A Teoria Da Disposição Em Lahire

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PATRIMÓNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIÇÕES Para uma sociologia à escala individual Bernard Lahire Se bem que, para se constituir, deva recusar todas as formas de biologismo, que tendem sempre a naturalizar as diferenças sociais, reduzindo-as a invariantes antropológicas, a sociologia não pode compreender o jogo social naquilo que ele tem de mais essencial, se- não na condição de ter em conta algumas das características universais da existência cor- poral, como o facto de existir no estado de indivíduo biológico separado, ou de estar localizado num lugar e num momento dados, ou ainda o facto de se estar e de se saber destinado à morte, tudo propriedades mais do que cientificamente atestadas que nunca entram na axiomática da antropologia positivista (Bourdieu, 1982). Existem objectos mais sociais do que outros? Onde e como apreender o social? Eis uma questão que, no fundo, nunca deixou de se colocar aos investigadores das ciências sociais e que deu lugar a uma gran- de diversidade de respostas segundo as diversas tradições sociológicas. Terão as ciências do mundo social, aliás, objectos de predilecção no mundo? Uma epistemologia realista tenderia a pensar que alguns objectos do mundo são “so- ciais” e outros não (ou são-no menos). Assim, os movimentos colectivos, os gru- pos, as classes, as instituições seriam com toda a “evidência” objectos das ciên- cias sociais, enquanto que os comportamentos de um indivíduo singular, as nevroses, as depressões, os sonhos, as emoções ou os objectos técnicos que nos rodeiam seriam objectos de estudo para psico-sociólogos, psicólogos, psicana- listas, médicos, engenheiros, especialistas de ergonomia... Ora, sabe-se que, na prática científica efectiva, os investigadores estilhaçam essas fronteiras realis- tas. De facto, como enunciava enfaticamente Saussure, é o ponto de vista que cria o objecto e não o objecto que fica tranquilamente à espera, no real, do ponto de vista científico que venha revelá-lo. É não excluindo a priori nenhum assunto do seu campo de estudo que as ciências sociais 1 podem conseguir um progresso efectivo em direcção a uma maior autono- mia científica. Como para a literatura mais “pura” que, para manifestar a sua rup- tura com as demandas externas, defende a primazia do modo de representação so- bre o objecto representado, as ciências sociais têm que mostrar que não há nenhum limite empírico àquilo que podem estudar, isto é, que não há objectos mais SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRÁTICAS, n.º 49, 2005, pp. 11-42 1 Por exemplo, a sociologia progrediria significativamente se não se contentasse em ficar na periferia dos lugares clássicos da psicologia. Não deveria, por exemplo, limitar-se ao estudo da percepção social e histórica da doença mental ou da trajectória sócio-institucional dos doentes mentais, mas sim analisar a produção social da própria doença.

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  • PATRIMNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIESPara uma sociologia escala individual

    Bernard Lahire

    Se bem que, para se constituir, deva recusar todas as formas de biologismo, que tendemsempre a naturalizar as diferenas sociais, reduzindo-as a invariantes antropolgicas, asociologia no pode compreender o jogo social naquilo que ele tem de mais essencial, se-no na condio de ter em conta algumas das caractersticas universais da existncia cor-poral, como o facto de existir no estado de indivduo biolgico separado, ou de estarlocalizado num lugar e num momento dados, ou ainda o facto de se estar e de se saberdestinado morte, tudo propriedades mais do que cientificamente atestadas que nuncaentram na axiomtica da antropologia positivista (Bourdieu, 1982).

    Existem objectos mais sociais do que outros?

    Onde e como apreender o social? Eis uma questo que, no fundo, nunca deixoude se colocar aos investigadores das cincias sociais e que deu lugar a uma gran-de diversidade de respostas segundo as diversas tradies sociolgicas. Teroas cincias do mundo social, alis, objectos de predileco no mundo? Umaepistemologia realista tenderia a pensar que alguns objectos do mundo so so-ciais e outros no (ou so-no menos). Assim, os movimentos colectivos, os gru-pos, as classes, as instituies seriam com toda a evidncia objectos das cin-cias sociais, enquanto que os comportamentos de um indivduo singular, asnevroses, as depresses, os sonhos, as emoes ou os objectos tcnicos que nosrodeiam seriam objectos de estudo para psico-socilogos, psiclogos, psicana-listas, mdicos, engenheiros, especialistas de ergonomia... Ora, sabe-se que, naprtica cientfica efectiva, os investigadores estilhaam essas fronteiras realis-tas. De facto, como enunciava enfaticamente Saussure, o ponto de vista quecria o objecto e no o objecto que fica tranquilamente espera, no real, do pontode vista cientfico que venha revel-lo.

    no excluindo a priori nenhum assunto do seu campo de estudo que as cinciassociais1 podem conseguir um progresso efectivo em direco a uma maior autono-mia cientfica. Como para a literatura mais pura que, para manifestar a sua rup-tura com as demandas externas, defende a primazia do modo de representao so-bre o objecto representado, as cincias sociais tm que mostrar que no h nenhumlimite emprico quilo que podem estudar, isto , que no h objectos mais

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    1 Por exemplo, a sociologia progrediria significativamente se no se contentasse em ficar naperiferia dos lugares clssicos da psicologia. No deveria, por exemplo, limitar-se ao estudo dapercepo social e histrica da doena mental ou da trajectria scio-institucional dos doentesmentais, mas sim analisar a produo social da prpria doena.

  • scio-lgicos, mais antropo-lgicos ou mais histricos do que outros, mas que o es-sencial est no modo cientfico (sociolgico, antropolgico, histrico) de tratamento dotema.

    Mas estas extenses cognitivas daquilo que uma disciplina cientfica suscept-vel de constituir em objecto de estudo nunca so fceis de fazer. De facto, imposs-vel, na maior parte dos casos, aplicar mecanicamente a novos temas ou assuntos osconceitos ou os mtodos anteriormente testados. neste sentido que os objectos deestudo resistem bem mais do que uma epistemologia nominalista poderia fazercrer. A mera sobreposio de antigos esquemas interpretativos a novas realidadespode contribuir simplesmente para reforar a crena na incapacidade intrnseca dadisciplina para estudar essas realidades. Um outro risco reside na utilizao pelasociologia, sob a forma de uma importao fraudulenta e, por conseguinte, nocontrolada, de esquemas interpretativos provindos de tradies disciplinares es-tranhas ao seu prprio desenvolvimento cientfico.

    O social individualizado

    A dificuldade de apreenso do social na sua forma individualizada deve-se, pois, adois riscos permanentes que so, em primeiro lugar, o facto de se acreditar ser pos-svel estudar o novo (tema de estudo) reciclando simplesmente o antigo (conceitose mtodos) e, em segundo lugar, o facto de se pensar ter atingido os seus fins cient-ficos tendo cozinhado uma sociologia feita de alhos (de origem sociolgica) e buga-lhos (de origem psicolgica).

    Colocando de parte o segundo tipo de risco (que deu lugar, por exemplo, atentativas infelizes de aproximao ao marxismo e psicanlise nos anos 70), oqual precisaria de um desenvolvimento demasiado longo sobre os impasses da in-ter ou pluridisciplinaridade (Lahire, 1998: 227-229), o primeiro tipo permaneceulargamente invisvel aos olhos dos investigadores. De facto, a mudana de escala da anlise dos grupos, dos movimentos, das estruturas ou das instituies, paraa dos indivduos singulares que simultaneamente vivem em e so constitutivosde esses macro-objectos no foi brutal a ponto de forar a viso dos investiga-dores, de lhes provocar alguma dor de cabea e, ao mesmo tempo, de lhes fazer ga-nhar conscincia. Este deslizamento foi insensvel, imperceptvel e, desta forma,tornou difcil o exerccio da lucidez terica. Foi sem se dar conta, e sem medir asconsequncias, que a sociologia se interessou tanto pelos indivduos socializadosenquanto tais (nos estudos de caso ou em ensaios apresentando, entre outro tipo dedados, retratos individuais, apoiados metodologicamente na prtica da histriade vida ou da entrevista aprofundada) como pelos grupos, categorias, estruturas,instituies ou situaes (seja qual for a sua amplitude ou o seu tipo). O movimentoteria sido mais visvel se os investigadores no tivessem o hbito de reivindicar apertinncia dos seus enunciados qualquer que seja a escala de anlise adoptada (doespao social global ao indivduo singular) (Lahire, 1996).

    Entre o conjunto de trabalhos existentes, os de Pierre Bourdieu designaram ecaracterizaram teoricamente estas pequenas mquinas produtoras de prticas

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  • (no sentido alargado do termo), essas matrizes que retm no corpo de cada indi-vduo o produto das experincias passadas. Quando, por exemplo, as noes (e asrealidades para as quais elas remetem) de estruturas cognitivas, psquicas ou men-tais, de esquemas, de disposies, de habitus, de incorporao e de interiorizaono estavam no centro do estudo, mas serviam somente, nos relatrios finais dasinvestigaes, de comutadores necessrios para explicar as prticas evocandogrosseiramente a socializao passada incorporada, estes modelos tericos po-diam parecer satisfatrios. Os termos tomados de emprstimo psicologia (no-meadamente a piagetiana) permitiam designar um vazio ou uma ausncia entre asestruturas objectivas do mundo social e as prticas dos indivduos. O habitus podiaento ser tanto de grupo como individual. Isso no colocava nenhum proble-ma particular, pois no se lhe dava uma ateno particular e a teoria no se propu-nha verdadeiramente estudar empiricamente essas realidades. Isso bastava am-plamente ao ofcio de socilogo e, sem dvida, basta ainda hoje em dia a uma gran-de parte dos investigadores. De facto, numerosos socilogos continuam a praticara sociologia sem mesmo ter necessidade de dar nome a essas matrizes corporais(cognitivas, sensitivas, avaliativas, ideolgicas, culturais, mentais, psquicas...)dos comportamentos, das aces e reaces. Alguns chegam mesmo a pensar quese est tipicamente aqui a lidar com caixas negras (caso das noes de socializa-o ou de habitus), das quais a sociologia cientfica e explicativa deveria absolu-tamente desfazer-se (Boudon, 1996).

    Mas no se poderia falar de estruturas mentais, de esquemas, de disposies,de habitus ou de incorporao, sem se correr o risco de atrair a ateno e a interroga-o crtica dos investigadores. Devemos, porque j estamos habituados a este voca-bulrio, pressupor que sabemos perfeitamente o que uma disposio ou um es-quema, um sistema de disposies ou uma frmula geradora de prticas? No nospoderamos questionar se uma parte destes termos no nos impe modos de olharque talvez gostssemos de requestionar? Universalizando as aquisies de um es-tado (no totalmente ultrapassado) da psicologia do seu tempo, Pierre Bourdieuimportou para o seu seio, sob uma forma petrificada e quase totalmente inalteradaao longo de mais de 30 anos, conceitos psicolgicos que no eram como qualquerconceito cientfico mais do que uma espcie de sntese do estado das investiga-es psicolgicas, entre as mais avanadas, sobre a questo do desenvolvimento dacriana. Ora, mais do que supor a existncia de um processo sociocognitivo como oda transferibilidade (ou transponibilidade) das disposies, no seria melhortrabalhar esta questo em pesquisas empricas que visassem comparar sistematica-mente as disposies sociais postas em prtica segundo o contexto de aco (dom-nios de prticas, esferas de actividade, microcontextos, tipos de interaco...) con-siderado? O simples uso do singular em expresses como frmula geradora ouprincpio gerador e unificador das prticas ou das condutas no contribuir pararesolver um problema antes mesmo de o ter colocado e, pelo menos parcialmente,antes de o ter resolvido empiricamente? Respondendo a estas questes, abre-se ocampo de uma sociologia escala individual, para a qual uma parte do mundo cient-fico contribuiu, pouco a pouco, na criao das respectivas condies de emergn-cia, e da qual procurarei aqui precisar o programa cientfico (Lahire, 1998 e 2002).

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  • Estudar o social individualizado, ou seja, o social refractado num corpo indi-vidual que tem a particularidade de atravessar instituies, grupos, campos de for-as e de lutas ou cenas diferentes, estudar a realidade social na sua forma incorpo-rada, interiorizada. Como que a realidade exterior, mais ou menos heterognea,se faz corpo? Como que as experincias socializadoras mltiplas podem (co)habi-tar (n)o mesmo corpo? Como que tais experincias se instalam de modo mais oumenos duradouro em cada corpo e como que elas intervm nos diferentes mo-mentos da vida social ou da biografia de um indivduo? Quando a sociologia secentra na explicao dos grupos de indivduos a partir de uma prtica ou de um do-mnio particular de prticas (os assalariados de uma empresa, os cnjuges, os leito-res, os utilizadores de determinada instituio cultural, os votantes...), ela podepassar sem o estudo destas lgicas sociais individualizadas. No obstante, a partirdo momento em que ela se interessa pelo indivduo (no como tomo e base de todaa anlise sociolgica, mas como produto complexo de mltiplos processos de sociali-zao), j no possvel satisfazer-se com os modelos de actor, de aco, de cognio,implcitos ou explcitos, utilizados at a. Foi o micro-historiador Giovanni Lviquem sublinhou, com pertinncia, que ns no podemos (...) aplicar os mesmosprocedimentos cognitivos aos grupos e aos indivduos (Lvi, 1989: 1335).

    A vida das disposies

    O desenvolvimento de uma sociologia escala individual implica que a prprianoo de disposio seja examinada. Ora, analisando a utilizao que lhe dadanos trabalhos sociolgicos, apercebemo-nos rapidamente do facto de que esta noteve, at ao momento, uma importncia considervel para a anlise do mundo so-cial. O socilogo raramente aumentou o seu conhecimento do mundo social com osusos rotineiros deste conceito. Por exemplo, quando Pierre Bourdieu explica queno h prtica mais classificadora do que a frequncia de um concerto ou a prticade um instrumento de msica nobre, devido raridade das condies de aqui-sio das disposies correspondentes (Bourdieu, 1979: 17), ele afirma algumacoisa sobre a funo de distino de certas prticas culturais, sobre a sua raridade,mas no diz nada sobre o que que so as disposies correspondentes a essasprticas. Do mesmo modo, quando ele afirma que as obras literrias de Malarmou de Zola tm a marca das disposies socialmente constitudas dos seus auto-res (Bourdieu, 1979: 19), o leitor interessado est totalmente disposto a acreditarnisso, mas nenhuma anlise das disposies destes autores, do que se entende pre-cisamente por disposies e da maneira como se poderiam reconstruir tais dis-posies, nos apresentada. As disposies sociais dos escritores, pertinentes paracompreender as suas obras, so as disposies sociais gerais adquiridas familiar-mente? Ou so elas o produto especfico da socializao literria (o que significariaque nem tudo, da experincia socializadora dos autores, de reconstruo perti-nente, no intuito de apreender os seus comportamentos literrios)?

    Passando sistematicamente em revista o conjunto dos contextos de uso da no-o de disposio em La Distinction, somos levados a colocar uma e outra vez

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  • questes como estas. O uso do termo pode ser especfico, designando o autor tiposde disposies com a ajuda de substantivos e adjectivos qualificativos, sem maispreciso: a disposio cultivada; as disposies vulgares e a disposio propria-mente esttica; o moralismo pequeno-burgus; as disposies regressivas e re-pressivas das fraces em declnio da pequena-burguesia; a disposio pura;as disposies constitutivas do habitus cultivado; as virtudes ascticas e a boavontade cultural da pequena-burguesia assalariada; a disposio a que as obrasde arte legtimas fazem apelo; as disposies ascticas dos indivduos em ascen-so; o aristocratismo asctico das fraces dominadas da classe dominante; ohedonismo higienista dos mdicos e dos quadros modernos; uma disposioaustera e quase escolar; a moral hedonstica do consumo; a moral asctica daproduo; o progressismo optimista; o conservadorismo pessimista; umadisposio culta, ou mesmo erudita, a disposio distante, desprendida ou de-senvolta em relao ao mundo e aos outros; disposies e maneiras tidas comocaractersticas dos burgueses; o hedonismo realista das classes populares; adisposio poltica conservadora, o conservadorismo liberal das fraces daclasse dominante; as disposies reaccionrias; o snobismo tico; as disposi-es de executante.

    Anoo pode entrar, para alm disso, na economia geral do raciocnio terico:o modo de percepo que pe em prtica uma determinada disposio e uma de-terminada competncia; as experincias diferenciais dos consumidores em funodas disposies que decorrem da sua posio no espao econmico; o habitus declasse como forma incorporada da condio de classe e dos condicionamentos queela impe; as suas propriedades que podem existir no estado incorporado, sobforma de disposies; a homogeneidade das disposies associadas a uma posi-o; a dialctica que se estabelece ao longo de uma existncia entre as disposiese as posies; todas as propriedades incorporadas (disposies) ou objectivadas(bens econmicos e culturais); as disposies sociais contam mais que as compe-tncias certificadas pela escola; as disposies do habitus especificam-se, paracada um dos grandes domnios da prtica, realizando esta ou aquela das possibili-dades estilsticas oferecidas por cada campo; a afinidade entre as potencialida-des objectivamente inscritas nas prticas e as disposies; o ajustamento s posi-es das disposies ligadas a trajectrias; do ponto de vista das suas origens so-ciais e de todas as disposies correlativas; as disposies socialmente inculca-das; disposies herdadas; as disposies que esto na base da produo deopinies.

    Em qualquer dos casos, no dispomos de nenhum exemplo de construo so-cial, de inculcao, de incorporao ou de transmisso destas disposies. Notemos nenhuma indicao do modo como poderemos reconstru-las, nem de quemaneira elas agem (ou seja, de que maneira so activadas ou suspensas, segundoos domnios de prticas ou os contextos mais restritos da vida social). Elas so sim-plesmente deduzidas das prticas sociais (alimentares, desportivas, culturais...)mais frequentemente observadas estatisticamente nas pessoas objecto deinvestigao.

    O nico estudo de caso um pouco mais preciso de que dispomos, consagrado

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  • a Martin Heidegger, revela-se, do ponto de vista da reconstruo das condies emodalidades da constituio do habitus filosfico deste ltimo, bastante decepcio-nante pela sua pobreza. O habitus de Heidegger, escreve Pierre Bourdieu, vul-gar professor de filosofia de origem rural, vivendo na Alemanha de Weimar, inte-gra, na unidade de um sistema de disposies geradoras, por um lado, as proprie-dades associadas, antes de mais, a uma posio na estrutura das relaes de classe,a do Mittelstand, classe que se vive e se quer como fora de todas as classes, e frac-o universitria desta classe, fraco sem par de uma classe subjectivamente foradas classes, e depois, a uma posio na estrutura do campo universitrio, a do fil-sofo, membro de uma disciplina ainda dominante se bem que ameaada e, fi-nalmente, a uma posio no campo filosfico, e, por outro lado, as propriedadescorrelativas da trajectria social conducente a esta posio, as de universitrio daprimeira gerao, mal inserido no campo intelectual (Bourdieu, 1975: 150). Eiscomo definido, do contexto mais global ao contexto mais especfico, o habitus deHeidegger: a sua pertena de classe, a fraco de classe qual pertence, o seu ofciode filsofo, o seu lugar particular no mundo da filosofia e a sua relao de miracu-lado social com o mundo intelectual. Ser isto suficiente para apreender a frmulageradora das suas prticas? Quid da socializao familiar de Martin Heidegger?Da sua socializao escolar? religiosa? sentimental? amical? poltica?, and so on andso forth.

    Desse ponto de vista, a anlise (apesar de inacabada) de Norbert Elias da eco-nomia psquica dos laos que ligavam Lopold Mozart e o seu filho, Wolfgang Ama-deus Mozart, bem mais rica, embora no faa uso de um forte aparelho conceptual.Elias descreve-nos um jovem Wolfgang Amadeus submetido, a partir dos trs anos,a um regime de trabalho rigoroso, a uma disciplina implacvel baseada em exerc-cios regulares compostos pelo pai, chefe de orquestra adjunto em Salzburgo. Elemostra como, desde muito cedo, a sua vida se vai reduzir essencialmente msica,como o pai vai tecer laos afectivos muito fortes com o filho, que passam pela msica:Wolfgang recebia um prmio de amor suplementar por cada uma das suas perfor-mances musicais (Elias, 1991: 93). Convencido de que o mais singular dos traos deuma pessoa s se pode compreender se reconstruirmos o tecido de imbricaes so-ciais na qual ela est inserida, e de que apreender os comportamentos de um indiv-duo supe a reconstruo dos desejos que ele tenta satisfazer e que no esto inscri-tos nele antes de qualquer experincia (idem: 14), Elias d o exemplo, se bem queainda demasiado sucinto, do que poderia ser uma sociologia escala individual daconstituio das primeiras disposies.

    A partir da constatao da fraca rentabilidade actual da noo, duas conclu-ses opostas podem ser tiradas: uma que consiste em pensar que podemos fazer so-ciologia sem este tipo de conceitos e que a economia (no sentido duplo do termo)conceptual dos modelos explicativos deve tender para uma depurao do modelo(exit pois as noes de disposio, de esquema ou de habitus, consideradas supr-fluas); a outra, a que eu formulo e que me conduz ao programa de uma sociologia escala individual, leva-nos a pensar que necessrio, daqui em diante, pr provade investigaes empricas um tal conceito retrico para o fazer passar para um es-tatuto de conceito cientificamente til. Se a sociologia pretende continuar a ser uma

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  • sociologia disposicional, em vez de se pr ao lado das abordagens a-histricas edes-socializantes do mundo social (reduzido a uma gramtica ou a uma lgica deaco presente, a sistemas de aco, ordem presente da interaco...), ela deve ul-trapassar a simples invocao ritual do passado incorporado, tomando por objectoa constituio social e as modalidades de actualizao desse passado.

    Perguntar-nos-emos ento, por exemplo, como se formam as disposies (ouos esquemas)? Ser que essas disposies se podem ir apagando progressivamen-te, ou podem mesmo desaparecer completamente, por falta de actualizao (Peircedizia que as disposies podem cansar-se)? Ser que elas podem ser destrudaspor um trabalho sistemtico de contra-socializao (por exemplo, todas as vonta-des missionrias, sectrias, totalitrias ou escolares de destruio dos hbitos exis-tentes, considerados como maus hbitos a erradicar)? Poderemos avaliar os grausde constituio e de reforo das disposies, segundo, nomeadamente, a frequn-cia e a intensidade do treino seguido, distinguindo assim as disposies fracas(crenas passageiras e friveis, hbitos efmeros ou desajeitados) das disposiesfortes? Como que as mltiplas disposies incorporadas, que no formam neces-sariamente um sistema coerente e harmonioso, se organizam ou se articulam?

    Podemos ver, atravs desta primeira srie de questes, que no samos verda-deiramente das questes mais clssicas da sociologia da educao, apesar de estasserem mais precisas e elaboradas. De facto, difcil compreender totalmente umadisposio se no reconstruirmos a sua gnese (isto , as condies e as modalida-des da sua formao). Apreender as matrizes e os modos de socializao que for-maram tal ou tal tipo de disposies sociais deveria ser parte integrante de uma so-ciologia da educao, concebida como uma sociologia dos modos de socializao(escolares e extra-escolares) e articulada a uma sociologia do conhecimento. , deresto, um ponto de sociologia geral inscrito no corao da reflexo weberiana: Namedida em que a aco social transportada pelos homens (por de trs da acoh o homem"), Weber considerou sempre que a anlise social devia integrar precisa-mente a questo do homem, o que ele chama o ponto de vista antropocntrico, co-locando a questo do tipo de homem que as relaes sociais so capazes, a longotermo, de moldar" (Grossein, 1996: 61).2

    Disposies para agir e disposies para crer

    proveitoso distinguirmos as disposies para agir das disposies para crer, squais podemos reservar o nome de crenas. Estas crenas so mais ou menos for-temente incorporadas pelos actores individuais, mas no podem ser sistematica-mente assimiladas a disposies para agir. Contrariamente a uma tradio filosfi-ca que comea com Alexander Bain (1859) e que vai at Charles Sanders Peirce(1931), parece-me pouco judicioso fazer da crena uma disposio para agir ou

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    2 O autor precisa que o grau de unidade e homogeneidade internas de uma conduta de vida no pressuposto por Weber; ele s pode ser estabelecido por anlise emprica.

  • um hbito de aco. Da mesma maneira que somos portadores de uma multipli-cidade de disposies para agir, todos ns mais ou menos interiorizmos uma mul-tiplicidade de crenas (hbitos do esprito, segundo a expresso de Peirce, hbi-tos discursivos e mentais) que podemos mais ou menos verbalizar, mas que, emboa parte, esto ligadas a normas sociais produzidas, suportadas e difundidas porinstituies to diversas como a famlia, a escola, os mdia, as igrejas, as institui-es mdicas, judicirias, polticas, etc.3 Quando estas crenas esto j constitudas,elas so mais ou menos confirmadas pela experincia corrente,4 mais ou menossustentadas pelas mltiplas instituies (escolares, religiosas, polticas, mdi-cas), e a sua fora varia em funo do seu grau de constituio (aprendizagem), edepois de confirmao (sobre-aprendizagem).

    Mas, se importante no pressupor logo partida que uma crena uma dis-posio para agir, porque assim no poderamos compreender fenmenos como ailuso, a frustrao ou a culpabilidade (ou a m conscincia), que so igualmenteprodutos da distncia entre as crenas e as disposies para agir, ou entre as crenase as possibilidades reais de aco.

    A relao ilusria que qualquer actor pode ter em relao s suas prpriasprticas no um tema sociologicamente muito na moda. Mas a simples considera-o das distncias entre o que os actores dizem sobre o que fazem e o que podemosaprender sobre o que eles fazem atravs da observao directa dos seus comporta-mentos, permite pr em evidncia essa iluso (que, obviamente, faz parte do mun-do social e constitui um elemento do seu funcionamento). Numerosos trabalhos depesquisa levam-nos a encontrar esse relacionamento ilusrio (deformante) com aprtica.

    Para alm disso, vivemos em sociedades em que os actores podem incorporarcrenas (normas, modelos, valores, ideais...) sem ter os meios (materiais e/ou dis-posicionais) para as respeitar, concretizar, atingir ou cumprir. Por exemplo, viversempre imerso num ambiente ideolgico-cultural que valoriza os benefcios doconsumo pode levar os actores de uma sociedade a sonhar em aceder ao consumopara se sentir bem, ser feliz ou estar em cima do acontecimento. Mas estesmesmos actores podem estar privados de meios econmicos que lhes permitamagir no sentido da sua crena, vivendo essas situaes como uma frustrao tempo-rria ou permanente. Mais fundamental ainda, os actores podem ter interiorizadonormas, valores, ideais..., sem ainda terem podido forjar hbitos de aco que lhespermitam atingir o seu ideal. bem conhecido, hoje em dia, o hiato entre crenas edisposies nos estudantes que reconhecem a legitimidade da cultura escolar ten-do, no entanto, grandes dificuldades escolares. Percebendo-se a partir daquilo queno so, s lhes resta autodesvalorizarem-se (sou estpido, inculto, no inte-ligente, Lahire, 1993: 283).

    Da mesma maneira, os actores podem, sob o efeito socializador dos mdia es-critos ou audiovisuais, ter interiorizado modelos de comportamento ou de

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    3 Sobre os hbitos discursivos e mentais ver Lahire (1999a).4 Peirce diz que, entre as razes para duvidar, a experincia surpreendente e desconcertante que

    rompe mais fortemente com o desenrolar tranquilo de uma crena-hbito.

  • existncia sem adquirirem os hbitos que os levariam a aproximarem-se, nos fac-tos, dos modelos desejados. Neste tipo de casos, a crena impotente, pois ela noencontra as condies disposicionais favorveis sua concretizao. Estes desfasa-mentos entre crenas e condies objectivas de existncia, ou entre crenas e dispo-sies para agir, conduzem muitas vezes a sentimentos de frustrao, de culpabili-dade, de ilegitimidade ou de m conscincia.

    necessrio, por isso, fazer um esforo para distinguir os diferentes elemen-tos constitutivos da estrutura complexa que formam as combinaes individuaisde disposies para agir (hbitos de aco) e de crenas (disposies para crer, hbi-tos mentais e discursivos), elas prprias mais ou menos fracas ou fortes. Retoman-do sem discusso a proposio filosfica de Charles Sanders Peirce segundo a qualuma crena qualquer coisa na base da qual um homem est pronto a agir, numapalavra, um hbito, os socilogos estariam a ser demasiado apressados e no com-preenderiam por que razo algumas crenas ou convices morais, culturais, edu-cativas, ideolgicas ou polticas, embora por vezes muito fortes, no so efectiva-mente actualizadas, a no ser verbalmente. Isso explica-se, nomeadamente, pelofacto de aqueles que so portadores dessas crenas terem constitudo essas convic-es e crenas independentemente dos hbitos de aco que paralelamente incor-poravam. Existem, pois, opinies, convices ou crenas de conversa, de dis-curso, ou de declarao5 (o que no significa de fachada, porque isso suporiaque existe uma verdadeira natureza escondida por baixo de um simples vernizde superfcie) que so to profundas como os hbitos que levam a agir, mas queno foram constitudas nas mesmas condies e no encontram os mesmos contex-tos ou circunstncias de uso ou de actualizao.

    Se retomarmos o exemplo das normas estticas, corporais e dietticas, consta-taremos que um grande nmero de mulheres e homens adere s normas em vigornas revistas ou nos mdia audiovisuais, sem ter necessariamente adquirido os h-bitos alimentares, desportivos e estticos que lhes permitiriam, na realidade quoti-diana da sua prtica, tender para esses ideais, ou deles se aproximar. Do mesmomodo, a armadilha domstica na qual caem frequentemente as mulheres a queas leva a fazer coisas que, noutro registo, elas no desejam fazer, ou que chegammesmo a criticar: as crenas e os ideais podem estar claramente do lado da partilhaigualitria das tarefas, enquanto hbitos contrrios, propenses para agir opostas,podem ser postos em prtica. Se reconduzssemos as crenas aos hbitos que levama agir num determinado sentido, no compreenderamos a ausncia ou as dificul-dades da aco. No sentido inverso, se reduzssemos as crenas a um simples ver-niz, no apreenderamos igualmente os fenmenos de culpabilidade, de mal-es-tar, de vergonha, ou os complexos provocados pela distoro entre crenas e dis-posies para agir. Estas distores e, por vezes, estas contradies, 1) entre as dife-rentes crenas (fortes e fracas) incorporadas por um indivduo em diferentes con-textos, 2) entre diferentes hbitos-disposies para agir (fortes e fracos) e 3) entre as

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    5 Algumas disposies para agir, que so hibernadas por causa da ausncia de contexto deactualizao, podem viver tambm no estado de sonho acordado.

  • crenas e as disposies para agir, complicam a investigao sociolgica e obrigamo investigador a perguntar-se sempre que efeitos precisos de que tipo de socializa-o ele realmente mediu.

    A relao com as disposies

    O programa cientfico de uma sociologia escala individual deveria preencher ovazio deixado por todas as teorias da socializao ou da inculcao, entre as quais ateoria do habitus, que evocam retoricamente a interiorizao da exterioridade oua incorporao de estruturas objectivas sem nunca verdadeiramente lhes darcorpo atravs da descrio etnogrfica (ou historiogrfica) e da anlise terica(Bersntein, 1992). Preocupados durante muito tempo principalmente com a ques-to da reproduo social pela famlia, a escola e as diferentes instituies culturais esociais, os socilogos satisfizeram-se em fazer a constatao de uma desigualdadeface s instituies legtimas (escola e outras instituies culturais) e/ou de umaherana cultural e social intergeracional (famlia). Resumindo, poderamos dizerque fora de insistir no isso reproduz-se, acabou-se por negligenciar o que que se reproduz e como, segundo que modalidades, isso se reproduz. Resulta-do: uma teoria da reproduo plena, mas uma teoria do conhecimento e dos mo-dos de socializao vazia. O que precisamente a escola? Que tipos de laos deinterdependncia se tecem especificamente na escola? O que que se transmiteescolarmente? Como que essa transmisso6 opera? As questes colocam-se damesma maneira no caso da famlia ou de qualquer outra instituio cultural.

    Uma parte das investigaes de sociologia da educao e da cultura leva pro-gressivamente os investigadores a estabelecerem diferenas entre modalidades deinteriorizao ou de incorporao de hbitos, maneiras de fazer, de ver, de sentir.Apercebemo-nos, nomeadamente na maneira de falar das suas prprias prticas,que os inquiridos no tm a mesma relao com os seus mltiplos hbitos incorpo-rados. As investigaes empricas permitem precisar as diferentes maneiras comoos hbitos incorporados e as suas actualizaes so vividos. Revela-se, por exem-plo, particularmente til para distinguir as situaes, diferenciar os termos de dis-posio e de apetncia. O mais forte do que eu que caracteriza as disposi-es (enquanto propenses, inclinaes) pode tomar diversamente a forma indivi-dual de uma paixo (disposio + forte apetncia), de uma simples rotina (disposi-o + falta de apetncia ou indiferena) ou mesmo de um mau hbito ou de uma ma-nia perversa (disposio + nojo, rejeio, resistncia em relao a essa disposio).

    De facto, nem tudo se vive no modo da necessidade feita virtude,7 ou seja,no modo do amor do necessrio, do prazer sentido a praticar, a consumir..., aquilo aque no se pde escapar. Esta relao encantada com o mundo impede de ver queas coisas poderiam correr de outra maneira, que outra escolha poderia ser feita.

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    6 A prpria noo de transmisso deve ser revista, se quisermos progredir no sentido de umasociologia das modalidades concretas da socializao (Lahire, 1995 e 1998: 206-210).

    7 Pierre Bourdieu fala do habitus como necessidade feita virtude (1979: 433).

  • Estando o constrangimento cultural inicial to bem interiorizado, a escolha im-pe-se por si mesma e aparece como natural e evidente. O modelo da necessidadefeita virtude o do constrangimento objectivo exterior transformado em motorinterior, em gosto (ou em paixo) pessoal, em necessidade vital. Por exemplo, algu-mas crianas dos meios populares parecem ter interiorizado precocemente o su-cesso escolar como uma necessidade interna, pessoal (Lahire, 1995: 239-269). Paraisso, necessrio uma constituio psquica particular (ligada a uma economia s-cio-afectiva singular, que a anlise sociolgica das relaes de interdependnciapermite reconstruir), que no constitui sem dvida o caso mais frequente. Desteponto de vista, parece que quanto mais a socializao (ou seja, a instalao corporaldos hbitos) tiver sido precoce, regular e intensa, mais temos hipteses de ver sur-gir esta lgica de segunda natureza, do mais forte do que eu.

    O mesmo modelo supe tambm que a disposio seja forte (e no fraca oumediamente forte) e impede quase completamente a distncia em relao ao papelsocial. Ora, as disposies distinguem-se entre elas segundo o seu grau de fixao ede fora. Existem disposies fortes e disposies mais fracas, e a fora e a fraquezarelativas das disposies dependem, em parte, da recorrncia da sua actualizao.No incorporamos um hbito durvel em apenas algumas horas, e certas disposi-es constitudas podem enfraquecer ou apagar-se pelo facto de no encontraremcondies para a sua actualizao, e s vezes mesmo pelo facto de encontraremcondies de represso.

    Se os socilogos no gostam de distinguir as disposies fortes das disposi-es fracas porque eles preferem apresentar quadros claros e ntidos das culturasou dos universos simblicos que eles descrevem, em vez de situaes mitigadas,mdias ou de meias tintas, intelectualmente menos satisfatrias, apesar demais prximas do estado real das coisas. Eles participam assim numa sobreinter-pretao da intensidade dos comportamentos, das crenas, das adeses, das con-vices... A sobreinterpretao, escreve Paul Veyne, consiste em fabricar falsasintensidades. Imaginamos ento que a intensidade o regime de velocidade decruzeiro do quotidiano, ou ento, sob o nome de conscincia colectiva, estende-mos a todos os agentes, e a toda a durao dos fenmenos sociais, os momentos deintensidade ou o carcter virtuoso de algumas almas de elite (Veyne, 2000: 65). por essa razo, afirma o historiador, que na descrio sociolgica, a apreenso dosgraus de habituao precede a tipologia dos habitus e que os ttulos de captuloda grande histria Uma poca de f", A identidade muulmana, O paganis-mo e a cidade antiga so sobreinterpretaes que desconhecem o arco-ris dereaces desiguais" (idem: 73).

    No modelo da necessidade feita virtude tal a adeso prtica que qual-quer dvida apagada. O actor no resiste, no atrado por outras vontades, tra-balhado por outras pulses, cansado pelo investimento na prtica... Um tal modelodesigna, de facto, uma modalidade particular de existncia do social incorporado eda sua actualizao. Mas o modo encantado de viver os seus hbitos no o nico,longe disso.

    Assim, os indivduos socializados podem ter interiorizado duravelmente umcerto nmero de hbitos (culturais, intelectuais...) e no ter, no entanto, nenhuma

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  • vontade particular de os pr em prtica. Ou eles os pem em prtica por rotina, porautomatismo, por hbito, ou pior, por obrigao (fao-o, mas porque sou obriga-do a isso ou foro-me a isso), sem paixo nem encanto. Contrariamente ideiacomum na sociologia, que consiste em pensar que ns s gostamos do que domina-mos bem, as pesquisas sobre prticas culturais permitem separar duas dimensesbem distintas. Por exemplo, a descoberta de leitores assduos ou de amantes da lei-tura entre os alunos que tm fracas competncias em francs e, no sentido inverso,de fracos leitores, muito pouco interessados na cultura livresca, entre os alunosmais competentes, no ensino bsico como no liceu, permite dissociar competnciase apetncias. Se as competncias culturais so muitas vezes uma condio favor-vel ao surgimento de uma prtica assdua e apaixonada pela leitura, elas no sosuficientes para criar, de maneira sistemtica, leitores assduos ou inflamados(Singly, 1993).

    Para alm disso, alguns hbitos podem ter sido duravelmente instalados nocorpo de um indivduo que, num novo contexto de vida (por exemplo, um qual-quer acontecimento biogrfico: casamento, nascimento, divrcio, morte de umprximo, novo trabalho...), deseja ver-se livre do que considera, agora, maus hbi-tos. Passa-se tudo como se a nova situao o levasse a sentir uma parte das suasdisposies ou dos seus hbitos como lhe sendo estranha.

    Os hbitos podem ento ser interiorizados e s ser actualizados no modo doconstrangimento ou da obrigao; podem-no ser no modo da paixo, do desejo ouda vontade; ou, ainda, no modo da rotina no consciente, sem verdadeira paixonem sentimento de particular constrangimento. Tudo isso depender da maneiracomo foram adquiridas essas disposies ou hbitos, do momento da biografia in-dividual em que eles foram adquiridos e, ainda, do contexto actual da sua (even-tual) actualizao. Assim, os hbitos que foram interiorizados precocemente, emcondies favorveis sua boa interiorizao (sem fenmenos de injuno contra-ditria, sem interferncias na transmisso cultural devido a dissonncias cultu-rais entre os pais ou entre o que dizem os adultos e o que eles fazem, entre o que elesdizem e a maneira como o dizem...) e que encontram condies positivas (social-mente gratificantes) de concretizao, podem dar lugar quilo que comummentedenominado por paixo.

    Poderamos muito bem passar ao lado de certas matizes importantes do pontode vista do grau de interiorizao-instalao dos hbitos, das condies em que issose deu, das modalidades da sua aquisio e das condies nas quais elas so levadasa funcionar, considerando, de forma demasiado estritamente durkheimiana, que,expressos na ilusria linguagem do amor, da rotina ou do constrangimento, os com-portamentos individuais no so, em todos os casos, seno a exteriorizao do pro-duto da interiorizao dos constrangimentos sociais. Colocaramos ento do lado dosenso comum e da ideologia qualquer discurso sobre a escolha, sobre o desejo, apaixo, a espontaneidade..., sem nos apercebermos que negligenciaramos aqui di-menses finas das condies, modalidades e efeitos da socializao.

    Por que razo, salvo algumas excepes, a interiorizao dos modelos decomportamentos sexuados no vivida no modo de interiorizao de uma obriga-o, do constrangimento? No entanto, no h nada mais constrangedor e arbitrrio

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  • (culturalmente, historicamente...) do que os modelos sexuados, constituindo omundo social uma espcie de instituio total que socializa de maneira permanen-te os indivduos em tais diferenas (Lahire, 2001c). O mundo social continuamen-te sobressaturado de diferenas sexuadas. Mas justamente porque essas diferen-as so simultaneamente precoces e omnipresentes que os constrangimentos soraramente sentidos como tais ou, em todo o caso, so-no muito menos fortementedo que outros tipos de constrangimentos sociais. Se os hbitos e os modelos escola-res de comportamento e de pensamento, por exemplo, so vividos mais frequente-mente pelas crianas e adolescentes no modo de constrangimento, porque a esco-la, qualquer que seja o seu grau de integrao familiar, no deixa de ser muitas ve-zes um universo relativamente estranho e constrangedor, sobretudo quando elaexige um grau de ascese mximo, como nos perodos de preparao de exames econcursos. Se as crianas fossem submetidas ao duro regime da ascese escolar in-tensiva desde a escola primria, talvez a ascese do liceu, e depois de uma parte doensino superior, fosse vivida como normal, o que no evidentemente o caso, a noser excepcionalmente.

    Transferncia e suspenso

    A teoria do habitus de Pierre Bourdieu toma tambm como garantida a ideia datransferibilidade ou da transponibilidade e do carcter generalizvel dos esque-mas, ou disposies, socialmente constitudos. Ser, porm, que a noo de transfe-ribilidade aumentou a imaginao sociolgica ou, dito de outra maneira, tornoupossvel investigaes em cincias sociais que sem ela teriam sido impensveis?Nada menos certo. Para verificar se houve de facto transferncia, seria necessrioestudar de maneira precisa um modo de socializao e ver os efeitos precisos dasua difuso. Por exemplo, a socializao escolar produz efeitos de socializao jul-gados geralmente, no meio dos socilogos da educao, durveis e transferveis.Mas, o que que se transfere da situao escolar para outras situaes extra-escola-res? Ser um sentido da legitimidade dos produtos culturais (por exemplo, um sen-tido da pequena e da grande literatura)? Ser uma concepo geral do conheci-mento, uma relao com o saber? Ser sobretudo um certo nmero de gestos de es-tudo ou de hbitos intelectuais? Ser um sentimento pessoal de importncia (deauto-estima elevada) que pode conferir essa instituio legtima a todos aquelesque a ela se conformam? difcil pretender que tais processos de transferncia te-nham sido realmente estudados em pesquisas empricas.

    Em contrapartida, os socilogos apoiaram-se muitas vezes nessa noo,como na de generalizabilidade das disposies e esquemas, para reforar umacerta preguia emprica. Se cada investigao, sobre tal ou tal prtica, permitisseverdadeiramente apreender disposies gerais, que se pressupem transferveispara outras situaes, ento evitar-se-ia, com efeito, um longo e fastidioso percursode pesquisa: aquele precisamente para cuja realizao uma sociologia escala indi-vidual se prope contribuir.

    Se a noo de disposio implica uma operao cognitiva de evidenciao da

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  • coerncia dos comportamentos, opinies, prticas... diversas e por vezes dispersas,ela no deve, no entanto, conduzir ideia segundo a qual a disposio seria neces-sariamente geral, transcontextual e activa em cada momento da vida dos actores. Aprocura da coerncia tem que ser acompanhada por uma preocupao com a deli-mitao das classes de contextos, das reas de pertinncia e de actualizao da dis-posio reconstruda.

    Tomada de emprstimo da psicologia piagetiana, a noo de transferibilida-de suscita, hoje em dia, uma desconfiana crescente de uma parte dos psiclogoscontemporneos (Loarer e outros, 1995; DiMaggio, 1997),8 que explicam a relativasolidariedade entre os esquemas e as situaes (tipos de tarefas, de actividades ou desaberes) nas quais eles foram construdos-adquiridos (por exemplo, se certos adul-tos so treinados para memorizar alguns tipos de objectos, eles mostram-se melho-res que outros quando lhes pedido para memorizar o mesmo tipo de objectos,mas no melhoram necessariamente as suas performances mnemnicas quandolhes pedido para memorizar outro tipo de objectos). Atranferibilidade (de um es-quema ou de uma disposio) muito relativa, e a transferncia opera-se tanto me-lhor quanto o contexto de mobilizao esteja prximo, no seu contedo e na sua es-trutura, do contexto inicial de aquisio. As disposies actualizam-se sempre sobcondio (Lahire, 1998: 63-69; 2002: 16-18). Mas sobretudo o processo de generali-zao abusiva ou prematura que constitui o problema essencial subentendido pelouso de uma tal noo. , de facto, a ideia segundo a qual os esquemas ou as disposi-es seriam todos e em todas as ocasies transferveis e generalizveis, que coloca pro-blemas.9 O investigador curto-circuita ento o procedimento normal da investiga-o e evita a difcil comparao das prticas de um domnio a prticas de outro, oumesmo de uma situao a outra no interior de uma mesma esfera de actividade,comparao que s ela permitiria dizer 1) se a transferncia ocorreu efectivamentee 2) qual a natureza da transferncia em questo. Deduzir apressadamente daanlise das prticas de um indivduo, ou de um grupo social, num contexto socialdeterminado (qualquer que seja a escala do contexto), esquemas ou disposies ge-rais, habitus que funcionariam da mesma maneira em qualquer lugar, em outros lu-gares e em outras circunstncias, constitui, pois, um erro de interpretao.

    As diferenas de comportamento observveis de um contexto para outro nopoderiam ser produto da refraco de um mesmo habitus (de um mesmo sistema dedisposies) em contextos diferentes? De facto, o regime de transferncia generali-zada, no discutido e empiricamente pouco posto prova, impede-nos de conce-ber (e portanto de observar) a existncia de esquemas ou de disposies de aplica-o muito localizada (prprios de situaes sociais ou de domnios de prticas par-ticulares), de modos de categorizao, de percepo, de apreciao ou de aco

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    8 Michel Huteau escreve tambm: Dizer que h interaco entre os sujeitos e as situaes omesmo que dizer que, se existem disposies internas, elas so relativas a classes de situaes.(Huteau, 1985: 64).

    9 Utilizador do conceito de habitus, Max Weber no o concebia necessariamente como um sistemade disposies gerais. Ele pde assim escrever: Este estado podia corresponder a um habitus ex-tra-quotidiano de carcter somente passageiro. (1996: 347).

  • senso-motora parciais, ligados a objectos ou domnios especficos. Ele reduz umprocesso de exteriorizao da interioridade complexo a um funcionamento ni-co e simples, a saber, o da assimilao/acomodao: assimilao das situaes aosesquemas incorporados e acomodao (correco) dos esquemas anteriormenteadquiridos s variaes e s mudanas de situao.

    E se, em vez de se generalizar, as disposies estivessem, por vezes, simples-mente inibidas ou desactivadas para deixar lugar formao ou activao de ou-tras disposies? E se elas se pudessem limitar a no ser mais do que disposiessociais especficas, com domnio de pertinncia bem circunscrito, aprendendo omesmo indivduo a desenvolver disposies diferentes em contextos socais dife-rentes? E se, em vez de um simples mecanismo de transferncia de um sistema de dis-posies, estivssemos a lidar com um mecanismo mais complexo de suspenso/ac-o ou de inibio/activao de disposies que supem, com toda a evidncia, quecada indivduo singular seja portador de uma pluralidade de disposies e atra-vesse uma pluralidade de contextos sociais?

    Como que o indivduo vive a pluralidade do mundo social, bem como a suaprpria pluralidade interna? O que que esta pluralidade (interior e exterior) pro-duz na economia psquica, mental dos indivduos que a vivem? Que disposies oindivduo investe nos diferentes universos (no sentido lato do termo) que levadoa atravessar? Como distribui ele a sua energia e o seu tempo entre esses mesmosuniversos? Eis uma srie de questes que uma sociologia escala do indivduo neces-sariamente se coloca.

    O singular plural

    Devido a um simples efeito de escala, a apreenso do singular enquanto tal, ou seja,do indivduo como produto complexo de diversos processos de socializao, obri-ga a ver a pluralidade interna do indivduo: o singular necessariamente plural. coerncia e homogeneidade das disposies individuais pensadas pelas sociolo-gias escala dos grupos ou das instituies, substitui-se uma viso mais complexado indivduo, menos unificado e portador de hbitos (de esquemas ou de disposi-es) heterogneos e, em alguns casos, opostos, contraditrios.10

    As cincias sociais (e nomeadamente a sociologia, a histria e a antropologia)viveram durante demasiado tempo sob uma viso homogeneizante do indivduona sociedade. Pesquisar a sua viso do mundo, o seu relacionamento com o mundoou a frmula geradora das suas prticas (o habitus) foi considerado, e ainda o

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    10 O estudo dos casos de transfugas de classe essencial para 1) compreender como umindivduo pode incorporar disposies contraditrias, como vive com essa contradio(sufocando ou suspendendo as suas antigas disposies? Fundindo-separando muitoclaramente universos onde activar as suas disposies contraditrias? Sofrendo a cadainstante a contradio bloqueadora das disposies?), e 2) para avaliar em que medida apluralidade relativa das disposies de que so portadores os indivduos d origem ou no aconflitos psquicos ou tenses identitrias.

  • amplamente hoje em dia, como um procedimento bvio. Ora, necessrio lutarcontra uma tendncia filosfica, e mais precisamente fenomenolgica, que, falan-do normalmente (no singular) do estar-no-mundo de um sujeito, da nossa rela-o ou do nosso relacionamento com o mundo e com os outros, desenvolvemaus hbitos discursivos (e mentais) nos socilogos que so seus depositriosmais ou menos conscientes.

    Por exemplo, na obra que defende filosoficamente a ideia de sistema de dis-posies coerente e homogneo, Emmanuel Bourdieu usa o exemplo do clebretrabalho de Erwin Panofsky sobre Galileu (Panofsky, 1992), que pe em evidncia ofacto de que os mltiplos investimentos intelectuais do grande fsico no se re-duzem a uma justaposio de actividades separadas, formando pelo contrrio umsistema de prticas homlogas (1998: 7). A frmula geradora das prticas cientfi-cas do fsico assim designada por Panofsky: trata-se de purismo crtico. E.Bourdieu conclui, pois, que atravs da ideia de purismo crtico, Panofsky apre-ende a propriedade fundamental em funo da qual se organiza todo o comporta-mento do grande fsico, conferindo-lhe a sua coerncia e o seu estilo prprio.(idem: 8). No entanto, Panofsky no diz que o estilo prprio de Galileu se con-densa nessa frmula disposicional (o purismo critico). Ele no fala de todo ocomportamento de Galileu, mas do comportamento erudito de Galileu-fsico. Adiferena enorme. Sabendo que Galileu no se reduz ao seu ser-fsico, temos algu-ma dificuldade em pensar que o purismo crtico poderia estar na origem doscomportamentos domsticos, amicais, amorosos, alimentares, vestimentares... domesmo homem. Da mesma maneira, quando se evoca o habitus literrio de um ro-mancista como Gustave Flaubert (Bourdieu, 1992) ou o habitus filosfico de um au-tor como Martin Heidegger (Bourdieu, 1975), podemo-nos questionar em que me-dida estes ltimos importam o mesmo sistema de disposies para toda uma s-rie de situaes sociais extraliterrias ou extrafilosficas. O conjunto dos seus com-portamentos sociais qualquer que seja o domnio considerado seria redutvela esse sistema? A observao dos comportamentos reais mostra que um tal pres-suposto est longe de ser evidente.

    Em sentido contrrio, alguns socilogos ps-modernos parecem, no entanto,deleitar-se com a ideia de disperso, de rotura, de fragmentao ou de dissemina-o infinitas do actor. Ora, no se trata de resolver de uma vez por todas, a priori, aquesto (do grau) da unicidade ou da pluralidade do actor individual, mas de colo-car a questo de quais so as condies scio-histricas que tornam possvel a pro-duo de um actor plural ou de um actor caracterizado por uma profunda unicida-de. Aescolha da unicidade ou da fragmentao constitui, na maior parte das vezes,um postulado no discutido e funda-se, em alguns casos, mais sobre pressupostosticos do que sobre constataes empricas. De facto, a coerncia (relativa) dos h-bitos (dos esquemas ou disposies) que cada indivduo pode ter interiorizado de-pender da coerncia dos princpios de socializao aos quais ele foi submetido.Quanto mais um indivduo tiver sido colocado, simultaneamente ou sucessiva-mente, no seio de uma pluralidade de contextos sociais no homogneos, e por ve-zes mesmo contraditrios, mais essa experincia ter sido vivida de maneira preco-ce, e mais estaremos a lidar com um indivduo com um patrimnio de disposies,

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  • de hbitos e de capacidades no homogneo, no unificado, variando segundo ocontexto social no qual tenha sido levado a evoluir.

    O problema da natureza e da organizao do patrimnio individual de dispo-sies deve-se ento colocar no trabalho emprico e no deve ser resolvido antesmesmo da questo ter sido colocada, atravs da utilizao de termos muito cons-trangedores do tipo sistema de disposies. A ideia de patrimnio (ou destock) de disposies permite rever em baixa as pretenses interpretativas de cer-tos socilogos disposicionalistas. Que o indivduo no seja nem uma realidade emmigalhas (verso ps-moderna do indivduo estilhaado, disseminado, semunidade nem coerncia...), nem uma pura adaptao sensvel s exigncias va-riveis dos contextos (verso empirista da experincia), no deve conduzir a exage-rar a coerncia das experincias socializadoras e dos traos disposicionais que elasimprimem nos indivduos. Como que certas disposies se combinam entre sipara explicar comportamentos em tal ou tal contexto? Tm elas existncia relativa-mente, independente umas das outras e combinam-se entre si de maneira diferen-te, dependendo dos contextos de aco? Como podem elas entrar em conflito e en-travar a aco ou a deciso? Eis algumas questes que devem, mais uma vez, en-contrar terrenos empricos para a sua resoluo, em vez de serem tratadas na or-dem puramente terica e retrica.

    As mltiplas inscries contextuais da aco

    Com excepo de uma parte das investigaes de natureza scio-lingustica parti-cularmente sensveis s variaes contextuais (David Efron, William Labov, JohnGumperz...), raros so os trabalhos sociolgicos que, de facto, colocaram como ob-jectivo a comparao das prticas de um mesmo indivduo (e no globalmente deum grupo de indivduos) em esferas de actividades diferentes, universos sociaisdiferentes, tipos de interaco diferentes. Estudando os indivduos em cenriosparticulares, no quadro de um s domnio de prticas (seguindo um recortesubdisciplinar particularmente contestvel cientificamente: sociologia da famlia,da educao, da cultura, da arte, do trabalho, da sade, da juventude, sociologia re-ligiosa, poltica, jurdica...), os socilogos apressam-se muitas vezes, de maneira er-rada, a deduzir, da anlise dos comportamentos observados nestes cenrios, dispo-sies gerais, habitus, vises do mundo ou relaes gerais com o mundo.

    Uma parte do programa sociolgico que proponho implica exigncias meto-dolgicas novas. Para apreender a pluralidade interna dos indivduos e a maneiracomo ela age e se distribui segundo os contextos sociais, necessrio dotar-mo-nos de dispositivos metodolgicos que permitam observar directamente ou re-construir indirectamente (atravs de diversas fontes) a variao contextual (nosentido lato do termo) dos comportamentos individuais. S esses dispositivos me-todolgicos permitem julgar em que medida algumas disposies so transferveisde uma situao para outra e outras no, ver como joga o mecanismo de inibi-o-suspenso/activao-operacionalizao de disposies e avaliar o grau de he-terogeneidade ou de homogeneidade do patrimnio de hbitos incorporados

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  • pelos indivduos no decorrer das suas socializaes anteriores. Se a observao di-recta dos comportamentos continua a ser o mtodo mais pertinente, ela raramen-te possvel, na medida em que seguir um indivduo nas diferentes situaes dasua vida uma tarefa pesada e deontologicamente problemtica. Mas mesmo a en-trevista e o trabalho de arquivo podem ser reveladores desde que sejamos sens-veis tanto s variaes como s invariantes de mltiplas pequenas contradies,de heterogeneidades comportamentais imperceptveis aos inquiridos que, pelocontrrio, tentam muitas vezes manter a iluso da coerncia e da unidade de simesmos.

    Trata-se no s de comparar as prticas dos mesmos indivduos em universossociais (mundos sociais, que podem em alguns casos, mas no sistematicamente,organizar-se sob a forma de campos de lutas) tais como o mundo do trabalho, a fa-mlia, a escola, a vizinhana, a igreja, o partido poltico, o mundo dos lazeres, as ins-tituies culturais..., mas tambm de diferenciar as situaes no interior destes di-ferentes grandes domnios nem sempre to claramente separados na realidadesocial , tendo em conta as diferenas intrafamiliares, intraprofissionais...

    As variaes intra-individuais das prticas e das prefernciasculturais

    De Thorstein Veben (1899) a Pierre Bourdieu (1979), passando por Edmond Goblot(1925), uma longa tradio intelectual ps em evidncia as funes sociais da arte eda cultura nas sociedades diferenciadas e hierarquizadas, e nomeadamente os lu-cros sociais de distino ligados ao domnio das formas culturais mais raras e mais le-gtimas. Os socilogos da cultura esto assim, h muito tempo, habituados a pen-sar a Cultura (a alta cultura ou a grande cultura) nas suas relaes com asclasses sociais ou as fraces de classes, e a evidenciar a constatao das desigual-dades sociais de acesso Cultura. As classes sociais e a sua distncia, maior oumenor, em relao cultura dominante, as hierarquias culturais que ordenam osgrupos, as instituies, as obras e as prticas, do mais legtimo ao menos legtimo,eis os elementos-chave da interpretao sociolgica das prticas e preferncias cul-turais de h 40 anos a esta parte, tanto em Frana como nos Estados Unidos (Lynes,1954); Murphy, 1988; Levine, 1988; Beisel, 1990). A situao social global tal como traada desde meados dos anos 60 pode ser resumida da seguinte maneira: classesdominantes cultas, com uma relao descontrada com a cultura entre os que be-neficiaram de uma educao cultural precoce, classes mdias caracterizadas poruma boa vontade cultural e uma tenso hipercorrectiva, mas oscilando entre onobre e o popular, e classes dominadas mantidas distncia da Cultura e sen-tindo uma vergonha ou uma indignidade cultural permanente.

    este quadro que podemos muito seriamente e rigorosamente pr em ques-to, adoptando um outro ponto de vista de conhecimento que no aquele que es-crutina somente as distncias interclasses; um ponto de vista que considere de ma-neira sistemtica as prticas e as preferncias culturais sob o ngulo da variaointra-individual dos comportamentos (Lahire, 2004).

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  • Procedendo deste modo, trazemos tambm um outro olhar sobre a questomuito debatida e complexa dos pblicos da cultura. A histria cultural foi levada,desde h 20 anos a esta parte, a recolocar em questo o uso pouco reflexivo e dema-siado automtico das categorias de classificao dos pblicos ou das popula-es tidas por demasiado tempo como evidentes no seio da histria estatstica.Por exemplo, em vez de utilizar recortes sociais inquestionados (elite/povo, domi-nantes/dominados, hierarquias socioprofissionais ou socioculturais) para apreen-der as diferenas culturais, o historiador Roger Chartier propunha o procedimentoinverso, que consiste em partir dos objectos, das obras, dos cdigos, das formas,dos dispositivos simblicos para reconstruir as comunidades que deles se apro-priavam. Descobriram-se ento princpios plenamente sociais de diferencia-o relativamente inditos, que uma concepo mutilada do social (Chartier,1989: 1511) tinha acabado por fazer esquecer: o sexo, a gerao, a situao familiar(celibato, viuvez, casamento, etc.), a pertena religiosa, a tradio educativa ou cor-porativa, o percurso escolar, a posio intelectual, etc. Mas em vez de ir dos objec-tos, instituies ou prticas em direco aos pblicos que eles atraem e que os apro-priam, podemos tambm, sem arriscar dissolver todos os princpios de estrutura-o dos objectos de investigao, interrogarmo-nos como os mesmos indivduospodem fazer parte de pblicos to diversificados (pblicos da televiso, da rdio,do teatro, do cinema, dos museus, das salas de concerto, da literatura, etc.) e por ve-zes francamente heterogneos. Ao concentrarmo-nos demasiado na lgica das in-terpretive communities, no sentido de Stanley Fish (1980), podemos acabar por es-quecer que os indivduos passam muito frequentemente de uma comunidadepara outra, e que eles se caracterizam, desse ponto de vista, por uma pluralidade depertenas sociais e simblicas, inscrevendo as suas prticas (e nomeadamente assuas prticas culturais) em mltiplos lugares e tempos.

    No se trata em nenhum caso de negar a existncia de desigualdades sociaisperante as formas culturais mais legtimas. Mas a mudana de escala de observa-o permite esboar uma outra imagem do mundo social. Comeando por conside-rar as diferenas internas de cada indivduo (variaes intra-individuais: o mesmoindivduo faz isto e aquilo, gosta disto mas gosta tambm daquilo, gosta disto masdetesta em compensao aquilo, etc.) antes de voltar s diferenas entre classes so-ciais (as variaes interclasses), chegamos a uma imagem do mundo social que nonegligencia as singularidades individuais e evita a caricatura cultural dos grupossociais. O facto central que surge ento que a fronteira entre legitimidade cultural(a alta cultura) e ilegitimidade cultural (a subcultura, o simples divertimen-to) no separa somente em termos globais (estatisticamente) as diferentes classes,mas tambm as diferentes prticas e preferncias culturais dos mesmos indiv-duos, em todas as classes da sociedade. Quaisquer que sejam as suas propriedadessociais (pertena social, nvel de diploma, idade ou sexo), uma mesma pessoa tergrandes hipteses estatsticas de ter prticas e gostos variveis do ponto de vista dasua legitimidade cultural, segundo os domnios (cinema, msica, literatura, televi-so, etc.) ou as circunstncias da prtica.

    escala individual, dois grandes factos impem-se, pois, ao analista. O pri-meiro a grande frequncia estatstica dos perfis culturais individuais compostos

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  • por elementos heterogneos ou dissonantes (no sentido em que eles pertencem aregistos culturais muito legtimos e muito pouco legtimos): estes tipos de perfisso absolutamente ou relativamente maioritrios em todos os grandes grupos so-ciais (se bem que mais provveis nas classes mdias e superiores do que nas classespopulares), em todos os nveis de escolaridade (mesmo se muito mais provvel na-queles que terminaram o ensino secundrio do que nos que o no fizeram) e em to-dos os grupos etrios (se bem que cada vez menos provvel medida em que avan-amos na idade). O segundo facto que chama a ateno a maior probabilidade deos indivduos que compem a populao inquirida terem um perfil cultural conso-nante por baixo (de fraca legitimidade) mais do que por alto (de forte legitimi-dade): seguindo assim a pirmide das condies sociais, scio-logicamente muitomais difcil manter um alto nvel de legitimidade cultural numa srie de domniosdo que permanecer afastado de qualquer forma de legitimidade cultural.11

    A produo social do indivduo

    Numerosas instituies sociais contribuem para forar a unicidade da pessoa. E um programa cientfico por si s o de estudar as condies sociais (prticas e dis-cursivas) de produo do indivduo moral e ideolgico como um ser isolado, coe-rente, autnomo, singular, fundamentalmente fechado sobre si mesmo antes dequalquer contacto com outrem, dispondo de uma interioridade e de um eu autnti-co. Se a sociologia se pode interessar pelo sujeito emprico (no sentido de LouisDumont) e pelas lgicas sociais apreendidas escala desse sujeito emprico (queno tem nenhuma parecena com o indivduo dessocializado do individualismometodolgico), ela no pode deixar de se interessar, tambm, pela produo dasimagens (morais, ideolgicas, pseudocultas...) do eu individual, contra as quais elateve que se construir para existir enquanto tal.

    Um programa de investigao poderia utilmente ser constitudo no sentidode uma sociologia histrica das formas de unificao discursiva (nomeadamentenarrativas) do eu. A iluso de um eu unificado, homogneo, coerente no deixade ter fundamento social. Poderamos mesmo dizer que a celebrao da unidadedo eu uma empresa permanente nas nossas sociedades. Acomear pelo apelidoassociado ao nome prprio, simbolizado na assinatura manuscrita, que consa-gram a singularidade da pessoa e acompanham alguns de ns (os homens maisfrequentemente do que as mulheres) durante toda a vida, e terminando por todas

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    11 O procedimento metodolgico complexo posto em prtica a partir da investigao Prticasculturais dos Franceses 1997" (DEP/Ministre de la Culture), e que permite enunciar taisresultados, longamente explicitado em Lahire (2004: 117-207). Os perfis culturais foramconstrudos a partir de indicadores sobre os gneros musicais ouvidos mais frequentemente, osgneros de livros lidos mais frequentemente, os gneros de filmes preferidos, as emisses deteleviso preferidas, os gneros de sadas ou visitas culturais e de lazeres-divertimentospraticados. Este procedimento estatstico foi completado por 111 entrevistas realizadas apessoas com propriedades sociais diversificadas (segundo a idade, sexo, nvel de escolaridade,natureza da formao escolar, origem social e posio socioprofissional).

  • as formas discursivas de apresentao de si, da sua histria, da sua vida (curriculumvitae, elogios fnebres, noticias necrolgicas, panegricos, biografias e autobiogra-fias, narrativas sobre si prprio ou outrem, bildungsromam, histria de vida do acu-sado no mbito de um tribunal...). Em grande parte destes gneros discursivos, opostulado da unidade do sujeito forte. O eu que se exprime ou o ele que nar-rado garantem uma espcie de perenidade e de permanncia de uma identidadepessoal coerente e uniforme.

    Deste ponto de vista, possvel um dilogo renovado com a histria, a prop-sito da prtica da biografia histrica. Como modificar o gnero biogrfico que pri-vilegia, enquanto gnero discursivo, a coerncia de um percurso, de uma vida oude um procedimento, em detrimento de todas as incertezas, incoerncias ou mes-mo contradies de que esto cheias as personagens histricas reais? No se trata,de modo algum, de ceder iluso positivista de poder apreender a totalidade deuma personalidade, em todas as facetas da sua existncia. Mas evitar o apaga-mento ou a eliminao sistemtica dos dados heterogneos e contraditrios, cru-zando os mltiplos dados de arquivo sobre o mesmo indivduo, abordando-o apartir de aspectos muito diferentes da sua actividade social, em vez de simples-mente lhe desenhar o retrato coerente como artista, como rei, como guerreiro, comohomem de Estado ou da Igreja sob o pretexto de que a cincia necessariamentesimplificadora e que a reconstruo cientfica inevitavelmente mais coerente doque a realidade, ou que a cincia pe necessariamente ordem na desordem do mun-do emprico , uma maneira de renovar o gnero biogrfico na histria tornan-do-o um lugar experimental (no sentido de lugar de experincias, de tentativas) dereflexo metodolgica. Juntar-nos-amos, deste modo, vontade expressa porGiovanni Lvi quando apelava reconsiderao da tradio biogrfica estabeleci-da, assim como da prpria retrica da histria, que se baseiam em modelosque associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estvel,aces sem inrcia e decises sem incertezas (Lvi, 1989: 1326).

    Esta produo do indivduo como indivduo singular, autnomo muitas ve-zes procurada no contedo dos discursos (ideolgicos, filosficos...) (Dumont,1983; ou Taylor, 1998), mas no deveramos negligenciar o estudo das instituies,dos dispositivos sociais ou das configuraes de relaes de interdependncia quecontribuem para produzir este sentimento de singularidade, de autonomia, de in-terioridade, de identidade de si para si (Elias, 1991: 64-67).12 Podemos nomeada-mente, como nos convida a fazer Mary Douglas, tentar estabelecer de que modo asconcepes de identidade individual, ou do eu, dependem de maneira estreitadas instituies religiosas e judicirias. Se a concepo do eu unitrio impregnoutanto as nossas sociedades, porque ela foi ligada ideia de responsabilidade in-dividual, responsabilidade perante Deus (Juiz supremo) ou perante os homens(tribunal de justia). Mary Douglas lembra que John Locke queria justificar a exis-tncia de um tal eu unitrio e responsvel porque ele o achava necessrio do pon-to de vista teolgico. Quando comparecemos perante o Juiz supremo, diz ele, como

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    12 Aescola contribui, pela sua parte, para formar o estudante autnomo (Lahire, 2005: 322-347).

  • seria possvel responder pelos nossos actos se tivssemos personalidades mlti-plas e fragmentrias?" (Douglas, 1999: 155).

    Na mesma linha, no que se refere ligao entre julgamento, responsabili-dade e identidade individual, podemos lembrar a etimologia da expressoforo interior, que significa tribunal interior ou tribunal da conscincia. Ondeestaria, de facto, a nossa responsabilidade individual se o mundo social aceitassede maneira oficial a ideia de uma pluralidade do(s) eu? na sua forma patolgi-ca que as instituies aceitam a maior parte das vezes esta ideia (desdobramento dapersonalidade, pessoa tendo perdido o controlo sobre si prpria e que j no eraverdadeiramente ela prpria no momento de um acto), mesmo se, na vida quoti-diana, so numerosas as ocasies para dizer (como para se desculpar, precisa muitojustamente Mary Douglas) que j no somos ns prprios: no era eu, no eraeu prpria, deixei de me reconhecer, no o fiz conscientemente, voluntaria-mente, etc. este tipo de pluralidade interna que os estudos de casos fazem apare-cer (Lahire, 2002). Os actores no so feitos de um s pedao, mas pelo contrrio socolagens compostas, complexos matizados de disposies (para agir e para crer) mais ou me-nos fortemente constitudos. Isso no significa que sejam sem coerncia, mas simsem princpio de coerncia nico de crenas (modelos, normas, ideais, valores...) e dedisposies para agir.

    Tudo isso significa que a ideia de um si ou de um eu (de uma personali-dade...) nico e unificado , para utilizar uma expresso de Durkheim, uma ilusosocialmente bem fundada, e que no conseguimos ver muito bem por que milagrea realidade das inclinaes, das disposies e dos hbitos individuais corresponde-ria a esse modelo social unificador de constituio do eu. Pressupondo ou postu-lando a ideia de uma unicidade individual (estilo cognitivo ou comportamental,princpio gerador, frmula geradora, motor de uma personalidade...), as cinciassociais so classicamente vtimas das mltiplas instituies que pr-formam asconcepes do que um indivduo.

    Essas categorias do senso comum no so demasiado incmodas desde quenos dediquemos essencialmente a analisar as variaes intergrupos ou intercate-gorias. Mas elas tornam-se, em compensao, poderosos obstculos ao conheci-mento sociolgico quando, mudando intencionalmente a focagem de objectivo,nos interessamos preferencialmente pelas variaes interindividuais e, mais ainda,pelas variaes intra-individuais, em funo dos contextos (domnios de prticas,esferas de actividade, tipos de interaco...). Apartir do momento em que tentamosapreender a realidade do social incorporado (individualizado) a interrogaopodendo centra-se tanto nos grandes nmeros como em casos particulares, tantoem casos estatisticamente frequentes como em casos estatisticamente atpicos oumarginais somos obrigados a redefinir os instrumentos de anlise e nomeada-mente a concepo que temos do que so essas pequenas mquinas produtorasde prticas, essas matrizes disposicionais (comportamentais, cognitivas, afectivas,apreciativas...), retendo no corpo de cada indivduo o produto das diferentes sriesde experincias passadas.

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  • A generalidade do singular

    Contrariamente ao que poderamos temer numa primeira abordagem, a sociologia escala individual no se ope, de modo algum, s abordagens estatsticas. No sela se alimenta das constataes e das anlises da sociologia estatisticamente fun-dada, como, depois de termos revelado a heterogeneidade intra-individual obser-vando de perto, podemos apreender claramente a pluralidade das disposies in-dividuais em grandes nmeros e a partir de inquritos quantitativos clssicos(Lahire, 2001a e 2005). Asociologia escala individual no tem como especialidadeocupar-se de casos excepcionais, estaticamente atpicos e improvveis, mesmo queesses casos lhe sejam, por vezes, teis para fazer surgir alguns dos problemas queela se prope tratar especificamente (por exemplo, o caso dos transfugas declasse).

    Como o mostra o estudo histrico de Carlo Ginzburg sobre um caso atpico, ode um moleiro chamado Menocchio (Ginzburg, 1980), a apreenso do singular pas-sa necessariamente por uma compreenso do geral, e poderamos dizer que no hnada mais geral do que o singular. Pouco a pouco conseguimos compreender como segundo que frices especficas entre propriedades gerais, entre experinciasde formas de vida social Menocchio se tornou no que . Para compreendermos osocial no seu estado dobrado, individualizado, necessrio ter um conhecimentodo social no seu estado desdobrado, alargado; ou, dito de outra forma, para darconta da singularidade de um caso, necessrio compreender os processos geraisde que este caso no seno um produto complexo.

    Dado que o prprio Ginzburg se refere a Conan Doyle e ao seu heri, SherlockHolmes, para explicitar o paradigma indicirio no qual se inscrevem as suasobras, poder-nos-amos apoiar no trabalho de investigao deste ltimo para mos-trar que conseguir converter detalhes insignificantes em detalhes reveladores, ouseja, em ndices de tal ou tal trao de carcter, propriedade, prtica ou disposio,supe um conhecimento geral (histrico, geogrfico, antropolgico, econmico...)do mundo social e das suas tendncias histricas, quer elas tenham sido estatistica-mente estabelecidas ou reconstrudas a partir de bases documentais, de observa-es directas ou de testemunhos... Assim, Sherlock Holmes s consegue levar acabo as suas dedues na base de um conhecimento incrivelmente erudito: eleapoia o seu raciocnio sobre o conhecimento que tem de certos hbitos profissio-nais, culturais, nacionais... Longe de repousar sobre conhecimentos singulares,elas supem a operao de conhecimentos gerais mobilizados no sentido de umacompreenso dos casos singulares.

    A ideia que nos surge espontaneamente face a tudo aquilo que se pode pare-cer com os case-studies, a da fraca representatividade estatstica dos casos estuda-dos. Ao estudo dos casos singulares opor-se-ia o conhecimento das tendncias ge-rais, das recorrncias do mundo social estatisticamente apreendidas. Mas singu-lar no significa no repetvel ou nico. Constituindo o singular como o in-verso do geral, actualizamos uma velha oposio entre cincias nomotticas e cin-cias ideogrficas, mtodo generalizante e mtodo individualizante, que no temqualquer pertinncia.

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  • Paradoxalmente, o estudo de caso, na sua singularidade e no a ttulo de casoilustrativo relativamente a figuras ideal-tpicas ou a tendncias ou propriedadesgerais estatisticamente associadas na maior parte das vezes a um grupo, pode evi-denciar situaes bem mais frequentes estatisticamente do que poderamos crer.De facto, os investigadores em cincias sociais trabalham muitas vezes com a ajudade dicotomias que lhes permitem ver como se distribuem os diferentes grupos oucategorias de indivduos entre dois plos opostos. Por exemplo, a sociologia daeducao pode opor os estudantes segundo estes tendam mais para o plo ascticoou mais para o plo hedonista. Poderemos assim ter em mente duas figurasideal-tpicas do estudante: por um lado, o estudante asceta, totalmente virado parao trabalho escolar, sacrificando tudo (sociabilidade amical, sentimental e familiar,tempos livres e frias...) para se consagrar aos estudos, e por outro, o estudante bo-mio, que gosta da festa, dos tempos livres, dos amigos, dos amores e que trabalhade maneira necessariamente descontnua, ocasional (Bourdieu e Passeron, 1964;Lahire, 1997). No entanto, se procurarmos na realidade os estudantes que corres-pondem melhor a estes dois plos, arriscamo-nos a ter estatisticamente muito pou-cos candidatos. A maior parte deles estaro entre os dois, em situaes mdiasque so, de facto, situaes mistas, ambivalentes: eles no so nem monstros de tra-balho, nem estroinas totais, mas alternam, segundo os contextos e, nomeadamente,as companhias do momento (e as suas presses), tempos dedicados ao trabalho etempos de lazer, sofrendo alternativamente o peso do seu ascetismo constrangido ea m conscincia do estudante hedonista (Lahire, 1998: 76-79). Portadores de dis-posies (mais ou menos fortemente constitudas) relativamente contraditrias,eles so mais numerosos estatisticamente do que os seus colegas exemplares (doponto de vista da oposio terica referida). E mesmo os estudantes mais tpicosdos plos opostos podero ser trabalhados por desejos contraditrios, pelo menossimbolicamente.

    Do mesmo modo, quando o socilogo da educao tenta compreender osprocessos de insucesso e de sucesso escolares a partir da oposio conceptualentre dois tipos de cdigos sociolingusticos (Bernstein, 1975) ou de dois arbitrriosculturais (Bourdieu e Passeron, 1970), ele concentra geralmente a sua anlise nosplos em oposio, esquecendo as situaes mistas ou ambivalentes dos estudan-tes mdios, cujas disposies escolares no so inexistentes, mas fracas, ou, emtodo o caso, no suficientemente fortes para se imporem sistematicamente peranteas disposies no escolares. No por um acaso epistemolgico que os socilogosda educao se dedicaram essencialmente a analisar os casos de sucesso e os ca-sos de insucesso escolar, negligenciando totalmente o caso dos estudantes m-dios. Mas mesmo nos casos de crianas com grandes dificuldades escolares, elasnunca deixam a escola sem passarem por mudanas, e tambm elas desenvolvemcomportamentos escolares ambivalentes (Lahire, 1993).

    No se pode, pois, recriminar o programa de sociologia escala individualpor se reduzir ao estudo, interessante mas secundrio e mesmo marginal, das ex-cepes estatsticas. Muito pelo contrrio. Paradoxalmente, numerosos investiga-dores, ao comentarem os seus quadros estatsticos, interpretam os seus dados nalgica das aproximaes relativas de categorias ou grupos de indivduos aos plos

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  • da oposio considerada pertinente, e perdem, ao mesmo tempo, a apreenso doscasos intermdios que so, muitas vezes, os mais numerosos, os mais vulgares. Oexemplo (demasiado) perfeito, que por vezes condensa ou acumula o conjuntodas propriedades estatisticamente mais associadas a um grupo ou a uma categoria, sem dvida necessrio quando queremos ilustrar uma anlise baseada em dadosestatsticos. Ele muitas vezes utilizado para desenhar o retrato de uma poca, deum grupo, de uma classe ou de uma categoria. No entanto, pode tornar-se engana-dor e caricatural a partir do momento em que j no lhe atribumos o estatuto deilustrao (representante de uma instituio, de uma poca, de um grupo...), mas otomamos por um caso particular do real, ou seja, como o produto complexo e singularde experincias socializadoras mltiplas. Pois a realidade social incarnada em cadaindivduo singular sempre menos ch, menos simples do que isso. De resto, se oscruzamentos analticos dos grandes inquritos nos indicam as propriedades (re-cursos, atitudes, prticas...) estatisticamente mais associadas a tal grupo ou tal cate-goria, impossvel deduzir da que cada indivduo que compe o grupo ou a cate-goria (nem mesmo a maior parte deles) rene a totalidade (nem mesmo a maioria)dessas propriedades.

    Do mesmo modo, na medida em que tenta apreender combinaes relativamen-te singulares de propriedades gerais, a sociologia escala individual encontra algu-mas dificuldades com um certo uso do mtodo ideal-tpico. Se o socilogo se contentaem fornecer quadros coerentes sem dar a ler casos menos homogneos, menos claros,mais ambivalentes, ento ele apresenta um social (e nomeadamente casos individuais)estranhamente coerente e quase inexistente. O mtodo ideal-tpico vai nesse caso cla-ramente no sentido de uma apreenso do social desdobrada e homogeneizada. Adificuldade no vem tanto de Weber, consciente do facto de que os elementos hetero-gneos so em si mesmos compatveis (Weber, 1996: 206) e que os homens nunca fo-ram livros burilados em todos os detalhes, como nunca foram construes lgicasou livres de contradies psicolgicas (idem: 364), mas dos seus utilizadores, que con-fundem, como diz Marx, a lgica das coisas com as coisas da lgica.

    As razes de uma sociologia escala individual

    Centrando-se na anlise dos vincos mais singulares do social, a sociologia escala in-dividual inscreve-se numa longa tradio sociolgica que, de mile Durkheim aNorbert Elias, passando por Maurice Halbwachs, tem como desgnio ligar cada vezmais intimamente a economia psquica aos quadros da vida social. Um tal estudo suposto dotar-se das ferramentas conceptuais e metodolgicas adequadas.

    o interesse sociolgico das variaes interindividuais e intra-individuaisque tento pr em evidncia h alguns anos (Lahire, 1995, 1998, 1999b, 2001a, 2002),no quadro de uma teoria da aco fundada sobre uma sociologia da pluralidadedisposicional (a socializao passada mais ou menos heterognea e d lugar a dis-posies para agir e para crer heterogneas e, por vezes, mesmo contraditrias) econtextual (os contextos de actualizao das disposies so variados). O que seabre aqui o campo de uma sociologia que se esfora por no negligenciar as bases

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  • individuais do mundo social, e que estuda, assim, indivduos atravessando cen-rios, contextos, campos de fora, etc., diferentes.

    Mas poderamos legitimamente perguntar que razes levam o socilogo a es-tudar o social escala individual. Escolhendo um tal ponto de vista de conheci-mento da realidade, no estar ele a abraar ou a acompanhar activamente o movi-mento de individualizao que atravessa as nossas formaes sociais? Para almda dinmica prpria do campo sociolgico, que explica que um tal interesse vai nosentido de um progresso da autonomia cientfica da disciplina, evidente que estasociologia responde a uma necessidade histrica de pensar o social numa socieda-de fortemente individualizante. No momento em que o homem pode ser cada vezmais concebido como um ser isolado, autnomo, dotado de razo, sem ligaesnem razes, oposto sociedade, contra a qual ele defenderia a sua autenticida-de radical, a sociologia tem o dever (e o desafio) de pr em evidncia a produosocial do indivduo (e das concepes que temos dele) e de mostrar que o social nose reduz ao colectivo ou ao geral, mas que ele se encontra tambm nos traos maissingulares de cada indivduo.

    O mundo social est em ns tanto quanto est fora de ns. Na origem tantodas nossas tristezas como das nossas alegrias, individuais e colectivas, ele diferen-ciou-se e complexificou-se a ponto de produzir o sentimento que o ntimo, o singu-lar, o pessoal, se distinguiria, por natureza, da sociedade (como dois objectos clara-mente distintos) e chegaria mesmo a opor-se a ela. Paradoxo, ou astcia do mundosocial, o ter, num estado de diferenciao particularmente avanado, produzido asensao, muito difusa, de uma vida subjectiva no social ou extra-social. Nadamais banalmente aceite do que esta robinsonada. O indivduo, o foro interior, oua subjectividade como lugar da nossa ltima liberdade um dos nossos grandesmitos contemporneos. Podemos gostar de participar nos mitos ou tentar desfa-zermo-nos deles. Ora, parece que abandonar qualquer iluso de subjectividade,de interioridade ou de singularidade no determinadas, de livre arbtrio ou deexistncia pessoal fora de qualquer influncia do mundo social, para fazer apare-cer as foras e contaforas, tanto internas (disposicionais) como externas (contex-tuais), s quais estamos continuamente submetidos desde o nosso nascimento, eque nos fazem sentir o que ns sentimos, pensar o que ns pensamos e fazer o quens fazemos, um progresso precioso no conhecimento.

    Deste ponto de vista, a sociologia dever-se-ia dedicar a produzir uma visodo homem na sociedade cientificamente mais adequada do que as (necessrias) ca-ricaturas construdas quando se imagina o indivduo a partir de figuras ideal-tpi-cas tiradas dos trabalhos sobre grupos sociais, pocas histricas ou instituies.Deveria, nomeadamente, ser capaz de responder a interrogaes do dia-a-dia, lei-gas mas essenciais, quanto vida dos indivduos em sociedade. Por exemplo, comocompreender que um indivduo possa surpreender os que o rodeiam (que tm, noentanto, um bom conhecimento prtico-intuitivo deste indivduo), ou mesmo sur-preender-se a si prprio, pelo facto de ter sido capaz de fazer isto ou aquilo, em talcircunstncia ou em tal momento da sua biografia? Que concepo do determinis-mo social deveremos ter para explicar essa indeterminao relativa do comporta-mento individual que faz o fascnio da vida social?

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  • , de facto, impossvel prever o aparecimento de um comportamento socialcomo se prev a queda dos corpos a partir da lei universal da gravidade. Esta situa-o o produto da combinao de dois elementos: por um lado, a impossibilidadede reduzir um contexto social a uma srie limitada de parmetros pertinentes,como no caso das experincias fsicas ou qumicas; e, por outro, a pluralidade inter-na dos indivduos, cujo patrimnio de hbitos (de esquemas ou de disposies) mais ou menos heterogneo, composto de elementos mais ou menos contradit-rios. portanto difcil prever com exactido o que, num contexto especfico, vai jo-gar (pesar) sobre cada indivduo e o que, dos mltiplos hbitos incorporadospor ele, vai ser desencadeado num/por um determinado contexto. Em funo daspessoas com quem o indivduo considerado coexiste duradouramente (cnjuge, fi-lhos) ou temporariamente (amigos, colegas...), em funo do lugar que ele ocupana relao com essas pessoas ou em relao actividade que desenvolvem juntos(dominante ou dominado, lder ou seguidor, responsvel ou simples participante,implicado ou no implicado, competente ou no competente...), o seu patrimniode disposies e de competncias submetido a foras de influncia diferentes. Oque determina a activao de determinada disposio num certo contexto pode serconcebido como o produto da interaco entre (relaes de) foras internas e externas: re-lao de foras interna entre disposies mais ou menos fortemente constitudasdurante a socializao passada, e que esto associadas a uma maior ou menor ape-tncia, e relao de foras externa entre elementos (caractersticas objectivas da si-tuao, que podem estar associadas a pessoas diferentes) do contexto que pesammais ou menos fortemente sobre o actor individual, no sentido em que o constran-gem e o solicitam mais ou menos fortemente (por exemplo, as situaes profissio-nais, escolares, familiares, de amizade... so desigualmente constrangedoras paraos indivduos).

    A constatao sociolgica que somos obrigados a tirar do nosso conhecimen-to actual do mundo social que o indivduo multissocializado e demasiado multide-terminado para que possa estar consciente dos seus determinismos. Deste ponto devista, (socio)lgico ver os indivduos resistir tanto ideia de um determinismo so-cial. porque tem grandes hipteses de ser plural e porque se exercem sobre eleforas diferentes dependendo das situaes sociais nas quais se encontra, que oindivduo pode ter o sentimento de uma liberdade de comportamento.

    Esta ideia complexa e subtil do determinismo social sobre os comportamen-tos individuais foi, de uma certa maneira, j abordada por uma parte da literatura,e nomeadamente por Marcel Proust. J quase um terico da pluralidade dos euem cada indivduo (Lahire, 1998, Le modle proustien de lacteur pluriel: 43-46, e2002: 398-400) no seu Contre Sainte-Beuve, o romancista desenvolveu uma escrita li-terria que, no somente pe em cena essa pluralidade das heranas e das identida-des individuais, como d o exemplo de uma sociologia individual subtilmentedeterminista (Dubois, 1997: 130).

    Finalmente, 1) porque cada um de ns pode ser portador de uma multiplici-dade de disposies que no encontram sempre os contextos da sua actualizao(pluralidade interna insatisfeita), 2) porque podemos ser desprovidos de boas dispo-sies permitindo fazer face a certas situaes mais ou menos inevitveis no nosso

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    SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42

  • mundo social multidiferenciado (pluralidade externa problemtica), e 3) porque osnossos mltiplos investimentos sociais (familiares, profissionais, amicais...),objectivamente possveis, podem tornar-se, ao fim e ao cabo, incompatveis (plura-lidade de investimentos ou de envolvimentos problemtica), que podemos viver inquie-taes, crises ou desencontros pessoais com o mundo social. Antes de tudo, senti-mentos de solido, de incompreenso, de frustrao, de