A Tragédia Na Cultura (Comentário Sobre o Livro de E. Cassirer)

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    ERNST CASSIRER

    A "TRAGDIA DA CULTURA"*

    Hegel disse que a histria mundial no o lugar da felicidade; osper odosde paz e felicidade so folhas em branco no l ivroda histria. Eleno acreditava, de modo algum, que se encontrasse refutada, com isso, asua convico fundamental de que "na histria tudo acontece racionalmente"; ele viu naquela assero muito mais a confirmao e o reforo

    desta convico. Que significa, porm, a vitriada ideia na histria mundial, se essavitria deve ser comprada com a renncia a toda a felicidadehumana? No soa uma tal teodiceiaquasecomo umsarcasmo,e no tinhaSchopenhauer razo quando explicava que o "opt imismo" hegeliano erauma forma de pensamento no s absurda como t ambm perversa?Questes deste tipo impuseram-se sempre ao esprito humano precisamente nas pocas culturais mais ricas e brilhantes. A cultura foi sentidano como um enriquecimento, mas antes como um alheamento do verdadeiro objectivo da existncia. Em pleno Iluminismo, profere Rousseau o

    seu requisitrio inflamado contra "as artes e as cincias". Estas teriamabatido e debilitado o ser humano, do ponto de vista da eticidade, e noteriam satisfeito as suas necessidades no plano fsico, tendo, em vezdisso, despertado nele milhentas pulses insaciveis. Todos os valoresculturais s o fantasmas a que temos de renunciar, se no quisermos serpara sempre condenados a ir beber ao tonel das Danaides.1 Com estaacusao, Rousseau abalou nos seus alicerces o racionalismo do sculoXVin. Aqui reside o efeito profundo que exerceu sobre Kant.Atravs deRousseau, Kant v-se libertodo puro intelectualismo e dirige-se para um

    novocaminho. No acredita mais que o desenvolvimento e o refinamentoda cultura intelectual possam resolver todos os enigmas da existncia ecurar todos os males da sociedade humana. A simples cultura do enten-

    *Die "Tragdie der Kultur" in Zur Logik derKulturwissenschaften. FnfStudien.Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980, pp. 103-127.

    1As cinquenta filhas de Dnao, as quais, tendo, excepode Hipemnestra, morto osseusmaridos na noite de npcias,foramcondenadas,depois da morte, a encher perpetuamente um recipiente perfurado, de onde se escoava toda a gua nele derramada(N.doT.).

    Philosophica,23,Lisboa, 2004, pp. 137-158

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    dimento noconsegue fundamentar o valor mais alto da humanidade; elatem de ser regulada e refreada por outras foras. Mas mesmo quando oequilbrio moral-espiritual a lcanado e o primado da razo prtica assegurado em detrimento do da razo terica,permanecev a esperana deque, poressemeio,possa ser apaziguada a nsia de felicidade do homem.Kant est profundamente convencido do "fracasso de todas as tentativas

    filosficas de teodiceia". Assim, no lhe resta qualquer outra soluoalm da e l iminao radical do eudemonismo, a qual tentou na fundamentao da sua tica. Se a felicidade fosse o verdadeiro objectivo doesforo humano, a culturaestariaporesse meio orientada de uma vez portodas. A sua justif icao s pode, porm, assentar na introduo de umaoutra bitola de valorao. O verdadeiro valor noassentanos bens que ohomem recebe como presente da natureza e da providncia. Ele resideapenas nas suas prprias aces e naquilo que a si prprio faz atravsdestas aces. Com isto, Kant aceita opressupostodeRousseau, sem dele

    tirar amesma concluso. O grito de Rousseau: "Retornemos natureza!"poderia restitui r e assegurar a felicidade existncia humana, mas, dessemodo, o homem ver-se-ia alheado da sua verdadeira destinao. Isto porque esta dest inao no reside no sensvel, mas antes no inteligvel.Aquilo que a cultura promete ao homem e que unicamente lhepodedar ,no a felicidade, mas o "tomar-se digno da felicidade". O seu objectivono a realizao da felicidade na Terra, mas antes a realizao da liberdade, da autntica autonomia, a qual no significa o domnio tcnico dohomem sobre anatureza, mas antesodomnio moralsobre si prprio.

    Assim, Kant cr ter transformado o problema da teodiceia de umproblema metafsico num problema puramente tico e, por fora destatransformao, ter tambm resolvido criticamente tal problema. Mas nemtodasas dvidas que podem ser levantadas contra o valor da cultura estocom isso atenuadas. Isto porque um outro conflito, muito mais profundo,

    parece levantar-se quando se tem em consideraoo novo objectivo que aqui apontado cultura. Pode ela atingir realmente este objectivo? Sercerto que o homem pode encontrar, na cultura e atravs dela, a realizao

    da sua verdadeira essncia "inteligvel", que ele pode alcanaraqui, no asatisfao de todos os seus desejos, mas o desenvolvimento de todas assuas foras e disposies espirituais? Seria este o caso apenas se ele

    pudesse saltar para l da barreira da individualidade, se pudesse alargar oseu prprio eu at o todo da humanidade. Mas, precisamente nesta tentativa, sente ele o seu limite de modo ainda mais claro e doloroso. Pois ht ambm aqui um momento que ameaa e reprime a espontaneidade, apura autonomia do eu, em vez de a elevar e intensificar. Se aprofundarmos este lado do problema, ganhar ele por essa via e por vez primeira

    todo o seu acmen. Numensaio a que deu o ttulo "O conceito e a tragdia da cultura", Georg Simmel ps a questo com toda a preciso. Duvi-

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    da, porm, que se possa chegar a uma soluo. Segundo ele, a filosofiapode apenas apresentar o conflito; ela no pode prometer nenhuma sadadefinitiva para ele. Pois quanto mais fundo penetra a reflexo, mais elanos mostra a estrutura dialctica da conscincia da cultura. O progressoda cultura presenteia a humanidade com ddivas sempre novas; mas osujeito individual v-se cada vez mais excludo do usufruto das mesmas.

    Para que servir uma riqueza que o eu no pode nunca transformar emsua propriedade viva? No ele incomodado por ela, em vez de ser porela libertado? Em tais consideraes, depara-se-nos o pessimismo dacultura na sua verso mais aguda e radical. Pois ele toca, agora, o pontomais vulnervel. Ele aponta para uma falha de que nenhum desenvolvimento espiritual pode libertar-nos, porque tal falha reside na prpriaessncia desse desenvolvimento. Os bens que essedesenvolvimento produz crescem continuamente em nmero; mas, precisamente nessecrescimento, deixameles de ser teis para n s. Tornam-se algo simplesmente

    objectivo, uma coisa disponvel e dada, que no mais se deixa, contudo,apreender e compreender pelo eu. Sob a sua variedade e peso continuamente crescentes, o eu sente-se esmagado. Doravante, ele no retira dacultura aconscincia da sua potncia, mas apenas a certeza da sua impotnciaespiritual.

    O verdadeiro motivo para esta "tragdia da cul tura" v-o Simmel nofacto de a aparente interiorizao que a cultura nos promete ir sempre a

    par com uma espcie de auto-externalizao.Entre a "alma" e o "mundo"

    existe uma constante relao tensional que ameaa tornar-se, por f im,numa relao simplesmente antittica. O homem no pode ganhar omundo espiritual sem que, com isso, a sua alma sofra danos. A vida espiritual consiste num progresso constante; a vida anmica, num regressocada vez mais profundo a si prpria. Os fins e os caminhos do "espritoobjectivo" no podem, por isso, ser iguais aos da vida subjectiva.Para aalma individual, tudo aqui lo que ela n o pode preencher consigo prpriatem de tornar-se numa casca dura. Esta casca enrola-se cada vez maisdensamente sua volta e deixa-se cada vez menos dissolver. "A vida

    vibrante da alma, infatigvel, que se desenvolve sem limites, que cria emqualquer sentido, contrape-se o seu produto fixo, idealmente incomov-vel, que tem como repercusso fatdica a imobilizao daquela vivacidade, a sua fossilizao; , muitas vezes, como se a mobilidade produtivada alma sucumbisse ao seu prprio produto [ . . . ] . Na medida em que algica das formaes e conexes impessoais est carregada de dinamismo, surgem duras frices entre estas, os impulsos interiores e asnormas da personalidade, frices essas que sofrem uma condensao

    peculiar na forma da cultura como tal. Desde que o homem diz eu para si

    prprio, se torna objecto para e perante si prprio, desde que, atravs detal forma, os contedos da sua alma pertencem conjuntamente a um cen-

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    tro desde ento teve de crescer, a partir dessa forma, o ideal de queestes contedos, assim ligados com o centro, consti tussem tambm umaunidade em si fechada que fosse, por isso, um todo auto-suficiente. Sque os contedos nos quais o eu deve consumar esta organizao nummundo prprio, unitrio, no lhe pertencem exclusivamente;eles so-lhedados a partir de uma qualquer exterioridade espacial, temporal, ideal,so, ao mesmo tempo, os contedos de quaisquer outros mundos, sociaise metafsicos, conceptuais e ticos, e,nestes,possuem formas e conexessubjacentes que no queremcoincidircom as do eu [...]Esta a verdadeira tragdia da cultura. Pois ns designamos isto - por oposio a umafatalidade triste ou demolidora a partir do exter ior - como uma fatalidadetrgica: que as foras aniquiladorasdirigidas contra um ser brotemprecisamente das camadas mais profundas desse mesmo ser; que, com a destruio, se consume um destino que nele prprio est, e que , por assimdizer, precisamente o desenvolvimentolgico dessamesma estrutura com

    que esseser construiu a sua prpria positividade." 2

    O sofrimento de que toda a cultura humana padece surge, nesta exposio, como ainda mais profundo e desesperado que na descrio deRousseau. Pois est aqui fechado aquele caminho de regresso que Rousseau procurava e exigia. Simmel est muito longe de querer impor asus

    penso da marcha da cultura num qualquer ponto. Elesabeque a roda dahistria no se deixa inverter. Mas elejulga ver, simultaneamente, que atenso entre os doisplos, igualmentenecessrios e igualmente legtimos,

    se agudiza assim cada vez mais e que, atravs dela, o homem deve serabandonado, por f im,a um dualismo funesto. A estranheza ou hostil idadeprofunda que existe entre o processo vitale criador da alma, de um lado,e entre os seus contedos e produtos, do outro, no admite nenhumacordo e nenhuma reconcil iao. Ela torna-se tanto mais claramente perceptvel quanto mais este processo se torna em si mesmo rico e intenso ese estende a um crculo mais vasto de contedos. Simmel parece falar,aqui, a linguagem do cptico; mas ele fala, em verdade, a linguagem domstico. Pois secreta nostalgia de todo e qualquer mstico mergulhar

    pura e exclusivamente na essncia do eu para encontrar nele aessncia deDeus. Aqui lo que se situa entre o eu e Deus por ele sentido apenascomo uma barreira separadora. E isto no menos vlido para o mundoespiritual do que para o mundofsico. Pois o esprito s existe na medidaem que a siprprio constantemente se exterioriza. Incessantemente, criaele novos nomes e novas imagens; mas no compreende que, nesta criao,no se aproxima do divino, mas cada vez mais dele se afasta. A mstica tem de negar todos os mundos figurativos da cultura, de "nome eimagem" tem ela de se libertar.Exige de ns que renunciemos a todos os

    2 Simmel-Philosophische Kultur.Leipzig,1911. p. 251 e sgs.,p.265 esegs.

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    representativo. Esta dificuldade agudiza-se ainda quando a transfernciadeve realizar-se no do objecto para o sujeito, mas entre diferentes sujeitos. T a m b m aqui, no casomais favorvel, um e o mesmo contedo exist iria como um simples duplicado em " mim " e num "out ro". Mas como,em virtudedeste mesmo contedo idntico, o eu poderia saber do tu e otudo eu, como um poderia interpretar estecontedo como "proveniente"

    do outro, isso permanece, tal como anteriormente, incompreensvel. Numgrau ainda mais elevado, vlido aqui que a simples " impresso" passivano chega para explicar o fenmeno da "expresso". Reside neste pontouma das fraquezas capitais daquela teoria puramente sensualista queacredita ter captado algo ideal porquanto faz dele uma cpia do objectivamente existente. U m sujeito n o se torna conhecvel ou compreensvel

    por outro ao transferir-se para ele, mas ao colocar-se com ele numa relao activa. J nos foi mostrado anteriormente que isto o sentido de todas as comunicaes espirituais: o comunicar-se a si prprio exige uma

    comunidade emprocessos determinados, no na mera igualdade de produtos.

    Se partirmos desta reflexo, o problema lanado por Simmelaparece, assim, sob uma nova luz. No deixa, de forma alguma, de existircomo tal; mas a sua soluo tem de ser doravante procurada numa outradireco. Mantm todo o seu peso as dvidas e objeces que podem serlevantadas contra a cultura. Temos de dar-nos conta e de admitir que elano um todo que se desenvolva harmonicamente, mas que est cheia

    das mais fortes oposies internas. A cultura "dialctica", por mais queseja verdadeiro que ela dramtica. Ela no nenhum acontecer simples,nenhum calmo decurso, ela antes um fazer que tem de comear semprede novo e que nunca est seguro da sua meta. Assim, ela no pode nuncaabandonar-se pura e simplesmente a um optimismo ingnuo ou a umacrena dogmtica na "per fectibilidade" do homem. Tud o aquilo que elaconstruiu ameaa sempre de novo quebrar-se-lhe sob as suasmos. Nessamedida, mantm continuadamente algo de insatisfatrio e algo de profundamente questionvel quando a consideramos somente luz da sua

    obra. Os espri tos verdadeiramente produtivospem toda a sua paixo nasua obra; mas precisamente esta paixo torna-se-lhes fonte de novossofrimentos. Foiestedrama que Simmel quis caracterizar. Mas reconhecenele, de certo modo, somente dois papis. De um lado est a vida, dooutro, o reino dos valores ideais, objectivos, vlidos em si mesmos.Ambos os momentos no podem fundir-se e penetrar completamente umno outro. Quanto mais o processo da cultura progride, mais aquilo que criado se mostra como inimigo do criador. O sujeito no s no poderealizar-se na sua obra como t ambm estaameaa, por fim, despedaar-se

    contra ele. Pois aquilo que a vida prpriae interiormente quer no maisdo que a sua prpria mobilidade e plenitude fluentes. Ela no pode exte-

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    riorizar esta plenitude interior, no pode deix-la tornar-se visvel emformaes determinadas sem que estas formaes se tornem para si pr

    pria limites - slidosdiques contra os quais o seu movimento colide e nosquais ela se quebra. "O esprito produz incontveis formaes, que continuam a existir na sua prpria auto-suficincia, independentes da alma queas produziu, tal como de qualquer outra que as aceite ou rejeite.Assim se

    v o sujeito frente tanto arte como ao direito, tanto religio como cincia, tanto tcnica como aos costumes [ . . . ] . E a forma da fixidez, doser cristalizado, da existncia persistente, com a qual o esprito, transformado assim em objecto, se ope vitalidade fluente, auto-responsabili-dade interior, s tenses cambiantes da alma subjectiva; como espritointeriormente ligado ao esprito, mas precisamente por isso vivendo inmeras tragdias nesta oposio formal profunda: entre a vida subjectiva,que infatigvel mas finita no tempo, e os seus contedos, que, uma vezcriados, soimveis mas intemporalmente vlidos."

    Seria vo querer negar estas tragdiasou no as tomar em considerao com quaisquer meios de consolo superficiais. Maselasadquirem umaoutra face quando se continua esegueat o f im o caminho aqui encetado.Porque, no fimdestecaminho, n oest aobra, em cuja existncia persistente oprocesso criativo cristal iza, mas o " tu ", o outro sujeito, que recebeesta obra para a incluir na sua prpria vida e, com isso, voltar novamentea transform-la no meio de que ela originalmente provm. S agora semostra qual a soluo de que a "tragdia da cultura" capaz. Enquanto a"contraparte" no tiver comparecido diante do eu, o crculo no podefechar-se. Pois por muito significativa, por muito plena de contedo, pormuito firme em si prpria e assente no seu prprio centro que uma obra

    possa ser, ela e permanece apenas um ponto de passagem. No nenhum "absoluto", no qual o eu embata, mas a ponte que leva de um eu--plo a um outro eu-plo. Aqui reside a sua verdadeira e mais importantefuno. Oprocesso vital da cultura consiste precisamente em que esta inesgotvel na criao de mediaes e passagens desse tipo. Quandovemos este processo exclusiva ou principalmente do ponto de vista doindivduo, ele adquire sempre um peculiar carcter de ciso. O artista, oinvestigador, o fundador de religies - todos eles s podem dar umcontributo verdadeiramente grande quando se entregam completamente sua tarefa e, atravs dela, se esquecemdo seu prprio ser. Mas a obraaca

    bada, assim que se encontra pela primeira vez sua frente, nunca apenas realizao, mas, ao mesmo tempo, desiluso. Ela permanece aqumda intuio originria de que provm. A realidade limitada, em que elaassenta, contradiz a profuso de possibilidades que esta intuio idealmente albergava em si. No s o artista mas tambm o pensador sente

    sempre de novo esta carncia. E precisamente os maiores pensadoresparecem chegar quase sempre a um ponto em que renunciam de vez a

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    exprimir os seus lt imos e mais profundos pensamentos. Aquilo que demais elevado o pensamento consegue captar - assim explica Plato nastima carta - no j alcanvel pela palavra; n o se deixa transmi tir

    pela escrita e pela doutrina . Taisjuzos socompreensveis e necessriosapartir da psicologia do gnio. No entanto, para nsprprios, este cepticismo torna-se tanto mas atenuado quanto maior, abrangente e rica a

    obra de arte ou a obra filosfica em que mergulhamos. Pois n s, os receptores, no medimos com as mesmas medidas com que o criador medea sua obra. Onde ele v um "de menos", a aflige-nos um "de mais"; ondeele sentiu uma insuficincia interior, a estamos perante a impresso deuma "abundncia" inesgotvel, de que acreditamos no poder nuncaapropriar-nos completamente. Ambas as coisas so igualmente legtimase igualmente necessrias; porque a obra realiza por vez primeira a suaverdadeira tarefa precisamente nesta relao recprocapeculiar. Ela torna-se mediadora entre o eu e o tu, no por transferir um contedo acabado

    de um para o outro, mas antesna medida em que a actividade do primeirodesperta a do segundo. E, a partir daqui, reconhece-se tambm por querazo as obras da cultura verdadeiramente grandes nunca se nos deparamcomo algo simplesmente rgido, resistente, que, comesta rigidez, estreitee iniba o movimentolivre do esprito. O seu contedo s existe para ns

    porquanto seja permanentemente reapropriado e, por esse meio, semprede novo criado.

    A essncia desteprocesso aparece talvez mais claramente a onde os

    dois sujeitos que nele tomam parte so noindivduos, mas pocas inteiras. Cada "renascimento" de uma culturapassada pode fornecer-nos umexemplo disso. Uma renascena digna desse nome nunca uma merarecepo. Ela no a simples continuao ou aperfeioamento de motivos pertencentes a uma cul turapassada. Frequentemente, ela pensa s-lo;muitas vezes, ela no conhece nenhuma ambio mais elevada do queaproximar-se, tanto quanto possvel, do modelo que segue. Deste modo,as grandes obras de arte dos Antigos foram vlidas, em todas as pocasclssicas, como modelos que poderiam bem ser imitados, mas nunca

    alcanados. Contudo, as verdadeiras grandes renascenas da histriamundial foram sempre triunfos da espontaneidade, no da mera recept ividade. Faz parte dos problemas mais interessantes da histria mundialseguir o modo comoestesmomentos intervm uns nos outros e se condicionam reciprocamente. Poder-se-ia falar aqui de uma dialctica histrica; mas esta dialctica no contm, de modo algum, uma contradioem si. pois ela dada, outrossim, pela essnciado desenvolvimento espiritual e est nele profundamente fundamentada. Sempre que um sujeito -quer se trate agora de um indivduo ou de toda uma poca - est disposto

    a esquecer-se de si prprio para ser absorvido num outro e se entregarcompletamente a este, ento encontra-se ele sempre a si mesmo num

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    novo e mais profundo sentido. Enquanto uma cultura s retira de outradeterminados contedos, sem possuir a vontade ou a capacidade de penetrarno seu verdadeiro centro, na suaforma peculiar, no se d ainda a veresta frutuosa relao de aco recproca. Fica-se, no melhor dos casos,por uma tomada exterior de elementos isolados da cul tura ;estes, porm,no se tornam verdadeiras foras ou motivos criadores. J na IdadeMdia, podemos encontrar em toda parte esta forma limitada de influncia da Antiguidade. J no sculo IX houve um "Renascimento Carolm-gio" nas artes plsticas e na literatura . A escola de Chartres pode serdesignada como uma "Renascena medieval". Mas isto diferente, n osem grau mas t ambm em tipo, daquele "novo despertar da Ant igu idadeClssica" que comea nos primeiros sculos do Renascimento italiano.Tem-se chamado frequentemente a Petrarca o "primeiro homem moderno". Mas, por estranho que parea, ele spde tornar-se tal porque entrounuma nova e mais profunda compreenso da Antiguidade. Por meio dalngua, da arte e da literatura antigas, viu outra vez as formas de vida antigas; e, na sua intuio, ganhou forma o seu prprio sentimento originalde vida. Esta peculiar penetrao do que prprio e do que estranho vlida para aRenascena ital iana no seu conjunto. Burckhardt disse destaque "nunca tratou a Antiguidadeseno como meio de expresso para assuasprprias ideias construtoras." 3

    Este processo inesgotvel; recomea sempre de novo. A Antiguidade foi ,t ambm depois de Petrarca, sempre de novo "descoberta"; e, de

    cada vez, foram trazidas luz outras e novas feies. A Antiguidade deErasmo j no a mesma que a de Petrarca. E, ao lado de ambas, alinham-se a Ant iguidade de Rabelais e Montaigne, de Corne il le e Racine,de Winckelmann, Goethe ou Wilhelm vonHumboldt. No se pode falarde uma qualquer identidade de contedo substantivo entre elas. O que idntico isto: que a Renascena italiana, neerlandesa, francesa ou alemsentem a Antiguidade como uma incomparvel fonte defora, da qual seservem para ajudar irrupo das suasprprias ideias e ideais. Assim, aspocas culturais dopassado verdadeiramente grandes no se assemelham a

    um blocoerrtico que se erga nopresente como testemunha de um tempopretrito. No so massas inertes; so antes a aglomerao de energiaspotenciais poderosas, que s esperam o momento de avanar de novo e dese manifestar em novos efeitos. O que criado no est, por conseguinte,simplesmente perante ou emoposio ao processo criativo; na "forma gravada" aflui, outrossim, sempre novavida,que a protege de "se petrificar".

    E, de certo, evidente que esta explicao nunca interrompida entrediferentes culturas no pode nunca consumar-se sem frices internas.

    No se pode chegar a uma verdadeirafuso, pois as foras antagnicas s

    3 J. Burckhardt- GeschichtederRenaissancein Italien,p.42.

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    podem ter efeito ao afirmarem-se umas contra as outras. Mesmo a ondeuma harmonia perfeita parece alcanada oualcanvel, nofaltam fortestenses internas. Se observarmos a continuada eficcia da cultura antiga,verificamos que esta representa quase o caso limite ideal. Tudo o que meramente negativoparece apagado; as grandes foras produtivas parecem poder exercer a sua constante e silenciosa eficcia naturalmente e

    sem obstculos. E, ainda assim, no faltam conflitos neste caso ideal,mesmo oposies irreconciliveis. A histria do Direito mostra quograndiosa era a fora organizadora inerente ao Direito Romano e comoele demonstrou sempre de novoessa fora ao longo dos sculos. Mas oDireitoRomano no podia criar sem destruir, ao mesmo tempo, uma profuso de embries muito promissores. O conflito entre o sentido "natural"do direito e os usos nacionais do direito, por um lado, e o direito "erudito", por outro lado, eclodiu sempre de novo. Se virmos em tais oposies conflitos t rgicos, a expresso "tragdia da cultura"mantm toda asua leg itimidade. Contudo, devemos olhar n o somente para o facto doconflito, mas t ambm para a sua cura, devemos olhar para a peculiar"catarse" que aqui sempre de novo se consuma. Embora sejam muitas asforas manietadas de um lado, do outro lado so sempre libertadas outrasforas, novas e mais fortes. Este manietamento eesta libertaomostram-se na luta das diferentes culturas e mostram-se, com no menos fora,tambm naquela luta que o indivduo tem de travar com o todo, naquelaluta que as grandes foras individuais criadoras tm de travar com asforas que almejam a persistncia e, em certo sentido, a eternizao dasua existncia dada. Aquilo que produtivoest em permanente conflitocom o que tradicional. Seria errneo pintar o conflito somente a preto ebranco - ver todo o va lor de um lado, todo o desvalor do outro. As tendncias que esto dirigidas para a preservao no so menos plenas designificado e indispensveis do que aquelas outras que esto dirigidas

    para a renovao, porque a renovao s pode consumar-se sobre aquiloque persiste e porque aquilo que persiste s pode existir em virtude deuma permanente auto-renovao.

    Esta relao torna-se mais clara a onde a luta entre as duas tendncias se joga completamente nas profundezas - numa profundidade sobre aqual o planear e o querer dos indivduos n o tm j qualquer poder, porque nela dominamforas que no assomam conscincia individual. U mta l caso d-se no desenvolvimento e na mudana da lngua. O liame datradio aqui dos mais fortes eparececonceder criatividade do indivduo apenas um pequeno campo de manobra. A filosofia da linguagemdiscutiu sempre de novo se a lngua produto da "natureza" ou da "norma", se ela (paeiou 9aer. Mas indiferente que se adopte uma teseououtra, que se veja na lngua algo object ivo ou subject ivo, algo simplesmente existente ou algo convencionalmente estabelecido, porque, tam-

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    bm neste lt imo caso, para que elepossa realizar o seu objectivo, temosde nos munir de uma qualquer espcie de coero, por fora da qual elese defenda da arbitrariedade. O "nominalista" Hobbes explica que a verdade no reside nas coisas, mas sim nos sinais: uveritas non in re, sed indicto consistir.

    4 Acrescenta, porm, que o sinal, uma vez estabelecido,no fica disponvel para mais nenhuma modificao, que a conveno

    tem de ser reconhecida como algo absoluto para que, em geral, a fala e acompreenso humanas possam ser possveis. A histria da lngua desmente, sem dvida, esta crena num significado invarivel para os conceitos da linguagem, estabelecido de uma vez por todas. Ela mostra quecada uso vivo da linguagem est sujeito a uma constante mudana designificado. O motivo para isto consiste em que a "linguagem" nuncaexiste como "coisa" fsica que permanea idntica a siprpriae que mostresempre as mesmas "propriedades" constantes. Ela existe apenas no actode fala, eeste nunca se consuma sob precisamente asmesmascondies e

    precisamente da mesma maneira. Nos Prinzipien der Sprachgeschichte,5

    Hermann Paul apontou o significativo papel desempenhado pela circunstncia de a lngua s existir devido ao facto de ser transmitida de umagerao a uma outra gerao. Esta transmisso nunca pode efectuar-se deforma tal que seja apagadaa actividade e autonomia de uma das partes. Oreceptor no toma a ddiva tal como se aceita uma moeda cunhada. Eles pode receb-la porquanto a usa e, no uso, imprime- lhe uma novacunhagem. Assim, o professor e aquele que aprende, os pais e os filhosno falam rigorosamente a "mesma" linguagem. Nesta necessria forma

    o e mudana v Paul um dos factores mais importantes de toda a histria da l ngua. 6 Esta criao lingustica, que s se manifesta no desvioinconsciente relativamente ao modelo dado, est, decerto, ainda muitolonge da verdadeira criatividade. Ela uma mudana que se consuma nosubstrato da lngua; mas no nenhuma aco que assente na entradaconsciente de novas foras. Contudo,t ambm este lt imo passodecisivo indispensvel para que uma lngua no morra. A renovao a partir dedentro s atinge a sua fora e intensidade totais quando a lngua no serveapenas para a mediao e transmisso de um adquirido da cultura, mas,

    em vez disso, se torna expresso de um novo sentimento de vida individual. Aoafluir na l ngua, este sentimento desperta todas as energias desconhecidas que nela dormitavam.Aquilo que era mero desvio na esfera

    4 "A verdade consiste no nas coisas, mas nas palavras''. Ver Thomas Hobbes - Decorpore.Pars I ,cap. 3,7c 8(N.do T.).

    5 PrinzipienderSprachgeschichte.Tbingen: MaxNicmeyer,1995,10.sedio(aprimci-ra edio de 1880). Vertraduo portuguesa deMaria Lusa Schemann: Princpios

    fundamentais de histria da lngua. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1983,2 aedio (N.doT.}.

    6 H.Paul - PrinzipienderSprachgeschichte,cap.1,pp.21e sgs.

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    da expresso quotidiana torna-se, aqui, numa nova configurao, a qualpode ir to longe que aparente, por f im, metamorfosear todo o corpo dalngua, o vocabulrio, a gramtica e a estilstica. As grandes pocas da

    poesia actuaram deste modo sobre a formao da lngua. A Divina com-media, de Dante , n o s deu epopeia um novo sentido econtedo, comot ambm constitui a hora de nascimento da ''lingua volgare", do ital iano

    moderno. Na vida dos grandes poetas, parece ter havido sempre de novomomentos em que sentiram to fortemente estansia para arenovao dalngua que o dado, o material em que tinham de trabalhar, lhes pareceuquase uma priso incmoda. Em tais momentos, o cepticismo relativamente l ngua despertanelescom toda a fora. Tambm Goethe noestlivre deste cepticismo - e deu-lhe, por vezes, uma expresso no menoscaracterstica que Plato. Num bem conhecido epigrama veneziano,explica ele que, embora muito se tenha esforado, h um talento de cujamestria conseguiu apenasaproximar-se: o talento de escrever alemo.

    E assim, infeliz poeta,estragoAgora,desgraadamente, vidae arte nopiordos materiais.

    Sabemos, porm, aquilo que a arte de Goethe fez deste "pior dosmateriais". A lngua alem j no , morte de Goethe, aquilo que foraaquando do seu nascimento. Ela noest apenas enriquecida do ponto devista do contedo e alargada para alm dos seus limites habituais, esttambm amadurecida numa nova forma; ela encerra em si possibilidadesde expresso que eram completamente desconhecidasum sculo atrs.

    Tambm noutros domnios, sempre de novo transparece a mesmaoposio. O processo criativo tem sempre de satisfazer duas condiesdiferentes: ele precisa, por um lado, de se ligar a algo estvel edurvel, etem, por outro lado, de estar sempre pronto para uma nova entrada e paraum novo comeo, que sempre muda este existente. Pois s deste modoconsegue corresponder s exigncias que lhe so colocadas tanto do ladodo objecto como do sujeito. O artista plstico encontra o seu caminho

    igualmente aberto e preparado, tal como o poeta o encontra quando seconfia l ngua. Pois tal como cada lngua apresenta um determinadovocabulrio que no cria no momento, mas do qual dispe como de uma

    possesso fixa, o mesmo vlido para todos os tipos de actividade plstica. H um patr imnio de formas do pintor, do escultor, do arquitecto, eh uma "sintaxe" peculiar destes domnios, tal como h uma sintaxe dalngua. Tudo isto no pode ser livremente "inventado". Aqui , a tradioafirma sempre de novo os seus direitos, pois satravs dela que a continuidade da criao pode ser estabelecida e consolidada, continuidade

    sobre a qual toda a compreensibilidade repousa, mesmo dentro de umalngua plstica. "Assim como as razes lingusticas afirmam sempre a sua

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    validade e de novo avanam, de acordo com a sua forma fundamental, emtodas as posteriores transformaes e alargamentos dos conceitos a elasligados" - como diz Gottfried Semper - "tal como impossvel inventar,

    para um novo conceito , em simultneo uma palavra completamente novasem falhar o primeiro objectivo, nomeadamente ser compreendido, to

    pouco se pode rejeitar e no tomar em considerao [...] os tipos e razes

    mais antigos da simblica da arte [ . . . ] . A mesma vantagem que a investigao lingustica comparativa e o estudo do parentesco primitivo dasl nguas proporciona ao artista da linguagem dos dias de hoje, tem-na deantemo na sua arte aquele arquitecto que reconhece os smbolos maisantigos da sua l ngua no seu significadooriginrio e que capaz de se darconta da maneira como eles historicamente se transformam, com a prpria arte, na forma e no significado." 7

    Este estar-vinculado tradio mostra-sedesde logo em tudo aquiloa que chamamos tcnica das artes particulares. Subjazem-lhe regras to

    fixas como as de qualquer outro uso de umutenslio, pois est dependenteda constituio do material sobre o qual o artista trabalha. Arte e ofcio,actividade plstica e habilidade artesanal s se separaram lentamente; e

    precisamente nos pontos altos do desenvolvimento artstico que a suaconexo costuma ser particularmente ntima. Nenhum artista pode falarverdadeiramente a sua lngua se no a aprendeu antes na relao continuada com o seu material. Tal no diz de modo algum respeito apenasao lado tcnico-material do problema. Isto tem os seusparalelos exactost ambm no domnio da prpria forma. Pois as formas artsticas, uma vez

    criadas, tornam-se uma possesso fixa, que herdada de gerao emgerao. Frequentemente, este transporte e esta tran smis so hereditria

    podem estender-se ao longo de sculos. Cada poca toma da anteriordeterminadas formas e transmite-as seguinte. A linguagem das formasganha uma firmeza tal que determinados temas parecem unidos fortemente com certos modos de expresso,a ponto de os encontrarmos semprede novo nas mesmas formas ou em formas apenas ligeiramente modificadas. Esta "lei de persistncia", que vlida para o movimento continuado das formas, constitui um dos factores mais importantes do desen

    volvimento artstico - e, para ahistria de arte, reside aqui uma das tarefasmais estimulantes. Recentemente, foi sobretudo A. Warburg que colocoumais peso nesteprocesso e que procurou esclarec-lo em todos os aspectos, tanto psicolgica como historicamente. Warburg partiu inicialmenteda histria de arte na Renascena italiana. Mas, para ele, esta constituaapenas um paradigma individual luz do qual queria tornar para si prprio clara a especificidade e a direco fundamental doprocesso criativo.

    7 Gottfried Semper - DerStil in dentechnischen und tektonischen Knsten. 2." ed.,Mnchen, 1878,vol. I,p. 6.

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    Encontrou ambas as coisas mais claramente expressas na revivescnciadas formas pictricas antigas. Mostrou como os antigos criaram formaspregnantes de expresso para certas situaes tpicas, sempre recorrentes.Certas excitaes interiores,certas tenses eseusdesenlaces estonessasformas noapenas retidos mas, simultaneamente, esconjurados. Em todoo lado onde ressoa um afecto do mesmo tipo, torna-se de novo viva a

    imagem que a arte para ele criou. Surgem, segundo a expresso de Warburg, determinadas "frmulas de pathos", que se imprimem indelevelmente na memoria da humanidade. A estabilidade e amudana, a estticae adinmica destas "frmulas de pathos" foram seguidas por Warburg aolongo de toda a historia da arte plstica. 8Com isso, ele no s enriqueceua histria de arte, como t ambm lhe deu um novo cunho do ponto de vistametdico. Pois aqui ele tocou um problema fundamental de toda a observao cientfico-cultural. Ta l como a pintura e a escultura usam determinadas atitudes, posies e gestos fixos do corpo humano para permitir

    que se tornem visveis a existncia e a mobilidade da alma, assim tambm, em todas as outras reas da cultura, a tarefa consiste sempre eminterligar deste modo movimento e repouso, acontecer e durao, e emempregar um como meio de apresentao do outro. As formas lingusticase artsticas, se se quiser que sejam "compartilhveis em geral" porquantodevam lanaruma ponte entre diferentes sujeitos, devem possuir firmeza econsistncia internas. Mas elas tm de ser, ao mesmo tempo, capazes demudana; pois cada uso das formas, visto que acontece em diferentes indivduos, incluij uma certamodificao e no seria possvel sem ela.

    Poder-se-ia tentar distinguir os diferentes gneros artsticos segundoa relao que existe neles entre estesdois plos opostos, que s o por todaparte necessrios. Primeiro,deveria, semdvida, responder-se aqui a umaquesto prvia de carcter principiai. Em que sentido pode, em geral,falar-se de tais "gneros"? So eles algo diferente de simples marcasnominais? A potica e retrica antigas tinham a inteno de separarestritamente as diferentes formas de expresso potica e de atribuir a cadauma delas uma determinada "natureza" imutvel. Acredi tavam que ostipos individuais de poesia estavam especificamente separados uns dos

    outros, que a ode e a elegia, o idlio e a fbula tinham os seus prpriosobjectos e as suasprprias leis. O classicismo fezdestaconcepo o princpio fundamental da sua esttica. E m Boileau, vale como um pressuposto incontestado que a comdia e a tragdia tm a sua prpria "essncia", e que esta essncia deve ser determinante para a escolha dos seusmotivos, dos seus caracteres e dos seus meios l ingusticos. Tambm emLessing domina esta viso fundamental, se bem que ele a represente de

    8 Cf. sobretudo A. Warburg DieErneuerungderheidnischen Antike. Kultui~wissens-chaftliche Beitrge zur Geschichte der europischen Renaissance (GesammelteSchriften,editados porGertrudBing, LeipzigeBerlin,1932).

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    forma essencialmente mais livre. Ele concede ao gnio o direito de alargar as fronteiras dos gneros particulares; mas tambm no acredita queestas fronteiras possam, em princpio, ser suprimidas. A esttica modernatentou tratar todas as diferenas aqui fixadas como um mero lastro quedeve ser simplesmente deitado borda fora. Quem foi mais longe nesteaspecto foi Benedetto Croce. Ele trata todas as divises das artes e todas

    as dist ines de gneros de artes comomeras nomenclaturas, que podemservir para um objectivoprtico, mas que carecem de qualquer significado terico. Tais classificaes tm, segundo Croce, tanto ou to poucovalor como as rubricas sob as quais ordenamos os acervos de livros deuma biblioteca. Como ele acentua, a arte no se deixa cindir destemodoem disciplinas particulares, nem segundo as coisas, nem segundo os seusmeios de apresentao. A sntese esttica e permanece uma unidadeimpartvel. "Como cada obra de arte exprime um estado de esprito e oestado de espri to individual e sempre novo, assim a intuio significa

    interminavelmente muitas intuies, que impossvel reduzir a um conjunto disciplinar de gneros [ . . .] . Isto quer dizer que destituda de fundamento qualquer teoria da separao das artes. O gnero ou aclasse neste caso um nico, a prpria arte ou a intuio, enquanto as obras dearte individuais so inmeras: todasoriginais, nenhuma traduzvel numaoutra [ . . . ] , cada uma delas insubmissa ao entendimento. Entre o universale o particular no se insere, na considerao filosfica, nenhum elementointermdio, nenhuma srie de gneros ou de tipos, de "generalia". Ne m oartista, que cria a arte, nem oespectador, que a observa, precisam de mais

    nada alm do universal e do individual, ou melhor, do individual tomadouniversal - precisamente dessaactividadeartstica geral que porinteiro sereduziue concentrou na apresentao de umestadode esprito singular."9

    Se istofosse correcto sem restries, seramos conduzidos estranhaconcluso de que, quando dizemos que Beethoven um grande msico,Rembrandt um grande pintor, Homero um grande pico, Shakespeare umgrande dramaturgo, seriam com isso expressas apenas circunstnciaslaterais empricas sem importncia, que no teriam interesse na relaoesttica e que seriam dispensveis para a caracterizao desses autores

    como artistas. Se existe apenas "a" arte, por um lado, e o indivduo, poroutro, ento relativamente contingente em que meio o artista individualse quer exprimir. Tal poderia acontecer emcores ou sons, em palavra oumrmore, sem que, deste modo,fosse tocada a intuio artstica; ela permaneceria a mesma e teriaapenasescolhido outrotipode meio. Mas umatal concepo no faria justia, como me parece, ao processo artstico.Pois a obra de arte seria, assim, fracturada emduasmetades que noesta-

    9

    Croce - Grundriss der sthetik.Deutsche Ausgabe.Leipzig, 1913, p. 45 e sgs. Cf.Este-ticacomescienzadeU'espressione. 3.aediz.,Bari, 1908, p. 129 e sgs.

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    riam em nenhuma relao necessria uma com a outra. Em verdade, otipoparticular de expresso no pertence, porm,em primeiro lugar,apenas tcnica da criao da obra, mas j concepo da prpria obra dearte. A intuio de Beethoven musical, a de Fdias, plstica, a intuiode Mi l ton pica, lrica a de Goethe. Tudo isto diz respeito no s casca exterior, mas ao ncleo da sua produo. Com isso, depara-se-nos,

    por vez primeira , o verdadeiro sentido e odireito mais profundo da partio das artes em diferentes "gneros". O motivo que levou Croce suaenrgica luta contra a doutrina dos gneros fcil de perceber. Ele queriacom isso opor-se a um erro que seestende ao longo de toda a histria daesttica e que nela conduziu, com frequncia, ao levantamento de questes infrutferas. Tentou-se sempre de novo usar as determinaes dosgneros artsticos particulares e adiferena entre elespara estabelecerum"cnone" do belo. Procurou-se ganhar com eles determinadas normasgerais para a avaliao das obras de arte edebateu-se acerca da primazia

    das prprias artes particulares. Com que ardor foi conduzida, ainda noRenascimento, a rivalidade entre pintura e poesia pode ver-se, por exem

    plo, no Trattato delia pittura, de Leonardo da Vinci . Isto certamenteuma falsa tendncia. vo dar uma determinao do que , em si, a ode,o idlio ou a tragdia, e perguntar se uma obra individual preencheu maisou menos perfeitamente a finalidade do seu gnero. Mais questionvelainda quando se procura ordenar as artes individuais numa srie crescente e se pergunta que lugar toma cada uma delas nesta hierarquia devalores. "Um pequeno poema" - assim explica Croce - "equipara-seeste

    ticamente a uma epopeia, ou a um esboo de uma pintura de altar, ou aum fresco; uma carta no menos um objecto artstico do que um romance." Isto pode estar totalmente correcto - mas resulta da que, segundo o seu sentido e contedo estticos, um poema lrico "seja" umaepopeia, uma carta "seja" um romance, que eles possam e queiram sertal? Croce s pde retirar esta concluso porque, na construo da suaesttica, s fez valer o momento da "expresso" como verdadeiro e nicofundamento. Ele coloca o acento quase exclusivamente no facto de a arteter de ser expresso do sentimento individual e doestadode esprito individual, e para ele indiferente que caminhos a arte toma aqui e que direco especial de representao segue.Com isso, o lado "subjectivo" nos priv ilegi ado em detrimento do "objectivo", como tambm este ltimoquase se afunda, perante o primeiro, a ponto de se tornar um momentosem importncia. Todo o tipo de intuio artstica torna-se "intuio lrica" quer ela se realize num drama, num poema herico, na escultura,na arquitectura ou na arte de representar. "Porque a individualidade daintuio significa aindividualidadeda expresso,porque uma pintura no, face s outras pinturas, menos diferente que uma poesia, e porque a

    pintura e a poesia so valiosas noatravs dos sons que agitam o ar e das

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    cores que irrompem na luz, mas atravsdaquilo que sabem dizer [...] aoesprito, ser, ento, intil puxar dos meios abstractos daexpresso paraconstruirumasriedegnerosouclasses."10Como sev,Croce repudia adoutrina dos gneros noapenasporquanto ela quer fixar conceitos normativos - o que seria completamente legtimo -, mas tambmporquantoela pretenda fixar determinados conceitos de estilo. Por isso, todas as

    diferenas da.forma de representao tm,para ele, dedesaparecerou deser reinterpretadas como simples meios "fsicos" de representao.Masprecisamente esta contraposio do factor "fsico" e do "psquico" refutada pela imersodespida de preconceitos numa grande obra de arte.Ambos os momentos estoaqui to completamente interpenetrados que,se se deixam certamente separar pela reflexo, constituem,porm, umtodo inseparvel para a intuio e o sentimento estticos. Pode-serealmente, como Croce faz, contrapor a"intuio" concreta aos meios"abstractos" daexpressoe, de acordo com isso, tratar todas asdiferenas que

    se encontram na esfera dos meios de expresso como diferenas puramente conceptuais? Ou no cresceram ambos juntos, interiormente, naobra de arte? Do ponto de vista puramente fenomenolgico, podemosexibir uma espcie de camada original da intuio esttica, que permanecesempre a mesma e que s se diferencia pelaprimeiravez na realizaoda obra, segundo o caminho que os meios de expressoseguem e se aintuio esttica se quer realizar em palavras, sons ou cores?MesmoCroce no aceita isto."Quando se retira o metro, oritmo ou as palavrasde uma poesia" - explica ele enfaticamente - "nofica ento,para l de

    tudo isso, o pensamento potico, como alguns crem: no fica nada. Apoesia nasceu comosendoestaspalavras,esteritmo, estemetro."11Masda segue-seque tambm a intuio estticanascecomointuiomusicalou plstica, lrica oudramtica,que as diferenas aquiexpressasno someras notaesverbais ou etiquetas que fixamos nas obras de arte individuais, mas que aelas correspondem autnticas diferenas de estilo,diferentes direcesda inteno artstica.

    Se partirmos daqui,v-seque onossoproblemagenricoapareceemtodos os tipos de formaes artsticas, enquanto, por outro lado, pode

    tomarainda, em cada umdessestipos, umaforma especfica. O momentoda constncia da forma e o momento da "modificabilidade" da formadeparam-se-nos por todo lado. O equilbrio entre ambos parece, semdvida, no se realizar da mesma maneira nas diferentes artes. Nunscasos,parecedeter a primazia aquilo que constante euniforme,noutros,

    parece ter a primazia o que mudana e movimento. Poder-se-ia, emcerto sentido, contrapor determinidade, firmeza e ao acabamento da

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    Croce - Grundriss der sthetik,p. 361 1 Croce - Grundriss der sthetik,p. 36.

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    forma arquitectnica, o movimento , a variabilidade e variao da formalrica ou mus ical. Mas isto so meras diferenas de acentuao,pois tam

    bm na arquitectura se mostram dinamismo e ritmo, tal como na msicase mostra uma estritaesttica das formas. No que diz respeito lrica, ela

    parece ser a mais mvel e fugaz de todas as artes. Ela no sabe denenhumoutro sentido para alm daquele que se descobre nodevir- eeste

    devirno a al terao objectiva das coisas, mas a mobi lidade interna doeu. Se algo deve ser aquiretido, a prpria passagem, o ir e vir , o aparecer edesaparecer,o tilintare pairar das mais finasagitaesda alma e dasdisposies anmicas mais fugazes. Mesmo quando o artista no podeutilizar nenhum mundo pronto de "formas", parece ser certo que cadanovomomento tem de produzir uma novaforma.E, no entanto, a histriada lricamostra que, mesmo nela, a "estabilidade" nodesaparece inteiramente perante o movimento, que a "heterogeneidade" no domina de ummodo nico e unilateral. Precisamente na lrica, tudo o que ela de novo

    produz aparece, ainda e sempre, como uma consonncia e uma ressonncia. Pois poucos s o, no fundo, os temas fundamentais a que ela se dedica. Eles permanecem inesgotveis e imutveis; pertencem a todos os

    povos e no experimentaramquasenenhuma modificao significativa aolongo dos tempos. Em nenhuma rea comoestaparece estar a escolha deum tema limitada a um crculo to estreito. O pico pode sempre darforma a novos acontecimentos, o dramaturgo pode sempre dar forma anovos caracteres econflitos. Mas a lricapassarevista aocrculodo sentirhumano, para se ver constantemente de novo nele reenviada para o

    mesmo centro. Para ela no h, no fundo, nada de exterior, mas, de umlugar para outro, sempre permanece no interior.Este interior aparecenelacomo infindvel, na medida em que nunca passvel de ser completamente expresso e exaurido; esta infinitude diz, porm, respeito ao seucontedo, no sua extenso. O nmero dos motivos verdadeiramentelricos parece quase incapaz de ser alargado com opassardos tempos, e alrica parece no terpreciso deles. Pois a lricamergulha sempre de novonas "formas naturais da humanidade". Mesmo no que mais pessoal,individual, nico, sente ela o eterno re tomo do mesmo. U m determinado

    crculo de objectos -lhe suficiente para fazer apartir dele aparecer, comoque por encanto, toda a riqueza da disposio e da forma potica. Encontramos sempre de novo os mesmos objectos e as mesmas situaes humanas exemplares. O amor e ovinho,a rosa e orouxinol, a dor da separaoe a felicidade do reencontro, o despertar e a morte da natureza: tudo istoretoma incessantemente na poesia lrica de todos os tempos. O peso datradio e da conveno pode t ambm ser sentido na histria da lrica - eelaspesam aqui particularmente . Mas tudo istoest posto de lado e ultra

    passado sempre que, no decorrer dos sculos, nasce um novo grande

    lrico. Tambm ele mal costuma alargar o crculo dos "objectos" e dos

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    motivos lricos. Goethe no teve receio de se ligar lrica de todos ospovos e de todos os sculos tanto na escolha dos motivos como na escolha da forma. AsRmischen Elegien e o West=stliche Divan12 provam oque tais consonncias e ressonncias significaram para ele. Todavia,ouvimos naquelas to pouco a linguagem de Catulo ou Proprcio comoouvimosneste a linguagem de Hafiz. S ouvimos a linguagem de Goethe

    - a linguagem do momento de vida incomparvel, nico, que ele fixounestes poemas.

    Assim, encontramos nos diferentes domnios da cultura sempre denovo o mesmo processo, unitrio na sua constituio fundamental. Arivalidade e conflito entre ambas a foras - das quais uma aspira conservao, a outra, renovao - noacaba nunca. O equilbrio que parece, por vezes, a lcanado entre elas sempre apenas um equilbrio labil,que pode transformar-se em cada momento num novo movimento. Comisto, com o crescimento e o desenvolvimento da cultura, torna-se sempre

    mais ampla aosci lao do pndulo: a amplitude da vibrao cresce cadavez mais. As tenses internas e as oposiesganham com isso uma intensidade cada vez mais forte. Contudo,este drama da cultura no se tornanuma pura e simples "tragdia da cultura". Pois nele existe to poucouma derrota final como uma vitria definitiva. Ambas as foras opostascrescem uma com a outra, em vez de se destrurem reciprocamente. Domovimento criativo do esprito parece crescer um opositor nas prpriasobras que ele a partir de si produz. Pois tudo o que est criado tem de,segundo a sua natureza, disputar oespaoao que quer surgir como novo e

    que se quer firmar como um ser. Mas quando o movimento se quebrasempre de novo nas suasformaes, o movimentocriativo doespriton ose quebra nelas. Ele v-se necessitado e impelido para um novo esforo,no qual descobre novas foras desconhecidas. Em parte alguma ressaltaisto de forma tosignificativa e caracterstica como no decurso do movimento das ideias religiosas.Aqui , a lutamostra aquele que talvez o seulado mais profundo e convulsivo. Noapenas pensamento ou fantasia,mas sentimento e vontade, o homem no seu todo est envolvido nessaluta. Pois agora j no se trata de objectivos individuais finitos; trata-se

    da vida ou da morte, do ser ou do no-ser. N o h decises relativas;trata-se da nica deciso absoluta. A religio est convencida de que estna possedesta deciso absoluta. Nela, o homem cr ter encontrado algode eterno, uma estabilidade que no pertence mais corrente do tempo. A

    promessa deste bem e valor mais altos inclui em si,porm, simultaneamente, uma determinada exignciapara o sujeito. Ele tem de a aceitar, talcomo ela lhe oferecida; tem de renunciar ao seu prprio desassossego

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    ElegiasRomanaseDiva Ocidenial-Orental,duasobras de Goethe. Hafez ouHafiz,omaiorpoetalricopersa (1325-1390)(N. doT.),

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    algode estvel,eterno, absoluto, no podeescaparaesteprocesso: pois,na medida em que procura intervir na vidae dar-lhe forma, est sujeitaaos altos e baixos, aoritmo permanente eimparvel davida.

    Com base nestas reflexes, podemos tambm,doravante, caracterizar mais nitidamente a diferena especfica que existe entre o devir da"natureza" e o da "cultura".Tambm a natureza no conhece qualquer

    repouso; tambm os organismos possuem, em toda a determinidade dasua forma,uma liberdade que lhes peculiar. Amodificabilidade umacaractersticade fundo de tudo o que orgnico. "Criaoe transformao de formas orgnicas" - eis o grande tema de toda amorfologia danatureza. Mas arelaoentre movimento e repouso, entre forma e metamorfose, que predomina na natureza orgnica distingue-se num duplosentido da relao que encontramos nas criaes da cultura. Temos deexigirmobilidade e durao para ambas; mas cada umdestesmomentosaparece-nossob uma outra luz quando transpomos o olhar do mundo danatureza para o do ser humano. Quando cremos poderatestarna naturezauma ascensode formas do "mais baixo" para o "maisalto",essaascensodiz respeito progresso de umgneropara outro. O ponto de vistagentico , aqui, sempre e necessariamente um ponto de vistagenrico.

    No que diz respeito aos indivduos, eles caem fora, necessariamente,destemodo de observao; nosabemosnada deles e no precisamos desaber nada sobre eles. Pois as modificaes que neles se processam noreagem imediatamente sobre ogneroe no entram navidadeste.Existeaquiaquela barreira que abiologiadesigna como o facto da impossibilidade de transmisso hereditria de caractersticas adquiridas. As variaes que se processam, na esfera do mundobotnicoe animal, em exem

    plares individuais permanecem biologicamente sem peso: elas emergempara logo de novo imergirem. Se quisermos exprimir esteestadode coisas na linguagem da teoria da transmisso hereditria de Weismann - deixamos naturalmente emsuspensoaquesto da sua correco emprica edemonstrabilidade -, podemos dizer que estas modificaes dizem res

    peito ao "soma", no ao "plasma generativo", que elas ficam, em conformidade comisto,na superfcie e no agem naquela camada profundade quedependeo desenvolvimento dognero. Nos fenmenosculturais,

    porm, esta barreira biolgica est afastada. Nas "formas simblicas",que so aquilo que mais prprio da sua essnciae do seu poder, o serhumano consumou, de certaforma, asoluode uma tarefa que a natureza orgnicaenquanto tal no conseguiu solucionar. O"esprito"realizouaquiloque era recusado "vida".Aqui,o devir e aactuaodo individualestoligados com o todo deforma totalmente diferente e profundamenteradical. Aquilo que os indivduos sentem, querem, pensam no ficafechado neles prprios;objectiva-se na obra. Eestasobras da lngua, da

    poesia, das artes plsticas, da religio tornam-se os "monumentos", os

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    sinais da lembrana e da memria da humanidade. As obras so "maisduradouras que metal"; pois nelas persiste no s algo material, mas soainda expresso do espi ritual, o qual, quando se lhe deparam sujeitosafins e susceptveis de se deixarem por ele sensibilizar, pode ser, a qualquer momento, libertado da sua capa material e despertado para umanova eficcia.

    Sem dvida, existem tambm inmeras coisas no domnio dos bensculturais que, para todo o sempre, perecem e se perdem para a humanidade. Pois tambm estesbens tm um lado material pelo qual so vulnerveis. O fogo da biblioteca de Alexandria aniquilou muita coisa queseria de valor incalculvel para onossoconhecimento da Antiguidade,e amaioria dos quadros de Leonardoperdeu-separa ns, porque as cores emque foram pintados no se revelaramdurveis.Mas, mesmo nestecaso,aobra individual permanece como que ligada com o todo atravs de fiosinvisveis. Quando j no existe na sua forma particular, exerceu, contudo, de um qualquer modo, efeitos que de alguma maneira intervieramno desenvolvimento da cultura e que, talvez em um qualquer ponto,determinaram decisivamente a sua marcha. Aqui, no precisamos de pensar apenas naquilo que grande e extraordinrio. O mesmo se confirmaem crculos mais estreitos e pequenos. Foi sublinhado com razoque noh talvez nenhum acto de falaque no tenha de algum modo influenciado"a" l ngua. De inmeros actos tais, que actuam na mesma direco,

    podem resultar alteraes signif icativas do uso lingustico, alteraessonoras ou mudanas formais. Isso reside no facto de que a humanidade,de certa forma, para sicriouum novo corpo na sua linguagem, na sua artee em todas as suas formas de cultura, que a todos em conjunto pertencem.O homem individual, enquanto ta l, no pode transmiti r capacidades individuais que para si prprio adquiriu pela vida fora. Elas esto apensas ao"soma" fsico, o qual no passvel de ser herdado. Mas aquilo que seevidencia na sua obra, aquilo que expresso linguis ticamente, em imagens ou plasticamente, isso "incorporado" na linguagem ou na arte eperdura atravs delas. este processo que distingue a simples transformao, que se consuma no crculo do devir orgnico, da formao dahumanidade. A primeira consuma-se passivamente, a segunda, activamente. Por consequncia, a primeira conduz apenas a alteraes, enquanto a segunda leva a formaes duradouras. No fundo, a obra outracoisa no que uma aco humana que se condensou em um ser, mas queno nega, no entanto, a sua origemnestamesma consolidao. A vontadee a fora criadoras de que proveio continuam nela a viver, a actuar, econduzem a sempre novas criaes.

    Traduo de

    Pedro M S Alves