A TERCEIRA LÁGRIMA · Starling estava aguardando os outros desde meio‑dia. Sabia que ... pegar a...

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9 1 A TERCEIRA LÁGRIMA O céu chorava. A tristeza inundava a terra. Starling abriu a boca para capturar as gotas de chuva que caíam pelo buraco em seu cordão de isolamento. O abrigo transparente da Semea‑ dora estava armado sobre a fogueira como uma aconchegante barraca de acampamento. Ele a isolava completamente do dilúvio, exceto pela pequena abertura no topo, feita para dar vazão à fumaça e permitir que um pouco de chuva entrasse. As gotas umedeciam a língua de Starling. Estavam salgadas. Sentiu o gosto de árvores antigas desenraizadas, oceanos retomando terras. Sentiu o gosto de água negra nos litorais, golfos engolfados. Flores silvestres murchando, montanhas sedentas, tudo envenenado pelo sal. Um milhão de cadáveres decompondo‑se. As lágrimas de Eureka tinham causado aquilo — e mais. Starling estalou os lábios, tentando sentir algum outro gosto. Fe‑ chou os olhos e ficou passando a chuva pela língua, como um sommelier degustando vinho. Ainda não conseguia sentir os pináculos atlantes in‑ terrompendo o céu. Não conseguia sentir as extremidades de Atlas, o Maligno.

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A TERCEIRA LÁGRIMA

O céu chorava. A tristeza inundava a terra.Starling abriu a boca para capturar as gotas de chuva que caíam pelo

buraco em seu cordão de isolamento. O abrigo transparente da Semea‑dora estava armado sobre a fogueira como uma aconchegante barraca de acampamento. Ele a isolava completamente do dilúvio, exceto pela pequena abertura no topo, feita para dar vazão à fumaça e permitir que um pouco de chuva entrasse.

As gotas umedeciam a língua de Starling. Estavam salgadas.Sentiu o gosto de árvores antigas desenraizadas, oceanos retomando

terras. Sentiu o gosto de água negra nos litorais, golfos engolfados. Flores silvestres murchando, montanhas sedentas, tudo envenenado pelo sal. Um milhão de cadáveres decompondo‑se.

As lágrimas de Eureka tinham causado aquilo — e mais.Starling estalou os lábios, tentando sentir algum outro gosto. Fe‑

chou os olhos e ficou passando a chuva pela língua, como um sommelier degustando vinho. Ainda não conseguia sentir os pináculos atlantes in‑terrompendo o céu. Não conseguia sentir as extremidades de Atlas, o Maligno.

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O que era algo bom, mas confuso. As lágrimas derramadas pela ga‑rota da Linhagem da Lágrima se destinavam a trazer Atlântida de volta. Impedir aquelas lágrimas de cair era o único objetivo dos Semeadores.

Tinham fracassado.E o que acontecera? A inundação estava ali, mas onde estava o co‑

mandante? Eureka trouxera o cavalo sem seu cavaleiro. A Linhagem da Lágrima teria mudado de direção? Algo teria dado errado da maneira certa?

Starling curvou‑se perto do fogo e examinou suas cartas náuticas. Uma torrente de lágrimas escorria pelas paredes do cordão, intensificando o ca‑lor e o brilho daquele espaço fechado com aroma de citronela. Se Starling fosse outra pessoa, teria se aninhado com uma caneca de chocolate quente e um livro, deixando a chuva niná‑la até entrar em outro mundo.

Se Starling fosse outra pessoa, a idade avançada a teria matado milê‑nios antes.

Era meia‑noite na Floresta Nacional de Kisatchie, no centro de Loui‑siana. Starling estava aguardando os outros desde meio‑dia. Sabia que chegariam, apesar de não terem combinado aquele local. A garota come‑çara a chorar tão de repente. A inundação dispersara os Semeadores por aquele novo e abominável pântano, e não tiveram tempo de planejar o reencontro. Mas era ali que ele aconteceria.

Ontem, antes de Eureka chorar, o local ficava a 250 quilômetros do Golfo. Agora não passava de um fragmento do litoral que desaparecia. O bayou — suas margens, estradas de terra, salões de baile, carvalhos vivos e retorcidos, mansões coloniais e picapes — estava sepultado num mar de lágrimas egoístas.

E por ali, em algum lugar, nadava Ander, apaixonado pela garota que fizera aquilo. O ressentimento cresceu dentro de Starling quando pensou na traição do garoto.

Além do brilho da chama, contra a chuva, emergiu uma silhueta da floresta. Critias usava seu cordão como uma capa de chuva, perceptível apenas aos olhos de Semeadores. Starling teve a impressão de que parecia menor. Sabia o que ele estava pensando:

O que deu errado? Onde está Atlas? Por que ainda estamos vivos?

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Ao chegar à beirada do cordão de Starling, Critias se deteve. Os dois prepararam‑se para o impacto que indicaria a união dos cordões.

O momento da junção os atingiu como um raio. Starling cruzou os braços para resistir à ventania; Critias fechou fortemente os olhos e cami‑nhou com dificuldade. O cabelo dela balançava sobre o couro cabeludo como uma teia de aranha; as bochechas dele tremulavam como bandeiras.

Starling observou aqueles aspectos pouco lisonjeiros de Critias e o viu observar o mesmo nela. Tranquilizou‑se ao lembrar que Semeadores só envelhecem quando sentem afeto.

— Veneza já era — disse Starling, enquanto Critias aquecia as mãos perto do fogo. Ela havia combinado o que suas papilas gustativas lhe disseram com as informações das cartas náuticas. — Boa parte de Ma‑nhattan, todo o Golfo...

— Espere os outros. — Critias fez um gesto com a cabeça na direção da escuridão. — Chegaram.

Vinda do leste, Khora apareceu cambaleante enquanto Albion sur‑gia do oeste — a tempestade fazendo seus cordões brilharem. Aproxi‑maram‑se do cordão de Starling e enrijeceram os corpos, preparando‑se para a entrada desagradável. Após o cordão de Starling absorvê‑los, Kho‑ra desviou o olhar, e Starling soube que a prima não queria correr o risco de se sentir nostálgica ou ridícula. Não queria correr o risco de sentir. Era assim que vivia fazia milhares de anos, sem nunca parecer ou se sentir mais velha que uma mortal de meia‑idade.

— Starling está listando as terras destruídas — disse Critias.— Isso não importa. — Albion sentou‑se. Seu cabelo grisalho estava

encharcado, e o elegante terno cinza, rasgado e manchado de lama.— Milhões de mortes não importam? — perguntou Critias. — Não

viu a destruição que as lágrimas de Eureka causaram? Você sempre disse que éramos os protetores do Mundo Desperto.

— O que importa agora é Atlas!Starling desviou o olhar, envergonhada com o acesso de raiva de Al‑

bion, apesar de compartilhar sua aflição. Havia milhares de anos que os Semeadores esforçavam‑se para impedir a ascensão de um inimigo que

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jamais tinham conhecido em carne e osso. Sofriam com as projeções de sua terrível mente fazia muito tempo.

Presos na realidade submersa do Mundo Adormecido, Atlas e seu reino não envelheciam nem morriam. Se Atlântida ressurgisse, seus mo‑radores seriam restaurados à vida exatamente como estavam quando a ilha afundou. Atlas seria um homem robusto de 20 anos, no zênite de seu poder juvenil. O Despertar faria o tempo recomeçar para ele.

Atlas estaria livre para concretizar o Dilúvio.Mas, até Atlântida ascender, as únicas coisas em ação no Mundo

Adormecido eram intelectos doentios, calculistas e fantasiosos. Ao longo do tempo, a mente de Atlas fizera muitas viagens sombrias ao Mundo Desperto. Toda vez que uma garota atendia às condições da Linhagem da Lágrima, a essência de Atlas trabalhava para se aproximar dela, para tirar de seus olhos as lágrimas que restaurariam seu reino. Agora, ele estava dentro de Brooks, amigo da garota.

Os Semeadores eram os únicos que reconheciam Atlas sempre que este possuía o corpo de uma pessoa próxima à garota da Linhagem da Lágrima. Atlas nunca atingira seu objetivo — em parte porque os Semea‑dores tinham assassinado 36 garotas da Linhagem antes de Atlas provo‑car‑lhes o choro. No entanto, cada uma de suas visitas levara ao Mundo Desperto sua maldade ímpar.

— Estamos todos nos lembrando das mesmas coisas sombrias — dis‑se Albion. — Se a mente de Atlas tem sido assim tão destruidora dentro de outros corpos, travando guerras e assassinando inocentes, imagine o que a mente e o corpo não fariam unidos, despertos e no nosso mundo. Imagine se ele concretizar o Dilúvio.

— Então onde ele está? — perguntou Critias. — O que está espe‑rando?

— Não sei. — Albion cerrou o punho sobre a fogueira, até que o cheiro de carne queimada o fez puxar a mão. — Nós todos estávamos lá. Nós a vimos chorar!

Starling relembrou aquela manhã. Quando as lágrimas de Eureka co‑meçaram a escorrer, seu sofrimento parecera ilimitado, como se nunca

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fosse acabar. Era como se cada lágrima derramada fosse multiplicar por dez os danos causados ao mundo...

— Espere — disse ela. — Depois que as condições da profecia fos‑sem atendidas, três lágrimas precisavam ser derramadas.

— A garota estava aos prantos. — Albion desconsiderou o que ela disse. Ninguém levava Starling a sério. — Claro que as três lágrimas ne‑cessárias foram derramadas.

— E depois, mais que isso. — Khora olhou para a chuva.Critias coçou a barbicha grisalha do queixo.— Temos certeza disso?Houve uma pausa, e um trovão estrondeou. A chuva respingava pelo

buraco do cordão.— Uma lágrima para estilhaçar a pele do Mundo Desperto — entoou

Critias, baixinho, o verso das Crônicas, ensinado pelo antepassado Lean‑dro. — Essa era a lágrima que teria iniciado a inundação.

— Uma segunda para se infiltrar nas raízes da Terra. — Starling podia sentir o gosto de fundo do mar se espalhando. Sabia que a segunda lágri‑ma tinha sido derramada.

Mas e a terceira lágrima, a mais importante de todas?— Uma terceira para o Mundo Adormecido despertar, e cada antigo

reino recomeçar — disseram os quatro Semeadores em uníssono. Era a lágrima que importava. A lágrima que traria Atlas de volta.

Starling olhou para os outros.— A terceira lágrima caiu ou não na Terra?— Deve ter sido retida por alguma coisa — murmurou Albion. —

Pelo aerólito, pelas mãos dela...— Ander — interrompeu‑o Critias.A voz de Albion estava aguda de nervoso.— Mesmo que ele tenha pensado em pegar a lágrima, não saberia o

que fazer com ela.— É ele que está com a garota agora, não nós — disse Khora. — Se a

terceira lágrima foi derramada e capturada, o destino dela está nas mãos do garoto. Ander não sabe que a Linhagem da Lágrima é ligada ao ciclo

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lunar. Ele não está preparado para enfrentar Atlas, que fará de tudo para pegar a terceira lágrima antes da próxima lua cheia.

— Starling, para onde o vento levou Ander e Eureka? — perguntou Albion bruscamente.

Starling recolheu a língua, refletiu e engoliu, arrotando baixinho.— Ela está protegida pela pedra. Mal consigo sentir seu gosto, mas

creio que Ander está indo para o leste.— É óbvio para onde ele foi — disse Khora —, e quem está procu‑

rando. Tirando nós quatro, apenas uma pessoa conhece as respostas que Ander e Eureka buscam.

Albion encarava a fogueira furiosamente. Ao exalar, a labareda do‑brou de tamanho.

— Perdão. — Ele inspirou calculadamente para domar o fogo. — Mas quando penso em Solon... — Ele deixou os dentes à mostra, repri‑mindo algo terrível. — Estou bem.

Havia anos que Starling não escutava alguém dizer o nome do Se‑meador perdido.

— Solon está perdido — disse ela. — Albion procurou e não conse‑guiu encontrá‑lo...

— Talvez Ander procure com mais empenho — sugeriu Critias.Albion agarrou Critias pelo pescoço, ergueu‑o do chão e o segurou

acima da fogueira.— Não acha que estou procurando Solon desde que ele fugiu? Eu

aceitaria envelhecer mais um século só para encontrá‑lo.Critias chutou o ar. Albion soltou‑o. Eles ajeitaram as roupas.— Calma, Albion — pediu Khora. — Não deixe uma rivalidade an‑

tiga falar mais alto. Ander e Eureka precisarão subir à superfície para respirar em algum momento. Starling vai descobrir sua localização.

— A pergunta é — começou Critias —, será que Atlas não vai des‑cobrir o paradeiro deles primeiro? No corpo de Brooks, ele vai ter como fazê‑la sair de lá.

Um relâmpago ressoou em volta do cordão. A água cobria os torno‑zelos dos Semeadores.

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— Precisamos descobrir uma maneira de nos impor. — Albion en‑carava a fogueira. — Não há nada mais poderoso que as lágrimas dela. Ander não pode ficar no controle de tal poder. Ele não é como nós.

— Precisamos nos concentrar no que sabemos — disse Khora. — Sa‑bemos que Ander revelou a Eureka que, se um Semeador morrer, todos os Semeadores morrem.

Starling concordou com a cabeça; era verdade.— Sabemos que ele a protege de nós usando artemísia, o que nos

exterminaria caso algum de nós a inalasse. — Khora dedilhou os lábios. — Eureka não vai usar a erva. Ela ama Ander demais para matá‑lo.

— Hoje ela o ama — disse Critias. — Não existe nada mais incons‑tante que os sentimentos de uma adolescente.

— Ela o ama. — Starling pressionou os lábios. — Os dois estão apai‑xonados. Sinto no gosto do vento dessa chuva.

— Ótimo — disse Khora.— Como o amor pode ser ótimo? — Starling estava surpresa.— É preciso amar para ter o coração partido. E um coração partido

causa lágrimas.— Se mais uma lágrima cair na Terra, Atlântida ascende — disse

Starling.— E se conseguíssemos as lágrimas de Eureka antes que Atlas chegue

até ela? — Khora deixou os outros assimilarem a pergunta.Um sorriso surgiu aos poucos no rosto de Albion.— Atlas precisaria de nós para completar o Despertar.— Nós teríamos um imenso valor para ele — disse Khora.Starling removeu com um peteleco a lama de uma dobra de seu

vestido.— Estão sugerindo que fiquemos do lado de Atlas?— Acho que Khora está sugerindo que chantageemos o Maligno. —

Critias riu.— Pode chamar do que quiser — disse Khora. — É um plano. En‑

contramos Ander, pegamos as possíveis lágrimas. Podemos até provocar mais algumas. Depois as usamos para seduzir Atlas, que vai nos agrade‑cer pelo grande presente de sua liberdade.

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Um trovão estremeceu a terra, e uma fumaça preta começou a sair pela abertura do cordão.

— Você é louca — acusou Critias.— Ela é um gênio — rebateu Albion.— Estou com medo — confessou Starling.— Medo é para os perdedores. — Khora agachou‑se e atiçou o fogo

com um graveto molhado. — Quanto tempo temos antes da lua cheia?— Dez noites — respondeu Starling.— Tempo suficiente — Albion abriu um sorriso malicioso — para

tudo mudar na última palavra.

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