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Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 135 Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 29, n. 20, p. 135-157, 2007 A teoria psicanalítica no contexto do paradigma emergente – considerações introdutórias 1 The psychoanalysis theory in the emergent paradigm context Carlos Alberto Plastino 2 Resumo: Como toda teoria, a teoria psicanalítica é uma construção. E como toda construção utiliza as categorias gerais de pensamento vigentes no momento histórico de sua elaboração. Essas categorias gerais, no caso da teoria psicanalítica, foram os pressupostos centrais do Paradigma Moderno, pressupostos que, se de um lado permitiram organizar o pensamento, de outro o limitaram. A obra freudiana utilizou esses pressupostos, mas ao mesmo tempo, a partir da especificidade de sua "empíria" ( a prática clínica), manteve com eles uma relação de tensão e contestação, aprofundada com as transformações sofridas pela teoria psicanalítica. Assim, é possí- vel afirmar que se de um lado a aceitação dos pressupostos do paradigma moderno limitou a elaboração metapsicológica das descobertas clínicas, de outro sua progressiva contestação insere à psicanálise entre os saberes que, contestando dito Paradigma, fornecem elementos para a cons- trução do Paradigma emergente. Palavras–chave: paradigma moderno, clínica, transformações da teoria, paradigma emergente, teoria psicanalítica, Freud. Abstract: Psychoanalytic, as any other theory, is a construction. And as any construction, it resorts to the relevant general categories of thought of its time. In the case of psychoanalytic theory, those general categories were the central assumptions of modern paradigm. If, on the one hand, those assumptions allowed organizing thinking, on the other hand, they limited it. Freudian work used those assumptions, but at the same time - from the specificity of its "empiria" (the clinical practice) - it held with them a relationship woven with tension and dispute, further deepened by the transformation of psychoanalytic theory. So it can be asserted that, if the acceptance of modern paradigm's assumptions limited the metapsychological elaboration of clinical findings, the progressive dispute brings psychoanalysis amongst the knowledges which, disputing that paradigm, provide elements to the construction of the emergent one. Keywords: modern paradigm, clinic transformations of theory, emerging paradigm, psychoanalytic theory, Freud. 1. Neste trabalho discuto as relações da teoria psicanalítica com os pressupostos paradigmáticos na obra de S. Freud. Em um trabalho recente (Winnicott: a fidelidade da heterodoxia) abordo a questão sob a perspectiva das abordagens do psicanalista inglês. 2. Psicanalista, professor da PUC-Rio e do IMS da UERJ.

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A teoria psicanalítica no contexto do paradigma emergente

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Cad. Psicanal., CPRJ, Rio de Janeiro, ano 29, n. 20, p. 135-157, 2007

A teoria psicanalítica no contextodo paradigma emergente – considerações introdutórias1

The psychoanalysis theory in the emergent paradigm context

Carlos Alberto Plastino2

Resumo: Como toda teoria, a teoria psicanalítica é uma construção. E como toda construção utilizaas categorias gerais de pensamento vigentes no momento histórico de sua elaboração. Essascategorias gerais, no caso da teoria psicanalítica, foram os pressupostos centrais do ParadigmaModerno, pressupostos que, se de um lado permitiram organizar o pensamento, de outro olimitaram. A obra freudiana utilizou esses pressupostos, mas ao mesmo tempo, a partir daespecificidade de sua "empíria" ( a prática clínica), manteve com eles uma relação de tensão econtestação, aprofundada com as transformações sofridas pela teoria psicanalítica. Assim, é possí-vel afirmar que se de um lado a aceitação dos pressupostos do paradigma moderno limitou aelaboração metapsicológica das descobertas clínicas, de outro sua progressiva contestação insereà psicanálise entre os saberes que, contestando dito Paradigma, fornecem elementos para a cons-trução do Paradigma emergente.Palavras–chave: paradigma moderno, clínica, transformações da teoria, paradigma emergente,teoria psicanalítica, Freud.

Abstract: Psychoanalytic, as any other theory, is a construction. And as any construction, it resorts to therelevant general categories of thought of its time. In the case of psychoanalytic theory, those generalcategories were the central assumptions of modern paradigm. If, on the one hand, those assumptions allowedorganizing thinking, on the other hand, they limited it. Freudian work used those assumptions, but at thesame time - from the specificity of its "empiria" (the clinical practice) - it held with them a relationshipwoven with tension and dispute, further deepened by the transformation of psychoanalytic theory. So it canbe asserted that, if the acceptance of modern paradigm's assumptions limited the metapsychological elaborationof clinical findings, the progressive dispute brings psychoanalysis amongst the knowledges which, disputingthat paradigm, provide elements to the construction of the emergent one.Keywords: modern paradigm, clinic transformations of theory, emerging paradigm, psychoanalytictheory, Freud.

1. Neste trabalho discuto as relações da teoria psicanalítica com os pressupostos paradigmáticosna obra de S. Freud. Em um trabalho recente (Winnicott: a fidelidade da heterodoxia) abordo aquestão sob a perspectiva das abordagens do psicanalista inglês.

2. Psicanalista, professor da PUC-Rio e do IMS da UERJ.

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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A teoria psicanalítica, como toda teoria, é uma construção. Constru-ção erigida a partir de uma experiência singular, uma prática intersubjetiva.Entretanto a teoria não é a simples transposição da experiência. A cons-trução teórica exige uma série de concepções gerais – sobre o ser, o ho-mem e o conhecimento – que no seu conjunto constituem o contextoparadigmático. Essas concepções gerais, todavia, também constituem umproduto da criatividade humana, estando portanto sujeitas a crítica e trans-formação, por vezes radical. Nesse sentido, é possível afirmar que a vita-lidade de uma teoria é indissociável de sua capacidade de confrontar acrítica de seus conceitos fundamentais e, na permanente reiteração dasexperiências que presidiram sua formulação, renovar-se e aprofundar-se. Interrogar-se sobre a pertinência dos conceitos que constituem a teo-ria psicanalítica constitui assim não apenas uma tarefa legítima. É tam-bém um empreendimento necessário. Esta discussão, todavia, será maisfecunda e profunda se for acompanhada pela discussão de suas referên-cias paradigmáticas e da singularidade da experiência que a sustenta. Esteprocedimento, creio, permite a ampliação e aprofundamento do proces-so crítico, na medida em que, ao interrogarmos as transformaçõesverificadas no terreno mais amplo das ciências e saberes, estaremos ado-tando uma dinâmica imprescindível para a conservação da criatividadeno processo de formulação teórica da psicanálise. O próprio Freud (1926)nos convida a esta empreitada: “Estamos apenas no início. Eu sou apenasum iniciador – afirma –, consegui desencavar monumentos soterradosnos substratos da alma. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outrospoderão descobrir continentes.”

Como foi afirmado acima, toda construção teórica requer, no seuponto de partida, a aplicação de certas idéias abstratas, recolhidas de al-guma parte, e não apenas da própria experiência (Freud, 1914/1986: 113).Também foi dito que na elaboração da teoria psicanalítica essas idéiasforam tomadas dos pressupostos fundamentais estabelecidos peloparadigma moderno sobre a natureza da realidade, do processo de co-nhecimento e do próprio homem. Considerar o papel destes pressupos-tos e de sua historicidade é fundamental. Com efeito, todo paradigmapermite ordenar os processos de conhecimento – tornando-os possíveis –, mas ao mesmo tempo os limita, demarcando o território do que é pos-sível pensar. Assim, o paradigma da modernidade, se de um lado forne-ceu o instrumental teórico para a elaboração inicial dos conceitos funda-mentais da teoria psicanalítica, de outro impôs severos limites à teorizaçãodas revolucionárias descobertas freudianas. Os impasses progressivamente

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verificados por Freud na elaboração de suas duas primeiras síntesesmetapsicológicas constituem a expressão desses limites, enquanto que asuperação desses impasses na terceira síntese metapsicológica caracterizauma crítica profunda aos pressupostos centrais do paradigma damodernidade. Estabeleceu-se assim uma dupla relação entre a teoriapsicanalítica e estes pressupostos: no primeiro período estes funciona-ram como uma camisa-de-força para a teorização das descobertas freu-dianas, enquanto que posteriormente, sob o impacto de novas descober-tas, a teoria rompe com esses pressupostos, somando-se ao amplo movi-mento de contestação ao paradigma moderno.

Interrogar-se sobre a teoria freudiana e sobre seus conceitos funda-mentais hoje supõe então pensá-los à luz das profundas transformaçõesoperadas, no decorrer do século XX, sobre essas concepções básicas elabo-radas pelo paradigma da modernidade, transformações nas quais as pró-prias descobertas de Freud constituem um capítulo fundamental. As críti-cas formuladas ao paradigma moderno foram múltiplas, atingindo em seuconjunto as concepções centrais elaboradas para pensar o real e o conheci-mento. Convém então, para iniciar nossas reflexões, sintetizar sumaria-mente os pressupostos centrais do paradigma moderno. Sendo prévios aotrabalho de conhecimento e não resultado deste, ditos pressupostos consti-tuem afirmações de ordem metafísica, tendo sido a crítica da metafísica acritica fundamental dirigida a esse paradigma. O alcance da crítica àmetafísica, contudo, só pode ser adequadamente compreendida quandoinserida numa perspectiva capaz de elucidar o processo histórico de cons-trução do paradigma moderno. Com efeito, todo paradigma é um produ-to da história. Ele exprime uma intencionalidade que, no caso do Paradigmamoderno, caracteriza um movimento prometéico de domínio sobre a na-tureza, sustentado na pretensa possibilidade de apreender, através da ciên-cia, a totalidade das leis de determinação do real. A condição de possibilida-de deste projeto, como é obvio, pressupõe um real caracterizado por umaorganização lógico-racional e em conseqüência redutível a leis rigorosas dedeterminação. O real foi assim pensado como possuindo uma essênciaimutável e pré-existente à atividade do conhecimento, que por sua vez foidefinida como a atividade racional de um sujeito – ele próprio definidoexclusivamente pela sua racionalidade – separado de seu objeto, que ob-serva a partir de uma posição de afastamento e neutralidade. Essa concep-ção ontológica exclui a categoria de historicidade no sentido forte do ter-mo, isto é, a possibilidade de emergência do novo como criação genuína.Na dinâmica própria da perspectiva essencialista, com efeito, as transfor-

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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mações do real não caracterizam criação, mas apenas desdobramentos notempo do que já estava contido nas leis que o determinam.

Organizado em torno de uma concepção dualista centrada na racio-nalidade do objeto e do sujeito, o paradigma moderno afirmou a idéia daciência – única modalidade de conhecimento admitida – como expressãoda verdade eterna do real, constituindo assim um modelo reducionista eexcludente. A concepção essencialista antecede de longa data à formula-ção do Paradigma Moderno, tendo sua origem na adoção da concepçãodo ser contra a do devir no pensamento grego. Na modernidade, contu-do, a perspectiva essencialista se formalizou, adquirindo expressão mate-mática. O determinismo passou então a exprimir-se nas leis causais des-cobertas pela ciência, da qual a física newtoniana constituiu o modelo.Assim, na modernidade, o essencialismo foi pensado a partir do alicerceque sustentou a construção do paradigma moderno: a separação do ho-mem com relação à natureza3. É importante frisar que esta separação nãofoi o resultado de novas descobertas, tornadas possíveis por uma melhorobservação da natureza, mas a conseqüência de uma nova atitude, im-pulsionada pelo referido objetivo de domínio e manipulação que caracte-riza o empreendimento da modernidade. Essa cisão fundadora susten-tou outros dualismos: do sujeito e do objeto no ato de conhecimento; docorpo e do psiquismo – reduzido à consciência – na concepção do ho-mem, da natureza e da cultura na concepção da vida. Sendo assim, acrítica ao essencialismo não pode ser separada da crítica desses dualismosque, tanto quanto ele, caracterizam pressupostos.

No espaço deste artigo a consideração de um tema tão amplo nãopoderá ir além do balizamento de suas questões fundamentais4. As óbvi-as limitações de uma abordagem sumária, entretanto, são compensadaspelos benefícios decorrentes da elaboração de uma perspectiva global, a

3. A caracterização, mesmo sumária, do paradigma da modernidade não poderá ser feita nestetrabalho. O leitor interessado pode consultar, entre outras obras, os trabalhos de: Boaventura deSousa Santos, A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, Cortez Editora, SãoPaulo, 2000; Edgard Morin, o conjunto da obra a partir do Le paradigme perdu: la nature humaine,Editions du Seuil, Paris, 1973; Cornelius Castoriadis, A instituição imaginária da sociedade, Paz eTerra, Rio de Janeiro, 1975 e os volumes sobre as Encruzilhadas do labirinto; e Francisco Varela, Decuerpo presente, Gedisa editora, Barcelona 1992.

4. Discuto o tema com maior profundidade em dois trabalhos recentes. “Sentido e complexidade”,in Corpo, afeto e linguagem: a questão do sentido hoje, Coordenação Benilton Bezerra e CarlosPlastino, Editora Contra-capa, Rio de Janeiro, 2001, e O primado da afetividade. Freud e a críticado paradigma da modernidade, Editora Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 2001.

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partir da qual os temas específicos poderão ser discutidos sem o ônusque caracteriza as perspectivas parciais5.

Os pressupostos dualistas que organizam o paradigma damodernidade – como lembra Edgard Morin (2000) – isolam os termosque os compõem ao invés de distingui-los e os separam ao invés de uni-los. Constrói como conseqüência uma compreensão simplificada ondeas relações possíveis entre os termos de cada dualismo oscilam entre osextremos da redução e da disjunção. Pela primeira, os segundos termossão reduzidos aos primeiros, aos quais é atribuída a capacidade dedeterminá-los. Dessa maneira, o psiquismo é pensado como sendoredutível em última instância às forças que atuam no corpo – ele própriopensado como uma máquina determinada –, a cultura é concebida comodeterminada pela natureza e o conhecimento como ordenado pelas ca-racterísticas intrínsecas do objeto que assim se impõem ao sujeito. Estereducionismo, como é evidente, é inseparável do pressuposto que conce-be o real como possuindo uma essência inteiramente organizada por leisde determinação lógico-racionais.

Os resultados das próprias ciências, organizadas pelo paradigmamoderno de um lado e a crítica da teoria representacional da linguagemde outro, tornaram evidente a impertinência desse pressuposto. Entre-tanto, como foi assinalado, a crítica do essencialismo, isolada da crítica deoutros aspectos centrais do paradigma da modernidade, é incapaz de ul-trapassar a perspectiva dualista desse paradigma, mantendo o isolamentodos termos de cada um deles. Desse modo, a cultura passou a ser pensadacomo desvinculada da natureza e o psiquismo como sendo, exclusivamente,produto da cultura. Esta perspectiva, então, substituiu o simplismo daredução pelo simplismo da disjunção, caracterizando desse modo umacrítica apenas interna ao paradigma ao invés de uma crítica ao próprioparadigma e a seus pressupostos fundamentais. No campo específico dateoria psicanalítica, a crítica pertinente, porém parcial e isolada do essen-cialismo da modernidade e da concepção representacional da ciência eda linguagem, levou a pensar o psiquismo como produto exclusivo dacultura, abandonando concepções centrais da última metapsicologiafreudiana, em particular no que se refere às relações entre o corpo e o

5. Com efeito, a crítica do essencialismo, isolada da crítica do contexto no qual ele foi formulado,conserva a camisa-de-força imposta pelo paradigma moderno à compreensão do ser e doconhecer, mantendo o pensamento prisioneiro desse paradigma e de sua intencionalidade,exacerbando sua perspectiva prometéica e onipotente.

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psiquismo, à complexidade das formas de apreensão do real e ao primadoda afetividade.

A crítica do paradigma da modernidade e dos dualismos que o orga-nizam não foi realizada a partir da substituição de seus pressupostos fun-damentais, num processo no qual a mudança das premissas permitisseorganizar outro sistema de pensamento. A elaboração do paradigma emer-gente – ainda em curso – procede, pelo contrário, pela articulação de ummultifacetado processo de experiências de conhecimento. Não constituientão um sistema simples, mas elabora uma perspectiva complexa nãoisenta de paradoxos6. É, pois, a articulação de experiências de conhecimen-to que tornaram insustentáveis os pressupostos ontológicos, epistemológicose antropológicos da modernidade. Na perspectiva aberta por essas experi-ências, o real não é mais pensado como possuindo uma essência pré-exis-tente ao ato de conhecê-lo nem como totalmente carente de organização. Àsimplicidade da metáfora da máquina – através da qual a modernidadepretendeu representar a essência do real – o paradigma emergente opõe acompreensão de um real complexo e heterogêneo, constituído por múlti-plas formas de ser, um real relacional e autopoiético em permanente pro-cesso de transformação.

O processo de conhecimento, por sua vez, não é mais concebido ex-clusivamente como sendo o ato de um sujeito consciente e racional, sepa-rado de seu objeto e capaz de apreendê-lo com isenção. Também esteprocesso é pensado na sua complexidade, afirmando-se de um lado aparticipação do ato de conhecimento na constituição do real e, de outro,a multiplicidade das modalidades de apreensão, incorporando a capaci-dade de apreender do homem considerado na sua complexa totalidade,isto é, com seu corpo e com seu inconsciente.

A perspectiva do paradigma emergente ultrapassa assim a definiçãoantropológica reducionista forjada pela modernidade. Longe de ser pen-sado segundo o modelo da máquina, o homem é pensado como a unidadecomplexa de corpo e psiquismo, inconsciente e consciente, natural e histó-rico. Capaz de ordenar o real pela linguagem e também capaz de apreendê-lo inconscientemente, através de seu corpo e dos afetos. Capaz, então, deprocessos lógicos de ordenação/criação do real, e capaz também da apre-ensão magmática, inconsciente e não mediada do real7. Esta perspectiva

6. Convém lembrar que na perspectiva do paradigma da complexidade o paradoxo não representaum erro da razão, caracterizando, pelo contrário, a expressão dos limites desta para apreender acomplexidade do real.

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complexa sobre o homem, que integra o paradigma emergente, é larga-mente tributária das descobertas realizadas pela psicanálise, entendida –com Freud – como “psicologia da profundidade”.

Rejeitando a concepção essencialista do real, o paradigma emergen-te não o pensa entretanto como puro caos. Concebendo o real como umtodo heterogêneo e complexo em permanente fluir, lhe atribui uma for-ma magmática de ser, não redutível à lógica racional mas nem por issoprivado de toda e qualquer organização. A heterogeneidade e complexi-dade do real é indissociável da heterogeneidade e complexidade dos pro-cessos de conhecimento, reconhecendo, ao lado do conhecimento cau-sal, o conhecimento compreensivo8. A crítica à concepção essencialista ehomogênea do real se faz assim indissociável da crítica epistemológica, asduas conduzindo por sua vez à crítica da concepção reducionista do ho-mem elaborada pelo paradigma moderno. Esta indissociabilidade daquestão ontológica, epistemológica e antropológica é bem indicada porBoaventura de Sousa Santos quando escreve:

Depois da euforia cientificista do século XIX e da conseqüente aversão à refle-xão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do séculoXX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conheci-mento das coisas com o conhecimento do nosso conhecimento das coisas, istoé, com o conhecimento de nós próprios (De Souza Santos, 2000: 71).

Para este conhecimento de nosso conhecimento, ou seja, de nós pró-prios, como se verá, a contribuição da psicanálise freudiana é essencial, àcondição que ela não seja esvaziada por uma leitura ainda presa à camisade força do paradigma da modernidade.

Organizado a partir de experiências plurais de conhecimento, oparadigma emergente se afasta tanto da concepção de um sistema alicerçadoem pressupostos metafísicos, quanto da concepção que rejeita a possibili-dade de qualquer forma de acesso ao conhecimento do real. Rejeitandoambos os extremos, pensa a construção do conhecimento como sendo oresultado de um processo circular, num infindável movimento entre ascategorias mais gerais e as experiências parciais de conhecimento, em que

7. Para a concepção do magma e de suas modalidades de apreensão a obra de Cornelius Castoriadisé fundamental. Discuto essa questão amplamente nos meus trabalhos citados na nota númerodois.

8. Ver, sobre a heterogeneidade dos processos de conhecimento e sobre a categoria de elucidaçãocomo diferente da categoria de explicação, a obra de Cornelius Castoriadis, particularmente seutrabalho “Ciência moderna e interrogação filosófica”, in As encruzilhadas do labirinto 1. Editora Paze Terra, Rio de Janeiro, 1987.

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a eficiência operatória funciona como elemento de avaliação e crítica dascategorias gerais. Este processo circular permite assim estabelecer concep-ções – sempre provisórias e plurais – referidas ao real, ao conhecimento eao homem, permitindo a elaboração de uma ontologia, uma epistemologiae uma antropologia radicalmente diferentes, pelo processo de sua produ-ção, da ontologia e da epistemologia elaboradas pela metafísica.

Com efeito, a crítica global dos pressupostos do paradigma da moder-nidade desautoriza a concepção da ciência como expressão da verdade doreal, como acreditava a modernidade. Sabemos hoje que nossas ciências esaberes lidam com fenômenos, nos permitindo apenas apreender aspectosda manifestação do real e de suas transformações. Mas isto não significa quetodo e qualquer conhecimento seja impossível. A eficiência – relativa poréminquestionável – de nossos conhecimentos nos obrigam a afastar esta con-cepção. Somos então capazes de conhecimentos, parciais e provisórios certa-mente, que constituem a apreensão de aspectos do real.

Neste ponto, e para concluir estas considerações introdutórias, é con-veniente lembrar a reflexão com a qual Will Durant (1996) abre sua A histó-ria da filosofia:

O autor acredita – escreve – que a epistemologia raptou a filosofia modernae quase a arruinou; tem esperanças de que cheguará o momento em que oestudo do processo de conhecimento seja reconhecido como tarefa da ci-ência da psicologia, e em que a filosofia voltará a ser compreendida comoa interpretação sintética de toda a experiência, e não como a descrição ana-lítica do modo e do processo da própria experiência. A análise pertence àciência e nos dá o conhecimento; a filosofia deve oferecer uma síntese para asabedoria. (Durant, 1996: página)9

9. Na medida que se arroga a capacidade de decidir sobre a complexa questão epistemológica –perspectiva criticada por Duran –, reconhecendo apenas o conhecimento operado através daconsciência, a filosofia analítica se erige em tribunal da psicanálise, esvaziando-a de suas descobertasfundamentais. Na perspectiva defendida por Durand, a filosofia deve integrar a experiênciapsicanalítica, e não vetá-la, como faz quando se atribui a faculdade de estatuir sobre a validade dasexperiências de conhecimento.A possibilidade de construir uma ontologia e uma epistemologia não é sustentável no sentido quelhe outorgou a modernidade, isto é, no sentido de pressupostos metafísicos. Entretanto, construiruma ontologia e uma epistemologia – sempre provisórias, convém insistir – como síntese dasplurais experiências de conhecimento não é apenas possível, mas é também necessário. Por outraparte, implícita ou explicitamente as concepções ontológicas e epistemológicas sempre existem.Quando negadas, todavia, tornam-se perniciosas, obstaculizando a imprescindível e infindáveltarefa da crítica.

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Uma camisa-de-força resistente

A elucidação do modo de ser do psiquismo inconsciente, desenvol-vida por Freud desde A interpretação dos sonhos (1900), caracteriza umafrontal contestação dos pressupostos ontológicos e epistemológicos doParadigma Moderno. Com efeito, a originalidade do empreendimentofreudiano reside não tanto na afirmação da existência do inconsciente –postulada antes de Freud –, mas na descoberta da forma de ser específicado psiquismo inconsciente e de suas também específicas modalidades deapreensão. Essa forma de ser, estudada através do conceito de “processoprimário”, elucida um aspecto do real que, carecendo das formas de or-ganização próprias da lógica identitária, possui no entanto um sentido,não podendo assim ser confundido com o puro caos (Freud, ano de pu-blicação original 1900/1986).

Afirmando a existência de uma forma de ser que não pode confun-dir-se com a realidade material (Freud, 1900/1986: 607) nem possui asqualidades da organização lógica, e fazendo do psiquismo inconsciente opsiquismo genuíno, a descoberta freudiana derruba o pressuposto mo-derno segundo o qual o real era considerado como homogêneo e inteira-mente subordinado as leis rigorosas de determinação. Assim, desde suaorigem, as descobertas operadas pela psicanálise ultrapassam os limitesdo que era possível pensar, ao interior da concepção ontológica e episte-mológica elaborada pelo Paradigma da Modernidade.

Entretanto, como afirmava Einsten, é mais fácil desintegrar o átomoque um preconceito. Esta afirmação é particularmente pertinente no quetange aos preconceitos que, na sua qualidade de pressupostos, organi-zam – e limitam – a maneira de pensar o real e o conhecimento, isto é, aospressupostos paradigmáticos. Com efeito, o peso dos pressupostos ela-borados pelo paradigma da modernidade se manifestou de maneira no-tória desde as primeiras elaborações teóricas da descoberta freudiana.Constituindo uma camisa-de-força, esses pressupostos foram responsá-veis por importantes impasses na construção da metapsicologia freudiana,tendo sido sua superação o resultado de um trabalhoso – e não concluído– processo desenvolvido ao longo de décadas de reelaboração teórica10.

10.A concepção da “realidade psíquica”, a que nos referimos acima, ilustra bem o peso dessespressupostos. Com efeito, embora a afirmação da realidade psíquica inconsciente e de sua formaespecífica de ser constituísse o cerne de sua descoberta, Freud pagou por muito tempo tributoao pressuposto materialista, sustentando como “hipótese de fundo” a determinação em últimainstância material dos fenômenos psíquicos. Este postulado caracterizava bem uma crença, na

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Situações-limite na experiência psicanalítica

Cadernos de Psicanálise, CPRJ144

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A metapsicologia, como se sabe, constitui a estrutura metapsicológicada psicanálise. Na sua elaboração Freud não apenas utilizou conceitoselaborados em outras áreas do conhecimento, mas também as categoriascentrais do Paradigma no interior do qual ditas áreas de conhecimentotinham sido elaboradas, limitando assim a capacidade de pensar – noregistro metapsicológico – a riqueza contida nas suas descobertas clíni-cas. A superação desses pressupostos, por sua vez, impulsionada por no-vas descobertas clínicas, determinou a radical transformação operada pelaterceira síntese metapsicológica, desenvolvida após a denominada “vira-da dos anos vinte”. A condição de possibilidade desta virada foi dada peladecisão de Freud de outorgar à experiência clínica o lugar central na hie-rarquia epistemológica da psicanálise, levando-o em conseqüência a con-ceber suas elaborações metapsicológicas como superestruturas provisó-rias, permanentemente suscetíveis de modificação. Foi esta opção funda-mental, creio, que nutriu a sua denominada “aversão” pela filosofia, ati-tude através da qual Freud rejeitava uma forma de construção teóricaorganizada a partir de princípios abstratos, insistindo na primazia da ex-periência psicanalítica como fonte de elaboração do saber psicanalítico.

Esta hierarquização operada por Freud no processo de elaboração dapsicanálise pode ser constatada acompanhando as vicissitudes das trans-formações da teoria, sendo possível assim verificar, nas mudanças opera-das na metapsicologia, o rompimento com os pressupostos fundamentaisdo paradigma moderno, com os dualismos acima resenhados e suas con-seqüências. A ignorância desta questão fundamental impede compreen-der a radical originalidade da última metapsicologia freudiana, levando apensar a segunda tópica, a segunda teoria pulsional e a segunda teoriasobre a angústia nos contextos das primeiras teorizações. As diferençassão, contudo, radicais, fazendo da última metapsicologia freudiana umapeça importante na crítica dos pressupostos do paradigma moderno e naelaboração do paradigma emergente.

Não cabe neste artigo desenvolver a análise detalhada da incidênciados pressupostos paradigmáticos da modernidade sobre as primeiras ela-borações metapsicológicas freudianas. Todavia, no intuito de facilitar a com-

medida em que na construção de seu saber Freud operava como se “apenas o psicológicoestivesse em exame”, como escreve na sua correspondência para Fliess. Será, com efeito,apenas num de seus últimos trabalhos – “Esquema da psicanálise”– que Freud abandonará essacrença, afirmando a autonomia do saber sobre o psiquismo, reconhecendo ser este – tantoquanto as ciências como química ou a física – construções teóricas sobre aspectos diversos deuma realidade complexa.

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A teoria psicanalítica no contexto do paradigma emergente

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preensão da profunda significação das transformações operadas por Freudna sua última síntese metapsicológica, procederei a uma sumária recapitu-lação, acompanhando os três registros da metapsicologia freudiana. Orga-nizada sobre a concepção do psiquismo inconsciente como constituindo opsiquismo genuíno, e considerando a consciência como uma qualidadeque pode ou não acompanhar os processos inconscientes, a elaboração daprimeira tópica sofreu, entretanto, a influência do pressuposto paradigmá-tico que, sobre a base da separação do corpo e do psiquismo, pensava estea partir da consciência. Com efeito, a construção teórica do inconsciente,desenvolvida por Freud na A interpretação dos sonhos (1900), concebe aemergência do registro inconsciente a partir da degradação dos pensamen-tos organizados conforme o processo secundário (pensamentos latentes),degradação operada em virtude dos processos defensivos. Esta concepçãosobre a emergência do inconsciente, inspirada nos primeiros trabalhos deFreud sobre a origem das representações não-conscientes, estiveram nabase dos impasses – verificados nos artigos de 1914-15 – da teoria dorecalque. Os limites desta concepção sobre o inconsciente e sobre seu pro-cesso específico – o processo primário – tornaram-se no entanto progressi-vamente evidentes para Freud, levando-o a afirmar no seu artigo sobre “Oinconsciente” (1914) a precedência do inconsciente. “O sistemapreconsciente” – escreve – “nasce quando essa representação-coisa ésobreinvestida pelo seu enlace com a representação-palavra que lhecorresponde. Este movimento teórico de Freud é fundamental. Ele resultade sua convicção da necessidade de se emancipar da condição de conscien-te para poder progredir na compreensão metapsicológica da vida anímica.Esta necessidade se lhe impunha a partir da progressiva compreensão dacomplexidade do inconsciente, cujo conteúdo, reconhece, ultrapassa a exis-tência de desejos inconscientes, desenvolvendo uma ampla atividade queinclui “conhecimentos inconsciente, conexões entre conceitos, compara-ções entre objetos diversos” (Freud, 1914/1986, 151).

A reformulação do conceito de inconsciente, que culminara com asegunda tópica, acolhe assim a extrema complexidade do psiquismo. Deum lado a assimilação primeiramente estabelecida entre processo primárioe inconsciente e processo secundário e pré-consciente/consciente é derru-bada, admitindo-se a existência de processos inconscientes no sentido sis-temático e no entanto organizados conforme as regras do processo secun-dário. A formulação do conceito de ego inconsciente, na segunda tópica,permite pensar esta modalidade de ser do inconsciente. Essa modalidade,todavia, não esgota a forma de ser do inconsciente. Ela é precedida e acom-

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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panhada da forma de ser caracterizada pelo processo primário, que Freudpassará a considerar como sendo originária e não separável do corpo. Oconceito de Isso permitirá pensar este aspecto fundamental do psiquismo.

A modalidade de apreensão do real caracterizada pelo processo pri-mário não caracteriza a apreensão de uma ordem lógica anterior à lingua-gem. O processo primário, convém lembrar, não obedece às regras da lógi-ca. Ele lida com o real sob sua forma magmática, caracterizando uma for-ma de apreensão direta e não mediada. Assim, a representação-palavra nãopode ser entendida como uma tradução de uma ordem preexistente, sen-do, pelo contrário, uma forma de organização imposta ao real pela ativida-de criativa da linguagem. Esta atividade, contudo, não opera sobre umcaos absoluto, mas a partir de formas de apreensão do real que prescindemda consciência e da linguagem. Trata-se então de formas de apreensão dire-ta de formas de ser que, possuindo sentido, não se confundem com o caos.

O peso dos pressupostos fundamentais do paradigma moderno semanifestou ainda na primeira elaboração metapsicológica freudiana atra-vés da utilização da metáfora da máquina – metáfora maior damodernidade – para pensar o psiquismo e sua dinâmica. É esta metáfora,com efeito, que sustenta a compreensão do princípio de prazer, ao qual foiatribuído a regulação automática dos processos psíquicos.

Nas funções psíquicas – escreve Freud – convém distinguir algo – montantede afeto, soma de excitação que possui todas as propriedades de uma quan-tidade [...], algo que é suscetível de aumento, diminuição, deslocamento edescarga e se difunde pelos traços mnêmicos das representações como ofaria uma carga elétrica pela superfície dos corpos (1896/1986).

Desta concepção deriva a construção do princípio de prazer, sob cujoimpério “o aparelho anímico procura manter a mais baixa possível, ou aomenos constante, a quantidade de excitação presente nele.

A subordinação desta perspectiva à concepção maquínica da nature-za é evidente, sendo esse pressuposto do paradigma moderno responsá-vel pela compreensão reducionista do corpo, ao qual se reconhece apenasa condição de origem de uma força considerada exclusivamente nos seusaspectos quantitativos. A limitação desta abordagem quantitativa é, tam-bém ela, evidente. Não apenas porque, como advertiu Freud, o aumentoda excitação pode provocar prazer ao invés de desprazer, mas sobretudoporque esse critério nada permite concluir sobre o significado das sensa-ções de prazer e desprazer. Esta insuficiência se desdobra nos impassesprovocados pela concepção dos afetos nas primeiras síntesesmetapsicológicas, impasses tornados evidentes no capítulo III do artigo

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sobre “O inconsciente” (1914). Neste campo, como se sabe, Freud foi leva-do a dizer, após décadas de trabalho clínico e teórico, “não saber o que sãoos afetos” (Freud, 1926/1986).

Assim, introduzido desde os primeiros trabalhos de Freud sobre as neu-roses de transferência, o princípio de prazer permitiu organizar a compreen-são inicial sobre o psiquismo. Todavia, inspirado numa forma de ser diferen-te da forma de ser da realidade psíquica, mostrou progressivamente sua in-suficiência, levando Freud a postular a existência de algo que o antecede,alguma coisa que ele define como “sendo mais originária, mais elementar,mais pulsional que o princípio de prazer que ela destrona” (Freud, 1920/1986: 23)

Emerge assim, na metapsicologia freudiana, a segunda teoria pulsional,impulsionada pela constatação clínica da existência da “compulsão de repe-tição”. Rompendo com a concepção do corpo segundo o modelo da máqui-na, a segunda teoria pulsional concebe as pulsões como dotadas de qualida-de (Freud, ano de publicação 1923/1986; ano de publicação 1930/1986)modificando profundamente a compreensão do registro econômico, quepassa a ser pensado no contexto de primado da afetividade, insistentementeafirmado por Freud na sua terceira síntese metapsicológica. Na primeira sín-tese metapsicológica, como se sabe, a pulsão constitui um “conceito frontei-riço entre o anímico e o somático, um representante psíquico dos estímulosque provêm do corpo e atingem a alma, como uma exigência de trabalhoque é imposta ao anímico como conseqüência de sua articulação com o cor-poral” (Freud, ano de publicação 1914/1986: 117). Embora fundamental,esta concepção é ainda parcialmente tributária dos pressupostos do paradigmamoderno. Assim, a pulsão é pensada como pura quantidade, sendo a quali-dade atribuída com exclusividade ao campo da representação. É verdadeque esta concepção constitui um primeiro movimento de afastamento dodualismo cartesiano, mas também é evidente que, na medida em que pensao corpo segundo a metáfora da máquina, continua prisioneira dos pressu-postos paradigmáticos da modernidade. Essa camisa de força é contudo rom-pida pela formulação da segunda teoria pulsional, através da postulação dequalidades diferentes nas pulsões, que Freud passa a considerar como cons-tituindo “bloco de natureza na nossa constituição psíquica” (Freud, 1930/1986: 85). O conceito de pulsão reelaborada nos textos da virada, indissociáveisdo “primado da afetividade”, representa assim o afastamento do dualismomais básico e fundamental da concepção da modernidade: a separação doser humano da natureza e a natureza da Cultura.

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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Este movimento teórico é fundamental. Ao invés de pensar o ser con-forme a metáfora da máquina e no contexto do dualismo que separa e di-vorcia corpo e psiquismo, a psicanálise afirma a unidade de ambos, dis-tinguindo-os sem isolá-los. Harmonizando com a concepção que emergedas ciências contemporâneas, pensa a natureza como viva, autopoiética ecomplexa. Trata-se pois de uma profunda transformação da concepção sobreo ser, isto é, da concepção ontológica.

Embora caracterizando uma profunda transformação de suas concep-ções iniciais, a formulação da segunda teoria pulsional evidencia ainda opeso do paradigma moderno. Com efeito, definindo a pulsão “como umesforço, inerente ao organismo vivo, de reproduzir um estado anterior queo organismo vivo teve que abandonar sob a influência de forçasperturbadoras externas...um tipo de elasticidade orgânica ou, se se quer,a exteriorização da inércia na vida psíquica” (Freud, 1920/1986: 19) Freudpostula o caráter conservador de todas as pulsões. Adquiridas historica-mente e orientadas para a regressão, elas pugnariam sempre para resta-belecer um estado anterior. Aplicando à vida orgânica um princípiocomparável ao de entropia formulado pela física moderna, a naturezaconservadora das pulsões postulada por Freud está na origem de um notó-rio impasse na segunda teoria pulsional. Com efeito, se todas as pulsõespugnam por restabelecer um estado anterior, a existência da pulsão devida obriga a pensar que a vida constitui o estado inicial. A mesma coisadeve postular-se no entanto para a pulsão de morte, sendo necessário,portanto, afirmar que tanto a vida quanto a morte constituem o estadoinicial. Esta questão, creio, assinala um importante aspecto para o qualconvém dirigir os esforços da pesquisa e da reflexão psicanalítica.11

O processo de construção e reconstrução teórica seguido por Freudno caminho que inicia com a postulação do princípio de prazer e culmi-na com a formulação da segunda teoria pulsional e da ambivalência afetivaoriginária permite apreender a singularidade do trabalho teórico desen-volvido. Este trabalho começa postulando uma hipótese, considerada porele a mais geral, que sustenta a existência na vida anímica de duas moda-lidades de energia, uma ligada e outra móbil, livre e orientada à descarga.

11. É importante assinalar que na formulação da segunda teoria pulsional a reflexão freudiana permaneceprisioneira de algumas características fundamentais do paradigma moderno. Assim, a concepção das“pulsões elementares” como caracterizando um bloco de natureza não modificável relaciona-se auma concepção essencialista, sustentando uma perspectiva determinista da qual Freud faz derivarteses tão importantes como o caráter inevitável do mal-estar cultural. A crítica desse essencialismo ede suas conseqüências teóricas foge às possibilidades deste artigo. Indico, para o leitor interessado,meu artigo “Winnicott: a fidelidade da heterodoxia”, que será publicado em breve.

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A teoria psicanalítica no contexto do paradigma emergente

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Formulada esta hipótese, Freud a desenvolveu em três registros diferen-tes, constituindo três pares de opostos: princípio de prazer/princípio derealidade; processo primário/processo secundário e pulsão de morte/pulsão de vida. Embora referidos a processos diferentes, estes pares deopostos compartilham a idéia de ligação, e limite, ausente nos primeirostermos e presentes nos segundos. Limite imposto à descarga imediatapela ligação à realidade percebida no primeiro caso, limite e organizaçãodos processos de pensamento no segundo caso, limite imposto à pulsãode morte pela ligação erótica no terceiro caso.

No “Além do princípio de prazer”, Freud trabalha privilegiando aconsideração de par de opostos referidos aos processos de pensamento,afirmando que uma das mais importantes e precoces funções do aparelhoanímico é a de ligar as pulsões que a ele chegam, substituindo o processoprimário que nelas governa, pelo processo secundário (Freud, 1920/1986,60). Assim, a ligação da pulsão, que permitiria a entrada em funçõesdo princípio de prazer, é atribuída ao desenvolvimento do pensamentológico (processo secundário) e, portanto, à atividade da instância pré-cons-ciente/consciente. A insuficiência desta concepção é evidente, já que, se aatividade do pensamento racional é importante para controlar as forçaspulsionais após o estabelecimento da diferenciação das instâncias psíqui-cas, ela não pode ser postulada nos processos mais arcaicos, que são osque, pela ligação pulsional, tornariam possível a instalação do princípiode prazer. Essa insuficiência foi superada por Freud ao atribuir a ligaçãoda pulsão não mais aos processos de pensamento, como o fizera no “Alémdo princípio de prazer”, mas à ação de Eros (Freud, 1924/1986,65-6), pers-pectiva esta que, reconhecendo o primado da afetividade, lhe permite re-jeitar a concepção que punha o princípio de prazer ao serviço da pulsãode morte, fazendo dele o guardião da vida. Desta maneira, a hipótese ge-ral da ligação é deslocada do par de opostos, referidos aos processos depensamento, ao terceiro par de opostos, referido à afetividade.

No registro dinâmico, a teoria inicialmente sustentada por Freudevoca a maneira segundo a qual a modernidade pensou a relação entreindivíduo e sociedade. No contexto da primeira teoria pulsional, o confli-to psíquico é pensado opondo os impulsos do indivíduo às exigências dasociedade. Esta ótica foi radicalmente modificada pela introdução da se-gunda teoria pulsional e da ambivalência afetiva originária, na qual o con-flito é concebido como interno ao sujeito, sendo assim consideradoinerradicável. Não se trata, contudo, de uma concepção solipsista. A pers-pectiva de conjunto da terceira síntese metapsicológica articula um qua-

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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dro complexo, no qual a postulação do inconsciente originário e daambivalência afetiva, também originária, é indissociável da compreensãoda emergência do sujeito a partir do outro, no contexto de processosidentificatórios cuja modalidade mais radical é atribuída a formas de apre-ensão diretas e precoces, inteiramente processadas através da afetividade.As transformações operadas por Freud em todos os registros da metapsi-cologia são solidárias entre si. Embora nem sempre levadas a termo, to-das elas assinalam um movimento de ultrapassagem dos pressupostos damodernidade, fazendo emergir, na sua articulação, uma outra maneirade pensar o homem e de pensar as modalidades de apreensão do real.Nos registros tópico e econômico, a postulação do Isso como inconscien-te originário e da ambivalência afetiva também originária rompe com odualismo que divorcia o corpo do psiquismo, ultrapassando ainda a pers-pectiva quantitativa. Também o registro dinâmico é repensado no con-texto da nova teoria sobre os afetos, fazendo da ambivalência afetiva ori-ginária o cerne da compreensão dos conflitos psíquicos.

Considerada no seu conjunto, a formulação da terceira síntese tem,como condição de possibilidade, o reconhecimento da intuição como fontede conhecimento. Este movimento supõe a superação de outro dualismopostulado pela modernidade, dualismo através do qual o conhecimento épensado exclusivamente a partir da separação do sujeito e do objeto. Váli-da como estratégia de conhecimento no registro das ciências da matéria,esta concepção do processo de apreensão do real excluía as modalidadesde apreensão que, referidas a outras regiões do real, não são passíveis deexplicação, mas de compreensão.

A própria psicanálise, como experiência de conhecimento, constituiuma dessas modalidades de apreensão excluídas pelo paradigma damodernidade. Sua obra fundacional – A interpretação dos sonhos –, foi atri-buída por Freud a um “insight” (Freud, 1900/1976, 27) o mesmo aconte-cendo com a formulação da segunda teoria pulsional (Freud, 1923/1986,41). Também na constituição da subjetividade, na sua forma mais radical– a identificação primária –, a participação da intuição é decisiva. Comefeito, Freud atribui essa primeira identificação a um processo direto enão mediado (idem: 33), tornado possível pela existência de uma ligaçãoafetiva (Freud, 1921/1986, 99). No terreno da clínica o exercício da aten-ção flutuante supõe ainda, inequivocamente, a atividade da intuição.Adotando essa atitude, escreve Freud, o analista se entrega “a sua própriaatividade mental inconsciente, evitando no possível a reflexão e a forma-ção de expectativas conscientes, não pretendendo registrar particularmente

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na sua memória nada do ouvido. Assim, captura o inconsciente do pacien-te com seu próprio inconsciente” (Freud, 1922/1986, 235).

Coerente com sua prática e com a teorização que desenvolve sobreela, Freud critica a superestimação do “caráter consciente da produçãointelectual e artística” (Freud,1900/1986, 601), atribuindo o saber dos po-etas a capacidade que eles possuem de recolher “do turbilhão de seuspróprios sentimentos as inteleções mais profundas” (Freud, 1930/1986,8-9). De maneira geral, reconhece na empatia o papel principal na com-preensão do ego das outras pessoas (Freud, 1921/1986, 102). A apreensãodireta e não mediada é ainda inequivocamente sustentada por Freud,afirmando a existência da comunicação entre inconscientes (Freud, 1914/1986, 191).

Assim, constituindo uma peça central do processo de elaboração dateoria psicanalítica e de seus principais conceitos, o reconhecimento dopapel da “bruxa metapsicológica” no contexto da terceira síntese, caracte-riza não propriamente uma novidade, mas a teorização, no registro dametapsicologia, de uma experiência desenvolvida durante décadas de tra-balho teórico e clínico.

A afirmação da existência de modalidades de apreensão diferentes daspostuladas – com exclusividade – pelo paradigma da modernidade é assimcentral não apenas para a compreensão da teoria freudiana. Ela é impor-tante também para avaliar a crítica que esta teoria representa – na suaúltima formulação – com relação àquele paradigma. Assim, se para amodernidade a produção/apreensão de sentido requeria sempre media-ção da consciência e da linguagem, para a experiência psicanalítica a apre-ensão do real se processa através de processos diversos, nos quais devereconhecer-se a decisiva participação do corpo, dos afetos e do inconsci-ente. Esta crítica radical da perspectiva epistemológica da modernidade,como se viu, é indissociável da crítica dos pressupostos que organizamesse paradigma e de seus dualismos constitutivos.

Impensáveis no contexto de uma compreensão dualista do corpo edo psiquismo e da concepção da natureza como máquina, essas modali-dades de apreensão harmonizam com uma concepção não dualista e coma compreensão da natureza como um organismo vivo, capaz de auto-poiesis. A influência do paradigma moderno neste ponto, contudo, é ain-da tão forte que a aceitação da crítica do dualismo permanece muitasvezes infecunda, bloqueando a compreensão da complexidade dos pro-cessos de conhecimento e apreensão. Mantém-se assim a perspectivareducionista, ignorando as experiências desenvolvidas tanto pela psica-

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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nálise quanto por outras práticas desenvolvidas fora das margens estrei-tas permitidas pelo paradigma moderno.

A recepção destas experiências impõe, contudo, uma profunda trans-formação das concepções ontológicas e epistemológicas forjadas pelamodernidade. Do ponto de vista ontológico, o real passa a ser pensadocomo fluxo, abandonando-se a perspectiva que o pensa como um todoracionalmente ordenado, sem no entanto passar a considerá-lo como umpuro caos. Concebendo nele alguma forma de organização, esse magma éapreendido pela mediação do corpo, dos afetos, num processo inconsci-ente, porém não menos real e eficiente. Não se trata, contudo, de um co-nhecimento claro e distinto, capaz de estabelecer rigorosamente relaçõesde causalidade. A compreensão que ele permite é a de um sentido dife-rente da significação intelectual, não sendo, em conseqüência, uma formade apreensão da ordem do entendimento. Este, com efeito, percebe umaexperiência sob uma idéia, enquanto que a compreensão direta opera semmediações, constituindo uma compreensão erótica ligando os corpos e osinconscientes (Merleau-Ponty, apud Coelho, 183).

A existência destas modalidades do ser e do conhecer, tal como elasemergem da experiência psicanalítica, exigem, para serem pensadas, in-corporar a perspectiva da complexidade. Assim, se de um lado é precisoreconhecer que não existe uma organização em si do dado que se impõeabsolutamente, de outro a própria experiência científica impede de pen-sar o real como constituindo um caos amorfo, desprovido de qualquerorganização própria e no entanto dotado da surpreendente propriedadede prestar-se a qualquer organização que a teoria decidisse impor-lhe. Foradas estreitas margens estabelecidas pelos dualismos modernos, a compre-ensão erótica permite um acesso direto a esse real, sem que, no entanto,seja possível separar inteiramente e desligar rigorosamente o que nessaapreensão se origina no sujeito e o que pertence ao real em si (Castoriadis,1987: 181 e segs.).

Abandonado o reducionismo da modernidade, sua estreita concep-ção sobre o conhecimento e sua compreensão maquínica da natureza, épossível pensar que os afetos, sentimentos e emoções possuem um sentidoindependentemente da linguagem que os nomeia, Nesta ótica, que é a doparadigma emergente, a afirmação segundo a qual o sentido só advém aossentimentos quando eles são nomeados para a consciência, constitui umperspectiva inequivocamente reducionista.

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Pensar o inconsciente no século XXI

Pensar o inconsciente neste começo de século exige, a meu ver, situar nos-sa reflexão no contexto do multifacetado movimento de crítica, acima rese-nhado, aos pressupostos do paradigma da modernidade. A própria teoriapsicanalítica constitui, como se viu, um segmento importante desta crítica,na medida em que a reelaboração de seus conceitos fundamentais na últi-ma síntese metapsicológica supõe uma implícita porém inequívoca críticadaqueles pressupostos.Não se trata, entretanto, de manter intocado o legado freudiano, proceden-do a um infindável exercício de repetição de seus textos fundamentais.Trata-se, pelo contrário, de reafirmar a singularidade da experiência psi-canalítica enquanto experiência de conhecimento, reconhecendo nela ofulcro do permanente processo de reelaboração de nossos conhecimentossobre o inconsciente e seus processos.A continuação deste processo supõe afastar duas atitudes, antagônicas entresi, mas igualmente esterilizantes. A primeira consiste na repetição acríticados textos freudianos, atitude que esvazia a experiência psicanalítica comofonte permanente de descobertas e reformulações teóricas. A segunda con-siste em “interpretar” os conceitos freudianos numa perspectiva que oucontinua a sustentar os pressupostos fundamentais do paradigma moder-no, ou acolhe apenas uma crítica parcial e insuficiente desses pressupos-tos.A inserção da reflexão sobre a teoria psicanalítica no contexto da transfor-mação paradigmática permite recuperar para a psicanálise sua relevânciacomo parte fundamental na concepção do paradigma emergente, na medi-da em que o saber sobre o homem que ela produz constitui uma peçafundamental do movimento contemporâneo que busca, segundo a expres-são já citada de Boaventura de Sousa Santos, completar o conhecimentodas coisas com o conhecimento do nosso conhecimento das coisas, isto é,com o conhecimento de nós próprios.Este conhecimento de nós próprios permite a emergência de uma novaconcepção do humanismo, ultrapassando o monopólio da razão sobre opensamento e a atitude unilateral que, separando o homem da natureza,fez dele um predador desta, nela incluída a própria natureza do homem.Após as “feridas narcísicas” às quais se refere Freud (1917,1986 125 esegs.), o humanismo já não poderá ser portador da orgulhosa vontade dedominar o Universo, passando a ser definido, essencialmente, pela

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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12. Desenvolvo este tema no meu artigo “Sentido e complexidade”, in Corpo, afeto e linguagem: aquestão do sentido hoje. Contra capa editora, Rio de Janeiro, 2001.

solidaridade entre os homens, o que implica uma relação umbilical com anatureza e com o cosmos (Morin, 2000, 129)Este novo humanismo supõe então a ultrapassagem da cisão introduzidapela modernidade entre o ser humano e a natureza (Morin, 2000), cisãoque isola ao invés de distinguir e separa ao invés de unir, construindo umacompreensão simplificada das relações de homem com a natureza. Trata-se de uma questão fundamental. Com efeito, o empreendimento damodernidade foi construído, como se sabe, sobre um imaginário que colo-cava o homem fora da natureza, enfrentando-a como seu senhor edominador. A crítica desta concepção tornou-se hoje inadiável, não apenasporque ela é insustentável à luz das ciências e saberes contemporâneos,mas também porque é inquestionável a dinâmica destrutiva que ela en-gendra.Trata-se, assim, de uma crítica fundamental que não pode se desenvolverao interior do imaginário social dominado pelos valores da modernidade,incluindo o antropocentrismo. O pensamento complexo, como foi dito aci-ma, distingue sem separar. Distingue nossa diferença com relação à natu-reza, porém não nos separa dela, nem nos coloca fora dela e frente a ela.Permite, assim, pensar outra forma de relacionamento que não se reduza àobediência às leis naturais nem à atitude irresponsável de considerar queelas não existem. À luz dos resultados das ciências e saberes contemporâ-neos, não podemos pensar o homem divorciando-o da natureza (disjunção),nem integrando-o completamente nela (redução). O pensamento da com-plexidade substitui estas duas alternativas do paradigma moderno, afir-mando, nas relações do ser humano com a natureza, a unidade, a distinçãoe a implicação mútua.Assim, pensar a natureza na sua unificada, complexa e dinâmica teia deinter-relações não significa pensá-la como uma essência imutável, signifi-ca considerar que tanto o real como nós mesmos integramos e participa-mos de um processo aberto no qual a compreensão das partes não podeser desvinculada da compreensão do todo. Nesta perspectiva, o significa-do da “obediência”, que no contexto do paradigma da modernidade foientendido como subordinação a leis de determinação, na perspectiva dacomplexidade pode recuperar sua acepção originária, isto é a de “estar aescuta de”, substituindo a perspectiva exclusivamente causalista pela dointer-relacionamento e implicação mútua12.

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A teoria psicanalítica no contexto do paradigma emergente

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A contribuição do saber elaborado pela psicanálise é central para a cons-trução desta complexa concepção das relações entre o ser humano e anatureza. Sendo também seres históricos, as concepções que forjamossobre nós mesmos, constituem um fator essencial na construção do ima-ginário social a partir do qual nos produzimos e produzimos nossa civili-zação. Sua importância não pode assim ser ignorada, já que participadecisivamente na constituição do nosso psiquismo, e portanto de nossoprocesso de auto-criação. Freud falava de superego de época (Freud, 1930/1986:137), salientando mais uma vez nossa historicidade e nossa respon-sabilidade. A recepção do saber elaborado pela experiência psicanalítica,evitando seu desperdício, torna possível a compreensão da complexida-de do nosso psiquismo profundo, constituindo assim um fator essencialpara a construção de um paradigma que, na feliz expressão de Boaventurade Sousa Santos, seja um paradigma prudente que faça possível umavida decente.

Carlos Alberto PlastinoAvenida Lineu de Paula Machado 117 apto 301Jardim Botânico – Rio de Janeiro - RJCep 22470-040e-mail: [email protected]

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Situações-limite na experiência psicanalítica

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Artigo recebido em 27 de julho de 2007Aprovado para publicação em 02 de setembro de 2007