A Tradução e as Transposições Da Interface

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  " A tradução e as transposições da interface 1  Cristina Petersen Cypriano – IEC/PUC Minas Francisco Coelho dos Santos – UFMG Resumo Esse trabalho explora a ideia de tradução como instrumento analítico para compreender as associações entre agentes expressivos e objetos sensíveis no compartilhamento de experiências cotidianas em redes sociais da Internet. Para tanto, considera como expressivos os agentes que compartilham nessas redes material imagético e textual proveniente de suas rotinas. São tomados por objetos sensíveis os aparelhos de conexão sem fio que, embora não sejam dotados de razão, são capazes de receber, armazenar e transmitir informações. Operando como mediadores, tais aparelhos habilitam os agentes a atuar em coletivos que se formam em torno da partilha de experiências carregadas de teor afetivo. A cumplicidade entre os os agentes e os aparelhos sem fio constitui o foco privilegiado do trabalho, tendo em conta que a ideia de tradução pode ser aplicada como substrato de agenciamentos entre entidades heterogêneas envolvend o humanos e não humanos. Não se perde de vista que a tradução amplia o alcance dos fluxos de texto e imagem que exprimem o dia a dia dos agentes, na medida em que possibilita a recondução daquilo que está em circulação na direção de outros fluxos circulantes. Tal recondução se dá a partir do potencial que a tradução tem de fabricar ligações onde antes elas não existiam. O texto encontra nessa característica central subsídios para examinar processos de captura e de contágio que se realizam na transposição da interface entre os fluxos online e a vida offline dos agentes. Palavras-chave Interface ; redes móveis ; tradução 1  Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. O conteúdo desse texto é parte da tese de doutorado intitulada “Nas travessias da interface: as novas formas da vida social em rede”, defendida e aprovada no âmbito do Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFMG, em abril de 2013.

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Etnografia no ciberespaço

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    A traduo e as transposies da interface1

    Cristina Petersen Cypriano IEC/PUC Minas

    Francisco Coelho dos Santos UFMG

    Resumo

    Esse trabalho explora a ideia de traduo como instrumento analtico para

    compreender as associaes entre agentes expressivos e objetos sensveis no

    compartilhamento de experincias cotidianas em redes sociais da Internet. Para tanto,

    considera como expressivos os agentes que compartilham nessas redes material

    imagtico e textual proveniente de suas rotinas. So tomados por objetos sensveis os

    aparelhos de conexo sem fio que, embora no sejam dotados de razo, so capazes de

    receber, armazenar e transmitir informaes. Operando como mediadores, tais aparelhos

    habilitam os agentes a atuar em coletivos que se formam em torno da partilha de

    experincias carregadas de teor afetivo. A cumplicidade entre os os agentes e os

    aparelhos sem fio constitui o foco privilegiado do trabalho, tendo em conta que a ideia

    de traduo pode ser aplicada como substrato de agenciamentos entre entidades

    heterogneas envolvendo humanos e no humanos. No se perde de vista que a traduo

    amplia o alcance dos fluxos de texto e imagem que exprimem o dia a dia dos agentes,

    na medida em que possibilita a reconduo daquilo que est em circulao na direo de

    outros fluxos circulantes. Tal reconduo se d a partir do potencial que a traduo tem

    de fabricar ligaes onde antes elas no existiam. O texto encontra nessa caracterstica

    central subsdios para examinar processos de captura e de contgio que se realizam na

    transposio da interface entre os fluxos online e a vida offline dos agentes.

    Palavras-chave

    Interface ; redes mveis ; traduo

    1 Trabalho apresentado na 29 Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. O contedo desse texto parte da tese de doutorado intitulada Nas travessias da interface: as novas formas da vida social em rede, defendida e aprovada no mbito do Programa de Ps Graduao em Sociologia da UFMG, em abril de 2013.

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    A interface

    A ideia de interface tem sido frequentemente associada a uma das rubricas

    informticas do termo, cuja designao refere-se a um meio pelo qual um indivduo

    interage com programas de computador e sistemas operacionais. Ainda mais comum

    tem sido a vinculao direta dessa palavra s lisas e brilhantes telas dos computadores e

    de outras mquinas que seguem a mesma linhagem deles. A ampla difuso desse

    especial tipo de entendimento do termo se d na medida em que vem se tornando algo

    familiar a convivncia com aparelhos que contm tecnologias extremamente

    sofisticadas para o tratamento de informaes e comunicaes em rede. As interfaces

    que essas mquinas nos do a explorar primam por favorecer a interao com elas,

    simplificando-a ao mximo, habilitando um leigo a lidar com um equipamento

    tecnologicamente muito complexo. Na relao com interfaces desse gnero esto sendo

    forjadas novas formas de vida social em rede.

    Essa espcie de interface est, h aproximadamente duas dcadas, se inserindo

    de tal modo nas rotinas de trabalho, estudo e lazer que j no escapa ao nosso olhar a

    presena de uma ou mais telas de computador cintilando no entorno de atividades

    diversas. Isso se passa nas residncias, nas escolas, nos escritrios e reparties, nos

    centros comerciais, nas lojas, nos supermercados, nas agncias bancrias, nas bilheterias,

    entre outros tantos lugares que compem o universo das nossas vidas cotidianas. E mais,

    com a recente disseminao das tecnologias sem fio, esse tipo de interface tem sido

    encontrado tambm nas mos de uma enorme e variada gama de indivduos que esto

    em trnsito nas ruas, nos nibus, nos vages de metr, nos aeroportos, nos restaurantes,

    nas filas dos cinemas, nos sagues dos hotis, nos corredores das escolas e assim por

    diante. Por conseguinte, a imagem de grandes e pequenas telas reluzentes j passou a

    integrar extensamente as mltiplas paisagens do nosso dia a dia e tende a maior

    disseminao.

    No se trata, contudo, de paisagens em relao s quais nos posicionamos com

    algum distanciamento, mas sim da composio do ambiente em que experimentamos o

    cotidiano de nossas aes. Essa interface que nos autoriza a realizar permutas com

    sistemas informticos, cuja natureza na maior parte das vezes foge nossa esfera de

    entendimento, tem integrado muitas das nossas prticas. De tal modo que, se j h

    algum tempo nosso olhar dificilmente a perde de vista, nos dias de hoje temos nos

    habituado a ter contato fsico com ela, seja por intermdio de perifricos como o mouse

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    e o teclado de um computador, seja pelo toque nas sensveis telas que respondem ao

    calor dos dedos. Tambm nossas vozes j promovem interao com essa interface

    maqunica que emite sons quando manipulada, tornando-a ainda mais convidativa

    interao.

    notvel, portanto, que desde a chegada dos primeiros computadores pessoais

    que, nos anos 1990, comearam a ser instalados em nossos lares at os recm-

    propagados aparelhos sem fio que so alojadas junto aos nossos corpos, estamos

    vivendo um processo de intensificao nos modos de relao com a interface dessas

    novas tecnologias de informao e comunicao as novas TICs. Esse processo

    envolve duas dimenses, uma de carter mais quantitativo e outra de perfil mais

    qualitativo. A primeira diz respeito tanto ao aumento do nmero de indivduos que

    recorrem a essas tecnologias na conduo de suas aes, quanto ampliao do elenco

    de atividades que envolvem esse tipo de recurso. J a dimenso mais qualitativa remete

    a um aprofundamento da intimidade com que nos relacionamos com essas mquinas e

    com as diversas operaes que elas nos autorizam a realizar. De maneira que no nada

    negligencivel a intercalao dessas duas espcies de intensificao nos modos de

    apropriao social das novas TICs, considerando que elas tm a peculiar caracterstica

    de funcionar em rede, dando suporte a fenmenos de interconexo em escala mundial.

    Cada vez que um indivduo interage com a interface de uma dessas mquinas

    com capacidade para conectar-se rede mundial de computadores a Internet , ele se

    v em condies de acessar um ilimitado universo de tecnologias e informaes digitais

    permanentemente animado pela presena de inmeros outros indivduos que tambm se

    conectam rede por meio de seus equipamentos. Trata-se de um ambiente onde toda e

    qualquer ao se d por encadeamentos que envolvem no somente os diversos

    indivduos e suas mquinas, mas tambm uma variedade de sistemas informticos,

    ondas eletromagnticas, sinais de infravermelho, cabos, mainframes, servidores, entre

    outros vrios elementos que, articulados em rede, promovem fluxos com potencial para

    recobrir boa parte do planeta.

    Ainda que seja inapreensvel em sua totalidade, esse ambiente tecnolgico

    informacional que se abre para alm da interface torna-se, por meio dela, acessvel.

    Variam os modos de relao com o que se encontra na rede, assim como variam os

    modos de interao com as mquinas. A tendncia mais geral que se observa, entretanto,

    a de uma extraordinria progresso no processo de familiarizao com as dinmicas

    caractersticas desse ambiente assim como ocorre em relao aos aparelhos de

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    conexo , sendo que as condies reticulares da Internet em muito contribuem para

    isso. uma topologia que favorece os crescimentos exponenciais de certos fenmenos,

    considerando que quanto mais numerosos so os indivduos conectados, mais

    complexos ficam os encadeamentos em rede e mais vigorosos os fluxos em andamento.

    Por sua vez, quanto maior a intimidade com a qual esses inmeros indivduos acessam

    esses fluxos e se inserem no mbito dessas concatenaes reticulares, mais

    profundamente eles assimilam, nos vrios domnios da vida, as dinmicas que so

    indissociveis do ambiente tecnolgico informacional.

    A traduo por transposio da interface

    So incontveis as possibilidades de ajustamento entre o que circula nas redes

    online e as interaes que se passam olhos nos olhos. Um ajustamento que pode ser

    efetuado por intercalao, por sobreposio, por entrelaamento, por mistura, por

    cotejamento, enfim, por inmeras maneiras pelas quais um indivduo capaz de

    articular suas experincias na Web com as que transcorrem no entorno de seu corpo.

    Seja qual for a natureza dessa articulao, ela sempre promove condies de mtua

    interferncia entre as associaes (Latour, 2012) que impelem os fluxos digitais em rede

    e as concatenaes do mesmo gnero que do prosseguimento s atividades que

    transcorrem no ambiente fsico. Isso realizado toda vez que um indivduo transpe a

    interface e assume o estatuto de tradutor entre um milieu e outro.

    O ato de traduo por transposio da interface pode ser compreendido, em um

    primeiro momento, a partir da acepo de traduo proposta por Michel Callon. Em

    entrevista sobre seus estudos de coletivos heterogneos, o autor observa que a ideia

    de traduo se associa ideia de circulao (Callon, 2008: 308), remetendo ao que ele

    considera como o mais fundamental nas redes compostas por elementos heterclitos: as

    relaes entre os pontos das redes e tudo que circula nessas relaes. Por essa

    perspectiva, a traduo est vinculada matria que desloca nos fluxos que avivam uma

    rede, quilo que transportado de um n a outro. Tratando-se de redes que conjugam

    entidades heterogneas, o transporte do que circula entre tais entidades ,

    necessariamente, efetuado por traduo. De modo que, seguindo o raciocnio de Callon,

    a ideia de traduo corresponde circulao e transporte, a tudo que faz que um ponto

    se ligue a outro pelo fato da circulao (Callon, 2008: 309). A traduo promove a

    circulao e tem o potencial de fabricar ligaes onde antes no existia.

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    Essa concepo da traduo como produtora de conexes adquire sentido em um

    contexto de pensamento que a situa como substrato de agenciamentos capazes de

    redimensionar os encadeamentos constitutivos de redes e o fazem pela reconduo

    dos fluxos em circulao na direo de outros fluxos circulantes. Em uma entrevista na

    qual discute os aportes de sua Sociologia da traduo, Callon (2009) expe essa

    relao direta entre traduo e agenciamento, argumentando que agenciamentos so os

    operadores da traduo e a traduo o mdulo bsico no qual os agenciamentos so

    construdos (Callon, 2009: 399). O desenvolvimento desse argumento de Callon

    tributrio noo de agenciamento scio-tcnico de Deleuze (Callon, 2009: 398,

    grifo do autor). De modo que, para avanar um pouco mais nessa apreenso da ideia de

    traduo, importante escrutinar, minimamente que seja, a concepo de agenciamento

    nas formulaes de Gilles Deleuze, junto a Flix Guattari.

    Em um trabalho a respeito da obra literria de Kafka, Deleuze e Guattari (2003)

    elaboram uma exposio sobre o que um agenciamento onde aparecem duas

    condies essenciais para compreend-lo. A primeira condio a de que um

    agenciamento sempre coletivo; a segunda a de que trata-se de coletividades

    heterclitas, ou seja, de multiplicidades s quais eles denominam mquina. Para os

    autores, uma mquina no simplesmente tcnica. Pelo contrrio, ela s tcnica

    enquanto mquina social, apanhando homens e mulheres nas suas engrenagens, ou

    melhor, tendo homens e mulheres nas suas engrenagens, mas tendo tambm coisas,

    estruturas, metais, matrias (Deleuze e Guattari, 2003: 137). Para evitar qualquer tipo

    de equvoco, eles esclarecem que homens e mulheres fazem parte da mquina, mas no

    s no trabalho, mais ainda nas suas atividades adjacentes, no repouso, nos amores, nos

    protestos, nas indignaes, etc. (Deleuze e Guattari, 2003: 137). E a mquina s

    funciona quando todos os elementos esto conexos, quando existe ligao entre as

    diversas engrenagens, mesmo se essas engrenagens tm ar de se opor ou de funcionar

    de maneira discordante (Deleuze e Guattari, 2003: 138). Os agenciamentos so essas

    ligaes que colocam a funcionar juntas engrenagens discordantes, heterogneas.

    Nos dilogos com Claire Parnet, Deleuze (1998) observa que a nica unidade

    do agenciamento de co-funcionamento: uma simbiose, uma simpatia (Deleuze &

    Parnet, 1998: 57) que estabelece ligaes entre multiplicidades. No agenciamento o

    importante no so nunca as filiaes, mas as alianas e as ligas; no so os hereditrios,

    os descendentes, mas os contgios, as epidemias, os ventos (Deleuze & Parnet, 1998:

    57). H sempre um deslocamento, um desvio, uma linha de fuga que traada numa

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    ligao que conjuga distintas multiplicidades. Inventar um agenciamento , nesse

    sentido, fazer passar uma multiplicidade para outra. O difcil fazer com que todos os

    elementos de um conjunto no homogneo conspirem, faz-los funcionar juntos

    (Deleuze & Parnet, 1998: 43). Contudo, na medida em que as multiplicidades so

    efetivamente agenciadas e passam a funcionar junto elas tornam-se inteiramente

    redimensionadas.

    A ideia de redimensionamento das coletividades heterclitas atravs de novos

    agenciamentos diz respeito no somente a uma ampliao na totalidade das conexes,

    mas tambm a uma significativa mudana no conjunto dos elementos conectados. Nas

    formulaes sobre o rizoma que introduzem a obra Mil plats, Deleuze e Guattari

    (1995) abordam essa questo dizendo que um agenciamento precisamente este

    crescimento das dimenses numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza

    medida que ela aumenta suas conexes (Deleuze & Guattari, 1995: 5). De tal modo

    que cada agenciamento tem o potencial de ampliar e, ao mesmo tempo, de transformar

    um determinado prosseguimento de relaes. Essa capacidade transformadora do

    agenciamento no nunca, entretanto, um ponto de origem, uma vez que todo e

    qualquer agenciamento est sempre entre incontveis outros agenciamentos que

    permanentemente ligam, religam, deslocam, redefinem as coletividades que compem.

    como mdulo bsico de um agenciamento desse gnero que Callon define a

    traduo. Ela permite as trocas, as permutas, entre os componentes heterogneos de uma

    rede, entre os elementos de natureza diferente que no falam a mesma lngua. A

    traduo capaz de gerar uma nova conexo transportando de um ponto a outro aquilo

    que no seria conduzido no fosse por um ato de traduo. Fazendo circular os fluxos

    de uma rede para alm da prpria rede, na direo de outras concatenaes, a traduo

    propicia agenciamentos entre as diferentes multiplicidades, fomentando os contgios do

    co-funcionamento. Um tradutor , nesse sentido, uma parte ativa dentro do

    agenciamento e, ao mesmo tempo, operador de relaes em redes com outras entidades

    que so traduzidas e participam do agenciamento (Callon, 2009: 400). O tradutor

    promove o redimensionamento das coletividades heterogneas que ele prprio integra,

    operando desvios e transformando-as transformao que, vale ressaltar, sempre

    reenviada ao prprio indivduo.

    A ttulo de exemplo, um indivduo que, estando mesa de um restaurante,

    notificado pelo Facebook sobre um evento remoto pode, por um ato de traduo,

    promover um agenciamento entre o fluxo de informaes que circula pelas redes

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    sociotcnicas e o complexo de interaes que animam seu almoo. Se na traduo

    sucederem simpatias, contgios, permutas entre os encadeamentos de ao dos quais ele

    participa no mundo fsico e aqueles que dizem respeito a suas relaes online, tal

    agenciamento pode resultar em um redimensionamento de ambas as multiplicidades,

    ainda que seja pelo curto instante em que elas se conectam em co-funcionamento. O

    indivduo promove, assim, uma singular conexo entre sua experincia local e aquela

    que tramita pela ilimitada extenso das trocas tecnologicamente sustentadas da Web.

    Pela transposio da interface ficam abertas as vias pelas quais no somente a vida

    enxertada, digitalizada, entre as redes tecnolgicas da Internet, mas tambm por onde

    escoam os fluxos digitais sobre a cotidiana prtica do espao contguo.

    A interface mvel

    A conectividade mvel aumenta a possibilidade de interferncia mtua entre os

    processos tipicamente online e a rotineira vida offline, e o faz de maneira diversa do que

    ocorre nas redes fixas. A conexo Internet a partir de um terminal fixo exige que o

    indivduo interrompa uma ou mais atividades e se dedique inteiramente navegao na

    rede. Essa deambulao sedentria, pela qual, a partir de uma mesa de trabalho transita-

    se de site em site atravs dos links que se abrem a cada pgina, favorece um movimento

    de transposio da interface que se d por um ato de imerso no ambiente digital.2

    O prprio termo imerso nos ajuda a compreender que esse modo de relao

    com a interface pressupe que o indivduo se retire das relaes que sucederiam em seu

    entorno para deixar-se absorver pelas dinmicas que transcorrem nas redes

    sociotcnicas da Web. De tal modo que, recorrendo s consideraes de Derrida (1998)

    sobre o intraduzvel, pode-se entender essa atitude de imerso como um tipo de

    relao com a interface que desafia a traduo, na medida em que constitui uma

    experincia prioritariamente subjetiva de travessia. Com muita frequncia os

    intercmbios que transpem a interface de um terminal fixo so partilhados apenas

    com o tradutor (Derrida, 1998: 29) e permanecem estranhos ao conjunto de relaes

    que integram seu ambiente. Tanto que, uma vez desligado o computador, nada impede

    que o perodo de imerso adquira para o indivduo o sentido de uma vivncia

    inteiramente parte do encadeamento de sua prtica cotidiana. 2 Uma exposio sobre a imerso pela interface foi realizada em Santos & Cypriano (2011a).

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    No por acaso que os primeiros aventureiros da Web aqueles que, embora

    no fossem especialistas em assuntos tecnolgicos, arriscavam-se a frequentar o novo

    espao relacional, poca designado como ciberespao foram extremamente

    eficientes em abrir caminhos e em conduzir a vida ao ambiente puramente informtico,

    sem que para isso fossem necessrias grandes redefinies dos encadeamentos de ao

    que davam sentido a suas atividades dirias. O aparente isolamento de um indivduo

    sentado diante de um monitor de computador a imagem da conexo fixa e das

    dificuldades de traduo, para as relaes que se do em suas imediaes, da vivacidade

    que pode ser experimentada para alm da interface. 3

    O relato de Rheingold (1996), um dos eminentes desbravadores do ciberespao,

    sobre os comentrios de sua filha a respeito do tempo em que ficava conectado

    comunidade virtual que frequentava ilustrativo desse tipo de relao com a interface.

    Ele cita a fala da criana ao exclamar que o pap est a dizer caramba outra vez ao

    computador e completa, comentando que sua filha de 7 anos [ poca] sabe da

    convivncia do pai com uma famlia de amigos invisveis, que parecem reunir-se no

    computador (Rheingold, 1996: 13). Essa breve narrativa d uma dimenso do

    estranhamento provocado pela atitude de imerso. Ela mantm toda a riqueza das trocas

    online em uma esfera distante. No toa que a designao ciberespao perdura

    referindo-se a uma totalidade apartada da vida comum, na qual, de tempos em tempos, o

    indivduo pode imergir e efetuar intercmbios de toda ordem. A conectividade fixa

    ainda muito difundida e, uma vez desligado o computador, as permutas que l foram

    realizadas podem permanecer em segredo, podem ser silenciadas. Contudo,

    exatamente essa condio de separao e intocabilidade daquilo que se experimenta por

    meio da interface fixa o que vem sendo dissipado com a ampla propagao da

    conectividade sem fio.

    A interface mvel favorece as tradues ao permitir com muita agilidade que os

    acontecimentos remotos circulantes pela Web se avizinhem dos prosseguimentos locais.

    Da vizinhana decorrem os possveis contgios. O que est em jogo a vigncia de uma

    interface que, acoplada aos corpos de indivduos permanentemente conectados que se

    movimentam pelo espao fsico, est distribuda ponto a ponto de uma imensa rede

    sociotcnica que atravessa fronteiras geogrficas, sociais, culturais, polticas, recobrindo 3 Esse movimento do indivduo isolar-se que to caracterstico da conexo fixa justifica, em grande medida, as nada incomuns avaliaes do fenmeno que o associam a uma decadncia da sociabilidade face a face. Uma discusso que em torno da questo declnio ou transformao da sociabilidade? nas redes sociais online pode ser encontrada em Merckl (2011).

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    boa parte do planeta.4 O extraordinrio alcance dessa interface reticular, nmade,

    proporcionado localmente, na experincia contgua de cada indivduo conectado rede

    e disposto a realizar permutas a partir de suas TICs sem fio. De maneira que sua larga

    extenso est fortemente associada ao tipo de relao que a maior parte dos indivduos

    estabelece com as potencialidades que encontra nesses aparelhos de conexo.

    necessrio que cada indivduo assuma o estatuto de agente expressivo explorando as

    possibilidades que lhe so abertas, arriscando intercmbios, cultivando laos, avivando,

    assim, os mltiplos terminais por onde so realizadas as transposies da interface.

    Quanto mais os indivduos criam cumplicidade com o que seus aparelhos

    mveis de conexo em rede tm a oferecer, mais estas tecnologias tornam-se integrantes

    ativos dos prosseguimentos de ao que operam em distintas localidades. Cada vez mais

    portando-se como objetos sensveis (Rheingold, 2005), esses aparelhos mveis, embora

    no sejam dotados de razo, so capazes de receber, armazenar e transmitir informaes.

    De tal modo que, paulatinamente, os telefones celulares, os notebooks, os tablets, entre

    outros, vm sendo incorporados como indispensveis partcipes (Latour, 2012: 108,

    grifo do autor) da prtica rotineira. claro que isso no significa que os partcipes

    determinem a ao, como ressalta Latour (2012:108), mas sim que eles precisam

    autorizar, permitir, conceder, estimular, ensejar, sugerir, influenciar, interromper,

    possibilitar, proibir, etc. uma vasta gama de concatenaes que configuram as vrias

    atividades do dia a dia, como trabalhar, estudar, se informar, comunicar, colaborar,

    sociabilizar e mesmo amar.

    Imbricados na conduo da rotina dos indivduos, os aparelhos sem fio

    proporcionam uma radicalizao das formas tecnolgicas de vida (Lash, 2001). A

    conectividade permanente e distribuda entre indivduos dispersos por vastas extenses

    condiciona uma interface ubqua, semelhante a uma membrana permevel entre o real

    e o virtual, entre o aqui e o qualquer lugar (Ito citada por Castells et alii, 2009: 117).

    Cada vez mais integrada experincia adjacente dos indivduos, a interface mvel abre

    passagem, se deixa atravessar, torna-se porosa de tal maneira que chega a passar

    despercebida.

    4 inerente tecnologia sem fio uma extensa capilaridade levando a conectividade a regies que, pela ausncia de infra-estrutura adequada, no haviam sido contempladas com linhas fixas. Castells et alii (2009: 276) apontam esse fenmeno recorrendo ideia de salto tecnolgico numa aluso ao velho argumento Gershenkroniano sobre o salto de etapas de desenvolvimento econmico. Eles argumentam que o servio telefnico mvel forneceu o meio de os pases em desenvolvimento saltarem a etapa da tecnologia do servio telefnico de linha fixa (2009: 276).

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    Quanto a isso, interessante remeter referncia que Adriana de Souza e Silva

    (2006) faz a um estudo de Rheingold onde ele observa que a maioria dos adolescentes

    japoneses nunca acessara a Internet atravs de um computador de mesa antes de

    ganharem seu primeiro Keitai (De Souza e Silva, 2006: 28) termo em japons que

    designa o telefone porttil. Essa ausncia de interatividade com terminais fixos de rede

    repercute em um distanciamento, por parte desses adolescentes, da noo de uso da

    Internet como uma atividade que tem finalidade em si mesma. A autora comenta que

    sem conexo a priori com os conceitos de imerso e de realidade virtual na Internet

    os entrevistados demonstram se preocupar mais com o modo como o Ketai pode ajud-

    los em espaos fsicos: achando lugares e amigos atravs de servios de posicionamento,

    comprando passagens de trem e pagando as compras no supermercado (De Souza e

    Silva, 2006: 28).

    claro que a experincia desses adolescentes japoneses no pode ser tratada

    como representativa de toda e qualquer forma de relao com a interface mvel. Indica,

    contudo, uma tendncia configurao de um modo de relao que est muito distante

    daquele que se tem diante de um computador de mesa. No de se admirar que sejam

    adolescentes os indivduos que manifestam essa espcie de apagamento da ntida

    distino entre a vida online e a offline, pois a maioria deles j nasce em um mundo

    onde torna-se cada vez mais comum a intercalao entre as experincias locais e os

    fluxos digitais que transpem todos os tipos de fronteira. Crianas e jovens vm sendo,

    desde a tenra idade, naturalmente familiarizados com o novo paradigma tecnolgico,

    devido sua socializao na sociedade em rede, como observam Castells et alii (2009:

    327). As tecnologias que para muitos de ns se apresentam como novssimos

    participantes da rotina, so, para as crianas e os adolescentes, alguns dos co-habitantes

    de um mundo onde se pode transpor, a qualquer momento a interface entre o aqui e o

    acol.

    A crescente familiarizao com as TICs mveis leva ao limite a extraordinria

    propriedade que as redes sociotcnicas tm de facultar translaes entre o local e o

    global. Antes da propagao desse tipo de conectividade reticular podia parecer ao

    comum dos indivduos apenas uma abstrao matemtica a existncia de uma topologia

    que permitisse atingir quase todos os lugares sem que, para tal, fosse necessrio ocupar

    mais do que estritas linhas de fora (Latour, 1994: 118). E isso de maneira

    praticamente imediata, em grande parte das vezes. A disseminao desse tipo de

    interface que habilita a ligao quase instantnea entre uma multiplicidade de locais em

  • 11

    escala global remete ao prognstico emitido por Pierre Rosenstiehl no fim da dcada de

    1980. Sua avaliao de que a nossa poca ser marcada pelo fenmeno rede

    (Rosenesthiel, 1988: 228), considerando que a rede um objeto topolgico um

    conjunto de ns interligados por elos que deixa de ser exclusivamente uma metfora

    circunscrita ao domnio da cincia e comea a integrar, de maneira crnica, a vida social.

    O fio de Ariadne

    A partir do uso das tecnologias mveis, a experincia cotidiana de ubqua

    conexo entre o local o global adquire condies de possibilidade na topologia reticular.

    pela imagem de um labirinto que Latour (1994) nos permite percorrer o traado dessa

    ligao to potente quanto evanescente. Ele nos oferece um fio de Ariadne. Enquanto

    Ddalo um engenhoso inventor com argcia para escrutinar as contrafeitas curvas de

    um labirinto, Ariadne quem oferece ao viajante do labirinto um fio, cuja ponta ela

    segura, para que ele ali no se perca e possa retornar, uma vez cumprida sua empreitada.

    Ocupado em saber como conectar-se sem, contudo, tornar-se local ou global?, Latour

    (1994) remete a um fio de Ariadne que nos permitiria passar continuamente do local ao

    global, do humano ao no humano, um fio que nos conduz por uma rede de prticas e

    de instrumentos, de documentos e tradues (Latour, 1994: 119) cuja abrangncia

    somente alcanada de agenciamento em agenciamento, ininterruptamente. Um fio cuja

    meada pode ser desenrolada e reenrolada conforme as mudanas na direo. Esse fio

    estendido medida que aumentam os encadeamentos sociotcnicos de um labirinto de

    redes um pouco longas que envolvem, de forma incompleta, um mundo a partir de

    pontos (Latour, 1994: 119). O complexo de agenciamentos entre entidades

    heterogneas que constitutivo dessas redes, somente pode ser percorrido de lao em

    lao, de n em n. De tal modo que todo e qualquer deslocamento exige uma

    recontextualizado a cada nova ligao.

    Essa imagem de um deslocamento por redes heterclitas que conserva um fio

    condutor pode ser enriquecida pela figura do viajante do labirinto descrita por

    Rosensthiel (1988), na medida em que ela introduz a perspectiva do indivduo que se

    move entre os mltiplos agenciamentos. Para o autor, o viajante errante experimenta

    uma sensao de infinito no labirinto (Rosensthiel, 1988: 251), ele no tem a viso de

    uma rede como teriam o arquiteto ou o cartgrafo que o vm distncia, na planta ou

    no mapa , mas a percepo de um espao que se desdobra diante dele medida que ele

  • 12

    progride. Trata-se de um percurso onde tudo se decide localmente e em cada lugar

    (Rosensthiel, 1988: 248).5 Um traslado onde cada agenciamento est no meio de

    incontveis outros que podem, permanentemente, redefinir o percurso do viajante.

    Entretanto, esse viajante que tudo explora leva nas mos o fio de Ariadne, sua nica

    garantia de voltar ao ponto de partida (1988: 254), de no se perder, definitivamente,

    entre as curvas do labirinto.

    A concepo de um fio que, embora possa ser longamente prolongado, garante

    ao viajante do labirinto a possibilidade do retorno ao ponto de partida fundamental

    quando aplicada ao indivduo que transpe a interface entre o mundo dos tomos e o

    mundo dos bits. Mesmo se tratando de uma relao com a interface que se d aos

    moldes da imerso, quando o indivduo encontra nas permutas online a totalidade de

    sentido de sua conexo, ele sempre volta ao ponto de partida sua mesa de trabalho,

    sua escrivaninha, sua cadeira. Mais ou menos afetado pelo que vivencia para alm da

    interface, o indivduo retorna e d sequncia a uma ou mais atividades rotineiras que

    foram suspensas durante o perodo em que esteve conectado Internet. H sempre uma

    garantia de regresso para o lado de c da interface, quando o indivduo desliga sua

    mquina e retorna de suas deambulaes pela Web. O fio de Ariadne do viajante pelas

    redes digitais sua prpria experincia offline, que no desvanece nem se dissipa

    totalmente, por maior que seja a atitude de imerso pela interface.

    Com as permutas caractersticas da interface mvel ocorre algo similar, porm o

    indivduo encontra-se ainda mais implicado em seu entorno fsico. Onipresente e porosa,

    a interface que, atravs de um aparelho sem fio, o acompanha no curso de sua prtica

    diria, favorece a explorao errante, contudo, nunca o absorve inteiramente. Pelo

    contrrio, engendra travessias vinculadas s concatenaes que do sentido sua vida

    offline. Os fluxos digitais que, habilitados a percorrer todo o planeta, desdobram-se do

    outro lado da interface de link em link, de notificao em notificao, de mensagem em

    mensagem, constituem os caminhos que o indivduo se pe a explorar no mundo digital.

    Ele o faz, entretanto, sempre apto a regressar, dando prosseguimento a alguma atividade

    localmente contextualizada. Nas intermitncias entre o aqui e o l so incontveis as

    possibilidades de desvios pelos quais vo decaindo os objetivos primeiros e surgindo

    novos encadeamentos. De tal modo que h sempre uma composio da ao marcada 5 A respeito dessa caracterstica de somente operar por informaes locais Rosensthiel observa que o labirinto o substrato dos sistemas reticulares acentrados (Rosensthiel, 1988: 248). Sobre sistemas acentrados que, embora coordenados localmente, so capazes de performances globais, ver o verbete Centrado/acentrado de Jean Petitot (1988).

  • 13

    pelas linhas que vo ficando mais longas a cada passo (Latour, 2001: 210). O fio

    condutor da experincia contgua estende-se nas mltiplas e subsequentes travessias da

    interface.

    A cada passagem desse traslado repleto de desvios, o indivduo pode trazer uma

    novidade, abrir uma brecha, efetuar uma traduo que redimensiona as multiplicidades

    que integra de um lado e de outro da interface. Torna-se, ento, um inventor de curvas

    no labirinto que ele mesmo explora, um agenciador de heterogeneidades. Rosensthiel

    (1988) havia observado que quem faz o labirinto o viajante e no o arquiteto. Isso

    porque ele considera que o labirinto no uma arquitetura, uma rede no sentido de

    quem o projeta e concebe, mas o espao que se desdobra diante do viajante que progride,

    sem mapa, na prpria rede (Rosensthiel, 1988:251). isso que se d em grande parte

    das tradues por transposio da interface, elas no raro promovem agenciamentos

    sem finalidade definida a priori, proporcionam contgios que se desviam de qualquer

    intencionalidade, realizam inflexes que so provocadas durante o trajeto. O indivduo

    encontra uma abertura que muitas vezes no estava prevista, ele traa um caminho,

    sempre curvo que, mais cedo ou mais tarde, o reenvia aos encadeamentos da vida

    cotidiana.

    Se for pensado, com Deleuze (1988), que a unidade de matria, o menor

    elemento do labirinto, a dobra (Deleuze, 1988: 9), pode-se dizer que o ato de

    traduo por transposio da interface realiza a dobra pela qual o curso da vida, uma

    vez enxertado nas redes sociotcnicas, reenviado sobre ele prprio, redefinindo suas

    formas. E no h limites para as recorrentes transposies pelas quais a vida se estende

    atravs da interface e retorna acrescida do que germinado no milieu digital. As novas

    formas nas quais ela se realiza vo adquirindo uma extraordinria textura. Como um

    tecido ou alguma outra matria flexvel e elstica as formas tecnolgicas de vida vo se

    dividindo em dobras que podem se redobrar indefinidamente, sempre uma dobra na

    dobra, como uma caverna na caverna (Deleuze, 1988: 9).

    As tradues por transposio da interface ubqua, pelas quais cada indivduo de

    posse de um aparelho de conexo em rede est apto a agenciar os encadeamentos da

    vida online aos da offline, trazendo o distante para perto, fazendo avizinhar o que

    poderia permanecer estranho, sem, contudo, perder o fio condutor de sua experincia

    contgua, traam as mltiplas dobras pelas quais os fluxos digitais so implicados no

    mundo fsico. E isso se d ponto a ponto de uma extensa rede de interconexo que

    recobre grande parte do planeta.

  • 14

    A tarefa do tradutor

    Pode-se entender Os modos de ser do habitante das novas formas de vida social

    em rede englobam o ofcio da traduo por transposio da interface. Sobre a tarefa do

    tradutor vale remeter exposio de Walter Benjamin (2000) e posterior discusso de

    Derrida (2006) a esse respeito. Benjamin faz uma elaborao em torno das relaes

    entre o original e sua traduo que foi minuciosamente examinada por Derrida e que

    nos permite uma aproximao muito singular do que pode significar para o habitante

    das redes o ato de traduo pela travessia da interface. Benjamin encontra entre a

    traduo e o original muito mais que uma transmisso de significado, antes, uma

    correlao de vida. Ele argumenta que do mesmo modo como as manifestaes da

    vida, sem nenhum significado para o vivo, esto com ele na mais ntima correlao,

    assim a traduo procede do original. Certamente menos de sua vida que de sua

    sobrevida (Benjamin, 2000: 246). A noo de sobrevida central nesse contexto de

    pensamento. interessante notar que Benjamin evoca a concepo de vida a partir de

    uma perspectiva histrica e no orgnica. Ele considera a sobrevida como uma

    possibilidade de existncia do original para alm do tempo e do lugar onde ele tem vida.

    Sobrevida como vida para alm da vida. Na traduo, diz Benjamin, a vida do original,

    em sua constante renovao, conhece seu desenvolvimento o mais tardio e o mais

    expandido (Benjamin, 2000: 247).

    Derrida (2006) retoma essa concepo de Benjamin e explora a ideia de

    sobrevida que d consistncia ao ato de traduo. Ele observa que se o tradutor no

    restitui nem copia um original, que este sobrevive e se transforma. A traduo ser na

    verdade um momento de seu prprio crescimento, ele a completar-se- engrandecendo-

    se (Derrida, 2006: 46). Derrida procura eximir o tradutor do eterno dever de restituir ao

    original seu sentido, pois essa exigncia o coloca na condio de endividado, de algum

    que se encontra em situao de devolver ao original algo que foi retirado. Remetendo a

    Benjamin, Derrida redefine a posio do tradutor como agente de sobrevida, frisando

    que tal sobrevida d um pouco mais de vida, mais que uma sobrevivncia (Derrida,

    2006: 33). Por esse ponto de vista, a traduo est muito distante da noo de cpia

    infiel, ela assume o status de uma transposio potica (Derrida, 2006: 47) que

    transgride os limites do que traduzido e o transforma ampliando-o, estendendo-o. De

    tal modo que se pe em vigor uma relao de duplo endividamento (Derrida, 2006:

    41), na medida em que original j demanda a traduo.

  • 15

    Com a noo de duplo endividamento, a anlise de Derrida introduz um novo

    elemento relao entre o original e a traduo. Essa noo remove uma suposta

    hierarquia que colocaria a traduo em lugar secundrio face ao original. Se, de um lado,

    a traduo deve ao original a obrigao de restitu-lo naquilo que ela falha em traduzir,

    do outro, o original torna-se tributrio da expanso de vida que lhe oferecida pela

    traduo. Ele passa, ento, a padecer dessa exigncia em seu prprio sentido de

    originalidade. No alcanaria esse estatuto no fosse pela traduo. Ao oferecer

    sobrevida ao original, a traduo acusa as limitaes dele. Nenhuma originalidade ele

    teria, assim como mais restrita seria sua vida sem os acrscimos que ela proporciona a

    ele. O original torna-se, nesse sentido, o primeiro devedor, o primeiro demandador, ele

    comea por faltar e por lastimar aps a traduo (Derrida, 2006: 40).

    interessante abordar luz dessa lgica a traduo que o habitante das formas

    tecnolgicas de vida realiza nas travessias da interface. Considerando que se trata da

    transposio de material colhido em suas experincias online ou offline, fica possvel

    perceber que a traduo tem o potencial de ampliar, estender, prolongar, mais que

    simplesmente transmitir aquilo que traduzido. Tudo o que se testemunha ou vivencia

    de um lado ou de outro da interface pode adquirir sobrevida pelo ato da traduo. H

    entre os habitantes uma perda do costumeiro sentido de originalidade das experincias

    que eles partilham em rede, na medida em que a travessia da interface, ou, para usar os

    termos de Derrida (2006), a transposio potica da interface expande tais

    experincias e as redimensiona, traindo nelas, desde o incio, uma necessidade de

    traduo. Aqueles que so onde a interface se torna ubqua promovem continuamente o

    prolongamento das prprias experincias de vida. Para eles j no faz sentido localizar

    aqui ou l a originalidade do que compartilhado com suas redes de relaes, eles

    manifestam um modo de relao com esse tipo de intercmbio muito mais pautado pela

    potncia da expanso do vivido que pela definio de pontos de origem.

    Consideraes finais

    Preservadas as diferenas nas posies e atitudes dos vrios indivduos em

    relao s transposies da interface, ficam os traos de uma mesma direo no

    processo de composio de novos modos de vida em rede: h sempre pelo ato de

    traduo a promoo de um acrscimo na experincia que a redimensiona. Isso se d

    nas muitas maneiras pelas quais o cotidiano vem englobando as trocas online e nas

  • 16

    vrias modalidades de insero da vida em ambiente digital, quando ocorre a criao de

    algum tipo de agenciamento entre as multiplicidades que se estendem de um lado e de

    outro da interface.

    Nos contnuos agenciamentos so redefinidas as condies pelas quais somos

    ns de redes e nos ligamos uns aos outros. Contando com a presena de agentes

    expressivos e, portanto, cada vez mais abertos s permutas com a alteridade, a tendncia

    que se manifesta a de um crescente cultivo dessas formas de ligao sociotcnica que

    prolongam o escopo do que por eles vivenciado. Cultivao que se realiza nas

    mltiplas tradues que oferecem sobrevida ao vivido. Vida para alm da vida que nas

    travessias da interface reenviada sobre si mesma, provocando cada vez mais dobras

    entre as quais transcorrem novos contgios, num intenso processo que ainda no deu

    mostras de onde pode chegar.

  • 17

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