A tradição da antropologia visual em Manchester: notas para um exercício comparativo.

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1 Angela Torresan (Centro Granada de Antropologia Visual, Universidade de Manchester). Trabalho proposto para o GT12 Antropologia Visual história, ensino e perspectivas de pesquisa / Ana Lucia Ferraz (UFF) e João Martinho de Mendonça (UFPB) – Coordenadores Para a 28ª RBA A tradição da antropologia visual em Manchester: notas para um exercício comparativo. O objetivo desse trabalho é o de apresentar um exemplo de prática de ensino da antropologia visual que possa servir como contraponto para as discussões sobre a crescente institucionalização da disciplina nas universidades brasileiras. O Mestrado em Antropologia Visual do Centro Granada de Antropologia Visual (MAVA) da Universidade de Manchester foi criado há mais de 20 anos e ao longo dessas décadas, seus integrantes renovaram suas metodologias de ensino baseados na experiência prática e no convívio diário com as demandas de seus alunos, no mercado de trabalho, e nas progressivas transformações tecnológicas. Apesar de diferenças fundamentais entre as duas situações, o uso de mídias audiovisuais na pesquisa levanta questões sobre ética e representação do conhecimento antropológico que transcendem fronteiras nacionais. A apresentação da história da epistemologia do MAVA nesse trabalho se propõe a provocar um debate que percorre vias múltiplas: o que o crescente interesse e as novas práticas na área da antropologia visual no Brasil podem oferecer ao debate já consolidado na academia britânica? Por outro lado, como esse novo interesse pode utilizar as críticas e epistemologias já testadas no decorrer dos anos de prática dentro da Universidade de Manchester? Que troca de conhecimento sobre as diferentes metodologias de pesquisa com a imagem poderia ser feita num fórum comparativo desse gênero? Introdução A criação do Centro Granada de Antropologia Visual (GCVA – Granada Centre for Visual Anthropology) da Universidade de Manchester, em 1987, foi fruto de uma relação especial entre a antropologia e a televisão inglesa que durou cerca de 20 anos, entre as décadas de 70 e 90. O interesse, tanto corporativo quanto de audiência, na produção de documentários sobre populações não-ocidentais sustentou, por exemplo, a renomada série da televisão Granada chamada Disappearing World, que entre essas décadas produziu 63 filmes de uma hora sobre populações localizadas em todos os continentes. O tema e o estilo de produção baseado no trabalho de campo de

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O objetivo desse trabalho é o de apresentar um exemplo de prática de ensino da antropologia visual que possa servir como contraponto para as discussões sobre a crescente institucionalização da disciplina nas universidades brasileiras. O Mestrado em Antropologia Visual do Centro Granada de Antropologia Visual (MAVA) da Universidade de Manchester foi criado há mais de 20 anos e ao longo dessas décadas, seus integrantes renovaram suas metodologias de ensino baseados na experiência prática e no convívio diário com as demandas de seus alunos, no mercado de trabalho, e nas progressivas transformações tecnológicas. Apesar de diferenças fundamentais entre as duas situações, o uso de mídias audiovisuais na pesquisa levanta questões sobre ética e representação do conhecimento antropológico que transcendem fronteiras nacionais. A apresentação da história da epistemologia do MAVA nesse trabalho se propõe a provocar um debate que percorre vias múltiplas: o que o crescente interesse e as novas práticas na área da antropologia visual no Brasil podem oferecer ao debate já consolidado na academia britânica? Por outro lado, como esse novo interesse pode utilizar as críticas e epistemologias já testadas no decorrer dos anos de prática dentro da Universidade de Manchester? Que troca de conhecimento sobre as diferentes metodologias de pesquisa com a imagem poderia ser feita num fórum comparativo desse gênero?

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Angela Torresan (Centro Granada de Antropologia Visual, Universidade de Manchester). Trabalho proposto para o GT12 Antropologia Visual história, ensino e perspectivas de pesquisa / Ana Lucia Ferraz (UFF) e João Martinho de Mendonça (UFPB) – Coordenadores Para a 28ª RBA A tradição da antropologia visual em Manchester: notas para um exercício comparativo. O objetivo desse trabalho é o de apresentar um exemplo de prática de ensino da antropologia visual que possa servir como contraponto para as discussões sobre a crescente institucionalização da disciplina nas universidades brasileiras. O Mestrado em Antropologia Visual do Centro Granada de Antropologia Visual (MAVA) da Universidade de Manchester foi criado há mais de 20 anos e ao longo dessas décadas, seus integrantes renovaram suas metodologias de ensino baseados na experiência prática e no convívio diário com as demandas de seus alunos, no mercado de trabalho, e nas progressivas transformações tecnológicas. Apesar de diferenças fundamentais entre as duas situações, o uso de mídias audiovisuais na pesquisa levanta questões sobre ética e representação do conhecimento antropológico que transcendem fronteiras nacionais. A apresentação da história da epistemologia do MAVA nesse trabalho se propõe a provocar um debate que percorre vias múltiplas: o que o crescente interesse e as novas práticas na área da antropologia visual no Brasil podem oferecer ao debate já consolidado na academia britânica? Por outro lado, como esse novo interesse pode utilizar as críticas e epistemologias já testadas no decorrer dos anos de prática dentro da Universidade de Manchester? Que troca de conhecimento sobre as diferentes metodologias de pesquisa com a imagem poderia ser feita num fórum comparativo desse gênero? Introdução A criação do Centro Granada de Antropologia Visual (GCVA – Granada Centre for

Visual Anthropology) da Universidade de Manchester, em 1987, foi fruto de uma

relação especial entre a antropologia e a televisão inglesa que durou cerca de 20 anos,

entre as décadas de 70 e 90. O interesse, tanto corporativo quanto de audiência, na

produção de documentários sobre populações não-ocidentais sustentou, por exemplo,

a renomada série da televisão Granada chamada Disappearing World, que entre essas

décadas produziu 63 filmes de uma hora sobre populações localizadas em todos os

continentes. O tema e o estilo de produção baseado no trabalho de campo de

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antropólogos que serviam como consultores, era inovador tanto para a televisão

quanto para a antropologia que até agora não havia tido tal exposição fora do mundo

acadêmico. Antropólogos emprestavam seu conhecimento especializado sobre um

determinado grupo à pequena equipe de produção, num processo colaborativo de

tradução cultural destinada à uma audiência de massa que no auge do seu sucesso

chegou a atingir 8 milhões de espectadores (é bem verdade que a concorrência era

fraca com apenas mais dois canais a BBC 1 e 2).

O Centro Granada surgiu da colaboração entre a televisão Granada e o

Departamento de Antropologia Social da Universidade de Manchester, então chefiado

por Marilyn Strathern. A intenção era a de se treinar antropólogos para que pudessem

produzir documentários sem a mediação de uma equipe de televisão, com o intuito de

criar um vínculo produtivo entre a prática acadêmica e a estética da cinematografia.

Um núcleo de capacitação de antropólogos na arte do documentário para que

aprendessem a utilizar o meio não só como meio de representação, de tradução, do

conhecimento antropológico, mas também como parte da processo de produção desse

conhecimento.

O antropólogo chamado para dirigir o Centro Granada e o mestrado em

Antropologia Visual, Paul Henley, formou-se no curso de cinema documentário na

Escola Nacional de Filme e Televisão (National Film and Television School), sob a

instrução do professor Colin Young. Colin Young foi um personagem influente no

desenvolvimento de um estilo de documentário etnográfico que se tornou clássico, o

chamado “cinema observacional.” Antes de estabelecer a Escola Nacional de Filme e

Televisão, Colin Young, havia fundado o primeiro programa de antropologia visual

em 1966, o Ethnographic Film Training da Universidade da California, Los Angeles,

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um programa que congregava os departamentos de antropologia e de cinema num

projeto de criação de um cinema etnográfico que se aproximasse da prática

antropológica. A resiliência do estilo de treinamento do Centro Granada tem sua

genealogia na interseção entre a série Disappearing World da televisão Granada e o

cinema observacional do Ethnographic Film Training.

Desde sua fundação, o Granada Centre vivenciou relações variadas com o

departamento de antropologia que o acolhe. Dependendo da chefia do departamento e

das articulações de poder na Escola de Ciências Sociais e da universidade em geral, o

Centro Granada experimentou ocasiões extremamente oportunas e momentos em que

sua própria existência foi colocada em questão. Centros e cursos de pós-graduação em

antropologia visual não dispõem da mesma força política e estabilidade de que hoje

desfrutam os cursos de antropologia social e cultural. Apesar de antropólogos e outros

cientistas sociais já se utilizarem de meios audiovisuais em suas pesquisas desde do

início da própria disciplina, a relação entre antropologia e esses meios foi sempre um

pouco ambígua. Consequentemente a sustentabilidade dos cursos de antropologia

visual fica à mercê de mudanças de afiliação e de jogos políticos locais. Por que isso?

- Há uma resistência, uma desconfiança, persistente ao uso de imagens (e

quando falo filme, incluo vídeos) como o meio privilegiado de produção e

divulgação do conhecimento antropológico (images as icon and index)

- A produção da antropologia visual não tem a credibilidade científica do

trabalho escrito e não há dispositivos formais para a incorporação da produção

audiovisual na avaliação da capacitação de antropólogos.

- Não e fácil atingir um equilíbrio entre a reflexão intelectual do uso das

imagens e o treinamento técnico necessário para que um uso desses seja aceito

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num departamento de antropologia (ao contrario de num departamento de

cinema, por exemplo).

- Antropólogos visuais têm trabalho dobrado, formação dobrada, em

antropologia e cinema. Geralmente a formação relativa ao uso das imagens

são adquiridas separadamente e na maior parte das vezes fora dos

departamentos de antropologia.

- O ensino da produção de documentários etnográficos requer um tipo de treino

prático intenso e dispendioso, difícil de manter e que requer muito mais

recursos técnicos do que um curso de pós-graduação em antropologia social.

- A expectativa de atuação profissional no mercado de trabalho para um

antropólogo visual é, sinceramente, limitada.

Por esses motivos, vários núcleos e programas de ensino de antropologia visual

apareceram, tiveram momentos fortes de produção e treinamento, mas acabaram

fechando. (o da UCLA, o da USC que era dirigido por Tim Asch, com a saída

dele, fechou e agora reabriram, o da NYU, o programa da universidade de

Amsterdam, que eram programas fortes, com boa produção e cujos filmes dos

estudantes entravam no circuito de festivais internacionais. Ainda ha alguns

programas que trabalham com uma combinação parecida com a do Centro

Granada entre pratica e teoria; o da Universidade de Leiden, dirigido por Stef

Meyknecht and e Metje Postma; o da universidade de Tromsø, que e um mestrado

de dois anos dirigido por Gary Kildea; e o do Goldsmith College. Ha outros como

o mestrado da UCL e o programa do Film Studies Centre de Harvard, dirigido

pelo Lucien Taylor and Ilisa Barbash.

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Apesar de periódicos estorvos e da dificuldade intrínseca de se manter um curso

de antropologia visual tecnologicamente atualizado, o Centro Granada atua

treinando antropólogos e outros cientistas sociais a produzir e a refletir sobre a

produção de imagens na antropologia visual há 25 anos.

Esse treinamento começou com o carro chefe do Centro Granada que é o

Mestrado em Antropologia Visual, com um limite de 8 alunos que se

especializavam na produção de documentários etnográficos. Há 10 anos, com a

expansão do quadro letivo do centro, o mestrado adquiriu uma outra linha de

ensino dedicada à produção e reflexão sobre outros meios audiovisuais para além

do documentário etnográfico. Os alunos dessa linha de estudos, chamada

Documentário Etnográfico e Mídia Sensorial, trabalham com fotografia, arte,

ambientes sonoros (soundscapes), e usam vídeo de forma experimental. Enquanto

a linha de ensino tradicional do Centro Granada continua treinando alunos na

produção de um documentários etnográficos, e chama-se Documentário

Etnográfico com Filme. Hoje o Mestrado admite 30 alunos por ano.

O doutorado em antropologia social com mídia visual, no qual os alunos têm a

oportunidade de usar qualquer meio audiovisual na sua pesquisa e como parte da

sua tese final, existe ha 17 anos. Mas não há um doutorado estritamente em

antropologia visual, que seja baseado primariamente na prática da produção de

imagens. Há um MPhil em Documentário Etnográfico, para candidatos que

estejam num momentos mais avançado de seus estudos e que desejem aprofundar

o uso de vídeo na sua pesquisa etnográfica. E por fim, um curso de verão,

intensivo, de duas semanas para pesquisadores que queira aprender técnicas

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básicas de vídeo (filmagem e edição) com objetivo de emprega-las em suas

pesquisas.

Mas qual e a pedagogia por trás do Granada Centre? A ideia que ate hoje

impulsiona o Centro Granada não é a de usar meios audiovisuais apenas como

formas de representação do conhecimento antropológico, mas como modos

alternativos de desenvolver e explorar esse conhecimento, como catalisadores de

conhecimento e relações tanto no campo quando entre a audiência e os projetos

audiovisuais. Não se trata tampouco de fazer uma análise de formas visuais

culturais usando esses meio, mas sim de transforma-los em instrumentos de

produção que com os quais nos encarregamos e nos envolvemos em projetos

etnográficos. Essa pratica aproxima a pedagogia do Centro aquela da própria

antropologia social.

Os professores do Centro se inspiram em tradições variadas do documentário

etnográfico, cuja historia e estilos não tenho escopo para desenvolver aqui. Mas

ha três pontos que guiam, de forma um tanto flexível, a pratica do Centro.

1) os alunos devem aprender a observar através de imagens, aprender a olhar

filmes, a discernir como uma narrativa fílmica e montada e o que pode-se

aprender com filmes. Tim Asch, diretor do núcleo de antropologia social da USC,

usava seus filmes, seus copiões, como pratica para o trabalho de campo, para

ensinar seus estudantes observar assistindo filmes. Ele queria que seus estudantes

aprendessem uma forma de visão particular, que aprendessem a discriminar,

discernir, julgar as imagens para que conseguissem ir além do comportamento

visível e observável, para que conseguissem inferir e deduzir ao observar os

detalhes da vida social. No Centro Granada parte-se do pressuposto de que todo o

estilo fílmico de documentários etnográficos compreende uma teoria sobre o

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conhecimento, uma epistemologia relacionada ao que se acredita ser possível

conhecer sobre a realidade humana através dessa tecnologia. Aprender a observar

nos filmes e a olhar mimicamente, fornece aos alunos os instrumentos conceituais

e técnicos para que possam tomar suas próprias decisões e fazer escolhas bem

informadas. Esse tipo de treinamento ocorre tanto nas aulas praticas, quanto nas

disciplinas mais teóricas.

2) os alunos devem tratar a tecnologia, a câmera e o microfone, como

instrumentos não apenas de captação de imagens, mas de exploração. Como

formas alternativas de explorar o conhecimento antropológico e de provocar

relações sociais. Entende-se que essa tecnologia tem um potencial catalisador que

deve ser explorado. Essa é uma câmera inspirada na abordagem e na

cinematografia de Jean Rouch, que aceita a sua condição de provocar reações e

relações especificas ao processo de filmagem. Nesse sentido, a presença do

cineasta e sua autoria são consideradas fundamentais ao processo não só de

captura, mas de criação daquilo que a câmera registra.

3) um terceiro ponto e influenciado pelas reflexões e pela obra de David

MacDougall. O estilo de documentário etnográfico criado pelo grupo de

estudantes da UCLA, do Ethnographic Film Programme, que incluía Judith e

David MacDougall, está na base do curso pratico introdutório de Centro Granada,

o cinema observacional. (10 mandamentos desenvolvidos por Paul Henley

baseados nos cânones, esses também flexíveis, do cinema observacional). O

objetivo principal desse estilo de cinema é o de suscitar o mundo e a visão de

mundo daqueles que estão sendo filmados, e não os pressupostos ou argumentos

do cineasta. Essa postura se traduz numa série de estratégias práticas às quais os

alunos devem se apropriar. Muitas delas não são prerrogativas do estilo

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observacional, mas costumam estar presentes de alguma forma em filmes

etnográficos. E todas tem suas exceções.

Um dos aspectos positivos dessa pedagogia do Centro Granada é a sua

maleabilidade e adaptabilidade. Cada projeto de documentário etnográfico do

Mestrado, cada projeto de pesquisa de alunos do doutorado e do Mphil e único e

requer uma abordagem específica ao objeto a ser pesquisado e filmado. Cada

aluno estabelece relações diferentes com seus protagonistas, alguns com intensa

colaboração e uso de feedback ou de docufiction, outros mais privada e

distanciada e cada aluno estabelece seu próprio estilo de filmagem. O que se

acredita no Centro Granada é que os cursos oferecidos fornecem os instrumentos

básicos para que a partir dali pesquisadores e estudantes possam achar o seu

próprio caminho no labirinto de possibilidades e tendo em vista os limites

impostos pela tecnologia mesma. Essa fórmula tem funcionado, mesmo porque o

Centro procura se adaptar aas mudanças na tecnologia e no pensamento

antropológico. A maior luta é, entretanto, ainda com o lugar da antropologia

visual na academia, nas universidades e nos departamentos de antropologia social

e cultural. A questão é se a antropologia visual vai, em algum futuro próximo,

prosperar como parte integrante da disciplina, ou se permanecerá dependente das

flutuações politicas das universidades e departamentos.