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A TRADIÇÃO REIVENTADA: MEMÓRIAS SOBRE O PERTENCIMENTO E O EMPODERAMENTO DAS MULHERES NOS MARACATUS NAÇÃO DE RECIFE JÉSSICA HELENA DA SILVA 1 Resumo: Os maracatus nação são hoje considerados um dos maiores símbolos da identidade negra pernambucana. Tal evocação exerce grande influência da indústria cultural e da espetacularização da cultura popular nas tradições do maracatu, o que culminou na recriação e reinvenção destas ao longo dos anos e permitiu, por outro lado, a inserção de elementos da cultura negra e periférica no mercado cultural. Essas reinvenções foram fundamentais para a construção das identidades dos sujeitos históricos pertencentes às comunidades onde se encontram os maracatus tradicionais, bem como o empoderamento de mulheres que participaram desses processos. Para tomar conhecimento sobre estes significados, a presente pesquisa se valeu da História Oral como metodologia para a análise das memórias individuais e coletivas dos colaboradores 2 e colaboradas, a fim de compreender o impacto destas nas formulações e interpretações da concepção de tradição, pertencimento e participação feminina nos maracatus nação de Recife. Palavras-chave: Maracatu; Tradição; Memória; Identidade; Mulheres. Introdução É indiscutível que a tradição é transformada e ressignificada constantemente, pois seus símbolos e práticas precisam seguir dando sentido às experiências dos sujeitos que vivem a cultura popular e o mesmo vale para o maracatu de baque virado. Ao longo de mais de século as nações de maracatu precisaram se adaptar, se disfarçar, se esconder, se ressignificar e se reinventar para resistirem às tentativas de opressão, de violência e mesmo de enquadramento em padrões estéticos e morais determinados por pesquisadores, pela igreja, pela polícia, pela sociedade em geral. Tantas mudanças ora causaram grandes transtornos, ora se estabeleceram com facilidade entre os grupos tradicionais de maracatu, mas é preciso nos perguntarmos como fica a tradição 1 Professora na Escola Municipal Cônego Artur, Graduada em História pela Universidade Federal de Alfenas, UNIFAL-MG. 2 O Manual de História Oral , define colaborador mais do que depoente ou informante, pois é muito mais do que um fornecedor de informações, mais do que um objeto de pesquisa. Isso pressupõe diálogo entre ele e o entrevistador, pressupondo intervenções de ambas as partes e a responsabilidade ética por parte do pesquisador. (MEIHY, 2005: 124˗125)

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A TRADIÇÃO REIVENTADA: MEMÓRIAS SOBRE O PERTENCIMENTO E O

EMPODERAMENTO DAS MULHERES NOS MARACATUS NAÇÃO DE RECIFE

JÉSSICA HELENA DA SILVA1

Resumo: Os maracatus nação são hoje considerados um dos maiores símbolos da identidade

negra pernambucana. Tal evocação exerce grande influência da indústria cultural e da

espetacularização da cultura popular nas tradições do maracatu, o que culminou na recriação e

reinvenção destas ao longo dos anos e permitiu, por outro lado, a inserção de elementos da

cultura negra e periférica no mercado cultural. Essas reinvenções foram fundamentais para a

construção das identidades dos sujeitos históricos pertencentes às comunidades onde se

encontram os maracatus tradicionais, bem como o empoderamento de mulheres que

participaram desses processos. Para tomar conhecimento sobre estes significados, a presente

pesquisa se valeu da História Oral como metodologia para a análise das memórias individuais

e coletivas dos colaboradores2 e colaboradas, a fim de compreender o impacto destas nas

formulações e interpretações da concepção de tradição, pertencimento e participação feminina

nos maracatus nação de Recife.

Palavras-chave: Maracatu; Tradição; Memória; Identidade; Mulheres.

Introdução

É indiscutível que a tradição é transformada e ressignificada constantemente, pois seus

símbolos e práticas precisam seguir dando sentido às experiências dos sujeitos que vivem a

cultura popular e o mesmo vale para o maracatu de baque virado. Ao longo de mais de século

as nações de maracatu precisaram se adaptar, se disfarçar, se esconder, se ressignificar e se

reinventar para resistirem às tentativas de opressão, de violência e mesmo de enquadramento

em padrões estéticos e morais determinados por pesquisadores, pela igreja, pela polícia, pela

sociedade em geral.

Tantas mudanças ora causaram grandes transtornos, ora se estabeleceram com facilidade

entre os grupos tradicionais de maracatu, mas é preciso nos perguntarmos como fica a tradição

1 Professora na Escola Municipal Cônego Artur, Graduada em História pela Universidade Federal de Alfenas, UNIFAL-MG. 2 O Manual de História Oral , define colaborador mais do que depoente ou informante, pois é muito mais do

que um fornecedor de informações, mais do que um objeto de pesquisa. Isso pressupõe diálogo entre ele e o

entrevistador, pressupondo intervenções de ambas as partes e a responsabilidade ética por parte do pesquisador.

(MEIHY, 2005: 124˗125)

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nesse jogo de sobrevivência e resistência e os significados com os quais ela rompe e os que

adquire a partir de cada mudança.

Tradição é aqui compreendida como um conjunto de práticas herdadas do passado e que

permanecem fazendo sentido no presente, sintetizadas no fazer, no pensar e no viver que se

inserem de tal forma na cultura e no dia a dia que, mesmo passado o tempo, transformado o

espaço no qual é praticada e renovados os sujeitos que as praticam, elas ainda têm grande

significado e seguem tendo ressonância para estes sujeitos (SILVA; SILVA, 2009: 405). A

tradição pode ser vista também como uma preservação de aspectos do passado que vão se

mostrando eficazes nas dinâmicas socioculturais cultivadas.

É a partir das novas demandas dadas pela sociedade moderna que a cultura vai se

reinventando e se reestruturando. Hobsbawm diz que “É o contraste entre as constantes

mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e

invariável ao menos alguns aspectos da vida social que torna a ‘invenção da tradição’ um

assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea.” (HOBSBAWM, 1984,

p.11).

A noção de “tradições inventadas” trazida por Eric Hobsbawm serve aqui para

compreendermos determinadas transformações pelas quais passou o maracatu3 e como elas

passaram a dar sentido às comunidades tradicionais onde se encontram as sedes das nações,

bem como os novos espaços em que o brinquedo passa a ser praticado.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente

reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual

ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da

repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.

Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado

histórico apropriado. (HOBSBAWM; RANGER; 1984: 10)

Para tornar mais claro o uso deste conceito, cito um exemplo bastante interessante.

Houve na década de 1960 a invenção de uma tradição marcante para o maracatu, A Noite dos

Tambores Silenciosos. Este evento foi se ressignificando ao longo dos anos e adquirindo forte

3 Ao longo do século XX o maracatu de baque virado passou por transformações ligadas mais diretamente à questão

de seu envolvimento com a religião, aos períodos de maior visibilidade e outros de ostracismo – como citado no

capítulo 1. Porém, há na década de 1990 o auge do maracatu, um movimento chamado de “boom do maracatu”,

justamente por ter acarretado transformações substanciais em um curto período de tempo e estastransformações

redefiniram inúmeras práticas como a inserção de novos instrumentos, a permissão de homens transvestidos de

baianas de cordão, a entrada das mulheres na bateria, a expansão do maracatu pelo Brasil, Estados Unidos e

diversos países da Europa.

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conotação religiosa, sendo, atualmente, um momento ritual de homenagens aos espíritos dos

antepassados e eguns. Como afirma Ivaldo Marciano, “a Noite dos Tambores Silenciosos

tornou-se uma referência obrigatória, e qualquer maracatu-nação que preze as ‘tradições

africanas’ tem o dever de nela participar” (LIMA, 2006: 188). Criado com o intuito de ressaltar

o viés artístico e turístico do maracatu - tornando-se, pois, um produto cultural -, esse evento é

reinventado e ressignificado pelos maracatuzeiros e hoje, muito mais que um produto, é símbolo

da religiosidade e das reminiscências africanas e afro-brasileiras.

Este é apenas um dos muitos exemplos que aqui poderiam ser apresentados, mas o que

interessa é perceber como este conceito de tradição se aplica às dinâmicas do maracatu. Assim,

podemos considerar que as mudanças ocorridas durante as décadas de1980 e 1990 foram

essenciais para a invenção de novas tradições no folguedo.

A partir de 1980 o maracatu ganhou enorme destaque na indústria cultural através,

principalmente, da banda Chico Science e Nação Zumbi e do Mangue Beat. Esse movimento

foi o responsável por propor a valorização da cultura regional e marginal, somando-as à cultura

Pop. Desde então muitas pessoas de classe média passam a visitar Recife a fim de aprenderem

a tocar o ritmo, com o objetivo de criar novos grupos de estudo do folguedo, o que leva ao

aparecimento de grupos por todo Brasil, Estados Unidos, e alguns países da Europa.

Outro fator de grande relevância para a disseminação de novos grupos Brasil e mundo

afora, foi a configuração do Maracatu Nação Pernambuco. Pela ênfase dada à percussão e a

dança, mas não necessariamente à religião, Jailma Oliveira acredita que esta configuração

alcançou “relativo sucesso, dando origem ao que se convencionou chamar de grupos

percussivos” (OLIVEIRA, 2011: 26)

Com estes dois movimentos ressignificando as práticas e os modos do maracatu de

baque virado, os grupos percussivos foram surgindo pelo Brasil e pelo mundo. Sua prática

estava disseminada em novos espaços, alcançando principalmente pessoas de classe média e

brancas. Como efeito de políticas de turismo e a normatização do carnaval, os maracatus nação,

assim como outros folguedos, tiveram que se adaptar a uma dinâmica de manutenção pautada

na globalização e mercantilização da cultura (GUILLEN, LIMA, 2006).

Alguns aspectos são essenciais para determinar essas mudanças. Em primeiro lugar, o

maracatu deixa de ser um brinquedo da cultura de um lugar bem definido e passa a fazer parte

de um universo totalmente diferente, para não dizer, o seu extremo oposto, ou seja, das

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comunidades periféricas de Recife, com altos índices de violência e analfabetismo, ele passa a

ser realizado por pessoas brancas da classe média, com alto índice de escolaridade. Essas

diferenças são determinantes e definidoras dos novos espaços em que os maracatus surgem a

partir de então e também das pessoas que passam a praticá-lo.

A partir de 1990, principalmente, é que novas demandas sociorrelacionais estabelecidas

pelos novos grupos e sujeitos envolvidos com o folguedo fazem necessárias a transformação e

invenção de algumas tradições. E essas invenções e transformações parecem modificar não

apenas as dinâmicas dos grupos internamente e em relação a outros, mas também com os

indivíduos que experenciaram estas transformações e que foram parte delas, direta ou

indiretamente.

É fato, contudo, que todas essas transformações, ressignificações e reinvenções foram

determinantes na negociação de memórias e perceber em que medida estas se configuram em

relação às identidades individuais e coletivas dos sujeitos que vivenciaram todo esse processo.

É em meio a esse turbilhão de transformações que as mulheres conquistam novos espaços no

maracatu, questionando hierarquias e funções, inserindo-se em lugares antes permitidos

somente a homens.

Para compreender como este feito produziu e consagrou algumas memórias foi preciso,

pois, buscar o significado das mesmas por meio de entrevistas, uma vez que as fontes oficiais

não dão conta de tamanha problemática. Para tanto, foram realizadas entrevistas com três

mulheres e três homens que viveram e vivem nas nações de maracatu, ou que fizeram parte dela

de alguma forma. Como esses espaços significam e negociam memórias, funções e tradições é

o que se coloca a seguir.

Batendo tambores, tecendo memórias

Para se fazer uma história do maracatu, o pesquisador pode se ater à bibliografia, aos

relatos de viajantes e cronistas e às fontes oficiais de periódicos, registros policiais e da Igreja.

Estas fontes foram, durante certo tempo, as únicas utilizadas para se escrever e se traduzir para

a Academia, anos de tradição e cultura, ainda de forma restrita e lacunar.

Porém, como se trata da cultura das classes populares e, por muito tempo, de pessoas

iletradas, os primeiros estudos acadêmicos sobre o maracatu traziam apenas a observação das

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danças, cantos e práticas que se faziam ver na avenida ou no dia a dia das comunidades – se

mais do que isso.

Porém, como seria possível exprimir ou mesmo traduzir as subjetividades inerentes a

sujeitos históricos ainda silenciados pela intelectualidade nos registros acadêmicos? O que

poderia dizer a voz daqueles que fazem e vivem a cultura popular?

Como nos diz Alessandro Portelli “[...] as fontes orais dão-nos informações sobre o povo

iletrado ou grupos sociais cuja história escrita é, ou falha, ou distorcida. Outro aspecto diz

respeito ao conteúdo: a vida diária e a cultura material dessas pessoas e grupos.” (PORTELLI,

1997: 27). A história oral permite valorizar a memória das pessoas que fazem e vivem o

maracatu, a partir de suas histórias pessoais, os significados sagrados e profanos de suas

experiências e as relações sociais e de gênero ali vivenciadas.

As comunidades tradicionais4, de classes não hegemônicas, trazem-nos, por meio da

subjetividade da narrativa, novas perspectivas que a história oficial não dá conta e vão além

dela. A história oral difere-se, pois, da escrita oficial da história, por valorizar sujeitos e

memórias, sem a pretensão de julgá-los corretos ou incorretos diante do que nos contam ou de

buscar “uma verdade”.

Segundo Portelli, a história oral nos dá luz para novas “áreas inexploradas da vida diária

das classes não hegemônicas”, na valorização dos significados e não dos fatos (PORTELLI,

1997: 31). Dessa forma, o que interessou aqui é como os colaboradores e colaboradoras vão

tecendo suas memórias, buscando sentido no passado para ressignificá-lo, produzindo

entendimento quanto às suas próprias experiências e identidades.

O objetivo da presente pesquisa foi perceber os diferentes significados sobre viver o

maracatu na esfera do pertencimento, ou seja, na formulação de identidades capazes de dar

sentido às experiências destes sujeitos históricos, destacando as relações existentes entre

homens e mulheres praticantes do maracatu de baque virado, somando-se à história do

folguedo, a memória dos e das brincantes. É um trabalho sobre história oral de vida,

4 De acordo com o Decreto 6040, de 07 de fevereiro de 2007, do Governo Federal, Povos e Comunidades

Tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas

próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua

reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas

gerados e transmitidos pela tradição”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-

2010/2007/decreto/d6040.htm>.

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entendendo-a como uma história coletiva, a partir da memória coletiva de uma comunidade de

destino5.

Para entender essas relações foram realizadas entrevistas com três mulheres e três

homens envolvidos com o maracatu6. Das mulheres, todas são ex-batuqueiras e nenhuma delas

nasceu ou viveu na comunidade em que seu grupo vivia; todas vieram para o maracatu por

interesse pelo brinquedo e suas práticas. É relevante pensarmos que são três mulheres que vêm

de outro universo que não os espaços onde encontram-se as sedes dos maracatus e que, portanto,

inserem-se naquele meio até então resguardado apenas a moradores daquela comunidade e

também das comunidades vizinhas, ou a pesquisadores que faziam parte do dia a dia e

conviviam com aquelas pessoas por tempo determinado por suas pesquisas.

Apesar de não compartilharem dos mesmos anseios, dificuldades e experiências que as

pessoas das comunidades, elas se envolveram com as nações ao ponto de se comprometerem

com seu funcionamento diário e suas práticas sociorrelacionais, algo que só foi possível durante

a Década de Noventa, dada a nova dinâmica a partir da entrada de pessoas de classe média e de

mulheres tocando na bateria.

O fato destas pessoas se interessarem pela cultura popular mesmo vivendo condições

sociais e econômicas diferentes, nos dá luz para pensarmos a relação acerca da perspectiva de

que o maracatu passa a ser um produto cultural a partir dos Anos Noventa o que lhe agrega um

valor de uso, distinto entre aqueles que o praticavam até então e os que viriam depois. Essa

mudança foi fundamental para determinar os rumos dos maracatus.

Uma característica também compartilhada pelas colaboradoras e muito interessante, é

que todas estudaram música antes, durante ou depois de sua vivência com a nação. É necessário

salientar, pois, que a visão delas tem como pano de fundo suas experiências e expectativas

5 Para José C. S. B. Meihy, a comunidade de destino está relacionada à união de um grupo de pessoas por meio de

base material ou de fundamento psicológico, de gênero ou orientação (política, cultural ou sexual). “No primeiro

caso, elementos de efeitos físicos dizem respeito a situações que vinculam pessoas, clãs e grupos expostos a

circunstâncias que dão unidade traumática ao destino das pessoas: calamidades, terremotos, pestes, flagelos,

marcam a experiência coletiva de um grupo em um lugar físico e cultural. Outra alternativa, está de base

psicológica, diz respeito às experiências de cunho moral: pessoas afetadas por dramas subjetivos ou não naturais

como violência, abusos, arbitrariedades, discriminação. De uma ou de outra forma, a sustentação que marca a

união de pessoas são dramas comuns, coetâneos, vividos com intensidade e consequências relevantes, episódios

que alteram no porvir o comportamento pretérito, rotineiro, e que impõem mudanças radicais de vida grupal.”

(MEIHY; HOLANDA, 2008, p.51) 6 Suas entrevistas foram consentidas e sua publicação autorizada.

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acadêmicas e também técnicas, ressaltadas em suas falas ao relatarem que a escolha ou a

permanência no grupo do qual faziam parte, deu-se pela sonoridade e especificidade do mesmo.

Em relação aos homens, os três tocam atualmente em suas respectivas nações. Com

exceção de Luís Água, que conheceu as nações de maracatu por meio de grupos percussivos,

os demais viram surgir em sua comunidade o maracatu, onde vivenciam o dia a dia do folguedo.

Todos três participam da dinâmica de funcionamento de suas comunidades, seja uma

participação de cunho social, econômico, cultural e também religioso.

Uma das características definidoras da singularidade dos maracatus nação em relação

aos grupos percussivos é exatamente o pertencimento à comunidade. No caso dos três, suas

vivências são permeadas pelas dificuldades sociais e econômicas deste espaço, suas

experiências se valem de toda dinâmica sociohistórica que promove a integração dos moradores

e moradoras do bairro, além de toda lógica religiosa e cultural que ditam regras e fornecem

saberes específicos que só podem ser apreendidos pelos sujeitos históricos envolvidos no dia a

dia dessa localidade, o que não impede, porém, que pessoas vindas "de fora" sejam capazes de

abstrair estes saberes e vivências.

É pertinente observar, assim, que os questionamentos que levaram as mulheres a

proporem mudanças no funcionamento destas instituições se dão, por um lado, por suas

expectativas em relação à sua condição enquanto mulheres ˗ ou seja, uma questão de gênero ˗,

e, por outro lado, pela possibilidades de se intervir nessas dinâmicas culturais e

sociorrelacionais, uma vez que, ao virem de ambientes "de fora", lhes foi possível conceber as

tradições a partir de concepções que extrapolam o dia a dia dessas comunidades onde se

inseriram, trazendo seus anseios para dentro destas, propondo novos modelos de socialização e

concepção do feminino dentro do maracatu.

Sobre este aspecto de gênero falaremos mais a frente, mas o que nos importa por

enquanto é perceber como essas mulheres e suas experiências foram fundamentais para a

ressignificação de inúmeros símbolos e saberes do folguedo, bem como a reinvenção de

tradições no interior das nações e das comunidades nas quais se inserem.

Memória coletiva e identidade

Michael Pollak considera alguns elementos como constitutivos da memória individual

ou coletiva: acontecimentos, pessoas e personagens e lugares. Em relação aos acontecimentos,

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estes podem ter sido vividos realmente ou, como chama o autor, aqueles “vividos por tabela”,

“acontecimentos vividos pelos grupos ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer”

(1992: 201).

Podemos dizer que a escravização e a resistência a ela configuram uma memória

herdada entre aqueles que vivem o dia a dia de uma nação de maracatu. O discurso sobre como

os antepassados resistiram e lutaram para a sua própria sobrevivência e a do maracatu, está

muito marcado nas falas de nossos entrevistados. Mesmo para as mulheres que não são daquela

comunidade, mas que passaram a viver e conviver ali, essa narrativa é muito forte, chegando

mesmo a ser utilizada como um diferencial legitimador entre as nações e os grupos percussivos.

Em relação às pessoas e personagens, é muito comum ouvir de alguém algum

ensinamento que fora passado por um ancestral dentro dos maracatus. Não se faz necessário ter

convivido com esta pessoa para que seus ensinamentos perdurem entre as memórias atuais.

Muitos são os nomes evocados na memória das pessoas que vivem o maracatu, principalmente

por ser uma manifestação da cultura negra afro-descendente de culto aos antepassados e

valorização de seus feitos, o que permite a existência de memórias sobre o ser e fazer dessas

pessoas, geralmente trazendo aspectos de valorização de suas experiências e resistências, sendo

considerados heróis e heroínas, grandes conhecedores da cultura do maracatu.

Por fim, o terceiro elemento constitutivo da memória é o lugar. Ficou evidente ao longo

das entrevistas que há um forte sentimento de pertencimento entre nossos colaboradores e

colaboradoras, seja em relação aos que não moravam na comunidade mas que passaram a

acompanhar o dia a dia, os problemas, conflitos, a religiosidade e toda a dinâmica de

funcionamento da mesma, seja em relação aos que nasceram nessas comunidades e que se

sentem pertencentes a uma identidade afro-brasileira, e por serem descendentes de

escravizados, conservam muitas memórias que lhes foram passadas oralmente, que marcam e

determinam suas lutas e suas narrativas.

Essa identidade negra é invocada em algumas falas, muitas vezes utilizadas para

legitimar essa relação direta com o passado em comum de escravização e resistência. O lugar

de memória mais ressaltado é, ainda, a comunidade. Cada uma dessas comunidades conserva

aspectos muito singulares em relação às demais e foram essas características que permitiram o

desenvolvimento de tal identidade que rege não apenas o funcionamento da nação, mas também

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a importância dada ao mestre e, sempre, às rainhas, que são também as mães de santo do terreiro

no qual a nação está inserida7.

Como já mencionado anteriormente, esse aspecto do espaço determina toda a lógica de

funcionamento da comunidade, da religião e da nação. Estar inserido nessa lógica é conhecer e

abstrair os saberes e memórias que conduzem o funcionamento destas instituições, seja

propondo reinvenções e ressignificações, seja vivendo de maneira passiva, sem questionar

qualquer aspecto.

É curiosos observar, ainda, que as memórias da vida pública e privada de nossos

colaboradores e colaboradoras se entrelaçam, tecendo toda a trama das narrativas, em uma

relação constante. Isso se explica pelo fato de que a memória pessoal e a coletiva vão se

construindo uma em relação a outra e um acontecimento marca não apenas a vida de quem a

vive diretamente, mas também de quem está inserido no grupo.

É claro que ao considerarmos as memórias e as identidades como parte de um processo

de negociação, organização e construção, aceitamos que nenhuma memória está isenta das

relações entre indivíduos e meio. Em relação à construção da memória, Pollak diz:

[...] a memória é um fenômeno construído. Quando falo em construção, em nível

individual, quero dizer que os modos de construção podem tanto ser conscientes como

inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é

evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social

e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que

há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de

identidade. [...] (POLLAK, 1992: 204)

O sentimento de pertencimento advindo de grupos como uma nação de maracatu, parece

perpassar pela identidade social do indivíduo em relação ao grupo. Para ser aceito naquele meio

que resguarda ensinamentos e memórias ancestrais, o sujeito que ali se coloca e se preserva,

segue determinadas regras de conduta e convívio que extrapolam a vontade pessoal de um e

outro, pois estas regras servem a todos e repousam, portanto, na memória consciente e também

inconsciente destes indivíduos.

A construção dessa identidade vai se reproduzindo em relação ao outro, a partir do que

se torna aceitável ou não naquele espaço, ou seja, há sempre um processo de negociação

7 Esta afirmação é válida para as nações das quais fazem parte nossos entrevistados e nossas entrevistadas. Apesar

de ser uma característica comum à maioria das nações, não é uma regra inerente à existência das mesmas.

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(POLLAK, 1992: 204). Assim como a identidade passa por um processo constante de

negociação, também o é a memória. No maracatu de baque virado, a transmissão de

conhecimentos segue a mesma linha das religiões de matriz africana, ou seja, pela tradição oral,

e está em constante negociação e disputa de identidades.

Dessa forma, foi possível verificar que as memórias individuais dos colaboradores e

colaboradoras da pesquisa são formuladas, silenciadas, negociadas e significadas em relação à

memória coletiva do grupo, da religião, da comunidade e da nação. Nenhuma memória está

isenta, pois, de elementos maiores e constitutivos do coletivo. O pertencimento consiste

justamente na habilidade, consciente ou não, de se tecer e entrelaçar junto daquilo que é do

outro, mas que é abstraído como seu e que toma proporções significativas em toda teia da

memória e da identidade.

As mulheres no maracatu

Segundo Michelle Perrot (1989), a narrativa história voltada aos espaços públicos –

política, guerra, economia – impossibilitou que as mulheres estivessem presentes nesta escrita

uma vez que estavam resguardadas ao espaço privado – da família, do lar. Mesmo quando

passaram a ser tema das investigações históricas, a escassez de fontes mostrou-se grande

problema para as pesquisas, pois estas não estavam nos arquivos públicos, tão caros à história

oficial. Contudo, a história oral possibilitou que as vozes destas mulheres fossem ouvidas, assim

como as vozes de todos os sujeitos históricos ignorados pelo apreço às fontes oficiais. Para as

mulheres, a história oral aparece como uma “revanche” (PERROT, 1989).

No que diz respeito ao maracatu de baque virado, assim como em outras expressões da

cultura popular, às mulheres estavam destinadas posições de menor ou quase nenhuma

visibilidade, elas estavam presentes além das personagens do cortejo, em funções confinadas

ao espaço privado como a costura, a cozinha, aos afazeres e preparação do grupo e da

comunidade e eram, portanto, consideradas secundárias. Nas funções de poder, de maior

visibilidade e prestígio, estavam os homens, estabelecendo regras e condutas, enquanto

detinham o poder da memória e da fala.

Foi a partir das mudanças trazidas pelas décadas de 1980 e 1990 que as mulheres

passaram a questionar os espaços e as funções de poder dentro do maracatu, possibilitando

ressignificações desses símbolos e reinvenção das tradições. A primeira conquista dessas

mulheres foi, como mostrado anteriormente, a permissão para tocarem na bateria das nações.

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Olhar para essa mudança é também olhar para os conflitos que se seguiram a ela,

principalmente no que diz respeito aos “incômodos” causados pela tomada de espaços e funções

de poder que antes pertenciam apenas a homens. A partir do momento em que as mulheres

passaram a ocupar lugares de destaque e prestígio, elas passaram também a demandar

reconfigurações e reavaliações de certos conceitos e costumes.

O desconforto causado só pode ser estimado por meio das memórias tanto de homens

quanto mulheres, uma vez que ambos participaram deste processo. Não seria possível alcançar

os resultados pretendidos tomando como base apenas nas memórias de uns ou outros, fazendo-

se necessário considerar tanto as mulheres que chegam e transformam quanto dos homens que

vivem esta transformação. Afinal, como considerou Joan Scott (1995), a questão de gênero é

sempre cultural e relacional e, portanto, só pode ser entendida em conjunto, ou seja, em relação

de complemento, de construção mútua, de tensão, de conflito

Pode-se imaginar que estas mudanças tiveram diferentes significados para homens e

mulheres e, claro, entre estas, dadas suas relações com o folguedo, a nação na qual se inseriram

e os conflitos vivenciados por cada uma. Concordando com Alessandro Portelli (1997), quando

tratou da história oral, as memórias nos são valiosas, no caso das mulheres entrevistadas por

conterem referências desconhecidas até então, trazendo luz a aspectos ignorados, tornando

possível a reformulação de determinados conceitos, suscitando novos questionamentos e

olhares.

A partir das entrevistas, foi possível constatar que a inserção das mulheres nas baterias

das nações se deu de maneira despretensiosa. De acordo com o que foi aferido pela pesquisa, a

primeira nação a permitir a entrada de mulheres no batuque foi o Estrela Brilhante de Recife,

entre 1993 e 1994. A princípio, essas mulheres – junto de um grupo de estudantes de música –

foram conhecer a nação já com o intuito de tocar, mas desconheciam a proibição do toque no

aspecto de gênero, lhes foi permitido, porém, ensaiar na bateria, mas nos desfiles e

apresentações, elas faziam outras funções.

Contudo, nesse mesmo momento entre 1993 e 1994 houve uma apresentação em que

muitos integrantes não puderam comparecer e uma dessas mulheres acabou tocando para

"cobrir" a falta de batuqueiros. Diante da aceitação do público, foi permitido que a partir

daquele momento as mulheres pudessem sempre se apresentar na bateria. Esse modelo foi

seguido por outras nações e cada vez mais delas abriam espaço para as mulheres na bateria.

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Porém, a partir desse novo espaço conquistado pelas mulheres, foi comum a vivência

de desafios e conflitos para elas. Houve relatos de nossas colaboradoras que, muitas vezes, eram

propostos cortejos por horas seguidas a fim de verificar se as mulheres realmente dariam conta

do desafio, onde aquelas que chegassem ao final eram consideras aptas para a função, enquanto

as demais já sabiam de seu desfecho. Entre as mulheres também era comum que lhes incitassem

a disputa, como se elas devessem provar qual delas realmente saberia tocar, enquanto os

homens, acreditava-se, existiria um dom natural para o toque dos tambores, nesse sentido as

mulheres precisavam sempre mostrar que eram capazes de tocar "como homens".

As narrativas colocam em evidência o caráter sociocultural das relações de gênero,

aspecto importante levantado por Joan Scott (1995) construindo atributos e funções para cada

um deles de forma a naturalizá-los. Mesmo no maracatu, a observação feita pela entrevistada

demonstra o questionamento sobre certas habilidades consideradas naturais entre os gêneros,

estabelecendo hierarquias.

Outro elemento aferido ao longo da pesquisa foi o desconhecimento pelos homens que

cederam suas entrevistas sobre o processo de entrada das mulheres na percussão das nações.

Isso pode se dar pelo fato de que quando se envolveram com o maracatu as mulheres já tocavam,

ou, possivelmente, por não constituir um aspecto relevante na trajetória destes. Apesar de não

tomarem conhecimento sobre estes eventos, os três defendem essa presença atualmente e

consideram uma inovação e um direito as mulheres ocuparem este espaço. Como afirmou Scott,

as diferenças entre gêneros, cada vez mais visíveis, levam a novas reflexões sobre o direito à

igualdade, numa condição complexa das relações de gênero e que não pode mais ser negada.

Isso fica claro nas disputas do maracatu.

Os conflitos entre homens e mulheres parecem ser percebidos de maneiras distintas

entre uns e outros. As disputas podem se dar em diversos eventos e podem, inclusive, ser muito

sutis e passar desapercebidas. Entre os homens há consonância na afirmação de que não há

conflitos entre eles e as mulheres em suas nações.

Os aspectos trazidos nas entrevistas possibilitam compreender em que medida os

conflitos relativos à presença das mulheres podem passar despercebidos para os homens. Este

desconhecimento se dá por tratar-se de uma situação em que violências sutis permeiam as

relações entre homens e mulheres e podem, inclusive, gerar comportamentos discriminatórios

que não são vistos como tal, justamente por sua sutileza. Por outro lado, é importante

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compreender que estas situações passaram a ser questionadas após a entrada de mulheres de

classe média nos grupos tradicionais, o que não significa que estas violências não aconteciam

anteriormente, apenas que com as novas posições assumidas pelas mulheres e também pelas

novas concepções trazidas pelas pessoas “de fora” os conflitos tornaram-se mais evidentes.

O território da cultura popular, assim como qualquer outro, é um espaço de disputas e

conflitos e a mulher torna-se epicentro destes quando se propõe a inovar em suas funções e

demonstrar sua capacidade. Não questionar suas posições e as limitações impostas parece não

ser uma opção para estas mulheres que incitaram o questionamento quanto à ordem vigente,

aceitaram os desafios, indagaram sobre suas posições, seus papéis e supostas demarcações.

Estas e tantas outras mulheres mudaram os rumos do maracatu de baque virado, fazendo

história, convertendo opressões em conquistas, redefinindo aspectos fundamentais para a

emancipação e empoderamento no seio da cultura popular, das identidades e das memórias

femininas.

Conclusão

A noção de tradição aplicada a este trabalho possibilitou verificar em que medida as

mudanças ocorridas no universo do maracatu de baque virado a partir das décadas de 1980 e

1990 foram fundamentais para a reinvenção e ressignificação de elementos rituais e simbólicos

do folguedo, perpassando o espaço no qual se insere, ou seja, as comunidades periféricas de

Recife, os usos que se faz da cultura popular enquanto produto cultural, a disseminação do

mesmo em novos espaços e a promoção por novos agentes culturais, bem como um campo de

luta e empoderamento das mulheres quando da conquista de novos direitos e funções.

Procurei demonstrar em que medida essas mudanças resultaram nos processos atuais do

folguedo, chamando atenção para o movimento conhecido como “boom do maracatu” entre fins

da década de 1980 e início de 1990, que foi crucial para a entrada das mulheres na percussão

das nações, evento que considerei como questão central da pesquisa.

Falar de gênero na cultura popular é adentrar um campo ainda pouco explorado ao

mesmo tempo em que se apresenta cheio de possibilidades. A escassez de fontes não parece

limitar o trabalho quando as vozes de sujeitos históricos envolvidos nestes processos são

ouvidas, quando suas memórias são valorizadas e suas subjetividades e identidades individuais

e coletivas tonam-se referências.

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Foi através de memórias dos entrevistados e entrevistadas que pude compreender

melhor todo o processo de reconfiguração das nações de maracatu de baque virado e todos os

conflitos passados e atuais resultantes desse processo. A memória e as narrativas foram o

alicerce para dar conta do problema proposto e seria impossível realizar esse trabalho sem o

uso destas.

Essas fontes foram fundamentais para compreender as negociações e os conflitos

existentes entre homens e mulheres dentro do maracatu, assim como as noções de poder e

espaço adquiridos por cada um deles e delas. É evidente, porém, que seis pessoas não são

capazes de exprimir o todo que é este universo. Contudo, a pesquisa teve o intuito de incitar

essas discussões e não as findar, afinal, a memória, assim como a tradição, se reinventa e se

transforma em processos constantes. Enquanto a cultura é praticada, também o são os elementos

constitutivos da memória, seja no silenciamento ou na busca por ser ouvido. Dar ouvidos a estes

sujeitos históricos é, pois, uma dívida que a intelectualidade tem para com a cultura popular.

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