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Há tempos, um arcanjo perdeu as asas ao se tornar um caçador.Conheceu o sofrimento, o desespero, o medo da morte.Mas não desistiu de sua jornada.Caçar os seres que surgiram à margem da Criação, no princípio do mundo.E que hoje são lembrados apenas como mitos e personagens de ficção.

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A pAisAgem erA A mesmA. CAsAs, prédios, CAlçAdAs, postes. Ruas, avenidas. O trajeto de sempre. O vidro es-curo do carro, fechado como de hábito, por medo da violência. Do lado de fora, o mundo de sempre, sem novidades ou perspectivas. Do lado de dentro, os dois irmãos, um de 17 e outro de 12, sentados no banco de trás, também no mundo de sempre. Naquele instante, Brandão, o motorista da família, pisava o freio. O semá-foro sinalizava vermelho.

“Pray tomorrow gets me higherPressure on peoplePeople on streets1”Os fones de ouvido berravam a música do Que-

en e do David Bowie. Alex, o irmão mais velho, fechou os olhos. Odiava tudo aquilo. Queria que os dois mun-dos, o de dentro e o de fora, simplesmente explodissem.

“Kick my brains around the floorThese are the days it never rains but it pours2”

1 Rezo para que o amanhã me anime / Pressão sobre as pessoas / Pessoas nas ruas (Under pressure, tradução livre)2 Chute meu cérebro pelo chão / Estes são os dias em que nunca chove, mas transborda (idem)

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Por mais que mostrasse a verdade, ninguém ja-mais acreditava nele. Nem se lembrava mais de quando ganhara a imutável fama de mentiroso. Ou de se fazer de vítima, o que podia ser bem pior.

E o que mais doía era saber quem estava por trás de tudo.

Sua própria mãe.Não que Anabel fosse uma megera, apesar de

se comportar como uma. Ela realmente acreditava em cada uma das coisas que falava contra o filho. Era como se ela criasse uma versão diferente dos fatos em sua ca-beça, algo que parecia tão real que conseguia convencer os outros de que estava certa, não importava se havia evidências que diziam o contrário.

Quanto ao filho, restava odiá-la e também amá-la, porque era sua mãe. E, no fundo, culpar-se por toda a situ-ação. Onde errara? O que fizera de tão ruim assim? Se aquilo acontecia com ele era porque devia merecer de alguma maneira, mesmo sem saber o motivo.

“Turned away from it all like a blind manSat on a fence but it don’t work3”O adolescente abriu os olhos e espiou o irmão

caçula ao seu lado. Gabriel, sim, era o garoto legal e amado pelos pais. Alguém de confiança, com quem se podia contar sempre. Alguém que, naquele exato mo-

3 Afastei-me disto tudo, como um homem cego / Sentei-me num muro, mas isto não funciona (idem)

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mento, terminava de responder às últimas questões da lição de casa.

Alex ajeitou um dos fones de ouvido e aumen-tou o volume no seu celular.

“Insanity laughs under pressure we’re crackingCan’t we give ourselves one more chance?4”O carro saiu da Epitácio Pessoa e virou à es-

querda para entrar na avenida do Canal 5, a Almirante Cochrane. Pararam quase em frente ao portão do colé-gio. Estavam atrasados.

Alex foi o primeiro a sair do carro. Na calçada, esperou que o irmão guardasse o caderno e a caneta de volta à mochila. Diante do portão ainda aberto, o inspe-tor de alunos bocejou. Duas garotas do terceiro ano do Ensino Médio, a mesma classe de Alex, acabavam de chegar, também atrasadas. Falaram um oi rápido para ele e entraram.

O adolescente respirou fundo. Era bom sentir o cheiro de mar tão próximo, a apenas algumas quadras do colégio. O vento gelado, que vinha da praia, bagun-çou seus cabelos negros. Ele não se importou. Queria muito fazer como o vento. Apenas ir embora.

Seus olhos se detiveram em um Fiat Uno verme-lho, que brecou repentinamente poucos metros adiante. Um motoqueiro o cercava. Ele arrancou a bolsa da mo-

4 A insanidade sorri, sob pressão nós rachamos / Não podemos dar a nós mesmos mais uma chance? (idem)

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torista, enquanto o passageiro em sua garupa apontava uma arma para ela. “Assalto...”, pensou Alex, estático.

— Que foi? — perguntou Gabriel, que o alcança-va na calçada.

Aconteceu como uma cena de filme de ação. O motoqueiro acelerou e o comparsa começou a atirar, sem fazer pontaria alguma. Queria provocar pânico an-tes de sumirem de vista.

Alex não soube como viu uma das balas vindo na direção da cabeça de Gabriel. E também não soube como conseguiu ser tão rápido. Apenas empurrou o ca-çula para o chão, caindo por cima dele. Enquanto se mo-via, sentiu algo queimar seu ombro e seguir em frente.

Depois disso, tudo ficou confuso. Ouviu gritos no eco ensurdecedor dos disparos, a voz de Brandão, que tentava falar com ele, o inspetor, desesperado, cha-mando a polícia pelo celular, a motorista do Uno ver-melho pedindo socorro, o choro sentido de Gabriel, que quebrara o pulso esquerdo na queda estabanada. E ain-da os últimos versos da música nos fones de ouvido...

Alex se virou para procurar o destino final da bala. Estranhamente, pôde enxergá-la encravada na porta de um Ford Ka, estacionado na esquina da rua lateral à escola.

— Tu está sangrando — disse-lhe Brandão, com seu sotaque gaúcho. — Vou levar os dois ao hospital. No caminho, ligo para os teus pais.

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O adolescente não disse nada.Só sentia fome.

No hospital, Gabriel ganhou gesso para o pulso e Alex, um curativo no ombro. Por sorte, a bala passa-ra de raspão, sem provocar um ferimento mais grave. Não demorou para um repórter de TV aparecer por lá, querendo entrevistar os garotos. Segundo ele contou, a motorista do Uno vermelho era gerente de uma loja e estava levando uma alta quantia em dinheiro na bol-sa para o pagamento de seus funcionários quando fora abordada pelos assaltantes. O assunto naturalmente ga-nharia destaque na edição noturna do telejornal, ainda mais por envolver disparos contra alunos na porta de um colégio.

Assim que chegou, Anabel tratou de despachar o repórter com um simples “os meninos estão bem” e o clássico “nada a declarar”. Ele que arrumasse outros entrevistados.

Para Gabriel, que a aguardava com Alex e Bran-dão num dos corredores, a mulher reservou um abraço emocionado antes de cobri-lo de beijinhos. Com uma paciência infinita, ouviu a narração do garoto, de como o irmão mais velho o derrubara no chão quando os dis-paros tinham começado.

— E havia necessidade dessa truculência toda? — questionou Anabel, fixando os olhos azuis e repro-

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vadores em Alex. Era a primeira vez que demonstrava notá-lo por perto.

— A bala vinha na direção da cabeça do Gabriel e... — tentou explicar o adolescente.

— Duvido muito.— Mas ela raspou no meu ombro!A mãe não lhe deu mais atenção. Encheu o filho

caçula de mais perguntas, se o pulso doía, se ele ganha-ra algum hematoma, quantos dias precisaria ficar com o gesso, se isso, se aquilo. Por fim, levou-o para falar com o médico que o atendera. Queria ver a radiografia e tirar suas dúvidas sobre o tratamento.

— Vou fumar um cigarro lá fora — avisou Brandão.

Como os demais empregados da família, ele não emitia opinião pessoal sobre a forma com que Anabel criava os filhos. Era isso ou procurar outro emprego. E nenhum pagava tão bem um motorista como ele, de 60 e poucos anos, que já deveria estar aposentado há tempos.

Alex permaneceu sozinho, fitando o vazio. Sim, a mãe estava certa. Gabriel se machucara e a culpa era toda dele. Por que não fazia nada direito?

O pai, Carlos, apareceu uns quinze minutos mais tarde. Acabava de chegar de São Paulo, onde fora resolver uma questão importante com um dos forne-cedores do restaurante da família, a Cantina Anabella, um dos mais famosos e tradicionais da cidade. Veio es-

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baforido, perguntou se o adolescente estava bem, mal ouviu a resposta e foi atrás da esposa e do filho caçula. Gabriel também era o seu preferido e o único que se parecia fisicamente com ele, inclusive com os mesmos cabelos loiros e olhos azuis. Dividiam ainda o mesmo temperamento calmo, sempre de bem com a vida. Tal-vez fosse isso que Alex precisasse aprender para lidar com a mãe, alguém que estava sempre em movimento, agitada, incapaz de viver se não pudesse ter cada deta-lhe sob controle, de acordo com as regras que escolhera para administrar sua rotina, a dos outros ao redor. Prin-cipalmente a rotina da cozinha, tanto da luxuosa cober-tura onde moravam quanto do restaurante onde era a chef absoluta.

Cozinhar estava nos genes da família materna há pelo menos quatro gerações. Anabella, a bisavó, vie-ra da Itália para o Brasil com os filhos pequenos no final do século 19. Era viúva, não tinha dinheiro, mas domi-nava tão bem os segredos da culinária de seu povo que não demorou a ganhar fãs ardorosos entre os novos vi-zinhos na cidade que escolheu para se instalar: Santos, no litoral de São Paulo. Logo conquistou uma boa fre-guesia e abriu uma portinha para atendê-la na frente do chalé que alugava para morar. Juntou dinheiro durante anos e, com a ajuda dos filhos, abriu o restaurante de cozinha italiana que batizaria com seu nome.

O negócio cresceu e mudou de endereço duas ve-zes antes de encontrar seu lugar definitivo no Gonzaga,

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um bairro conhecido por suas lojas, cinemas e boa gas-tronomia. A esta altura, o restaurante já estava nas mãos dos pais de Anabel, a bisneta que, além de herdar o ta-lento da falecida antepassada, cursou as melhores esco-las de gastronomia do Brasil e do exterior. Nos últimos dez anos, era ela quem cuidava do restaurante ao lado de Carlos, após a aposentadoria dos pais e sua mudança para Campos do Jordão.

Alex sorriu com tristeza. Pensou nas massas di-vinas que somente a mãe sabia fazer, nos recheios sim-ples e, ao mesmo tempo, elaborados, nos molhos, na delicadeza de seu preparo, na combinação harmoniosa dos ingredientes, no amor que ela dedicava a cada pra-to, no sorriso a cada sabor conquistado. O filho gostava de vê-la trabalhando em meio aos ingredientes, ao chei-ro bom escapando das panelas e do forno. Ele tentava imitá-la, fazer algumas de suas receitas mais fáceis, mas nunca conseguia resultado suficiente para agradá-la.

— Desista — a mãe costumava lhe dizer. — Nem lavar pratos você sabe fazer direito. Imagina cozinhar...

A empregada, a faxineira e até Brandão, no en-tanto, fartavam-se com os pratos preparados pelo ado-lescente e eram só elogios para ele.

— Esses aí comem até pedra — retrucava Ana-bel. — Faça macarrão instantâneo que eles nem notarão a diferença.

Gabriel achava engraçado e, às vezes, aprovei-tava para zombar do irmão mais velho. Ainda era mui-

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to novo para entender exatamente o quanto situações como aquela machucavam Alex. Já o pai fazia de conta que nada acontecia. Era mais cômodo.

— E o ombro, ainda dói? — perguntou Brandão ao retornar para perto do garoto. Cheirava a cigarro, ali-ás, vários deles.

Alex balançou negativamente a cabeça. Havia coisas mais doloridas em seu mundo.

Na manhã seguinte, Anabel mandou Alex nor-malmente à escola. Gabriel, por outro lado, ficaria dor-mindo até mais tarde. Ele passara por um momento de grande tensão e, como a mãe fizera questão de frisar, ainda saíra ferido graças ao incompetente do irmão. Precisava de uns dias para se recuperar.

No colégio, todo mundo queria saber como ti-nha sido o assalto. Para as meninas, que costumavam suspirar pelo garoto moreno e alto, de corpo bem-feito graças à prática esportiva desde a infância, Alex era o herói do momento. Para os garotos, o novo ídolo. Tinha os invejosos, a turma da indiferença e os desinformados, mas eram minoria. Pela primeira vez em muito tempo, Alex se sentiu bem com ele mesmo. Nem a nota baixa na prova de Geografia, mais uma para a coleção de notas ruins, atrapalhou seu ótimo humor naquela manhã.

Mas aí veio a aula de Biologia, a última do dia. E o que restava de seu mundo desmoronou.

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O assunto era genética e o professor explicava sobre herança quantitativa quando uma aluna pergun-tou se pais de olhos azuis podiam gerar filhos de olhos castanhos. A mãe dela estava grávida — tinha olhos azuis, assim como o pai — e todos torciam para que a criança herdasse aquela cor de olhos, como já ocorrera com a irmã.

— Pais de olhos azuis geram filhos de olhos azuis. Sua irmã nascerá com a mesma cor de seus olhos — disse o professor. — Na verdade, para dar uma res-posta mais rigorosa, há uma chance mínima, remotíssi-ma, de nascer um filho de olhos castanhos. Ela realmen-te é tão remota que nem é levada em consideração...

Alex estremeceu. Ele tinha olhos castanhos, quase negros. Os pais eram loiros, de olhos azuis, o irmão tam-bém. Para piorar, o adolescente não se parecia fisicamen-te com nenhum deles. E isto só poderia acontecer se...

— Tem certeza? — perguntou para o professor, interrompendo a explicação.

Este ergueu uma sobrancelha.— O que acha? — disse, irônico. E prosseguiu

contando sobre a possibilidade de uma mutação gené-tica ter sido a responsável por produzir um único an-cestral de olhos azuis no Período Neolítico, numa época em que a coloração de olhos era apenas castanha e..

Foi interrompido outra vez por Alex, que se le-vantou bruscamente da carteira e correu desesperado

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para fora da sala de aula, atrás do bebedouro no corre-dor. Sufocava de fome e encher o estômago de água pa-receu a alternativa mais imediata do que ir até a cantina.

Após alcançar o bebedouro e se inclinar sobre ele, Alex acionou o dispositivo para receber o jorro gela-do de água, que inundou sua boca e garganta. Enganou a fome. Só não conseguiu deter a enxurrada de lágrimas.

— Alex, tudo bem?Era o professor.— Quer que chame seus pais?O garoto deu alguns passos para trás, afastando-se.

Tentou secar o choro com as costas das mãos.— Ontem você passou por uma situação muito

difícil — continuou o professor, preocupado. — Seria melhor ficar uns dias em casa.

— Eu só... Preciso ir embora.O professor assentiu. Faltavam menos de vinte

minutos para a aula terminar e o portão do colégio já devia estar aberto.

Alex retornou para a sala e, sob os olhares curio-sos dos colegas, jogou o caderno, a caneta e mais o livro de Biologia na mochila e saiu sem reparar em ninguém. Quando alcançou a rua, pegou o celular para chamar um táxi.

Já passava do meio-dia e havia somente um lu-gar onde poderia encontrar Anabel.

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A Cantina Anabella ocupava uma casa espaço-sa, de dois andares, e muito bem conservada para uma construção erguida por volta de 1930, na principal ave-nida do Gonzaga, a Ana Costa. Localizava-se a alguns quarteirões da praia, próximo ao mais novo shopping do bairro.

O táxi parou em frente ao restaurante, que rece-bia muitos fregueses para uma quarta-feira tão tranqui-la e nublada. Estavam em setembro e o clima embarcara numa interminável semana de frio, com temperaturas mínimas de doze graus, sinônimo de inverno rigoroso para os santistas acostumados com os quarenta graus do verão. Alex pagou o motorista, saiu do carro e, car-regando a mochila pela alça, dirigiu-se ao restaurante.

Entrou, mas se deteve no hall. Algumas mesas adiante, Carlos conversava animadamente com um ca-sal de clientes, que se mostrava maravilhado com o pen-ne al pesto que provava. Macarrão levíssimo, principal característica das massas feitas artesanalmente na Ana-bella, com manjericão, alho, nozes, tomate seco e cre-me de leite. Em outra mesa, não muito distante, Gabriel atacava sozinho seu prato preferido, um cappelletti com damasco, queijo brie e molhos branco e ao sugo. Para acompanhar, um refrigerante bem gelado.

Outros clientes se serviam de carne, frango e mais massa. Ninguém pedira peixe e crustáceos. Três

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pessoas checavam as opções no cardápio. Duas velhi-nhas pediam a conta e um jovem casal com o filho pe-queno aguardava seu pedido. Alex engoliu em seco, o olfato registrando todos os aromas ao mesmo tempo, cada um de forma individual e no conjunto delicioso que formavam em cada prato. Nunca sentira isso antes, e com tanta intensidade. Atordoado, ele avançou para a porta da cozinha, nos fundos do salão. Não ouviu o gerente e os garçons que o cumprimentavam, não con-seguiu prestar atenção em mais nada. Queria somente alcançar quem estava do outro lado da porta.

Na cozinha, Anabel dava orientações ao sous--chef e aos assistentes. Estava uniformizada como de há-bito, com o avental e o jaleco chamado de dolmã, ambos brancos, e usava os longos cabelos loiros presos sob o chapéu de cozinheiro. Nos fogões, poucas bocas eram utilizadas. Uma remessa de pães estava quase pronta no forno combinado e uma grelha recebia porções gene-rosas de filé mignon. No mais, havia o habitual mise en place sobre a mesa, com todos os ingredientes separados à espera do preparo, utensílios e equipamentos diversos espalhados pelo ambiente, louça na pia e as geladeiras repletas de alimentos variados.

— Precisamos conversar — disse Alex.A mãe odiava ser interrompida, em especial no

trabalho. Fez de conta que o garoto não estava ali.— Eu fui adotado? — disparou ele.

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Os funcionários o fitaram, de olhos arregalados. Anabel, porém, não perdeu a pose.

— Antes fosse... — retrucou ela, entre dentes.E retomou sua conversa como se nada tivesse

acontecido.Alex não saiu do lugar. Precisava de uma res-

posta decente, tinha de entender.Mas acabou recebendo menos atenção do que

qualquer outra peça daquela cozinha imensa.Então, deu meia-volta e retornou para a rua, sem

que ninguém reparasse na sua existência.

A fome se revelou implacável. Em casa, Alex não conseguiu engolir nenhum alimento no almoço e tampouco no jantar. Passou a maior parte do tempo no quarto, tentando distrair a mente com algum jogo on-line. Os pais e o irmão chegaram à noite, por volta das onze, mas nenhum deles foi procurá-lo, ninguém se importou. A madrugada veio e passou.

Quando a manhã nasceu, viu um adolescente insone, que trocou sozinho o curativo em seu ombro após o banho e se aprontou automaticamente para ir ao colégio. Na cozinha, havia apenas a empregada, pois o pai e o irmão ainda dormiam e a mãe saíra muito cedo para ir ao Mercado Municipal. Alex dispensou a refei-ção, apesar de o estômago vazio continuar a torturá-lo,

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saiu do apartamento, pegou o elevador e desceu para a garagem, onde Brandão o aguardava.

— Tua mãe não gostou nada de tu ter saído on-tem mais cedo da escola. E ainda sem me esperar! — reclamou o motorista após entrarem no carro. — Levei bronca por tua causa, sabia?

— Desculpe.— Tua cara está horrível. Aconteceu alguma coisa?Alex não respondeu. Brandão suspirou.— Eu sei, guri, não é da minha conta — disse ele.

E ligou o motor do carro.

Alex mal prestou atenção às aulas. Após a última delas, permaneceu no colégio. À tarde, teria treino de judô no mesmo local, a única das atividades extracurri-culares que resolvera manter. No ano anterior, desistira do futsal, do xadrez, da música e da natação, o que lhe rendera vários comentários de Anabel chamando-o de preguiçoso.

Após deixar a sala de aula, obrigou-se a ir até a cantina do colégio. Tentaria mais uma vez se alimentar.

A fila no caixa estava longa e o dono da cantina, Pedro, mais lento do que o normal. A esposa dele, Eli-zandra, ajudava a cozinheira, nos fundos do quiosque, a preparar na chapa uma série de sanduíches. Outra funcionária atendia alguns alunos que disputavam os

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salgados da estufa. As mesinhas próximas estavam lo-tadas. No ar, havia cheiro de gás de cozinha.

Apreensivo, Alex se aproximou rapidamente do balcão, quase atropelando dois colegas.

— Dona Elizandra? — chamou. — Tem gás es-capando...

Mas a mulher não ouviu. A TV estava ligada em volume alto no canto do quiosque e ainda havia o bur-burinho natural dos estudantes, que conversavam sem parar.

Elizandra desistia de acender uma boca automá-tica do fogão, que parecia entupida, e, enquanto falava com a cozinheira, tirou um fósforo da caixa para riscá-lo.

Alex abriu a boca para gritar com ela... Então, tudo parou por segundos. O adolescente piscou. Ao er-guer as pálpebras, viu uma garota da sua idade segu-rando gentilmente o pulso da dona da cantina.

— Mãe, tem gás escapando — disse ela.De onde aquela ali surgira? E a chamara de mãe!

Impossível. Elizandra e Pedro não tinham filhos. Cui-davam da cantina do colégio há anos e Alex os conhecia desde que entrara para o maternal. Crescera tomando lanche naquele quiosque, aprendera muito com as dicas de culinária que Elizandra sempre lhe dava. Quantas vezes a ajudara a preparar sanduíches? Quantas vezes a ouvira lamentar nunca ter tido filhos? Conhecia muito bem a trajetória difícil do casal, que deixara o interior do Ceará em busca de uma vida melhor no sudeste do país.

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Elizandra sorriu para a suposta filha, como se a conhecesse. E então fechou a mangueira do gás para checar se estava bem encaixada na saída do botijão.

Aturdido, Alex ficou encarando a adolescente até ser notado.

— Você já foi atendido? — ela perguntou.— Quem é você?— Que brincadeira é essa, Alex? Esqueceu de

mim, é?— Nunca vi você antes em toda a minha vida.Luciana, a jovem responsável pela biblioteca do

colégio e o grande amor platônico de Alex quando ele tinha 13 anos, deu risada. Ela tomava café junto ao bal-cão, a meio metro de distância.

— Pois eu me lembro muito bem do bolo de cho-colate que vocês dois fizeram no outro dia — disse Lu-ciana. — Estava uma delícia!

— Nós crescemos juntos — insistiu a adolescen-te. — E estudamos na mesma classe...

— Não mesmo! — retrucou ele.— Ih, Isla, não repara, hoje ele acordou azedo

— disse Belinha, a atendente, num tom brincalhão. — Passou por mim na hora do intervalo e nem me cum-primentou.

— Você também a conhece? — surpreendeu-se Alex. — Como todo mundo pode conhecê-la?

— Você devia voltar para as aulas de teatro, sa-bia? Sua cara está superconvincente como garoto des-

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memoriado! Aliás, lembra como você e a Isla combina-ram perfeitamente como Romeu e Julieta naquela peça do ano retrasado?

E, após uma piscadela, a atendente abriu a gela-deira para tirar um suco de caixinha e entregá-lo a uma menina da quarta série, que costumava chegar muito cedo para as aulas da tarde.

— Eu nem participei daquela peça... — murmu-rou Alex.

Isla sorria para ele, também tentando desvendá--lo. Como se reforçasse o parentesco, ela era bem pa-recida com Elizandra. Tinha a pele morena, os olhos amendoados e escuros, os cabelos negros presos num rabo-de-cavalo. Estava um pouco acima do peso e mal atingia 1,60m de altura.

Alex preferiu não entender a alucinação. Ou os outros estavam doidos ou ele estava. Desistiu do almoço e, sem pressa, rumou para o vestiário. Tinha de trocar o uniforme da escola pelo quimono para o treino. E aquele outro assunto, muito mais importante do que qualquer outro, continuava a latejar em seu coração.

No treino, Alex encontrou uma forma de extra-vasar. Agressivo, machucou os oponentes durante a luta e quase quebrou o braço de outro ao arremessá-lo no tatame. Não conseguiu se acalmar nem mesmo quan-

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do o professor expulsou-o após duas advertências e a promessa de puni-lo com uma suspensão.

A fome estava fora de controle. O adolescente não passou no vestiário para um banho. Descalço e de quimono, dirigiu-se à cantina, vazia àquela hora da tar-de. As turmas iniciais do Ensino Fundamental ainda es-tavam em classe e faltava pelo menos uma hora para as aulas terminarem.

Isla, alucinação ou não, lavava alguns copos na pia. Alex abriu a porta do balcão e entrou no quiosque para pegar uma garrafa de água na geladeira. Estavam sozinhos. A garota olhou-o de esguelha enquanto ele ti-rava a tampa da garrafa. Foi quando um copo escapou de seus dedos e caiu sobre o mármore. Virou de imedia-to um punhado de cacos de vidro.

Isla tentou reuni-los para jogá-los na lixeira.— Ai... — gemeu, baixinho.Uma das pontas de vidro fizera-lhe um pequeno

rasgo na palma da mão. O sangue brotou em seguida e seu cheiro invadiu de imediato as narinas de Alex.

Alerta, com seus sentidos em nível máximo, ele reagiu instintivamente. Largou a garrafa e, milésimos de segundos depois, espremia Isla contra a parede. Sentiu a intensidade do corpo feminino contra o seu, inspirou o cheiro sensual daquela pele macia, ouviu as batidas aceleradas dos dois corações como se fossem o bate-estaca de um prédio em construção. Com firmeza,

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ele prendeu a mão ferida e a levou até a boca. Lambeu o sangue com gosto e devoção. A fome, porém, exigia mais. Então, como se provasse uma iguaria, ele bebeu mais e mais gotas.

Uma reconfortante noção de saciedade domi-nou-o aos poucos. A mesma felicidade mansa de quem termina uma refeição há muito cobiçada.

— Já chega — disse Isla, com suavidade.Ele obedeceu e se afastou, a consciência mos-

trando-lhe o que acontecera.Confuso, fitou a garota e o corte que não parava

de sangrar.“O que eu fiz?”O gosto daquele sangue impregnava sua boca...Desesperado, Alex apenas fugiu dali, em busca

do primeiro esconderijo que visse pelo caminho.

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Escrita Fina Edições[marca da Gráfica Editora Stamppa Ltda.]Rua João Santana, 44Rio de Janeiro, RJ | 21031-060Tel.: (21) 3833-5817www.escritafinaedicoes.com.brPrinted in Brazil/Impresso no Brasill