Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro....

21
III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 1 COMPETÊNCIA E MERCADO NA PRODUÇÃO DOS SENTIDOS DO ESTILO LITERÁRIO ENTRE INTELECTUAIS MARANHENSES Franklin Lopes Silva 1 RESUMO O presente trabalho apresenta algumas dimensões de análise e princípios metodológicos que têm sido aplicados no desenvolvimento de nossa dissertação de mestrado. Mais especificamente, detêm-se sobre as possibilidades de investigação das relações existentes entre condicionamentos objetivos e os usos da literatura como estratégia de afirmação intelectual no Maranhão. Palavras-chave: Intelectuais. Literatura. Condicionantes Sociais. ABSTRACT This paper presents some aspects of analysis and methodological principles that have been applied to the development of our master thesis. More specifically, they hold up on the possibility of investigating the relationship between conditioning purposes and uses of literature as a strategy to claim intellectual property in Maranhão. Keywords: Intellectuals. Literature. Social constraints. Toda ação é uma conjuntura. Partindo desta constatação também a “literatura” em suas formas e “estilos” diversos deve também ser concebida como um “encontro de séries causais independentes” (BOURDIEU, 2008, p. 24), podendo, portanto, ser detalhes distintivos compreendidos como indícios (GINZBURG, 2006; 1990) para a compreensão das dinâmicas sociais que 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Maranhão.

Transcript of Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro....

Page 1: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 1

COMPETÊNCIA E MERCADO NA PRODUÇÃO DOS SENTIDOS DO ESTILO LITERÁRIO ENTRE INTELECTUAIS MARANHENSES

Franklin Lopes Silva1

RESUMO

O presente trabalho apresenta algumas dimensões de análise e princípios metodológicos que têm sido aplicados no desenvolvimento de nossa dissertação de mestrado. Mais especificamente, detêm-se sobre as possibilidades de investigação das relações existentes entre condicionamentos objetivos e os usos da literatura como estratégia de afirmação intelectual no Maranhão.

Palavras-chave: Intelectuais. Literatura. Condicionantes Sociais.

ABSTRACT

This paper presents some aspects of analysis and methodological principles that have been applied to the development of our master thesis. More specifically, they hold up on the possibility of investigating the relationship between conditioning purposes and uses of literature as a strategy to claim intellectual property in Maranhão.

Keywords: Intellectuals. Literature. Social constraints.

Toda ação é uma conjuntura. Partindo desta constatação também a “literatura”

em suas formas e “estilos” diversos deve também ser concebida como um “encontro de

séries causais independentes” (BOURDIEU, 2008, p. 24), podendo, portanto, ser detalhes

distintivos compreendidos como indícios (GINZBURG, 2006; 1990) para a compreensão

das dinâmicas sociais que subjazem à produção “literária”, localizadas histórica e

geograficamente. Orientando-nos por este princípio pretendemos apresentar aqui os

fundamentos teóricos e metodológicos que têm sido operacionalizados no desenvolvimento

de nossa dissertação de mestrado, no que tange à análise da produção dos sentidos

discursivos manifestos nos “estilos literários”, compreendidos aqui enquanto competências

individuais incorporadas e sujeitas aos condicionamentos de um mercado linguístico que

opera um efeito paradoxal entre os agentes, posto que, supostamente concebido apenas

como um mecanismo comum de comunicação, sustêm-se principalmente pela ênfase nas

experiências singulares, ou seja, submetidas a condicionantes e, portanto, disposições

incorporadas diversificadas, porque socialmente diferenciadas. Limitado o espaço e os

1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Maranhão.

Page 2: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 2

dados que por ora detemos para tal exposição, nos deteremos aqui apenas a

esboçar alguns resultados parciais e o caminho que temos trilhado para concluí-los.

Esta perspectiva de trabalho demonstra-se ainda relevante por nos munir de

ferramentas conceituais que nos possibilitem investigar as estruturas simbólicas de

dominação inscritas nas práticas dos agentes, fornecendo-nos informações consistentes

quanto aos condicionantes sociais de recrutamento de “elites intelectuais” no Maranhão.

Considerando-se ainda que as reflexões presentes neste artigo se amparam em um conjunto

de dados produzidos em uma pesquisa ainda em desenvolvimento sobre a constituição do

espaço intelectual maranhense, a partir da qual temos constatado a ausência de universos

sociais com lógicas de funcionamento relativamente autônomas – instâncias de

consagração e capitais específicos e, consequentemente, a inexistência de subcampos de

produção cultural também específicos, dentre eles o literário –, poderemos também por

tais processos investigativos identificar a pertinência e os limites relativos à aplicabilidade

de um esquema analítico desenvolvido em universos sociais diversos ao que nos propomos

investigar, policiando-nos assim quanto a possíveis efeitos de homologia.

Ainda quanto à noção de “intelectuais” utilizada neste artigo, cabe observar que,

inserindo-se nossa perspectiva de trabalho entre os estudos acerca dos condicionantes

sociais dos processos de seleção de elites culturais, este termo, embora sugira uma

consideração desta camada social como objeto de estudo, será tratada aqui apenas como

tema empírico, tomando-se, isto sim, por objeto de análise os recursos e princípios de

legitimação que estruturam suas práticas e os condicionam a tomadas de posição distintas

em disputa pelo monopólio dos princípios de legitimação e consagração sob a égide de

“intelectuais”, detendo-nos aqui ao “estilo literário” como um destes recursos acionados.

Para tanto, temos seguido no desenvolvimento desta pesquisa a orientação

metodológica de que para a compreensão das posições e tomadas de posição de

determinados agentes ou grupos é necessário aplicarmos o modo de pensar relacional

como princípio dessubstancializador de noções como a “literatura” e seus “estilos”

diversificados, ou seja, compreendendo-os a partir de sua inserção em um espaço social de

posições múltiplas, situando os agentes e instituições em que atuam em suas relações

objetivas, investindo nas lutas de classificação e desclassificação mútuas, analisados a

partir de sua inserção em um espaço social determinado.

Pretendemos, assim, esquivar-nos dos equívocos de acepção da escrita destes

agentes à semelhança de uma autocriação da produção literária que pretenda descrever o

Page 3: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 3

“processo de perpetuação da [literatura] como uma espécie de partenogênese, a

[literatura] engendrando-se a si própria, fora de qualquer intervenção do mundo social”

(BOURDIEU, 2004, p. 20). De forma ilustrativa, podemos dizer quanto à nossa concepção

de análise dos textos literários e seus “estilos” – sob o risco de simplificação – que a escrita

dos papéis, em seu conteúdo e forma, se engendra nas práticas dos agentes, condicionadas

pelas relações objetivas que atuam como um “sistema de exclusão” (FOUCAULT, 2006, p.

14) que se estabelecem entre estes e o conjunto de instituições em que se inserem (formais

ou informais), acionando recursos (tangíveis ou intangíveis) nas disputas que travam em

torno do monopólio dos princípios de legitimação da “boa literatura”, afirmação social e

consagração.

O recurso metodológico que utilizamos sintetiza ainda uma postura investigativa

que pretende superar, além do modo de pensar substancialista, duas concepções bastante

difundidas no seio das ciências sociais, principalmente em se tratando de análises sobre a

produção cultural (literatura, arte, ciência etc.), criticamente denominadas – e não raro

apenas superficialmente e com intuito depreciativo – de “internalista” e outra

“externalista”. Fazendo eco às observações feitas por Bourdieu, se pode dizer, muito

sucintamente, e apenas a guisa de síntese de suas críticas a esses modelos explicativos, que

a primeira – “internalista” –, assim denominada por tratar “as obras culturais [...] como

significações atemporais e formas puras que pedem uma leitura puramente interna e a-

histórica, que exclui qualquer referência, tida como ‘redutora’ e ‘grosseira’, a

determinações históricas ou a funções sociais” (Idem, p. 55). Limitada a um estado de doxa

institucionalizada pelo sistema escolar, tem sua forma mais acabada no estruturalismo, que

lhe conferiu uma “aura de cientificidade”, no entanto, cuja hermenêutica tenderia a tratar

as obras culturais “como estruturas estruturadas sem sujeito estruturante” (Idem). Ressalte-

se, no entanto, entre os estudos de obras culturais influenciadas por este modelo de análise

a formulação de Michel Foucault através da operacionalização da noção de campo de

possibilidades estratégicas, ao passo que se dispõe a uma investigação rigorosa dos

“livros” e das “obras” em superação de qualquer perspectiva de unicidade e continuidade,

enfatizando que “não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é

preciso tratá-lo no jogo de sua instância” (FOUCAULT, 1971, p. 21).

Quanto à segunda perspectiva analítica, de caráter “externalista”, se pode dizer, de

forma igualmente resumida e incorrendo na repetição dos riscos de reducionismo, que esta

se baseia na vinculação direta entre as obras e as características sociais dos seus autores,

Page 4: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 4

tendo entre seus principais trabalhos aqueles levados a cabo por alguns teóricos

de orientação marxista, destacando-se em torno dos estudos sobre as obras literárias Lucien

Goldmann e George Lukács, cujas ressonâncias também podem ser percebidas no Brasil

através das produções de autores como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Michel

Löwi2. Nesta abordagem, “pressupõe-se que compreender a obra é compreender a visão de

mundo do grupo social que estaria sendo expressa através do artista, agindo como uma

espécie de médium” (BOURDIEU, 2005, p. 59). Outrossim, a expectativa é, em última

instância, demonstrar a relação entre a produção cultural, (literatura, música, ciência etc.) e

os interesses da classe social cujo autor está inserido. Porém, à revelia das críticas pueris,

esta abordagem não se limita às relações de determinação direta entre uma “superestrutura”

ideológica, determinada pelas “razões” de Estado, e a “infraestrutura” material e

econômica de uma sociedade. Considerando, isto sim, principalmente a partir do

empreendimento analítico da ontologia marxista “lukacsiana”3, o mérito de propor às

análises literárias a consideração de que “o ‘estilo de vida’ de uma época é o que

estabelece o liame entre as condições econômicas e a produção artística” (HEINICH, 2008,

p. 31). De forma muito semelhante o fará Lucien Goldmann em seu livro “A Sociologia do

Romance”, ao desenvolver uma análise marxista para além das determinações entre

“superestruturas” e “infraestruturas”, pretendendo demonstrar as relações intermediárias

entre estes dois planos de análise, destacando as correlações entre “a história da forma

romanesca e a história da vida econômica nas sociedades ocidentais” (GOLDMANN,

1976), ao passo que correlaciona as visões de mundo de um grupo social e as estruturas

literárias de suas obras.

Portanto, elaborando analiticamente o espaço de relações de força em que se

inserem os “intelectuais” poderemos analisar relacionalmente as estratégias4 de afirmação

dos agentes (alianças, investimentos, recursos sociais acionados etc.) no interior deste

espaço e as relações dialéticas que mantêm com as determinações externas a ele,

apropriando-nos das ferramentas analíticas desenvolvidas pelas perspectivas

“externalistas” e “internalistas”, superando suas “oposições” e considerando-as de forma

interdependente. Assim, poderemos compreender os condicionantes sociais das

2 Algumas destas leituras podem ser encontradas em Goldmann (1976); Löwy (2005); Lukács (s.d.); Konder (2007).3 Cf. principalmente, Teoria do Romance; Escritos sobre literatura; Estética literária.4 A noção de estratégia aqui utilizada não diz respeito a um cálculo sistemático, mas à relação – também não plenamente inconsciente – entre as disposições incorporadas ao longo das trajetórias dos agentes e o que está em jogo no espaço social em que se inserem.

Page 5: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 5

possibilidades de acesso aos bens simbólicos, para além da redução às

determinações econômicas, atendo-nos também às disposições incorporadas (gosto,

referências, práticas etc.) pelos agentes, tomando por parâmetro analítico suas origens

sociais e o processo de incorporação de suas “afinidades artísticas”, efetivando uma

dessubstancialização das ilusões do gosto “puro” e “desinteressado” e demonstrando as

correlações existentes entre as disposições incorporadas e as possibilidades de inserção e

atuação no espaço intelectual maranhense.

Quanto ao teor das “obras” e “estilos literários” adotados, compreendemo-los em

sua dupla natureza, material e discursiva (CHARTIER, 2010), atendendo às lutas travadas

entre os agentes e instituições em torno da produção “literária” no interior de um

microcosmo social que intermedia as determinações externas a ele: é esta relação que dá

existência ao fenômeno, conforme as transformações operadas entre os escritores e os

diferentes gêneros e concepções artísticas que defendem, acompanhando também as

transformações conjunturais relacionadas à política e à economia, por exemplo5.

Para tanto, serão de grande importância as informações relativas à constituição

social de um conjunto de agentes selecionados – neste caso sob o critério de ingresso na

carreira literária entre os anos de 1945 e 1964 no Maranhão – e das instituições em que se

inseriram como espaços de atuação. Quanto a estas últimas nosso intuito é medir o grau de

autonomia e heteronomia, ou seja, de refração às pressões externas sofridas pelo

microcosmo literário analisado em relação aos demais domínios em que atuaram (ou atuam

ainda), como a política, a economia ou mesmo outros espaços de produção cultural.

Importa ressaltar que para a compreensão da produção “literária” a partir da

relação de homologia entre a estrutura das “obras” e a estrutura do campo literário e para a

constatação de que as tomadas de posição estariam determinadas pela estrutura das

relações objetivas entre os agentes, seria necessário que se configurasse, no contexto ao

qual nos propomos a analisar, um espaço de relativa autonomia no que tange à produção

cultural, o que implicaria, em termos sintéticos, na existência de princípios de

hierarquização e concorrência próprios. No entanto, importantes estudos quanto à

fragilidade institucional em universos sociais de semelhantes características ao maranhense

vêm sendo desenvolvidos, como os realizados por Coradini (2003), Grill e Reis (2010),

Reis (2007), Neris, (2009); Pécaut (1990) e Sigal (1996), onde demonstram que em

5 Estas duas esferas de atuação serão enfatizadas por nós em nossa dissertação de mestrado, dada a importância que adquirem como espaços privilegiados de atuação e afirmação social dos agentes em análise, conforme constatamos na primeira etapa desta pesquisa (Cf. SILVA, 2010).

Page 6: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 6

condições periféricas, tal como o lócus de análise deste trabalho, não se

configura uma dada situação que se poderia conceber como de relativa autonomia dos

campos, implicando em diferentes processos de constituição dos agentes e suas relações

com as instituições e as lógicas de concorrência entre si, imbricadas entre diferentes

domínios de atuação. Assim, a elaboração analítica do espaço literário aqui realizada

ampara-se nas abordagens desenvolvidas pelos autores supracitados, de forma a substituir a

ênfase sobre as determinações entre as posições sociais de origem, destinos sociais e

tomadas de posição pelo destaque à intersecção e amálgamas das lógicas e espaços de

atuação dos agentes.

Constituído o espaço de relações sociais e suas estruturas significantes (GEERTZ,

1989) em que interagem estes “intelectuais” poderemos, então, investigar os “estilos

literários” em que investem, concebendo-os enquanto tomadas de posição estrategicamente

acionadas e associadas às posições que ocupam nas disputas pela afirmação de uma

linguagem legítima (BOURDIEU, 2008, p. 29-58). Assim, as experiências variáveis dos

indivíduos passam a ser analisadas a partir da inserção destes agentes em um mercado

lingüístico generalizado, cujas regras generalizantes relativas aos impositivos denotativos

se impõem a todos cabendo às estratégias conotativas, relacionadas aos “estilos”, de cunho

desviantes ou conservadoras, o caráter “singular” de suas experiências “literárias” neste

espaço.

Neste processo de adesão às lógicas do jogo e apropriação dos recursos sociais

relevantes à hierarquização e consagração intelectual que se estabelecem e reconfiguram-se

acompanhando as transformações conjunturais, cumprem as instituições formais um

importante papel, seja pela apropriação e reivindicação como epígonos da notoriedade de

que são investidos os “personagens ilustres” que as representam, conferida por um

processo de cristalização biográfica destes “ícones”, seja por concentrarem funções

legitimadoras e reprodutoras de títulos e rituais distintivos entre os agentes. Por exercerem

“localmente” este papel, duas destas instituições têm destacada importância no

desenvolvimento deste trabalho: o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e a

Academia Maranhense de Letras. Estas trazem entre seus “patronos” e “fundadores”

nomes “consagrados” na historiografia maranhense, cultivados como estratégia de

afirmação pessoal; em alguns casos construindo-se sentidos de grupo6, em torno dos quais

se aglutinam reivindicando-se continuadores do legado de uma “tradição literária”

maranhense, ou mesmo tomados como referenciais a serem superados, geralmente pelos

Page 7: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 7

que se encontram fora deste tipo de instituição, motivados pela caracterização

de uma “literatura “marginal e “inovadora”, que busca outros estilos, temáticas e formas de

reconhecimento, em oposição a uma literatura “acadêmica”.

A respeito de uma função consagradora conferida às Academias de Letras ou a

Institutos dedicados aos domínios da história e geografia regionais, é exemplar a

declaração feita por Jomar Moraes, quando ocupava ainda a presidência da AML:

As Academias também trabalham com uma tese chamada: dos expoentes. Acho que devem pertencer às Academias aquelas pessoas que são expressivas de um povo na literatura, preferentemente, e que podem influir na política ou em outros ramos de atividade. Alguém que é muito importante como médico, por que não estar lá? Alguém que é muito importante como jurista, por que não estar? [...] na média, ou preponderantemente, uma das coisas que eu acho que deve marcar a Academia, é que eu acho que a Academia não é ponto de partida, não é da natureza dela. Ela é ponto de chegada. O normal, mais sério, é que elas cheguem lá porque já foram reconhecidas. A Academia consagra. (In: NUNES, 2000, p. 219).

Pretendendo o entrevistado resumir neste trecho o perfil dos candidatos à

“imortalidade”, conjuga-se à exigência da notoriedade literária e ao reconhecimento das

“obras” como expressão de um “povo”, a atuação no domínio político “ou em outros ramos

de atividade”. Subrepticiamente, o trecho reforça também a importância das formações

acadêmicas em medicina e direito para a ocupação destas posições de destaque, indicando-

nos, apenas como exemplo, alguns recursos exigidos ao pertencimento desta “elite

intelectual” e sua consequente consagração “literária” via inserção na Academia

Maranhense de Letras.

Outro elemento importante a ser ressaltado quanto às instituições de consagração

no contexto analisado, diz respeito à sua dependência da “benfeitoria” de atores políticos

para o seu estabelecimento, indício relevante para percebermos as limitações e

dependências do domínio intelectual em relação ao político em contextos periféricos

(SIGAL, 1996; PÉCAUT, 1990) e as relações de heteronomia que se estabelecem entre os

espaços de produção cultural e o espaço do poder político.

Quatro governadores do Maranhão figuram, ao lado de Sebastião Archer (que concedeu o atual prédio de funcionamento da AML), na galeria dos benfeitores da instituição, a saber: Urbano Santos, que [...] considerou-a de utilidade pública, previu que o Estado lhe daria sede condigna e determinou que a Imprensa Oficial lhe editasse regularmente a Revista;

6 A ideia de sentidos aqui utilizada corresponde às prerrogativas inerentes àqueles que comungam uma causa vivida, dedicando-se constantemente para a elaboração, atualização e reconstrução de narrativas históricas e “geracionais” e que contribuem para a definição de pertencimentos a redes de relações sociais ou para o reconhecimento social de reputações que podem ser acionadas estrategicamente pelos agentes.

Page 8: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 8

João Castelo [...] autorizando o Poder Executivo a pagar mensalmente à Academia subvenção correspondente a 10 salários mínimos; João Alberto Souza, [...] aprovou convênio celebrado com o hoje extinto SIOGE (Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Maranhão); o gov. Jackson Lago [restabeleceu] a subvenção suprimida, fato que o tornou membro da Galeria dos Benfeitores da Academia (MORAES, 2008. In: O Guesa Errante, 2006).

Esta maior heteronomia dos espaços e formas de produção e consagração

“literária”, tal como ocorre em contextos periféricos, se deve principalmente, como

demonstram as pesquisas já mencionadas, ao peso maior de critérios externos e sua

imbricada relação de dependência e inserção no domínio político, posto que, por conta de

sua incipiente institucionalização, os espaços de produção “literária” nestes contextos não

dispõem de uma relativa autonomia de suas redes de determinações objetivas, o que

corresponderia a um conjunto de constrangimentos prováveis a limitar as orientações e

práticas dos agentes, bem como suas possibilidades de inserção neste espaço através do

exercício de hierarquização e consagração de algumas técnicas, escolas e problemáticas

possíveis.

Também o equilíbrio quantitativo, identificado a partir dos dados que possuímos7,

entre as formas de reconhecimento na forma de títulos e premiações vinculadas à produção

“literária” e às condecorações estatais concedidas aos agentes em análise, pode ser

percebido como um elemento representativo das estratégias de reconhecimento destes

produtores culturais submetidos a relações de força dissipadas, dado o alto grau de

interferência e porosidade entre os domínios político e literário. Isto implica em

modalidades difusas no processo de consagração destes “intelectuais”, o que se

exemplifica pela confluência entre premiações estritamente referentes a publicações

específicas ou ao conjunto da “obra”, e condecorações estatais com reconhecimentos que

vão desde medalhas de “mérito cultural” por serviços prestados à “sociedade” – ao passo

que consagram também contribuem para dar continuidade à consagração de nomes

“ilustres” de um passado “glorioso” da “intelectualidade maranhense” – (Medalha João

Lisboa, Medalha Graça Aranha, Medalha Gonçalves Dias, Medalha Sousândrade etc.), a

homenagens pelo envolvimento militar em importantes conflitos (como a Medalha do

Pacificador da Guerra concedida aos que serviram na FEB – Força Expedicionária

7 Dispomos de um banco de dados com informações biográficas, montadas em quadros sinópticos, de 132 agentes, cujas variáveis são: nasc./morte; cidade natal/falecimento; profissão dos pais; família/dados gerais; influências literárias; gênero(s) literário (s); publicações (primeira e última); instituições a que se filiou; engajamento; cargos públicos; cargos eletivos; movimentos culturais; premiações/condecorações; trunfos; handcaps; atributos pessoais; profissões; inter-reconhecimentos.

Page 9: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 9

Brasileira – durante a II Guerra Mundial; Medalha da Associação dos Veteranos

da FEB; Medalha Dom Henrique de Sagres etc.).

Portanto, transitando os agentes por domínios diversos, suas posições devem ser

percebidas levando-se em conta suas atuações tanto nas instituições estatais quanto nas que

se pretendem estritamente “literárias” e independentes das relações de poder, assim como

suas respectivas formas de reconhecimentos e retribuições concedidas. Ou seja, a análise

das relações entre os agentes deve considerar também as instituições em que eles se

movimentam, principalmente em contextos como este em que a ação das obras sobre as

obras – do mercado linguístico que regula a produção “literária”, que também aqui se

exerce por intermédio dos autores – não atende apenas às pulsões estéticas delimitadas a

partir das posições que ocupam na estrutura de um microcosmo literário, mas submetem-se

a imposições e possibilidades estruturais que, embora também específicas e historicamente

situadas, configuram-se de forma mais complexa dadas as interpenetrações entre os

domínios de atuação dos agentes.

A análise da produção dos sentidos discursivos acerca dos “estilos literários”

prescinde ainda de uma investigação do sistema de desvios no qual estes são produzidos,

situados no espaço das obras contemporâneas. Esta etapa fundamental para a análise das

disposições dos agentes no espaço literário, exige, inelutavelmente, a “apreensão estrutural

do respectivo autor” que se apreende a partir das “relações objetivas que definem e

determinam sua posição no espaço de produção” (BOURDIEU, 2004, p.177-178).

Tal empreendimento pode ser realizado pela análise de fontes como entrevistas,

livros e prefácios de livros, artigos em jornais, textos biográficos etc. produzidos acerca

destes agentes, identificando-se assim alguns elementos que se destacam a partir do

trabalho de produção ideológica de suas vidas (Cf. BOURDIEU, 2005, p. 74-89) e

cruzando-os com as características mais distintivas entre seus perfis sociais. Isto nos

possibilitará a demonstração das relações existentes entre as condições sociais de ingresso

na carreira literária, a posição que ocupam no espaço literário maranhense pelos usos de

recursos sociais herdados ou adquiridos por novos investimentos (obtenção de títulos

escolares valorizados, experiências em outros estados ou no exterior, inserção em

movimentos culturais etc.) e a objetivação destas características em alguns fragmentos de

publicações, sob a forma de microanálises estilísticas. Em síntese, o que se pretende é por

Page 10: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 10

em prática a compreensão de que a estrutura interna das obras é também reflexo

da estrutura do espaço social no qual o próprio autor está situado.

Outrossim, os “estilos” e temáticas “literárias” em que investem acompanham a

expectativa de reconhecimento que possuem e os “estilos de vida” construídos pelo

trabalho de produção ideológica de suas “biografias” (BOURDIEU, 2005, p. 74-89). Neste

processo, a importação de referenciais oriundos de países mais “centrais” insere-se entre os

importantes recursos estrategicamente acionados por alguns dos “intelectuais” que

analisamos nas disputas que travam. A exemplo disso, não é mero acaso – tampouco

cinismo – a lista de autores enfatizada por Nauro Machado quando indagado acerca de suas

principais influências literárias. Figuram entre elas: Dostoiévski, Thomas Mann, Rimbaud,

Mallarmé, Bocage, Baudelaire etc. O domínio desses referenciais e a reivindicação de um

assemelhamento de suas “biografias” passa a ser utilizado como um trunfo relevante nas

disputas intelectuais, servindo-lhe também como um reparo à ausência de outros recursos

mais valorizados socialmente, tal como pudemos identificar com respeito à titulação

escolar de nível superior, a inserção em importantes redes de relações sociais ou a

experiência com movimentos culturais ou políticos em contextos de maior destaque

nacional. A guisa de exemplo, o trecho seguinte:

Minha poesia, posterior à daqueles anos iniciais, fez-se influenciar, sobretudo, por paradoxal que seja, pela leitura apaixonada dos grandes romancistas mundiais, como Dostoiévski, com sua angústia metafísica e dolorosa consciência do mal, e Thomas Mann, pelo seu incurso nos domínios sombrios da morte e da arte. Minha poesia, seus sonetos que o digam, foge por completo aos cânones daquela geração [refere-se à “geração de 45”], que reputo, contudo, importante pela expressividade de alguns nomes que a compõem [refere-se com frequência a Lucy Teixeira, José Chagas, e Ferreira Gullar]8.

Outra importante dimensão de análise se nos apresenta com respeito às

disposições incorporadas e a inserção em espaços de socialização diversos e os

condicionantes individuais das “razões de agir” dos agentes, ou seja, resta-nos a

problemática relativa aos alcances de um modelo analítico tipológico, evitando tomá-lo

como princípio homogeneizante para a análise da produção dos sentidos do estilo literário

no universo social a que nos detemos. Bernard Lahire referindo-se à relação dialética entre

unicidade e multiplicidade da subjetividade, presentes na articulação entre a perspectiva

estruturalista e fenomenológica, respectivamente, observa que é necessário “encontrar no

trabalho empírico os elementos de confirmação” (LAHIRE, 2002, p. 19), etapa sobre a

qual temos investido e cuja continuidade se dará na investigação dos apontamentos

Page 11: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 11

indicados neste artigo, a partir da análise de novos dados ainda por produzir

com entrevistas de longa duração centrando-nos em dimensões diversas – escola, trabalho,

família, sociabilidade, lazer, práticas culturais e os cuidados com o corpo (Cf. LAHIRE,

2004) – das trajetórias de dois casos exemplares no que tange às lógicas cruzadas de

atuação no espaço social elaborado. Por estes registros pretendemos concluir nossa

perspectiva de análise de uma dimensão mais geral, investigando os condicionantes sociais

de ingresso e atuação na carreira literária, a outra mais particular, centrada nos processos

8 Entrevista concedida a Ricardo Leão em maio de 2003 (Grifo nosso). Disponível em: http://litterofagia.blogspot.com/2009/12/entrevista-de-nauro-machado.html

BIBLIOGRAFIA CITADA

BOURDIEU, Pierre. Espaço social e poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas, São Paulo: Brasiliense, 2004.

_________________. A ilusão biográfica. In: Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: SP: Papirus, 2005.

_________________. A Economia das Trocas Lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1996.

CHARTIER, R. Escutar os mortos com os olhos. Revista Estudos Avançados, São Paulo, p. 7-30, 2010.

_________________. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Revista Estudos Históricos, vol. 7, n° 13, p. 97-113, 1994.

CORADINI, Odaci L. As missões da “cultura” e da “política”: confrontos e reconversões de elites culturais e políticas no Rio Grande do Sul (1920-1960). Rio de Janeiro: Revista Estudos Históricos, Porto Alegre, n° 32, p. 125-144, 2003.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1970._________________. Sobre a arqueologia das ciências: resposta ao círculo

epistemológico. In: Estruturalismo e teoria da linguagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1971 (p. 9-55).

GAY, Peter. O estilo na história. In: GIBBON, RANKE, MACAULAY, BURCKHARDT. Estilo na história. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989, p. 13-41.

GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. São Paulo: Paz e Terra, 1976.GRILL, Igor & REIS, Eliana T. Letrados e Votados: Lógicas cruzadas do

engajamento político no Brasil. In: Revista Tomo, n° 13, p. 127-168, 2008.GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 2006._________________. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mito,

emblemas e sinais, morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.HEINICH, Nathalie. A Sociologia da Arte. São Paulo: EDUSC, 2008.KONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007.

Page 12: Seguimos neste trabalho o princípio metodológico de que ... e...  · Web viewKONDER, Leandro. Sobre o amor. São Paulo: Boitempo, 2007. LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico

III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 12

individuais de internalização de tais condições objetivas. Ademais, “deslindar o

estilo é, pois, deslindar o homem” (GAY, 1990, p. 21).

LAHIRE, Bernard. Um dispositivo metodológico inédito. In: Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, p. 32-44, 2002.

_________________. O homem plural. Rio de Janeiro, 2004. LÖWY. Michael. Franz Kafka: sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue

Editorial, 2005.LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. Porto: Editorial Presença, s/d.NERIS, Wheriston S. As bases sociais de recrutamento da elite eclesiástica no

Bispado do Maranhão (1850-1900). Dissertação de mestrado defendida no PPGCS da UFMA, 2009.

NUNES, Patricia Maria Portela. Medicina, poder e produção intelectual: uma análise sociológica da medicina no Maranhão. São Luís: Edições UFMA/PROIN, 2000.

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

SIGAL, Silvia. Introdução: Intelectuales, cultura y política. In: SIGAL, Silvia. Intelectuales y poder em Argentina em la década del sesenta. Argentina: Siglo veintiuno de Argentina Editores, 2002 (p. 1-17).

SILVA, Franklin L. Intelectuais e política no Maranhão: Perfis sociais e posições no espaço literário maranhense (1945 - 1964). Monografia de graduação em Ciências Sociais defendida na Universidade Federal do Maranhão, 2010.

Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante: Anuário: São Luís, n° 3, 2005; n° 5, 2007; n° 6, 2008.