus. Que não percamos nunca de vista o ponto de partida.

Creio na força libertadora e trans-formadora do labor teológico que se faz num discipulado mútuo de iguais na aco-lhida e partilha enriquecedora das dife-renças de gênero, de culturas, de etnias. E convido todas e todos a acolhermos esta proposta apoiando-nos mutuamente nos diversos serviços para os quais cada qual é chamado.

A vocês, Frei Aldir e Frei Faustino, agradecemos pela disponibilidade de as-sumir esta missão por mais quatro anos, e suplicamos a bênção de Deus, que sempre esteve e estará presente em nos-so caminho de busca e diálogo, para que o BEM, o “melhor” em nós e através de nós se faça visível , como diz o lema e o hino da ESTEF. E contem sempre com o meu, o nosso apoio.

Ir. Lúcia Weiler

PRONUNCIAMENTO DE ALDIR CROCOLI

(iniciando nova gestão)

Estimado Frei Álvaro Morés, mi-nistro provincial. Estimado Frei Eval-do Freitas, presidente da Fundação São Lourenço de Brindisi, mantenedora da Estef. Estimados professores e professo-ras, estudantes do Curso de Bacharelado e do Curso Básico de Teologia, funcio-nárias da Estef.

Diz o Evangelho de João, no apên-dice: “Quando eras jovem, tu te cingias e ias aonde querias; quando fores mais maduro no amor responsável, outros te cingirão e te conduzirão para onde tu não queres ir” (Jo 21,19). Para começar, que-ro deixar claro que não tenho nenhuma vontade de me perpetuar no poder, como alguém, talvez jocosamente, disse ao ver meu nome no mural. Ao contrário, teria imenso prazer em não me encontrar aqui com esta designação. Digo-o com since-ridade, esta função não me faz ser mais feliz. Se a estou assumindo para os pró-ximos quatro anos, é tão somente para emprestar meus ombros a um empre-endimento, cuja incidência provincial, eclesial e social é reconhecida de todos, e que precisa de pessoas que se disponham a levá-lo à frente. Faço-o com humilda-de, prometendo dar o melhor de que sou capaz, e sabendo que vocês conhecem o meus limites e as minhas intenções.

Lembremos que nos últimos qua-tro anos, a Estef deu passos. Economi-camente, estava quase no vermelho, em 2006. Agora goza de saúde mais estável.

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Estruturalmente, foi pintada por fora, pintado o telhado, reformado este audi-tório, implantado o sistema Gnuteca na Biblioteca, feito o acesso para veículos pelo portão da Estef e construída a co-zinha. Em termos acadêmicos, foram abertos três cursos de especialização que acontecem de forma intensiva nos perí-odos de férias escolares. Os Cursos de Teologia Popular (CTP) prosseguem; a Teologia à distância (em parceria com o Correio Riograndense) cresce sempre, chegando este ano a mais de 3.200 ins-critos. Aconteceram ainda, ou vem acon-tecendo, outros cursos populares, como Doutrina Social da Igreja, Leitura orante, etc.

E mais: estamos agora por implan-tar um sistema mais aperfeiçoado do Gnutema, passando do 1.8 para o 2.3. Bem como o sistema Sagu, na secretaria acadêmica, que permitirá acompanhar a própria vida acadêmica via WEB: notas, pagamentos, relatório de disciplinas cur-sadas, etc.

Como todos sabem, estamos para receber o recredenciamento da Escola para o qual já fomos aprovados, faltando apenas a publicação no Diário Ofi cial da União. Com certeza, também, obteremos o reconhecimento do Curso, com a visita desta semana. Parece ainda estar se cla-reando a possibilidade de uma parceria com a Igreja Anglicana do RS no estudo da Teologia.

A Estef entra assim numa fase nova, início de sua maturidade, pois completa-rá 25 anos em 2011. É decisivo que siga seu processo como construção conjunta.

A Estef não é dos Capuchinhos nem da Direção, nem dos professores e profes-soras, mas de todos nós. É da Igreja e da Vida Religiosa. Cada um, cada uma, segundo seu espaço, é responsável pelo todo da Escola. Este é um momento sole-ne para reafi rmar este princípio. Importa fazê-lo enquanto cidadãos que creem em “outro mundo possível” e enquanto reli-giosos e religiosas que ensaiam o ‘modo koinonia’ da Igreja ser.

Por diversas razões, sinto-me na obrigação de agradecer de modo mais explícito à Ir. Lúcia Weiler. Certamente a direção fi cará mais empobrecida sem a sua presença, Lúcia. Apenas respeita-da tua vontade de não mais permanecer na diretoria. Sentimo-nos imensamente gratos pela tua contribuição e continua-remos a contar contigo como professora e como coordenadora dos dois Cursos de Especialização da Vida Religiosa e ou-tras coisas mais, com teu característico modo de ser.

Agradeço aos integrantes da dire-ção, o Prof. Vanildo Zugno, coordena-dor da Graduação, o Prof. José Bernardi, coordenador das pós-graduações e dos grupos de pesquisa, a Profa. Josete, co-ordenadora do Curso Básico, e o Prof. Wilson Dallagnol, coordenador da Ex-tensão. Todos estes, conforme estabele-ce o Regimento da Escola, declaro que estão confi rmados verbalmente no cargo enquanto não for editada a nomeação através de portaria interna, por ser com-petência da direção indicar. E ao Prof. Faustino Paludo, que assume a vice-dire-ção, desejamos boas vindas a este grupo,

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que ofi cialmente se denomina “Núcleo Docente Estruturante”. Tentaremos jun-tos estar atentos aos sussurros quase im-perceptíveis do Espírito, de braços dados com todos vocês.

Na decisão de prosseguir com o mesmo espírito que animou a caminhada da Estef até agora, professamos docili-dade ao Espírito do Senhor. Queremos estar com os ouvidos atentos a ele, e com os olhos fi xos no Senhor e Mestre de to-dos. Concluo com uma palavra do profe-ta Elias, de quem tanto gosto: “Levanta--te e come, pois tens um longo caminho a percorrer”. Avante, há esperança no futuro.

Aldir Crocoli

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REVISTAS EM PERMUTA1. PUBLICAÇÕES ESTRANGEIRAS

Aggiornamenti Sociali - Milão, Itália.Alpha Omega - Rivista di Filosofi a e Teologia - Ateneo Pontifi cio Regina Apostolorum, Roma, Itália.Analogía - Revista de Filosofi a dos Do-minicanos, México.AnáMnesis - Revista de Teologia dos Dominicanos, México.Anthropos - Instituto Superior Salesia-no de Filosofi a y Educacion. Los Teques, Venezuela.Augustinianum - Roma.Barnabiti Studi - Congregação dos Pa-dres Barnabitas, Roma.Bíblica (série científi ca) - Difusora Bí-blica, Fátima, Portugal.Boletim CIHEV - Centro de Investiga-ciones de Historia Eclesiastica Venezue-lana. Caracas, Venezuela.Bulletin Dei Verbum - Fédération Bibli-que Catholique. Stuttgart, Alemanha.Cahiers de Spiritualité Capucine - Ca-puchinhos de língua francesa - França.Cuadernos Franciscanos - Cefepal de Chile. Santiado, Chile. Cuadernos Interculturales Caminar - Instituto de Misiologia. U.C.B. Cocha-bamba, Bolívia.Diversidades - Revista de Análisis - Quito, Equador.Estudios Bíblicos - Facultad de Teolo-gía San Dámaso – Madrid.

Estudios Franciscanos - Barcelona, Es-panha.Études Franciscaines – Publicação dos Capuchinhos da FrançaÉvangile Aujourd’Hui - Révue d’Espiritualité Franciscainne - Paris, França.Humanística e Teologia - Faculdade de Teologia. Porto, Portugal.Il Santo - Rivista Francescana di Storia, Dottrina e Arte. Centro Studi Antoniani - Pádua.Il Regno - Bolonha, Itália.ITER - Instituto de Teologia para Reli-giosos. Los Ruices, Caracas, Venezuela.Labor Theologicus - Universidad Cató-lica Santa Rosa - Caracas, Venezuela.La Palabra Hoy - Federação Bíblica Católica. Bogotá, Colômbia.La Revista Católica - Santiago, Chile.Laurentianum - Collegio Internaziona-le San Lorenzo da Brindisi. Roma.Medellin: Teologia y Pastoral - Institu-to Teológico Pastoral del CELAM. Bo-gotá, Colômbia.Moralia - Revista de Ciencias Morales. Madrid, Espanha.Naturaleza y Gracia – Capuchinos de Castilla, Salamanca, España.Nuevo Mundo - Revista de Pastoral de los Capuchinhos de Venezuela. Caracas, Venezuela.

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Pasos - Departamento Ecumnico de In-vestigaciones (DEI) – Costa Rica.Pastoral Andina - Instituto de Pastoral Andina. Cuzco, Peru.Perfi cit – Revista de Estudos Humanísti-cos. Salamanca, Espanha.Proyección - Facultad de Teologia. Gra-nada, Espanha.Quarto Intermedio – Cochabamba, Bo-lívia.Revista CLAR - Confederación Latino-americana de Religiosos. Bogotá, Co-lômbia.Revista de Teología - Seminario Mayor San José, La Plata, Argentina.Revista Española de Teología - Semi-nário Conciliar - Madrid.Revista Yachay - Cochabamba. Bolívia.

Athena (Revista científi ca de Educação) - UniExp – Curitiba, PR.Atitude - Faculdade Dom Bosco - Porto Alegre, RS.Atualiodade Teológica - Departamento de Teologia da PUC do Rio de Janeiro.Boletim das Fraternidades - São Paulo, SP.Cadernos do CEAS - Centro de Estudos e Ação Social. Salvado, BA.Cadernos IHU - Instituto Humanitas Unisinos - São Leopoldo, RS.Cadernos Patrísticos – Florianópolis, SC.

Rivista Liturgica - Abbazia S. Giustina. Pádua, Itália.Selecciones de Franciscanismo - Valen-cia, Espanha. Spiritus - Revista de Missionologia - Quito, Ecuador.Stromata - Facultad de Filosofi a y Teo-logia. San Miguel, Argentina. Theologica Xaveriana - Facultad de Te-ologia, Pontifícia Universidad Javeriana. Bogotá, Colômbia.Teologia y Vida - Pontifi cia Universidad Catolica de Chile. Santiago, Chile.Teologia y Catequesis – Madrid, Espanha.The Princeton Seminary Bulletin - Princeton Theological Seminary. New Jersey, USA.Vida y Espiritualidad - Lima, Peru.

Caminhando - Faculdade de Teologia da Universidade Metodista. São Paulo, SP. Caminhando com o Itepa - Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo, RS.Coletânea - Instituto de Filosofi a e Teo-logia do Mosteiro de São Bento - Rio de Janeiro, RJ.Encontros Teológicos - Instituto Teo-lógico de Santa Catarina. Florianópolis, SC.Espaços - Revista do Instituto Teológico São Paulo. São Paulo,SP.Estudos Teológicos - Escola Superior de Teologia da IECLB - São Leopoldo, RS.

2. PUBLICAÇÕES BRASILEIRAS

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Estudos de Religião - Universidade Me-todista de São Paulo, SP.Filosofazer -Instituto Superior de Filo-sofi a Berthier - Passo Fundo, RS.Fragmentos de Cultura - Revista do Instituto de Filosofi a e Teologia de Goi-ás. Goiânia, GO.Horizonte Teológico - Instituto Santo Tomás de Aquino - Belo Horizonte, MG.Inclusividade - Revista do Centro de Estudos Anglicanos - Porto Alegre, RS.Itinerários - Revista do Instituto São Boaventura – Brasília, DF.Leopoldianum - Revista de Estudos e Comunicações da Universidade Católica de Santo, SP. Lumen - Revista da FAI: Faculdades Associadas Ipiranga - São Paulo, SP.Mundo e Missão - Pontifício Instituto das Missões (PIME) - Mundo e Missão - S. Paulo, SP.Notícia Bibliográfi ca e Histórica - PUC de Campinas, SP.Orar - Revista da Ordem dos Carmelitas Descalsos - São Paulo, SP.Perspectiva Teológica - Revista da Fa-culdade de Teologia do Centro de Estu-dos Superiores da Companhia de Jesus. Belo Horizonte, MG.Phrónesis: Revista de Ética - Pós-Gra-duação em Filosofi a na Puc de Campi-nas-SPPistis e Práxis - Revista da PUC, PRRazão e Fé - Revista Inter e Transdis-ciplinar de Teologia e Filosofi a da Univ. Católica de Pelotas, RS.Redemoinho - Revista da Rede Brasi-

leira de Institutos da Juventude - Porto Alegre, RS.Refl exão - Faculdade de Filosofi a da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, SP.Refl exus - Revista de Estudos Teológi-cos - Faculdade Unida de Vitória, Vitó-ria, ES.Religião e Cultura - Departamento de Teologia e Ciências da Religião - PUCSP.Renovação - Revista de refl exão, docu-mentação e entre-ajuda - CNBB-Sul 3. Porto Alegre, RS.Revista Caminhos - Mestrado em Ci-ências da Religião - IFITEG – Goiânia, GO.Revista de Catequese - Instituto São Pio X - São Paulo - SPRevista de Cultura Teológica - Facul-dade de Teologia N. Senhora da Concei-ção. São Paulo, SP.Revista de Estudos Universitários - Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras de Sorocaba, SP.Revista de História Regional - Univer-sidade Estadual de Ponta Grossa, PR.Revista de Filosofi a Vicentinos - Ins-tituto Vicentino de Filosofi a – Curitiba, PR.Revista de Liturgia - Pias Discípulas do Divino Mestre. São Paulo, SP.Revista de Teologia e Ciências da Reli-gião – Recife, PE. Revista Eclesiástica Brasileira - Insti-tuto Teológico-Franciscano e Ed.Vozes. Petrópolis, RJ.Revista Franciscana - Família Francis-

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cana do Brasil – Patrópolis, RJRevista Litterarius - Faculdades Paloti-nas - Santa Maria, RS.Revista Missioneira - Instituto Missio-neiro de Teologia. Santo Ângelo, RS.Revista Rainha - Sociedade Vicente Pallotti. Porto Alegre, RS.Revista Rhema - Instituto de Teologia Arquidiocesano Santo Antônio. Juiz de Fora, MG.Revista Trilhas - Faculdade Missioneira do Paraná – Cascavel, PR.Sapientia Crucis - Revista felosófi co--teológica - Institutum Sapientiae, Aná-polis, GO

Scintila - Revista de Filosofi a e Mística Medieval - IFSB e SBFM, Curitiba, PR. Teologia em Questão – Faculdade Dehoniana – Taubaté, SP.Teológica – Faculdade Teológica Batista – São Paulo, SPTheologiká - Rev. de Estudos de Teolo-gia e Comunicações – Univ. Católica de Santos, SP.Veritas - Revista de Filosofi a - PUCRS - Porto Alegre, RS.Via Teológica - Revista da Faculdade Teológica Batista – Curitiba, PR.Vida Pastoral - Revista para sacerdotes e agentes de pastoral. Ed. Paulus. São Paulo, SP.

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ORIENTAÇÕES PARA A PUBLICAÇÃO DEARTIGOS NA REVISTA CADERNOS DA ESTEF

1. As colaborações para os Cadernos da Estef são sempre bem-vindas. Para serem publicadas deverão correspon-der à índole da revista e receber o pa-recer favorável da Comissão avalia-dora. As matérias aceitas aparecerão no primeiro número disponível.

2. Os artigos terão, em média, uma ex-tensão de 10 a 15 páginas (fonte Ti-mes new Roman, tamanho 12, espa-ço simples). Mas aceitam-se artigos bem menores, pois corresponde ao interesse diversifi cado dos leitores. As crônicas terão a extensão de uma ou duas páginas e deverão apresentar uma notícia mais desenvolvida de um evento de interesse. As recensões oscilam entre uma e três páginas, de-vendo referir-se a obras de qualidade e de publicação recente.

3. As referências bibliográfi cas são feitas, entre parêntesis, ao longo do próprio texto, indicando autor, ano e página da publicação. No fi nal do tex-to deve aparecer a lista completa das obras citadas, em ordem alfabética. Em rodapé permanecem notas expli-cativas.

4. A bibliografi a fi nal deve apresentar os dados técnicos da obra, conforme os modelos que seguem:

MERINO, J. Antônio. Humanismo fran-ciscano: franciscanismo e mundo atual. Petrópolis: FFB, 1999, 333 pp. (Pode-se

mencionar ou não o tradutor e a coleção).

KNITTER, Paul F. Introdução às Teolo-gias das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2008, 399 pp.

ROTZETTER, Anton. Com Deus nos dias de hoje: curso básico de vida fran-ciscana. Tradução de Carlos A. Pereira. Petrópolis: Vozes, 2003. 431 pp.

BRUNELLI, Delir. Ele se fez Caminho e Espelho: o seguimento de Jesus Cris-to em Clara de Assis. Petrópolis: Vozes, 1998, 253 pp.

Para parte de uma obra:

BINGEMER, Maria Clara. Sedução do sagrado. In: CALIMAN, Cleto (org.). A sedução do sagrado: o fenômeno religio-so na virada do milênio. Petrópolis: Vo-zes, 1998, p. 79-115.

MURAYARA, C. C. de S. O Universo na tradição budista. In: SUSIN, L.C. (org.). Mysterium Creationis: um olhar inter-disciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 143-159.

Para um artigo:

BOFF, Leonardo. A busca de um ethos planetário. Perspectiva Teológica, n. 111 (2008), p. 165-179.

ZAMPIERI, Gilmar. Metafísica do so-frimento, da morte e do amor em Scho-penhauer. Cadernos da Estef, n. 39 (2007/2), 69-85.

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5. Pede-se um resumo de 4 ou 5 linhas e a indicação de algumas palavras-cha-ve para colocar no início do texto.

6. Expressões em língua grega e hebrai-ca devem ser transliteradas.

7. Cabe à redação fazer eventuais ade-quações exigidas pelo estilo da revis-ta.

8. Pede-se aos colaboradores e colabo-radoras que indiquem o próprio nome e endereço como desejam vê-los pu-blicados. É sufi ciente o endereço ele-trônico.

9. Os textos são enviados pelo correio eletrônico para um destes endereços: [email protected] ; [email protected] ou: [email protected]

Conselho de RedaçãoCadernos da Estef

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ÍNDICE GERAL2009-2010 - n° 42-45

N° 42 - 2009/1: Da apatia à compaixãoN° 43 - 2009/2: Pro inferno, não!N° 44 - 2010/1: Em busca da fonte

N° 45 - 2010/2: A teia da Espiritualidade

BERNARDI, J. Franciscanismo, uma abordagem acadêmica, 42(2009)108; A VR na história: os primordios, 45(2010)5.

BERNARDO Mª, Pe., A espiritualidade cisterciense, 45(2010)23.

BORDIGNON, C. , A pintura como arte, um processo criativo, 42(2009)98.

BORBA, C.M. de, A espiritualidade dos Oblatos de S. Franciosco de Sales, 45(2010)

BÓRMIDA, J., O inferno, 43(2009)05; Um Deus frágil e desnudo, 44(2009)43.

BRASIL, L. A. de A., Rovílio, 42(2009), 105

BRESSIANI, I., Testemunhas eloqüen-tes da compaixão de Deus, 43(2009)102.

CANTALAMESSA, R., No princípio era a comunicação, 44(2009)05.

COSTA, C.A.S. da, O debate sobre a evangelização no Vaticano II e nas Con-ferências Episcopais, 42(2009)67; Teo-logia e hermenêutica, aproximações crí-ticas, 44(2009)95.

CROCOLI, A., O desenvolvimento es-piritual de Jesus, 43(2009)31; Valores franciscanos fundamentais, 44(2009)15;

Pronunciamento no começo da nova ges-tão, 45(2010) 129.

DALLAGNOL,W., A práxis do sensus fi delium (I), 44(2009)60; Práxis e dou-trina do sensus fi delium no Vaticano II, 45(2010)63.

DAL MAGO, S., Deus sujeito da reve-lação em Torres Queiruga, 42(2009)15; A espiritualidade das Irmãs Franciscanas Aparecidas, 45(2010)55.

DIAZ VASQUEZ, E. A., Formação eco-lógica para a vida religiosa, uma visão pedagógico-franciscana, 43(2009)108.

GLAAB, B., Visão de conjunto do Evan-gelho de Marcos, 42(2009) 52; Deus ou Mamon: quando o dinheiro se torna divi-no, 44(2009)81.

GUTIERREZ, L.A., A primeira Apósto-la, 45(2010)105.

HEIRICHSEN, L. E., Meditação sobre a origem da obra de arte, 43(2009)60; Ética ambiental, 44(2009)85.

LEITE, F. G., Da apatia à compaixão, 42(2009)05.

LOPES, M. J. L., As relações de igual-dade e o discipulado das mulheres na comunidade do Discípulo Amado,

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43(2009)85.

MACHADO, C. dos S., Pessoas com de-fi ciência..., 43(2009)120.

MATIAS, E. Irmão leigo: identidade e missão, 45(2010)123.

MENDES, L. de A., Cefepal: encontro de pioneiros, 42(2009)106.

MOTA NUNES, Preparação de agentes para o exercício da escuta, 43(2009)71.

NUNES, I.H. M., Kierkegaard,o itinerá-rio entre fi nito e infi nito, 42(2009)84; O silêncio dialético de Maria, 44(2009)100.

PELUSO, R. A espiritualidade benediti-na, 45(2010) . . .

PILONETTO, A., É melhor a compaixão, 42(2009)03; Recensões, 42(2009)112-119; Pro inferno, não, 43(2009)03; O amor como tormento, 43(2009) 132; Em busca da fonte, 43(2009) 03; A teia da espiritualidade 45(2010)03.

ROCKENBACK, C.R., Catequese e li-turgia, 43(2009)43.

ROSÁLIA, Ir., Missão e história da FFB.

SALVADOR, A., Homilia de Corpus Christi, 44(2009)120.

SANTOS, L. de S., Comensalidade eu-carística, 45(2010)87.

WEBER, V., A espiritualidade das Irmãs de Santa Catarina VM, 45(2010)51.

WEILER, L. Pronunciamento ao deixar a vice-Direção, 45(2010)127.

ZAMPIERI, G., Apontamentos sobre imortalidade, ressurreição e reencarna-ção, 42(2009) 101.

ZUGNO. V.L., Jesus Cristo no ma-gistério eclesial latinoamericano, 42(2009)23; Importante encontro da CLAR, 43(2009)134; Os religiosos lei-gos na Igreja, uma aproximação teológi-ca, 44(2009)29; Religiosos leigos, quem somos? 45(2010)115.

CRÔNICAS

Rovílio, de L.A.de Assis Brasil, 42(2009)105; Cefepal: encontro dos pioneiros, de Lenita de A. Mendes, 42(2009),106; Missão e história da FFB, 42(2009)110; Importante encon-tro da Clar 42(2009)134; Homilia de Corpus Christi, de D. Ângelo Salvador, 44(2009)120; Mudança na Direção da Estef (falas de L. Weiler e de A. Crocoli), 45(2010)127.

RECENSÕES:

O delírio de Dawkins, de McGrath, 42(2009)112; A linguagem de Deus, de F. Kollins, 42(2009)114; Introdução às teologias das religiões, de P.F. Knitter, 42(2009)116; Os Capuchinhos, de Cris-cuolo, 42(2009)119.

O ouro testado no fogo, de F. de To-masi, 43(2009)136.

Facere misericordiam: la conversio-ne di Francesco di Assisi, de P.Maranesi, 44(2009)125.

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