A Travessia do Albatroz - visionvox.com.br... I Meu amigo de infância explodiu. Não...

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Estelivroéumromancebaseadonahistóriarealdeumjovemiranianoeseumelhor amigo. Contrariando normas rígidas, Kurosh Majidi (nome >ictício)apaixona-se por Zibã, uma não muçulmana. Na direção oposta, seu amigoBehruzabraçaoradicalismoxiita.Candidatoamártir,estádispostoamorrerem nome de Alá, ainda que para isso tenha que sacri>icar a amizade deinfância. Convertido em militante radical, Behruz engaja-se no exército deKhomeini. Amante da liberdade, Kurosh evita as frentes de combate. Vê osamigos serem seduzidos pelo fanatismo, enquanto ele se distancia da fé.Quandoahistória assumeproporções trágicas,Kuroshdecideque chegouahora de partir. Começa então sua epopéia, ponto central do livro. Kuroshaventura-se rumo à fronteira com a Turquia e acaba preso e torturado.Retorna à cidade natal, mas não desiste. Como um albatroz, a grande avemigratória,elereúneforças,superaomedoeatravessaacordilheiracobertadeneveeinfestadadelobosfamintos.

ParteIAcaminhodoParaíso

IMeu amigo de infância explodiu. Não deliberadamente como um

homem-bombaqueatadinamitesnacintura.Morreuestraçalhadoaopisaremminas terrestres. Junto comele, umpelotãodequinze soldados vooupelosares.Muitoserammeninosdepoucomaisde12anos.Ospedaçosdoscorpos espalharam-se pelo campo, tornando quase impossível suaidentificação.

Anotíciachegarademanhãcedo,logoapósasprimeirasprecesdodia que, há algum tempo, tenho negligenciado. A rádio nos acordouchamando para as orações e falou dos novos mártires a caminho doParaíso.

“Sobre eles haverá trajes de fina seda, verdes e de brocado. Eestarão enfeitados com braceletes de prata. E seu Senhor dar-lhes-á debeberpuríssimabebida”.

Nãocitounomes,maslogoviriammecontar.- Kurosh... - meu pai chamou. – Acabaram de divulgar uma lista...

SoubequeBehruz...-enãoprecisouterminarafrase.Ele era assim. Nos momentos graves perdia o autocontrole e

gaguejavafeitocriança,tremendodacabeçaaospés.Atrásdele,quedesdepequeno eu apelidara de Agho Jun, “senhor querido”, estava o rostodescoberto da minha mãe. A angústia era tamanha que nem se dera aotrabalho de colocar o chador. Procurava em mim traços de desespero,escondendoaslágrimasderramadasantespormedodoquepelaperdadealguémque,porlongosanos,foraquaseumfilhoparaela.

Nosseuscabelosprecocementeembranquecidosviopavordeque

eu fosse um dia convocado pelo exército para, dali a meses, quem sabesemanas,regressardentrodeumcaixão.Atéagoraeuconseguiradriblaravigilânciadoserviçomilitar,evitandoorecrutamentocompulsório.Masatéquando? Todos os dias a televisão mostrava fotografias dos que nãovoltaram.Dosquemorriamnaguerraouentãoexecutadospelospelotõesdefuzilamento,seconsideradosinimigosdoregime.Amortetinhaviradorotina.

-Issoiaacabaracontecendo–eudissecomavozestranhamentefriapara a dimensão daquela tragédia. Eu ainda não supunha como elaimpactariaomeufuturodeformatãoradical.

–QueoProfetanosajude!–exclamouminhamãe.-Khodadeveriacolocarbomsensonacabeçadosdirigentes.-Agho

Junacrescentou,usandoapalavrairanianaparadesignarAlá.-Porquenãomandamrebanhosdeovelhascomobuchadecanhão?–indagou,revoltadocom os métodos suicidas do exército, cujos comandantes incitavam ainfantariaaentrardepeitoabertoepassosfirmesnoscamposminados.

Fixeiavistaemumobjetoqualquersemsaberoqueresponder.Jáestavatãoacostumadoàquiloquenãosentiaquasenada.Apreensão,raiva,nemarevoltadeAghoJun,visívelnobigodequetremialigeiramentesobreo lábio superior. Só um vazio que me embrulhava o estômago como seestivesse acordando de uma anestesia. Por isso recusei o pão doce comgergelimpreparadoparaocafédamanhã.

-Vocênãopode ficarsemcomernada–minhamãemepuxouemdireçãoàescada.

Lá embaixo, na sala, estendera a toalha com o pote de chá e umagrande travessadegez. Estranhei, o doce de água de rosas e pistache sódava o ar da graça no Ano Novo. Mas desde que soubera do acidente,passara a madrugada moendo nozes para fazer aquela especialidadedeliciosa de Yazd, sua terra natal. Ela achava que desse jeito poderiaamenizaraminhador.Nasuacabeçatudoficavamaisfácildesuportarse

estivéssemosdebarrigacheia.Quantomaissofisticadooprato,maisefeitosurtia... Fora assimnos funerais daminha avó. Três dias e três noites decomidafarta.Eratantoque,nofinal,quaseíamosnosesquecendoderezar.

Agoraoperfumedeflorde laranjeiraquesubiadobulemisturadoaoaromadogeztraziadevoltaimagensdeumpassadonãomuitodistante,e desde hoje para sempre perdido. Comer era a última coisa que euconseguiria fazer naquele momento. Afastei-me da maneira mais gentilpossívelnascircunstânciasevolteiparaoquarto.

- Kurosh, espera um pouco! – ela pediu quase suplicando, vindoatrásdemim.

Fecheiaportaemeestendinacama.Do ladode foraelaeminhasirmãsquetinhamsidoacordadaspelomovimentoinusitado,continuavamaconversar.Euouviafrasessoltaseentrecortadasdeexclamaçõesvindasládebaixo.

-OspaisdeleestãopedindoajudaaosamigoseparentesparapoderenterrarofilhonopátiointernodaVakil.-AghoJuncontou.

Ele se referia à mesquita próxima ao Bazar do Regente, ondemantinhamseunegócio.Seissonãofossepossível,iriamtentaradeNasiral-Molk ao sul da avenidaDastgheib.Namais importante de Shiraz, todadecoradaempastilhascommotivos floraisemtonsderosa,verdeeazul,seriaquererdemais.LádentroficavaomausoléuXáCheragh,oReidaLuz,reconhecível de longe pela cúpula em forma de bulbo com o minaretecoroadopelopequenotetodourado.Paramimaqueleeraumlugarmágico,por causa das miríades de espelhos minúsculos que recobriam seu tetocomoumcéuestrelado.AghoJunachavaabsurdo.Umprivilégiodaquelesiacustarumafortuna.

-Seráquejánãosedãoporsatisfeitoscomashonrariasqueorapazvaireceber?

Estraçalhado... Curioso pensar nesta palavra ligada ao nome deBehruz.Justoele,omaiscompenetradodenós,quetomaraasérioasharia,

aleiislâmicaimpostapelaRevoluçãoeseapresentaracomovoluntário!Avida é mesmo injusta, pensei comigo, embora soubesse que meu amigoescolheraaqueledesfecho.E,seaguerraemsijáeratãocruel,ogoverno,comseufanatismo,atornavaumaverdadeirainsanidade.

Tenteirecordarafacedomeuamigo,masa figuradelesedesfazianoarcomoafumaçanahoradaexplosão.NumminutoBehruzeraumserpensante, comsonhos, ideais eumaboadosedevalentia.Nooutro tinhaviradoumamassadisforme,músculoseossosrecolhidosemumapequenacaixacobertadetecidospintadoscomtrechosdoAlcorão,levadasobreosombrosdoshomensdafamíliapelasruasdacidade.Setivessesobrevivido,teriaficadoaleijadocomoumcolegadeclassequevinohospitalquandofuivisitarumprimodoente.Entreinaalamasculinaprocurandoo leitodele,quando topei com algo que ficou gravado na minha memória. Fiqueidesconcertado ao ver alguém conhecido no meio daquela profusão demacas, gemidos e ataduras ensangüentadas. Hossein demonstrou igualsurpresaemmever.Apesardetudo,numpiscardeolhosconversávamoscomo se jamais tivéssemos nos separado desde o primário. Falamos dosvelhos professores, das meninas da escola vizinha, que esperávamos aotocardosinoparaacompanhá-lasdelonge,semservistosporninguém.

-Lembra-sedeFaty?–eleperguntou.–Elaaindaestásolteira?Comoeunãomerecordariada irmãdeBehruz,pelaqualnósdois

tínhamosumaqueda?Comoesquecerdoscabelosencaracoladosfaiscantessobosolqueumdiadesapareceramdentrodochador,acapaqueocorpointeiro?Apostávamosparaverquemiasecasarcomelaeretiraro lençoquepassara a esconderos cachos castanhos escuro.Hossein era omaiorcraquenohaft sang,masnuncame superouno tabuleirobrancoepreto.Elesemprederrubavadeprimeira,comaboladetênis,amaioriadassetepedrasempilhadasemformadepirâmide,queagentemontavanomeiodarua, mas não tinha raciocícnio rápido nem a concentração que o xadrezexigia.Por issoestávamossempreempatados,enuncachegamosabrigar

deverdade.Maistardenosperdemosdevista.Nessereencontroaoacasocombinamosdenosvermosassimqueelerecebessealta.

Abraçamo-nosemocionadose sentio roçardas trêsmedalhasqueenfeitavamablusadeseupijama.Aomencionaroorgulhodeterumamigoheróideguerraeledeuumsorrisoforçadoquemaispareciaumacareta.Sóentão reparei o tormento que marcava suas feições irremediavelmentetristes. Recuei ao imaginar os horrores que deveria ter presenciado nocampo de batalha, as torturas atrozes a que eram submetidos oscapturadospelos inimigos, as feridas insuportáveis que latejamno fundodocoraçãoejamaiscicatrizamporcompleto.Vireiemdireçãoàsaídacomummistodealívioevergonhapornãotermealistadocomoamaioriadosmeus amigos. Antes de deixar a ala, lancei um último olhar ao meu ex-colega,quevoltaraorostoparaaparede.Percebiquelhefaltavamasduaspernas, amputadas bem na altura da virilha. Não era o único. Outrosrapazes, igualmente jovens, vítimas da brutalidade da invasão iraquianapotencializadapelonosso fanatismoreligioso, tinhamcabeçasenfaixadas,olhosremendados,mãosebraçosdemenosesofrimentodesobra.

HosseineBehruz, frutosdeumageraçãodesperdiçada.Equantoamim, qual seria meu destino? Encontrar meu marjae taghlid, o guiareligioso,fontedeinspiraçãoesegui-loatéamorte?Ouesconder-meparasempre, numa terra sem perspectivas nem esperança? Cursar auniversidadetornara-sepurailusão.Elastinhamsidoreabertasdepoisdedois anos, mas havia filas intermináveis aguardando vagas reservadaspreferencialmente aos familiares dos mártires da revolução. O cerco sefechavaeasalternativasdiminuíam.Fuitomadodeumdesalentoprofundocomo jamais experimentara, umamistura de ódio, impotência e pena demimmesmo.Levanteiparacolocarumafitacassetenovelhoaparelhodesom.GireiobotãonovolumemáximoeosacordesdeumamúsicadeBobDylanecoarampelacasa

-Cuidadocomosvizinhos!-eraavozdaminhamãe,quebatiacom

forçanaportatrancada.- Que se danem – respondi baixinho. - Pouco me importa se me

denunciaremàsautoridades...–emedeixeilevarpelosomqueháanosnãoousava escutar. Conseguia reconhecer as frases cantadas em inglês,aprendera a língua na escola na era de Reza Pahlevi. Naquela época osEstadosUnidosnãoeramopiordosnossospesadelos.

Nãoseiquantotempofiqueialilargado,noembalodascançõesquemetransportavamparamundostãolongínquoscomoaspáginasdoslivrosproibidos. Ainda guardava alguns volumes no fundo falso aberto noassoalho,debaixodotapetedebordasazuis.Comaconivênciadasminhasirmãs, escolhi alguns títulos para salvar da fogueira, quando mandaramqueimar tudo o que não fosse autorizado pelos censores religiosos. Elasgostavam de Proust e Tolstoi, mas eu preferia Charles Dickens e DomQuixote,deCervantes.TambémhaviaDostoievsky,queescreviadeumjeitotristedemaisparaomeugosto.Eracurioso...apesardefalarsobreaRússiade um tempo distante, ele parecia estar escrevendo sobre a nossa gente.Achoqueporissofoiproibidocomosdemais.

Música, só as de teor religioso. Revistas e jornais, apenas ospermitidos.Televisão,nempensar.Asantenasforamparaolixo,captavamprogramasefilmesqueofendiamasrígidasnormasdoAlcorão.Khomeininão deixara dúvidas ao declarar que todo muçulmano era obrigado aobedecer cada linha do Livro Sagrado. As raras vozes dissonantes, quecontestavamosaiatolás,altosdignitáriosnahierarquiareligiosaeperitosem Leis islâmicas, não sobreviveriam para ver o fim da história. Eramexecutadas de forma sumária, sem quaisquer formalidades jurídicas,escapandoàfarsadeumjulgamentodecartasmarcadas.

Consultei o relógio, presente de Behruz. Passava das onze horas.Nãoabrimosalojapormotivodeluto,ninguémdecasasaiuparatrabalhar.Osepultamentoseriadaliaumasemana.Antes,precisavamtransportaroscorpos, ou o que sobrara deles para devolver às famílias em diferentes

cidadesdopaís.Quemtinharecursospagavadoprópriobolsoaviagematéasproximidadesdafronteirapararesgatarosrestosmortaisdosfilhos,quetraziamnosautomóveispelaestradamunidosdesalvo-conduto.Nãosaíabarato. Com a gasolina racionada, só dava para comprar combustível nomercadonegroapreçosexorbitantes.

Pelafrestadaportaagoraentravaumaromaestimulantequeabriumeuapetite.Eraopolo,oarrozcomfrutassecasacompanhadodebrochetede carneiro, temperado com estragão e servido com molho de menta.Minhamãeprosseguiacomsuasartesculináriasdepodercurativo,edestaveznãoresistiàsedução.Desligueiosom,masamúsicacontinuouecoandodentrodaminhacabeça.Aosairdoquarto,viumafotografiaamarelecidadeBehruz,dequandotínhamos15ou16anos.Costumávamosassistiraosfilmes de caubóis, eu achava esquisito porque ele torcia para os índios enãoparaosmocinhoscomoamaioriadenós.Sabiamuitacoisasobreosapaches,siouxeoutrastribosdepeles-vermelhascujosnomesnãorecordo.Economizávamosdinheiroparaasentradasdocinemaeparacomprarosdiscos da nossa estrela Googoosh e do pop star Dariush. Eu gostava damúsica tradicional iraniana, aquela em que o cantor usa estrofes dosmaiores poetas como Hafez, Saadi, Moulavi, Ferdussi ou Khayam,acompanhados pelos instrumentos típicos, mas não resistia aos LPs derock.Tocava-osnavitrolaatédecoraras letrasecantarolar juntocomasbandas.HojeeumeperguntavaseBehruzchegara,algumdia,agostardosBeatlescomoeu.

Eu questionava quando e como esses conjuntos passaram arepresentaradecadênciaeo lixoque infectavaanossacultura.PressintotersidoaíquemeutrajetoeodeBehruzafastaram-secomonabifurcaçãode um rio, as águas cavando dois leitos a partir de uma pedra. O deleresultou namorte e sua conversão em herói da pátria. Com páginas embrancoeplenodeincertezas,omeuaindaestavaporserescrito.

Um tremor percorreu meu corpo feito uma descarga elétrica. Se

tivesse uma fração da coragem de Behruz ou de Hossein, romperia comtudo isso para mudar de vida. Sim, eu sabia de pessoas que estavamdeixandoopaísemsegredo,apesardasfronteirasfechadasepatrulhadas.AsrotasdefugacortavamoPaquistão,Turquia,KuwaitouArábiaSaudita,através do Golfo Pérsico. Ficava fora de cogitação tentar passar pelaimpenetrávelUniãoSoviética, a leste, e, obviamente,pelo Iraque, aoeste,comquemestávamosemplenaguerra.

TorneiaolharparaoretratodeBehruz,desciparaasalaedevoreioalmoço com uma fome premeditada. Iria precisar de toda a energia douniversopararevelaraosmeuspaisminhadecisãoirrevogável.

Nãodesconfiavaqueelespróprioshaviamconversadoarespeitodeumapossível fuga,comamortedramáticadomeuamigodeinfânciacujaimagem, agora, apareciaperfeita comose ele estivesse sentadodiantedemim. O riso fácil, cabelos anelados emoldurando o rosto que chamava aatençãodetodasasgarotasedespertavaemmimumapontinhadeinveja,surgiulímpidoesemdistorções.

-Precisamosderrubarestegovernoqueprejudicanossopovo.–Avozdelesoavanumtimbredifícildeesquecer.Eleganhavanossaconfiançanaadesãoàlutaquetomouasruasdecadacidade,decadapovoadodoIrãatéoestabelecimentodarepúblicaislâmicaem1979.Seusolhosbrilhavamcomofachosdeluzenosguiavamnaquelaaventuraépica,queconquistavamaisemaisadeptos,inclusiveosmaiscéticoserelutantes.

Tínhamosapenasdezesseteanos,masnosengajamoscomagarraeféde quem acredita na possibilidade de alterar radicalmente o curso dahistória. Eu seguia os passos de Behruz como se segue um profeta. Sóenxergava a bravura do amigo, com quem compartilhara os momentosmais felizes da infância e da adolescência. Ainda era muito jovem paraperceber que aquela faísca refulgindo nas suas pupilas era a marca dosfanáticosedosloucos.

ParteIIOfimdainocência

IIAcasadeBehruzeaminhaficavamnomesmoquarteirão,pertoda

escolaparaondecaminhávamosjuntostodasasmanhãs.Poucagentetinhacarroenãoéramosexceção.EuacordavacomosomdorádionoquartodeAghoJunchamandoparaaspreces.Elecompraraoaparelhoassimquenosmudamosparaum localdeondenãoconseguíamosescutaromuezimnoalto do minarete. Agora contávamos com a tecnologia para as oraçõesmatinais.Aquilosoavacomoumamúsicaavisandooiníciodeumnovodia.Ele seria como o de ontem e o de amanhã. Alegre e despreocupado,contantoquenãomeesquecessedospreceitosbásicosdareligião–afé,aoração(salat),acaridade(zakat),ojejumeaperegrinaçãoquandoeufossemaisvelho.

Agho Jun não era um devoto extremado, mas fazia questão deobedecer aos cinco pilares sagrados do Islã, até mesmo quando estespareciamforademoda.NãomeatreviaatransgredirosmandamentosdeAláparanãopagarpelosseuspecadosnoJuízoFinal. Íarezartodasexta-feiranamesquitaparaaqualdoavaumaporcentagemdosganhosmensais.Jejuava durante o Ramadã. Jamais deixou que consumíssemos bebidaalcoólica,apesardeservendida,quaseàvontade,duranteogovernodoXá.Nem permitia que minhas irmãs usassem saia curta. “Uma moça derespeito não pode mostrar mais do que os tornozelos”, ele avisava,torcendoonarizpara as amigasdelasque chegavamvestindoasúltimas

novidades damoda estrangeira. Para ele, era uma questão de princípios.Recatodignificavaamulher,roupasdecotadassignificavamvulgaridadeeofensaaocorpofeminino.

“Isso vai acabar mal”, Agho Jun costumava advertir diante dacrescente invasão dos usos e costumes ocidentais. Também não gostouquandoRezaPahleviproibiuochador,queapesardissocontinuavausadopor muitas mulheres, principalmente nos vilarejos do interior do país.Achavaque certos limitesnãodeveriam serultrapassados sobo riscodeperdermosnossaidentidadeeauto-estima.

“Somosumdospovosmaisantigosdoplaneta”–gostavadefrisar.“Nãoprecisamoscopiarosoutros,pelocontrário.Nóséquetemosmuitoaensinar”.

EntãoAghoJuncontavapelamilésimavezahistóriadaformaçãodoIrã, nome dado em tempos remotos à extensa região composta demontanhasrochosas,terrasressequidasedesertossalgadosentreoGolfoPérsicoeoMarCáspio,ocupadapelosarianos,nômadesdepeleclara.Seusolhosmiúdos faiscavam por detrás das lentes dos óculos de aro escuro.Umadashastesestavaremendadacomumesparadrapo,porquedesdequemeconheciaporgenteelealegava faltade tempoparamandarconsertaroufazerumnovo.Eassim,malcontendoaemoçãoquetransmitiaapesardeestarmosouvindoamesmalengalengaquejásabíamosdecor,voltavaacontar que na planície de Susiane, às bordas do Iraque, nasceram asprimeiras cidades iranianas. Elas desenvolveram-se graças à suaproximidadecomaMesopotâmiaeUruk.Foiquandovagassucessivasdetribos indo-européias chegaram, sendo que uma delas, conhecida comoPersa,instalou-senapequenafaixaondefica,nosdiasdehoje,aprovínciadeFars.

Sentados em almofadas feitas de tapete persa, nós e minha mãeouvíamos resignados. Ela desistira de fazer Agho Jun mudar de assuntoquandootemagiravaemtornodahistóriadoIrã.Noseucantopreferido,

com os pés metidos no chinelo de couro macio de cor marrom, eleprosseguia. Como não cursara faculdade, nem tinha diploma, Agho Jungostava de exibir sua cultura, quase erudita. Teria sido professor, masprecisavasustentarafamília.Queremédio?

- Há pelomenos 2600 anos, os persas organizaram-se em Estadoindependente sob a chefia de Achéménès. Seus descendentes, de Ciro aDarioeXerxes,osxahanxas,reisdosreis,alargariamasfronteirasdaPérsia– Agho Jun acrescentou – construindo a Estrada Real, de quase 3.200quilômetros, que atravessava o coração do Império desde Susa, a capitaladministrativa,atéoMarEgeu,noextremooposto.A redeviária fariadaregiãoumcentrodenegócios,atravésdoqualfluíaocomércioentreaÁsiaocidentaleoriental.Mas,comoemtodahistóriadahumanidade,sofreriaainvasãodeAlexandre,oGrandeedeseuselefantes,usadoscomotanquesde guerra. Sem mencionar os gregos bizantinos e as tropas mongóis deGengis Khan, que destruíram aldeias inteiras e massacraram suaspopulações. Isso, depois de terem sido convertidos ao islamismo aointegrarem-se ao império árabe sob o califado. Fomos nós, os iranianos,queensinamosaosárabesálgebra,arquitetura,químicaeastronomia,quedepois eles disseminariammundo afora -, contava entusiasmado, sem seimportaremparacerrepetitivo.

- Pensam que os árabes são os maiores sábios da antiguidade,quando foram nossos ancestrais os grandes cientistas e matemáticos dopassado! – Agho Jun vivia repetindo. Tinha o maior orgulho daquelasraízes,tantoquepreferiausar“Khoda”quandosereferiaaDeus.

Saltandoséculosparaencurtarumalongahistória,noscontavaqueem1935avelhaPérsiatinhaadotadoonomedeIrã.“Somosoúnicopaísdocontinentequenãofalaárabeesimpersa,quechamamosfarsi,portersurgidojustonaregiãodeFars,berçodanossacivilização.Oalfabetode32caracteres possui quatro letras amais do que o árabe, que semesclou ànossalínguaoriginal”.

Shiraz,minha cidadenatal emque sempremorei, é tida comoumoásisnomeiodaaridezdesérticadaprovínciadeFars.Emboraamaioriados jardins que a tornaram célebre no passado tenha desaparecido, operfume das flores e árvores frutíferas povoouminha infância. Fecho osolhosepossoadivinharascoresdastulipasedosamores-perfeitosesentiroaromadaromãplantadanofundodonossoquintal.Apaisagemcontinuaintactanosarquivosdamemória.Revejo,aonorte,osmontesZagrosqueseelevam a mais de 3 mil metros de altitude. Ao sul eles vão diminuindoprogressivamente, formando bacias propícias ao cultivo de cereais e dealgodão e que outrora serviram de pastagem de inverno aos nômades.Antes da proibição do consumo de álcool, a região era coberta pelasparreirasdasquaisseproduziaorenomadovinhodeShiraz,umacepaqueganhou o mundo. Recito de cor poemas de Hafiz e Saadi, cujos túmulosenfeitamosparquesondecostumávamospassearcomosparentesvindosdeoutrasprovíncias.

De uma família classe média, meu cotidiano era tranqüilo.Levantava, punha o uniforme deixado por minha mãe sobre a cadeira eseguia para a escola, onde as matérias eram ensinadas por professoreslaicos.ParapenetrarnosmistériosdoAlcorão,Agho Junme fez teraulasparticularescomSeyyed.Barbudo,omuláusavaoammame,turbantepretoprópriodosdescendentesdeMaomé.Osuorgotejavadasuatestaestreitanacabeçagorduchaquebrotavadiretodocorpanzilsempescoço.Comvozgutural,diziaqueummuçulmanonãodevenegligenciarascinconamaz,asoraçõesdiárias.

AghoJunqueriaumfuturomelhorparamim.Aocontráriodealgunsdosmeuscolegas,mandavaqueficasseemcasaapósasaulas.ElepreferiaqueeulesseedecorasseversosdoShahname,oLivrodosReis,emvezdeajudarnoescritóriodalojadoBazarqueherdariaumdia,assimcomoeleareceberadopai.ParaAghoJun,oépicoescritoporFerdussihámaisdemilanossobreopassadohistóricoemitológicodoIrãdesdesuacriaçãoatéa

conquista islâmica no século VII, despertaria em mim o senso depatriotismoqueeleprópriocultivavacomtantaintensidade.Comocaçulaeúnico filho homem, após duas garotas e um menino que morreu aocompletarumanodeidade,eusempreforaumtantomimado.Elesonhavaqueeuseguisseatradiçãodafamílianaloja,masenquantoisso,satisfaziaamaioria dos meus caprichos. Convencido da impunidade, esperava AghoJunterminaroalmoçoesumirnaesquinaparaescapardoquartoecorreratéacasadeBehruz.Naqueledianãofoidiferente.Amãedelemeviupelajanelaeveioabriraporta.

-Salamaleikum–elacumprimentou.–Vocêsvãojogarfutebol?Nempreciseiresponder,poisnoteiafiguradeBehruzcomumabola

debaixo do braço. Ele era o nosso craque e recentemente tornara-se ocapitãodotimedaescola.

-Vocêdemorou,penseiquenãoviessemais–meuamigoreclamouquandoeufizmençãodeentrar.

- Agho Jun ficou no telefone discutindo sobre um lote de tapetes.Imaginequequeriamcobrarodobrodopreçocombinado!

-Bem,agoravamosrecuperarotempoperdido.Despedimo-nos da mãe dele e apertamos o passo em direção ao

pontodoônibus.- Para onde estamos indo? – eu perguntei. – Vamos bater bola no

campo?- Você vai ver. Por enquanto, siga-me. Trouxe o dinheiro da

passagem?Eufizquesimcomacabeça,tateandonobolsodacalçaostrocados

quereceberadeAghoJuncomopagamentopelaajudaquederanalojanofim de semana anterior, quando o Bazar fervilhava de clientes. Nãoquestioneimeuamigosobrenossodestino,poisnessastardesroubadasaoestudo eu me sentia como um fugitivo, sem direito algum. Além disso,qualquer coisa era melhor do que ficar trancado em casa, sobretudo no

calor.Naverdade,não importavaparaondeestávamosindo,oqueviesseerapurolucro.

Minhacuriosidadefoilogosatisfeita.Conheciaoitinerárioeelenoslevava ao noroeste, rumo ao parque de Bâgh-e Eram. Como de praxe, otrânsitoestava caótico, asbuzinasnãoparavamde tocareosmotoristas,enfurecidos no meio da balbúrdia, gritavam com todos que cruzavam ocaminho. Semáforo não fora feito para respeitar e as batidas eramcostumeiras, atravancandoas ruas entupidasdegente tentando irparaooutro lado da avenida sem a segurança das faixas de pedestres, entãoinexistentes.

-SabequenaSuéciaoscarrosparamnosinalvermelho?–Behruzperguntou.

-Edaí?- Lá os pedestres também têm preferência. Os automóveis freiam

paradeixá-lospassar... – eleprosseguiu, acrescentando. -Eassimmesmoelestêmomaioríndicedesuicídiodoplaneta!Váentenderacabeçadessagente...

Behruztinhadessesrompantesinesperados.Semmaisnemmenosvinha com dados e fatos de almanaque e me fazia sentir ignorante edesinformado. Fiquei tentando localizar a Suécia dos suicidas no mapamundieemalgunsminutosnoslivramosdotráfegocarregadopararodarnuma velocidade razoávelmargeando o rio Khoshk. Suas águas estavamturvas, há semanasnão chovia. Sentado ao ladodeBehruz, euprocuravaadivinharoquesepassavanacabeçadele.Derepente,donada,perguntei:

-Vocêvaitrabalharnalojadoseupaiquandoterminaraescola?Ele olhou para mim com um ar meio superior e disse sem

pestanejar.-Dejeitonenhum.Querosersoldado!Mordioslábiosdeinveja.Nãopelaescolha,maspelaconvicçãoque

as palavras dele carregavam. Porque eu não fazia amínima idéia do que

estudar,oqueaprenderequal tipodevida levar.Paramim,o futuroeraumaenormeincógnitae,porisso,admiravaoamigosempredecididocomoumadultoemminiatura.

Fiquei pensando em como Behruz era sortudo e, quando dei pormim, tínhamos chegado.Diantedenósos ciprestes riscavamo chão comsuassombraslongilíneas.Delongejádavaparasentiroperfumedasrosasaindaemflornaquelefinaldeverão.

Passamos pela entrada do Jardim Botânico para contornar opavilhãoprincipal,umpaláciodoséculoXIX.Jáoviraumsemnúmerosdevezes, mas de novo me surpreendi com a beleza dos mosaicosmulticoloridos. Eles brilhavam sob o sol da tarde, lançando reflexosdançantesnasuperfíciedoespelhod’águaaolongodafachada.Nosfundosdo jardim, onde começava o roseiral, distingui um grupo demeninos daescolaagachadosemtornodealgumacoisaqueexaminavamcomatenção.

Aprincípio,acheiquefosseoutraboladefutebolejámeperguntavacomoiríamos jogarali, foradocampo,masquandonosaproximarmos,viumtabuleirodexadrezeummontedenotasempilhadas.Tomeiumsustoao ver tantos tomans, mas meu amigo foi avisando que tinha feito umaaposta.

-Pustodasasminhaseconomiasemvocê,nãovámedecepcionar!Soube então do torneio que começava hoje e ia até Noruz, o Ano

Novo. Em lugar de futebol, toda quarta-feira nos reuniríamospara testarnossashabilidades.No final, o vencedor ficava comumaporcentagemdoarrecadadoapósopagamentodasapostas.

Encareimeusoponentes,trêsgarotosmaisvelhosdoqueeu.Apesardo jeito de poucos amigos, não senti medo algum. Desde pequenoaprenderaxadrez,inventadonaPérsiaetrasmitidoaosárabescomotodoorestante da nossa cultura. Quando alguém fala “xeque mate” está, naverdade,dizendo“Xámat”–oreiestámorto.

Agachei com tranqüilidade para arrumar as peças brancas, as

minhaspreferidas,queBehruzescolheraantesdedisputarmoso torneio.Eusabiadaexistênciadessesjogosclandestinos,queserepetiamtodoano,maseraaprimeiravezqueparticipavadeum.Oesportenãoerailegal,sóasapostasemdinheiro.Porisso,apartirdaqueledianosencontraríamoscadavezemumlocaldiferente.

- Se formos pegos pela Savak, estamos perdidos! – comentei,arrepiadosódepensarnaterrívelpolíciapolíticadoXá.

-Deixadebesteira!–meuamigoexclamou.–Eles têmmaisoquefazer.Estãoocupadoscaçandocomunistasesubversivos!

Cocei a cabeça, sem entender direito, mas me calei. Não ia dar obraçoatorcer,perguntandoosignificadodaquelaspalavras.Behruzsabiamais do que qualquer garoto na nossa idade. Acostumara-se a darexplicações detalhadas sobre os mais variados assuntos e, às vezes, eufingiatercompreendidosóparanãomesentirdiminuído.Guardeiaquelestermos na memória para pesquisar quando voltasse para casa. Nãoimaginavaqueumasimplesfrasedetonariaminhafuturapolitização.

Aquele jogo de xadrez custou caro. Sem conseguirme concentrar,levei o primeiro de uma série de xeques-mates da tarde. Mais medesesperava,menoseracapazderaciocinar.Quandonosdemospelacoisa,jápassavadasseishoras.Marcamosarodadaseguinteenosseparamos.

- O que está acontecendo? Você perdeu a mão? – meu amigo mecobrou assim que nos afastamos do grupo. Embora chateado, ele teve aconsideraçãodenãomehumilharnafrentedosoutros.

Eu não sabia como responder. A última coisa que desejava eradecepcioná-lo.

-Dapróximavezrecuperooterrenoperdido,prometo.–e,comoaselarminhaintenção,batiamãonopeito.-Agoratemosquecorrer,AghoJunvaimematarporchegartarde.–eudisseparamudardeconversapois,nofundo,sabiaqueeleseriaincapazdemebater.Nomáximo,umcastigoleve.Eueraintocávelparameupai,quemeviacomoummilagre,nascido

quando já tinha perdido as esperanças de ter um filho homem parasubstituiroquemorreraantesdahora.

Paraagravarasituação,oônibusamareloebrancoestavalotadoetivemos que cobrir a pé o longo percurso do parque até nossas casas.Apertamos o passo e por quase uma hora e meia permanecemos emsilêncio.Nomeucérebrooslancesdotabuleirodisputavamespaçocomonovovocabuláriopolíticoquepassarapertodemimderaspão.Fragmentosdeconversasditasameiavozporalgunsdosprofessoresnaescolasobreascrueldades dos agentes da Savak adquiriam contornos mais nítidos. Iaremendando os rombos da minha ignorância na medida em que,imperceptivelmente,davainícioaomeuprocessodeconscientização.

IIIPorsortesóminhairmãmaisvelhaestavaemcasaquandocheguei,

exausto, quase às sete da noite. Todos tinham ido visitar uma tia recém-operada.Nargesabriuaportaentrecontrariadaepreocupada.Sempreforacomoumasegundamãeparamim,apesardassuasidéiaspeculiaressobrefamília. Cursava o penúltimo ano da faculdade de medicina e pretendiatrabalhar, além de casar e ter filhos. Estava comprometida com umcirurgião recém-formado, na verdade um primo distante que foraapresentadoporumatia,deacordocomastradiçõesiranianas.Elesfaziamplanos,masnãopoderiamadivinharqueseriameternamenteadiadospelodesenrolardacriseprestesadesabarsobrenossascabeças.

ApesardeAghoJunnãoconcordarplenamentecomaqueletipodeprojeto,umtantomodernoparaogostodele,elenãoseopunha.Preferiavê-laaplicadanosestudosdoquecomoafilhadomeio,comamentecheiadas bobagens que lia nas revistas e via na televisão. Farzane tentara acarreiradequímica,maslogosedesinteressou.Agorapassavaosdiasemcasasemfazernada,anãoserquandoiaajudarAghoJunnalojadetapetes

etecidos.Comoestávamossós,pergunteidesupetão.-Oquesignificacomunistasubversivo?Narges me olhou desconfiada, mas num instante se abriu. Muito

negros, os olhos dela soltaram um brilho estranho que eu jamais tinhanotado.

-Quemandapondoessascoisasnasuacabeça,Roshy?–elasorriu,usandooapelidocarinhosoqueinventaraparamim.

Deideombros.Poucoimportava.- Aliás, por onde andou até agora? – espertamente ela mudou de

assunto, tentando me demover de questões grandes demais para minhapoucaidade.Maseuinsiti.

-Nãosoucriança,Narges...–Nãovoumorrersevocêmeexplicaroqueécomunistasubversivo.

Ela soltou um suspiro fundo como fazia quando via que algumacoisa não tinha jeito. Estava resignada. Sempre que a gente discutia, eulevavaamelhor.NargesmemimavamaisdoqueminhamãeeAgho Jun.Compaciência,mecontousobrealutaquevinhasendotravadaemsilênciocontraoregimedoXá,queperseguiaquemaeleseopusesse.Comentava-se que a corrupção corria solta, acobertada pela Savak. Odescontentamento geral crescia e todos começavam a exigir a volta doaiatoláKhomeini,expulsodopaísem1964.Ascríticasdele,queolevaramaoexílionaTurquiaedepoisemNajaf,cidadesantaxiitaaosuldeBagdá,estavam se convertendo em palavras de ordem. Seus discursos eramreproduzidosedistribuídosclandestinamentenauniversidadeeforadela.Nargeslera-ováriasvezes.Asituaçãoiapegarfogoeelaapostavaquetudomudariaparamelhor.

-Vocênãotemmedo?–foiaúnicaperguntaquemeocorreu.Elaiaresponderquandoacampainhasooucomachegadadosmeus

pais. Aproveitei e corri para o quarto, não queria encará-los e ter que

inventar uma mentira. Dormitando na cama, as imagens do palácio deBâgh-eErammisturavam-se a cenas de filmes deHollywoodque vira nocinema. Os mocinhos do lado do Aiatolá enfrentavam os bandidos, quetraziamnopeitoasiniciaisdoserviçosecretodoXá.Nomeiodotumulto,surgia minha irmã mais velha com uma pilha de panfletos nos braços,berrando“MargBarXá”,ou“MorteaoXá”.Noinstanteseguinteospapéisvoavam para o alto e depois caíam como flocos de neve gigantescos noespelho d’água do parque. Boiavam por uma fração de segundo atéafundaremjuntocomela.

Acordei com uma batida na porta do quarto. Como não tinhajantado, Narges trazia nân-e sangak, um pão espesso quentinho,acompanhadodechápreto.Agradeciepelaprimeiravezpenseinaminhairmãcomoumserindependente,compensamentosesonhospróprios.Elaarriscava-se por seus ideais, enquanto eu vivia despreocupado entre aescolaeostorneiosproibidosdexadrez.

Assimmesmo, não desisti deles, pelo contrário. E como precisavarecuperaroprejuízodojogoanterior,decidiprocurarumartesãoquefaziaos mais delicados objetos em marchetaria de Shiraz. O ateliê dele, àsmargensdorioKhoshk,estavarepletodemadeiracortadanasflorestasdeMâzanderân. Elas tinham cores e cheiros diferentes, pois era precisodiversas tonalidades para os khatam que fabricava usando tambémmarfim, osso emetal. A dele, era umaprofissão que passava de pai parafilho,daspoucasqueaindasobreviviamnumacidadegrandecomoanossa.Sua fama espalhava-se pelo Irã inteiro. Diziam que tinha entre seusprincipais clientes a imperatriz Farah Diba e o próprio Xá que já vierapessoalmente fazer encomendas. Só que eu não estava interessado nosartefatos que ele criava, por mais bonitos que fossem. O que realmenteprocuravaeramconselhossobrexadrez.Haviaumalendadequeninguémnopaísconheciaaquelejogomelhordoqueele.Agoraeupagariaparaver.Aliás,fariaqualquernegócioparanãomancharminhareputaçãodiantedo

meumelhoramigo.Entreisembatereatravesseiapesadaportaentalhadaatrásdeum

jardimmuitomalcuidado,parecendoummatagal.Escuteio latidodeumcachorro,maslogoviqueestavaacorrentado,sempodermealcançar.

-Quemestáaí?Antes deme dar tempo de responder, ele continuou, em um tom

ligeiramenteameaçador.-Senãomarcouhora,nemadianta,quenãorecebo.Eunãotinhachegadoatéaliàtoa.Nãodesistiriatãofácil.-Porfavor,soufilhodeHassan.Precisofalarcomosenhor.-QueHassan?TemmilharesdelesemShiraz...-OdoBazarRegente,dalojadetapetesetecidos... -griteidevolta

cheiodeesperança.Silêncio.Atéocão,misturadepastoralemãocomlobodeverdade

como viria saber mais tarde, emudeceu. Uma brisa leve soprava asfolhagens.

-VocêserefereaHajHassan?–eleperguntou.Sóbalanceiacabeça,sentindo-mehonradoporelesereferiraomeu

pai daquele jeito.Haj era usado para os muçulmanos que estiveram emMeca, como Agho Jun. Ele fizera a peregrinação dez anos atrás, mas euaindameemocionavaaolembrardaalegriadequandofomosbuscá-lonoaeroporto na sua volta. Eram dezenas e dezenas de parentes orgulhososquelotaramumônibusfretadopararecebê-loemfesta.

Oartesãonãopodiamever,porissotornouaperguntar.-ÉfilhodeHajHassanMajidi?Com toda a força dos pulmões berrei que sim. Aguardeimais um

poucoeescuteiachavegirarnafechadura.Pelafrestaviumhomemmagrodemeia idadee túnicabegedescendoatéospés.Mandou-meentrar.Elesentou-se atrás de uma mesa forrada de papéis e amostras de madeira.Noteiquemancavadeumapernaeusavaumabengala.Examinou-mede

cimaabaixocomodeviafazercomamatéria-primadassuasobras.Aofinaldealgumtempoperguntou.

- Quer comprar um presente para alguém? Saiba que só aceitopagamentoadiantadoedemorodoismesesparaentregar.

E,semqueeupudesseresponder,prosseguiu:-MasemsetratandodofilhodeHassan,quemsabefaçaumpreço

especial...Embora a temperatura ambiente estivesse acimados 20 graus, eu

tremiadeleve,mascrieicoragem.-Nãoéisso.Precisodeoutracoisa.- Ah, é? – e soltou uma gargalhada tão estridente que pensei que

seus ossinhos frágeis fossem se espatifar de tanto chacoalhar. Quasemearrependidetervindo,minhavontadeerafugircorrendodali.

- E o que seria, exatamente, o seu desejo, haji? – ele caçoou mechamandode pequenoHaj, filho daquele que fora aMeca. Eu não estavaachandoamínimagraça,masaprumeiopeitoedissedeenfiada.

- Quero aulas de xadrez. Preciso me aperfeiçoar para vencer umtorneio.

Silêncio.O ar pesava como antes de um terremoto, daqueles que arrasam

uma cidade inteira. Fiz força para me controlar diante daquela figurasinistra.Parameuespanto,emvezderirdemim,eleapenasperguntou:

-Eoqueeuganhoemtroca?Pego de surpresa, franzi as sobrancelhas. Realmente, na ânsia de

resolver meu problema, nem tinha pensado naquilo. Bãbak – este era onomedele–olhouparaasprópriasmãosepôs-seatirarserragemeacolaacumuladadebaixodasunhas.Permaneceumudoporumtempomaiordoqueeuconseguiasuportar.Depoisfalou.

-HajHassansabequevocêestáaqui?Era a pergunta que temia, mas não podia mentir. Cabisbaixo,

sussurrei qualquer coisa que ele fingiu entender. Agho Jun não tinha amenor idéiadeque eu estava ali. Aliás, se ele imaginasseque jogavapordinheiro,seriacapazdemecolocardecastigo.Bãbaknãodemonstrouestarpreocupadocomisso.Pelocontrário.Daliainstantesfezumapropostaqueeujamaisesperaria.

-Eu treinovocê.– fezumabrevepausa.–Emretribuição,queroasualealdade.

-Comoassim,minhalealdade?Bãbak riu de novo. Agora estava mais relaxado, quase de bom

humor.-Nãoprecisafazeressacara.Nãoestoupedindoasuaalma!Abriuagavetadamesaeretirouumcadernoespiraltodoanotado.

Consultou-oeemseguidamedisse.-Tenhoassextas-feiraslivres.Vocêpodeviràtarde.Paramimeracomplicado, justonessesdiasAghoJunmearrastava

paraamesquita.Mascomorecusarumaoportunidadedaquelas?Erapegarou largar. Preferia aborrecer meu pai do que tornar a decepcionar meuamigoBehruz.

- Combinado. Logo depois da sesta estarei aqui. – respondi, aindasemsabercomodriblarAghoJun.

Ele levantou-secomdificuldade,abriuaportaparamime,àsaída,tornouadizer:

-Nãoseesqueça...lealdade.–Coçouabarbicharalaeacrescentou.–Odiaviráemqueserfornecedordesuarealeza,oXá,contarámuitopouco.Muitopoucomesmo...

Fechou a porta, deixando-me só como cachorro que rosnava semme alcançar. Saltitei contente em direção à minha casa, tentando varrerparaumaparteocultadamenteasarmadilhasquehaviacriadoparamimmesmo.

Nunca levei nada tão a sério como a tarefa de vencer o torneio.

Mergulhei nos livros que Bãbak me emprestou e junto com ele estudeiestratégiasdeataqueetáticasdedefesa. “Aspeçasemmovimentosãoosexércitos se enfrentando em uma guerra sangrenta”. Ele dissera. “Oguerreirosábiotemclaroovínculoentreasregrasealiberdadedeescolha.É preciso conhecer para assumir riscos. Você tem que fazer as opçõescertas.Vocêtemquesesuperar”.

Sobaorientaçãodele,preparei-mecomafincoesaíconfianteparaapartida seguinte. A cada sexta-feira, inventava uma desculpa esfarrapadaparaAghoJun.

- Estou com dor de estômago – disse uma vez. – Vou à MesquitaVakil como pai deBehruz. – inventei de outra feita. Paraminha sorte, afamília dele raramente se encontrava com a minha e assim nuncadescobriramaverdade.

O local das partidas mudava a cada semana. Numa das quartas-feirasescolhemosoParqueMelli,próximoaoMausoléudeHâfez,umdosnossosgrandespoetas,nascidoalimesmoemShiraz,noséculoXIV.Agoraestava cheio da segurança proporcionada pelos treinos e enfrentei osadversários com calma e frieza, em lances cuidadosamente calculados.Fixei-menasfigurasorganizadasemoposiçãosimétrica,dezesseisdecadalado. Esperar e agir, matar ou morrer. Os sessenta e quatro quadradosformavam o campo de batalha, eu comandava os soldados da linha defrenteeacavalaria,meustanquesdecombate.

Comartilhariapesadasomadaaoarsenaldeastúcia,vencicadaumadas partidas e recuperei o prejuízo de Behruz. Saímos de lá empatados.ComoumaformadeagradeceraDeus,caminheipelaavenidaGolestãnatéo túmulo do mestre da lírica do ghazal, a antiga forma de verso persa.Contornei o pequenopavilhão revestidodepastilhas amarelas, brancas emarrom claro e, através de suas colunatas, recitei os refrões gravadossobreomármoredopoeta.Algunsdeleseusabiadecorgraçasàsaulasnaescola,quandotínhamosdisputasentreosalunosdocolégio.

“Shirazéninhodelábiosderubiemanancialdebeleza;

Souumjoalheirosemdinheiroevivoansioso.

Éumacidadeplenadeolharesconvidativoseemtodoladohábeleza;

Maseunadatenho,oudetodasseriacomprador”.

Meuamigoriadaminhaencenação,masdavaparanotaraalegriae

oorgulhoquesentiademim.Aliás,literaturaeraumadasúnicascoisasemqueeuiamelhordoqueBehruz,talvezemrazãodoslivrosquemantinhaemcasa.Antesdeirembora,gasteinacasadechánofundodaquelejardimmeusúltimostrocadoscomumfaludê,osorvetebrancoregadoaáguaderosas.

Semodinheirodapassagem,tivemosqueregressardenovoapé,sóque não era tão tarde comona abertura do torneio. Andamos pelas ruaslotadas, rindo da nossa pequena aventura semanal. Não desconfiávamosque momentos como aquele se tornariam cada vez mais raros, atédesapareceremporcompleto.

Assim passaram-se os meses, talvez os mais radiantes da minhaexistência.Acadaquarta-feirarefazíamosumarotadiferenteparadisputaraspartidasque,emgeral,euvencia.Ooutonochegara,tingindodeamareloouro as folhas que iam se espalhando pelo chão dos parques. As ruaspareciamcobertasportapetescujosdesenhosmudavamaosoprodovento.Lembroquenumadaquelastardesjáfriorentas,quandocruzamosumadaspontessobreoKhoshk,paramosnaesquinaparadividirumdugh,refrescogasosodeleitefermentadopormeiodeiogurtenatural,servidocomfolhassecas de hortelã triturado. Ali perto havia ummodesto templo zoroastraquesempreatraíaminhacuriosidade.Aportademadeiraestavaabertae,ao contrário das nossas mesquitas, para entrar não era preciso tirar ossapatos, só lavar as mãos. Além disso, mulheres rezavam ao lado doshomens,algoimpensávelemumamesquista.

De repente reparei num homem que saía do local. Estava vestidocomumatúnicaclaracomprida.FixeiavistaeoreconhecicomoopaideumcolegadaescolachamadoÕrash.Meuamigotambémnotou,masdeudeombroscomoseaquilonãofossenovidade.Porunssegundosmepergunteicomoumnãomuçulmanoimpuropodiaestudarjuntoconosco,masdepoislembrei que os governantes sempre os toleraram como aos judeus e aoscristãos, embora os tratassem como inferiores. “Os que renegam a Fé,dentreosseguidoresdoLivro,eosidólatrasnãopropensosarenunciaraseucultos,atéquelheschegasseaevidenteprova”,recordei.

Zoroastroreformaracrençasarcaicasporvoltade1000a700antesdeCristo,emépocasremotasanterioresaoImpériopersa.MaisconhecidocomoZaratustranoOcidente, introduziuomaniqueísmoéticoqueresultana luta entre o Bem e o Mal, influenciando a tradição judaico-cristã. Euhaviaaprendidoqueseusseguidoresrecolheramoscânticos,ouosgâthâ,para registrá-los no Avesta, o livro santo daquela doutrina pré-islâmica.Primeira religião a acreditar em um só Deus, chamado de AhuraMazda,pregaumateologiacomplexa,masbaseadanosprincípiossimplesdebonspensamentos, bom discurso e boas ações. Sábios e estudiosos, oszoroastrasoumazdaístasforampioneirosnaspesquisassobreastronomiae condenavam os sacrifícios de animais, prática mantida no sincretismoreligiosooperadomaistardepelosreisaquemênidas.

-Achavaqueosmazdeístas se concentravamna regiãodeYazd. –observouBehruz.

-Porquê?–fuilogomeinteressando.- Porque o fogo sagrado foi transferido para lá em 1940. – ele

respondeu.-Quefogo?Meuamigorespiroufundo.Estavacansadodedarexplicaçõessobre

ahistóriadonossopaís.Mesmoassimnão se recusouemesclarecerquehavia uma chama ardendo há mais de 1.500 anos, protegida no templo

construído em Yazd especialmente para guardá-la. Aí veio o dado maisintrigante.

-Sabequeoszoroastrascolocamseusmortosnoaltodastorresdosilêncio,paraseremdevoradopelosabutres?

Incrédulo,sóbalanceiacabeça.Comoformavamumaparcelaínfimada população, menos de 0,07%, os mazdaístas eram, para mim, ilustresdesconhecidos. Mas Behruz lera em algum lugar que os cadáveres nãopodem ser cremados e muito menos enterrados. Não devem entrar emcontatodiretocomofogonemcomaterra,elementossagradosparaeles.Deixavam-nosentãoacéuabertonasdakhmadeformatocircular,erguidassobre colinas fora das cidades. Os corpos acabavam devorados pelosabutres.

Fiqueiimaginandoaquelacenanotopodastorresdepedra.Eradearrepiar.Maslogomeanimei.PrincipalmenteporqueestávamoschegandopertodeNoruz,minhadatapreferida,queporumadessasironiasdavida,eraumaherançadosmazdaístas.FaltavaapenasumasemanaparaoAnoNovo, a principal celebração do nosso calendário, uma celebração tãoantiga e fincada nas nossas raúzes milenares, que o islamismo nãoconseguiuerradicar.Seriamtrezediasdefestaemfamília,comvisitasquesesucediamdiaenoite.Começávamossemprecomumaoraçãoporsaúde,felicidade e prosperidade: "Oh reformador de corações ementes,Diretordodiaedanoiteetransformadordecondições,mude-nosparamelhordeacordocomVossodesejo".ApósasrezasAghoJun,agoraomembromaisvelhodafamília,apresentavaaosmaisnovosoEidi,umanotadedinheironunca usada que fora previamente colocada entre as páginas do LivroSagrado. Minha excitação crescia ainda mais porque, além de tudo, euganharaamaioriaesmagadoradaspartidasdexadrez, trazendoumbomlucroparamimeBehruz.

-Oquevocêvaicomprarcomodinheiro?–pergunteiaele,quesecaloucomosetivesseumdesejoinconfessável.Pelaprimeiravezsentiuma

coisa estranha, feito uma pedra dentro do sapato. Nomomento, não deiimportânciaaofato,estavafelizdemaisparanutrirpensamentoslúgrubes.Fui direto ao Bazar do Regente encontrar Agho Jun e minha irmã parafazermosascompraseabasteceracozinha.

Despedi-medomeuamigoemeembrenheipelolabirintodecheirosedecoresqueconheciatãobemcomominhaprópriacasa.Logoàentrada,algumas barracas ofereciam utensílios domésticos. Lá dentro, sob aabóbadadotetodecoradocomdesenhosgeométricos,eumeperdiaemeencontrava. Em criança, parava enfeitiçado pelos jogos de luz e sombrafiltrados através dos recortes dos lustres dourados. As pastilhas querecobrem algumas das paredes internas ofuscam o brilho das bandejas,candelabros e luminárias de metal. As jóias encrustradas de pedrassemipreciosas, amachetariadelicadaeas roupasmulticoloridasexpostasdecimaabaixosempremefascinaram.Nalojadomeupai,queeleherdoudos nossos avós, tapetes tribais feitos artesanalmente em vilarejosdistantesagoradisputavamespaçocomaqueles fabricadospormáquinasnosateliêsdascidades.MasAghoJunnãoabriumãodostecidosembatik,impressosumaum,quemandavabuscardiretoemIspahan.

Guardonamemóriaocheirodessasmercadorias,queevocavamemmimimagensdetribosnômadesprimitivasatecernossoscélebrestapetespersascomalãresistentedasovelhascriadasnodeserto.Essastradiçõesalimentavam minha imaginação assim como as fabriquetas de fundo dequintal,algumasdasquaismaistardeexpandidasemindústriasprósperas.Para mim, tudo isso vinha temperado com o perfume de menta e rosasmisturadoàsespeciariasvendidasemumsetorespecialdoBazar.

Aosairmosdelá,carregadosdeembrulhos,jáeranoitefechada.EuestavaexcitadocomoemtodoNoruzpoisalémdospresentes,erafanáticopelasbrincadeirasquefazempartedafesta.Quandonosaproximamosdonosso quarteirão, já pude ver as pequenas fogueiras a iluminar as ruascujas luzes elétricas haviam sido desligadas de propósito. Meu coração

bateumaisforteecorriàfrentedeAghoJunparasaltarsobreelasnaquelaquarta-feira anterior a Noruz e assim atrair sorte para o ano a começar.Não supunha o quanto necessitaria dela para os difíceis tempos que seseguiriam.

IVAqueleEydeNoruz,oufestadeAnoNovo,ficariagravadonaminha

memória como o ponto final de uma época. Elemarcaria um corte, umamudançaradicalnapazcotidianaemquefuicriado.Seriaofimdaminhainocência. Pressentindo que nada mais seria como antes, aproveitei asfestas como um peregrino despedindo-se do aconchego familiar àsvésperasdeumaviagemsemvolta.

EstávamosemplenoFarvadin,nonossocalendáriosolar,oumarçona folhinhagregoriana.Nãovia ahorade saborearospratospreparadosporminhamãecomaajudadeNargesededuastias.Cadaqualmoravaemumlugardiferentee,devezemquando,passavamNoruzconosco.Shahin,irmã de Agho Jun, casara-se com Amir, engenheiro de uma grandecompanhiadogovernoeforamoraremTeerã.Viajamosparalánoinvernopara conhecer o Shâhyâde, imponente arco do triunfo inaugurado paracomemoraro2500ºaniversáriodafundaçãodoImpériopersa.Quandoovinotrajetoparaoaeroporto,fiqueidequeixocaído.Eupareciaummosquitodiantedaquelemonumentoempedrabrancade45metrosdealtura,sobrequatro pés em forma de cone que só pareceu menor do que o MonteDamavandcomseupicocobertodeneveseternas.Deresto,acheiacapitaldopaísbarulhentaecaótica.GosteidosmuseusquevisiteicomAghoJunemeutio,enquantoasmulheresficavamemcasacuidandodacomidaedosmeusprimos,doisbebêsentreumequatroanos.Oapartamentodeleseraespaçosoedecoradocomluxo.Tinhamatéempregada,algoraroentreasfamíliasdeclassemédiacomoaminha.Dizemquemeutioganhavariosde

dinheiro nos empreendimentos do Xá, que continuou privilegiando asmultinacionais mesmo depois da nacionalização do petróleo em 1951.Ficarariquíssimo,masAghoJunnãogostavadetocarnoassuntoporcausadacorrupçãoenvolvendoosnegócios.

Roya,irmãmaisnovadaminhamãe,nasceraemYazdcomoela,deonde mudou-se ainda moça. O marido dava aulas na universidade emIspahan. Recebia salário de professor, uma insignificância segundo ouvidizer,entrecochichosesussurros,poisAghoJunachavafaltadeeducaçãobisbilhotarsobreosparentes.Comseuperfildeintelectual,FarhãdgostavadecriticarogovernoeviviadiscutindocomAmir,quedefendiaoXácomunhasedentes.

- Noruz é feito para confraternizarmos - Agho Jun intervinha,colocandoumpontofinalnasdiscussões.

NaqueleFervadinnaminhacasa,noteilágrimasquerendosaltardosolhos de Roya porque, como fiquei sabendomais tarde, enfrentava umacrise conjugal. Ganhara peso depois do parto e o marido fazia enormesucesso com as alunas na faculdade. Para distraí-la, sugeri que no anoseguintefôssemostodosparaacasadelacomemorarNoruz.

- Morro de vontade de conhecer Ispahan, Khale Jan – eu disse,acentuandoojeitocarinhosodedizeronomedela.

De fato, eu tinha a maior curiosidade em visitar a cidade famosapelassuasmesquitasepontesdearcossobreorioZayandeh-Rood.

-OPalácioRealétãoimpressionantequantodizem?Roya passou a mão na minha cabeça e esboçou um arremedo de

sorriso.-Kurosh,comovocêcresceu!–elafalou,parecendoquesónaquele

instantetinhasedadocontadaminhapresença.-Émesmo–emendouGissu,irmãdeAghoJun.-Játematéunsfios

debigode–ecomosdedoscheiosdeanéisapontouparaospêlosqueseinsinuavam acima do meu lábio. Recuei entre encabulado e orgulhoso.

Estava no limiar da adolescência, mas ainda não tinha decidido sair dainfância. Era mais confortável continuar como o caçula mimado do queatravessaroportalemdireçãoaomundoadulto,complicadodemaisparaamim.

-Páracomisso,AmmeJan-pedi,todoembaraçado.-Comlicença–eminhamãefoientrandoparaforrarochãocoma

toalha floridasobreaqualporiamseteobjetosoupratos iniciadoscomosomde“s”paratrazerriquezaealegria.Emcimadeladepositarampotesdesib,sabzi,somagh,siresamanu,respectivamentemaçã,brotosdetrigo,temperousadonoKebab,alhoeumtipodesobremesafeitacomnozes.OLivroSagrado,umespelho,umpequenoaquáriocompeixinhosdourados,ovos cozidos coloridos, além de pão e culche va masghati, os docesconfeitados,complementavamoarranjo.

Asvisitasentravamesaíam.Conversavamalto, trocavamvotosdesaúde e deixavam pães, doces ou salgados. O mulá que me instruía nospreceitos do Islã trouxemeio carneiro queminhamãemergulhou numasalmoura de vinagre com folhas de hortelãmaceradas para assar no diaseguinte.Fiqueiempanturradodeãgil,amisturadesementestorradasdeamendoim,pistacheemelanciaqueenchiamacasadeumaromaespecial.ElepermaneceriaparasempreguardadonofundodamemóriaolfativadequemjáestevenoIrãduranteNoruz.Devoterganhounsbonsquilos,malentravanasroupasnovasqueempilhei juntocomosoutrospresentesnacamaparamostrarà turmaesobretudoaBehruzque, inexplicavelmente,nãoapareceraparanosver.Nargestentoumeconsolarcomosesoubessemaissobreoparadeirodeledoquequalquerumdenós.

-Nãosepreocupe,Kurosh,seuamigoviráaopiquenique.Para minha alegria, no Sizde bedar, o décimo terceiro dia após

Noruz,quandotodossaemdecasaparasedivertiraoar livre,evitandoonúmero treze e seus maus fluídos, Behruz estava de novo ao meu lado.Levanteicedo,meservidosamovarprateadoquefumegavanumamesinha

decantoadoçadocomtrêscubosdeaçúcaresepareiopresentecompradoparameuamigo.Destavez,emlugardeirmosatéumparquenosarredoresda cidade, Agho Jun resolveu fazer uma pequena viagem ao sítioarqueológicodePersépolisjuntocomtodaaparentela.Convidoutambémafamília de Behruz para me satisfazer. Como só Amir tinha automóvel,fretamosduascaminhonetes.AghoJunnuncamaisdirigiradesdeaperdadomeuirmãozinho.Remoía-sedeculpaporqueacriançatinhamorridoemumdesastrecomeleaovolante.Traumatizado,proibiuminhamãeeirmãsde guiar, de modo que sempre andamos de ônibus, táxi ou um veículoalugado com motorista. Hoje, os adultos iriam acomodados na cabine,enquantonósocupávamosapartetraseira,comendoapoeiradasestradasdeterra.

Aodescerdoveículo, sessentaquilômetrosdepois, leveiumsusto.Descobri que meus bolsos estavam vazios. Não trouxera os brotos quesemeara para com eles, em um gesto simbólico, ferilizarmeu futuro. Napressaesqueceradepegarassabzi,osgrãosgerminadosparajogarlongeegarantirarealizaçãodosprojetosnospróximosdozemeses.Minhaspernasbambearam e senti uma leve tontura. Seria aquilo um presságio demauagouro?

Como coraçãoapertado, caminhei até amuralhade15metrosdealturaqueescondiaasruínasmilenares.Tentavadisfarçarodesapontoàsportas da cidadela erguida por Dario para receber os que prestavamtributoaoreidosreisnosfestejosdeNoruz.Porummomentocrieiasasevoeirumoaopassado,maisprecisamentea2500anosatrás,quandoteveinícioaconstruçãodacapitalreligiosa,a500quilômetrosdeSusa,ocentroadministrativodadinastiaaquemênida.Utilizandopedrastransportadasdelocais distantes, os trabalhos duraram sessenta anos e nunca foramconcluídos. Do palácio de Se-Darvaze, de 150 mil metros quadrados,restavam apenas os muros com os relevos dos 28 povos trazendo asoferendas típicas de cada região. As figuras conservam os traços que as

diferenciavamentresi,incluindoatépigmeusnofinaldafila,ademonstraravastidãodo Impériopersa,queseespalhavadoEgitoà Índia.Decoradoemouro,pedrasemetaispreciosos,eracercadoporumavegetaçãoquaseexuberante, diferente da aridez semi-desértica de hoje. Os livros contamque,aoentraraliem330AC,Alexandre,oGrande,maravilhadodiantedetanto esplendor, só pilhou o tesouro real, deixando intactos os edifícios,mantidossobaguardadoexércitomacedônio.

Os devaneios provocados por aquela viagem no tempo foramcortados pela voz estridente de Omid, nosso priminho, filho de Shahin eAmir.

-Mepõe no chão,babaí – ele pediu aomeupai, que o levava nascostasdecavalinho.AcheimuitoesquisitochamaremAghoJundevovô.Eletinha apenas uns poucos fios de cabelo branco e nem parecia tão velhoassim,pelomenosparamim.Foiquandomesentidenovoestranhocomoseestivessemudandodepele.Examineiasmãosqueleveiaorostoparamecertificar de que continuava o mesmo. Por fora, não havia dúvidas, eupermaneciaigual.Ládentro,noâmago,operavam-semudançasradicaisdequeninguémsuspeitava.

VAo lado de Behruz, fui subindo uma das rampas da escada

monumentalparachegaràPortadasNações.ConstruídaporXerxes,formauma sala quadrada de quatro colunas, onde paramos fascinados pelosgigantescostouroscomcabeçahumanaqueflanqueiamaentrada.

- Venha! – e meu amigo me puxou em direção às escadarias quedavam acesso ao terraço da apadana. De novo fizemos uma pausa paraadmiraraprocissãodasnaçõesvassalasapagar tributoaorei.Osbaixosrelevoscomprovavam,maisdoquequalquertexto,amultiplicidadeétnicaeculturaldospovosqueformavamnossopoderosoImpério.

Deslumbrado, Behruz saiu correndo à minha frente. Como eu jáestiveranasruínaseconheciaseuspontosmaisatraentes,fuificandoparatrásatéperdê-lodevista.Minhafamíliainteirapassoudiantecompressa.Fuioúltimoachegaràsaladascemcolunas,ondeficavaotrono.

-NuncapenseiquePersépolis fossebonitacomonos livros!–umavoz feminina chamou minha atenção. Virei o rosto e vi Faty, irmã maisvelhadeBehruz,queconversavacomHossein,nossocolegadeclasse.

-EuprefiroPasárgada–elecomentoutodocheiodesi.–Nãoestátãobempreservadaquantoaqui,sóqueémaisantiga.

Notei nos olhos de Faty um brilho que despertou alguma coisadentrodemim.Écomoseaolhassedeverdadepelaprimeiravez.Comumadasmãos,elaprotegiaorostodosolepudeperceberadelicadezadosseusdedosesguioscomoosdeumapianista.

Era evidente que Hossein tentava impressioná-la com seusconhecimentos históricos. Senti uma pontada de raiva cuja origem nãoseria capaz de definir. Só sabia da urgência em me colocar em pé deigualdade.Seconseguisserebaixá-lo,tantomelhor.

-Pasárgadaerausadaparaascerimôniasdecoroaçãodosreis...–ecalei-me,semsabercomoprosseguir,muitoemborativesseestudadoumaporçãodecoisassobreacidadeladeCiro.

Encabulado,fixeiavistanoscabelosdeFaty,quedançavamaosabordovento.Elepareciasoprardasruínasdiretoaomeucoração,queagoralatejava feitouma feridaaberta.Comonunca tinhanotadoacordosseuscachosquebrilhavamnaqueleiníciodetarde?QuantasvezescruzaracomelaentrandoousaindodacasadeBehruzemalacumprimentara?Seráqueestavacegoesóagoracomeçavaaenxergar?

Perguntas sem resposta enchiamminha cabeça. Senti uma dornoestômago,enquantoaprofusãodecavalheirosassírios,babilônios,etíopes,capadócios e hindus com seus elefantes, camelos, touros, leões e cavalossaltavamdosrelevosparagiraremtornodemimcomosefossemdecarne

eosso.Porunsinstantesacheiquetivesseenlouquecido.-Porquenãodescemos?Temummontedecomidaesperandopor

nós!–eraavozdeBehruzmesalvandodasminhasalucinaçõesetrazendo-medevoltaparaarealidadedepedraaoredor.

Aliviado, despenquei escadas abaixo como se fugisse. Entrei nacaminhoneteeocupeimeulugar.NãodemoroueBehruzsentou-seaomeuladoeretirouumembrulhodobolsodacalça.

-ÉseupresentedeNoruz.–elefalou.Aliviadoporteremquemeconcentrar,rasgueiopapeleabriacaixa

paraacharumrelógiocomoqualvinhasonhandodesdequemeentendiaporgente.

-Vocêédoido!Devetercustadoumafortuna!Elesoltouumdosseusrisoscristalinos.-Vocême ajudou a ganharodinheiropara comprá-lo.Gastei nele

umapartedostomansdaapostadotorneiodexadrez.Sóentãorelembreiotorneio,masemvezdeficaralegre,fuitomado

pelo pavor de ver os pais dele conversando com os meus. Poderiamdescobrirqueeujamaisfreqüentaraamesquitaàssextas-feiras,quandoiater aulas com Bãbak. Estas questões me martirizaram durante o brevepercurso até Naqsh-e Rostam, sete quilômetros ao norte de Persépolis,ondeafinalfaríamosnossopiquenique.

Para certificar-me de que não havia sido delatado, assim queparamosdiantedasfalésiasdeKuh-eHossein,corriatéAghoJun.

-Vejaoqueganheidepresente! – e exibiorgulhosoo relógioquemarcavaatéosdiasdasemana.

Entre surpreso e contrariado, Agho Jun esperou que todosdescessem.VimeuamigocomsuairmãseguidadepertoporHossein,queolhavaparatrás,naminhadireção,demaneiraquasetriunfal.

-Vocênãopodeficarcomisso–AghoJunfalou.–Écarodemais.- Eu sempre quis um desses! – protestei, com minha entonação

especialcultivadaaolongodosanosparasatisfazeremmeuscaprichos.Sóqueagoraminhasorteestavamudando.AghoJunnãoseimpressionou.

-Devolvaissohoje!Quandovoltarmos,nãoqueroveresterelógio–esaiusemsevirar,apesardosmeusprotestoschorososque,destavez,nãosurtiramomenorefeito.

Desanimado, fui andando em direção ao grupo que procurava asombradeumaárvoredebaixodaqualestenderatoalha.Diantedemim,asfalésias de Kuh-e Hossein impunham-se como um símbolo daengenhosidade humana. Não satisfeito em erguer Persépolis, Dario Imandaraseussúditosaplainaremumadasfacesdaquelasmontanhas.Nela,escultores gravaram não apenas sua majestosa figura eqüestre como ahistória do reino em escrita cuneiforme. Ali escolheu descansar em paz,assimcomoXerxeseArtaxerxèsI.Oconjuntoeraimpressionante,maseutinha problemas mais concretos, ainda que mesquinhos, para ocupar amente. De que forma devolver o relógio sem que Behruz tomasse meugesto como ofensa? Convencer Agho Jun estava fora de questão, eleacabariasabendodotorneioedasapostas.Tãoconcentradoestavanomeuumbigo,quenemmedeicontadeNarges, logoali, ameencararcomoseadivinhasseminhasinquietações.

-Algumproblema,Roshy?Instintivamente olhei para os lados para me tranquilizar de que

ninguémouvirameuapelidodecriança.Hosseinpoderiausaraquiloparazombardemim,algodequeeunãoprecisavanaqueleminuto,sobretudonafrentedeFaty.Porsortetodosestavamentretidosemarrumaroscomesebebesemcimadatoalhaqueteimavaemvoarcomoumtapetemágico.Otempo mudava com o vento do noroeste, anunciando chuva para breve.Tenteiocultarmeurelógiocomumadasmãos,masjáeratarde.

-PresentedeBehruz?–elaperguntou,pegandonomeupulsoparaexaminá-lodeperto.

- Agho Junmandou devolver – contei, com aminha vozmanhosa

guardadaparataisocasiões.-Éumapena...–elaretrucou.-Vocênãopodefalarcomele?–eudeiàminhafraseumaentonação

depânicosóparaforçá-laameajudar.Suarespostamedeixousemfala.-Econtarsobreotorneioeasapostasemdinheiro?Devo ter empalidecido, pois Narges passou as mãos nos meus

cabelosparameacalmar.Sepudesse,teriamepostonocolo.-Nãosepreocupe,euseiguardarsegredo,Roshy.-Como ficousabendo?Quemtecontou?–e sentiumapontadade

raiva misturada a ciúme. Behruz tinha me traído. Nossa amizade nuncamaisseriaigual.

Denovo,Nargesnotouminhaangústia.-Nãofiquechateado...Elatentoumealcançar,maseumeafasteicomfirmeza.-Nãosoumaisumbebê!–protestei.-Calma,Roshy...-Eparedemechamarassim!Jávoufazerdezesseisanos,seráque

nãodáparaperceber?Narges recuou como se tivesse levadoum tapa. Sei o quanto teria

gostado de continuar me tratando feito criança, mas era inteligente osuficiente para mudar de atitude. Além disso, possuía uma nobrezaincomum,queeunãotiveraocasiãodeapreciar.

-Desculpe.Eudeveriatercontado...-Contadooquê?–esóentãomedeicontadequeelasabiamuito

mais sobreBehruzdoqueeu. Senti-meduplamenteexcluído.Tinhammeapunhaladopelascostas.

Sóqueminhairmãgostavademaisdemimparamedeixarsofrendo.Aúnicamaneiraderemediaroestragoseriarevelartodaaverdade,aindaqueissocolocasseavidadelaemperigo.ENargesnãovacilou.

-Pode ficar como relógio.Vocêomereceu. –Ela soltouum longo

suspiro, desses que vêm lá do fundo, do lugar onde guardamos nossossentimentosmaispuroseexplicou.

- O dinheiro que você ajudou Behruz a ganhar... – ela parou desúbito,comoseestivessearrependida,maslogoretomouofiodaconversa.-Foiporumacausajusta.AlájáperdoousuasmentirasaAghoJun...

Agoraeuéqueperdiofôlego.Nargestinhanoçãoexatadecadaumdos meus passos. Por alguns segundos, fiquei zonzo, sem nadacompreender.Daítudofoiseencaixando.BehruztambémestavaengajadonomovimentocontraoXá!Porissosuainsistênciaparaeutomarpartenotorneio, mesmo que isso significasse pecar toda sexta-feira! Queria odinheiro para ajudar a imprimir aqueles panfletos de que Narges falara.Eramumbandodesubversivos,otermonãotinhamaismistérioparamim.

- Aposto que Farhãd também está metido nisso! – eu disse, mecontrolandoparanãogritar.–PorissoRoyachoramingava,nãotemnadaavercomocasamentodela!

- Shhh, Kurosh, fale baixo! – Narges pediu, temendo que nosescutassem.

-Porquenãomecontaramdesdeoinício?–agoraeuestavaàbeiradaslágrimas.–Porqueesconderamdemim?

Elanãodissenada,mastambémseguravaochoro.Vestiaumacalçajeans com uma camiseta clara de mangas compridas. Tinha os cabelospresos num rabo de cavalo e nenhuma pintura no rosto, diferente deFarzane,sempremaquiada.Eralindaaonatural,semrecursosartificiaisarealçar a beleza que Deus lhe dera. Não é à toa que Rassul, seu futuromaridohojepassandoodia comosparentesdele, contassenosdedososmeses para Narges se formar e afinal se casarem. Minha raiva foiderretendopara ceder lugar aumaemoçãodiferente.Tivepena, inveja eorgulho da minha irmã. Tudo ao mesmo tempo. Senti uma necessidadeimensadeprotegê-la.Numgesto impulsivo,abracei-acomohámuitonãofazia.Pelaprimeiraveznavidaeraeuqueaacolhia.

-Estátudobem,Narges,nãotenhamedo.Euestouaqui,aseulado.–completei,conscientedequesoavaumtantomelodramático.

-Aondevocêsemeteu?–avozdeBehruzveio interrompernossomomentoderevelaçõesmútuas.

-Ele jáestáaparde tudo–Narges informoucomavoz firme.Daícontouaelesobreorelógio,quememandoupôrnobolso, fingindo tê-lodevolvido.

Meu amigo parou, olhando incrédulo para nós dois. Seu rostotornou-se pálido e elemordeu o lábio inferior. Daí abriu-se num sorrisolargoemedeuumabraçoapertado.

-Sejabem-vindoàturmadoscontra.De mãos dadas como os melhores amigos, fomos nos juntar ao

grupo.Aproximei-medeFatycomoseHosseinnãoestivessepresente.Elenão me intimidava, pois eu tinha acabado de virar adulto. BobamenteachavaqueagorafaziapartedaconspiraçãoparaderrubaroXá.Naminhacabeça, aquilo constituía razão suficiente para me tornar superior aqualquer colega da mesma idade. Pouco me importava que ele fosseimbatívelnohaftsang.Nemligueiquandoretiroudamochilasetespedras,agachou-se, empilhou-as e deu um show da sua habilidade, mais paraimpressionar a irmã de Behruz, do que para se divertir. Tampouco mechateei ao perceber em Faty um interesse que me excluía. O tempo seencarregariademostraraelaquemeraomelhor.

Oscomesebebeshaviamsido,afinal,dispostosemcimadastoalhasestendidassobreoskilinsqueamaciavamochãoarenoso.Seusperfumesvariados misturavam-se num só, mas eu perdera o apetite. Descobriraoutras realidades das quais nunca suspeitara. A vida adquiria umadimensão diferente, tornando-se mais complexa e dinâmica. As pessoastambém erammuito mais interessantes do que pareciam. Minha irmã eBehruz tinham ideais, Faty possuía encantos a serem desvendados eHosseinconstituíaumapequenaameaça.AtéAmirmudara.Nãoeraapenas

omaridoricodeShahin,esimumcúmplicedoregimedeRezaPahlevi.Transbordando de euforia, eu não seria capaz de adivinhar que

outras surpresas ainda me aguardavam naquela viagem simbólica. Nãopoderia prever o quantominhas certezas seriam abaladas e comominhavidinha medíocre sofreria transformações. Alvoroçado pelo turbilhão denovasinformaçõesqueprocuravaprocessar,varricomosolhosocenáriodiantedemim.Queriaassimilaraquelepanoramamonumentalnatentativade congelar as sensações inusitadas que experimentava. Nunca tinhaolhado para uma garota com o desejo que agora subia pelas minhasentranhasequeimavafeitofogo.Éóbvioquediantedaturmadeamigoseufingia cobiçá-las, mas de fato nunca chegara a sentir atração pelo sexoopostocomoagora.Nãosabiadireitocomolidarcomasnovaspercepções,enfrentandoumaconfusãodiabólica.Estavaadmirandoamimmesmoadespeitodasfabulosastumbasde Dario e Xerxes, quando reparei, do outro lado, uma figura conhecida.Espremiosolhos e fuimeaproximandoatédistinguirÕrash, o colegadeclassecujopaitínhamosvistonumadaquelastardesdetorneio.

“Claro! Aquela torre alta é a Kaaba de Zaratustra”. - pensei commeus botões observando no horizonte a construção que no passadoabrigavao fogosagradoaquemênida.Prosseguia,portanto, como localdeperegrinaçãoentreosquepraticavamomazdeísmo.

Fizmençãodevirarascostas,masÕrashmereconheceuesepôsaagitar os braços. Perto de mim, todos estavam entretidos em seempanturrarcomoeradepraxeduranteostrezediasdecomemoraçãodeNoruz. Aquela falta de apetite representava o principal indicador dasminhas mudanças interiores. Behruz, Narges e o restante do grupopareciam esquecidos da revolução. Na hora de comer, todas as idéiasimportantesevaporamfeitochuvadeverão.Sóeupermaneciapreocupadocomtudooquesepassaramomentosantes,ninguémestavainteressadonaminhapessoa.AssimfuimeafastandoemdireçãoaÕrash,sentadocomos

paisàsombradoautomóveldeles.-Vocêporaqui!–eledisse,numtomdevozacimadonormal.Cumprimentei-omeiosemjeito,poisjamaisfomospróximos.Eleme

apresentouaopai e à irmã.Moravamapenasos trêsnão longedaminhacasa,amãemorreranumacolisãodetrensqueporpouconãolevaraÕrash,cujo braço direito fora quase esmagado, demandando dolorosasfisioterapias para recuperar parte dos movimentos. O pai, que nunca secasaradenovo,nãomencionounossoencontro casual àportado temploem uma das quartas-feiras de xadrez. Recusei o carneiro assado àmodapersa,nosfornoscavadosnochãoqueaindaexistemnosvilarejose,omaiseducadamente que consegui, disse que precisava voltar para junto daminhafamília.

Fuiretornandodevagar,quandoumavozfemininaquenãoeranemdasminhas irmãs nem de Faty, com quem eu estava sonhando de olhosabertos,metiroudotorpor.

-Vocêvemsempreaqui?SacudiacabeçaparaairmãdeÕrash.-Agentesenteapresençadosespíritosdopassado...–elafalou,de

chofre. Fiquei surpreso, pois aprendera em casa que não se tocava emassuntos desse tipo com estranhos. Sobretudo se professassem outrareligiãocomoeles. Procureiesconderodesconforto,mastampoucopodiamecalardiante de uma simples garota. Ia parecer criança, algo que eudefinitivamentedeixaradeser.Pelomenosdiantedosmeusprópriosolhos.Para meu espanto, me saí com uma pergunta da qual só me dei contaquandoeumesmoaescutei,incrédulo.

-VocêacreditaemDeus?Elanãopareceuincomodada,pelocontrário.Iadizerqualquercoisa,masantestenteiremendar.

-Desculpe...–eemseguida.-Comosechama?

-Zibã...–foiaresposta.–ZibãMehrabani.Martelei meu cérebro tentando achar um comentário espirituoso

parafazerarespeitodonomedela.Nãoabriaboca,masatéhojetenhoaimpressãodequeelaliaospensamentoshumanos,poisriuencabulada.

-Querdizer“bonita”...-Claro...–foitudooqueeufuicapazdepronunciar.-Eosobrenomesignifica“amabilidade”,emfarsi.–elaacrescentou. - Eu seidisso. –balbuciei, contrariadopornão ter conseguidoformularnenhumcomentáriointeligente.

Elasentou-senochão,colhendoaspontasdovestidofloridosobreosjoelhos.Fezmençãoparaqueeuaimitasse,solapandomeusplanosdeirembora.Semmaisnemmenos,retomouofiodaconversa,istoé,respondeuminha pergunta de ummodo singelo como se aquilo fosse a coisa maisnaturaldomundo.

-ÉlógicoqueacreditoemDeus.-Masvocênãoémuçulmana...–retorqui,semsaberporquê.

-Edaí?–elafalou,parafazerumapausacompridacomoamepunir.Eutinhaconsciênciadaminhafaltadetato,masnãosabiacomoconsertaraquilo. Sentia-me esquisito e deslocado como se estivesse dividido emmuitos“eus”. –Nãoimportaonomeque lhedamos... -Zibãdisse. -Deusestádentro de cada um de nós. E somos livres para escolhermos nossoscaminhos.

A última frase feriu meus ouvidos. Eu queria expor minhadiscordânciaprofunda,discorrersobreanecessidadedeobedecermosaosdesígniosdivinosdoProfeta,frisarquetudodependedavontadesupremadeAlá,mas por uma razão inexplicável fiqueimudo. A verdade doLivroSagrado encolheu diante das sábias palavras daquela menina. Aliás, queidade teria ela? Se fossemaisnovadoqueÕrash,não completaraquinzeanos. Como falava daquela maneira, tão segura e franca como eu nunca

ousaria?Uma lufadadeventosoproupara longeochapéudepalhaqueela

traziasobreoscabelospuxadosemumatrança.Corremospararecuperá-lo,mas sempre voava paramais longe quando nos aproximávamos dele.Nossos movimentos seguiam o ritmo da brisa como os passos de umadança ancestral. Os risos dela borbulhavam entre os testemunhosmilenares de Nashq-e Rostam e hoje, quando relembro aqueles brevesminutos,encaixo-osentreosmaissublimesdaminhaexistência.

Comumpuloresgateiochapéunoar.Meioacanhado,recoloquei-osobre os cabelos dela que se haviam libertado das tranças no meio dacorreria.Elesbrilhavamfeitoaságuasdeumrio,refletindoosraiosdosolqueescorriampordetrásdosalto-relevosentalhadosnapedrabruta.

Talvez fosseamagiadahora, a luminosidadedifusado luscofuscodatarde.Sóseique,numinstante,nossoslábiostocaram-sedeleve,quasede brincadeira. Senti uma sacudidela como se tivesse levado um choque.Ela afastou-se ligeira,mas logo se reaproximou. Abriu um sorriso sem omenorvestígiodeconstrangimento.Pertodela,aimagemdeFatytornava-se tão insignificante que desaparecia por completo. Enfeitiçado, não mecontive.

- Você quer casar comigo? – disse, duvidando dos meus ouvidos,paraacrescentar.–Quandoagentecrescer...

-Vocêestáfalandosério?Nuncativera tantacertezadenadaemtodaminhavida.Podianão

atinar que profissão seguir, que faculdade fazer, em que Deus acreditar.Mas sabia do fundo de mim mesmo que Zibã era aquela com quem eugostaria de dividir cada segundo domeu presente e domeu futuro. Tãoconvencidoestava,querespondi.

- Claro que não... falei de brincadeira... – e nós dois de novocompartilhamos uma cumplicidade ímpar. Por serem supérfluas ouminúsculas demais para a intensidade do momento, ali as palavras

significavamocontráriodoqueforadito.Despedi-medeZibãefuijuntar-meaosmeus,quecomeçavamadar

pelaminhaausência.HosseineFatytrocavamolharesdisfarçados,maseunãodavaamínima.Ocupeimeuassentona traseirada caminhonete semdissimularmeuestadodegraça.Aliás,nemconseguiria.Seosolhossãooespelhodaalma,osmeuscontavamahistóriadeumamorqueaindanãoimaginavaserimpossível.

VIDiz a sabedoria popular que se você esteve em Persépolis com a

almapura,suavidateráumdesfechofeliz.Comoaminhaforaconspurcadapelo torneioepelasmentiras,aindaque,deacordocomNarges,porumacausa nobre, eu só poderia esperar o oposto. Gostaria de ter vivido nostemposhelênicosparaconsultarumoráculoemeprepararparaofuturo.ApósaqueleNoruznadaseriacomoantes.

Para começar, os eventos políticos sucederam-se num ritmofrenético.DanoiteparaodiaaspasseatasestudantistomaramcontasdasruasdeTeerã,transbordandodeTabrizedeQomparaasoutrascidades.Oano passou num piscar de olhos entre protestos, marchas e a notóriabrutalidade da Savak, que não economizou violência no afã demanter aordem. Feriados religiosos como Ashura, o martírio de Hussein, quecaminharaparaamortecomapenas72homensemumconfrontodesigual,transformaram-seempretextoparamanifestaçõescontraoXá.HusseinerafilhodeAli,ogenrodeMaomé,e foimassacradoemKerbala, Iraque,nosidos do século VII. A cada aniversário do suplício, procissões de homenssaempelasruasautoflagelando-secomchibatadasnascostas,pancadasnacabeçaeferindo-secomlâminasparareproduzirosofrimentodomártir.

Nomeiodamultidãohavia gentede todos osmatizes ideológicos.Comunistas,democratas,liberaiseosmodestosmollah,pessoassimplesdocampoquevinhamengrossaro levantepopular.Marcheiombroaombro

como irmãodeZibã,poisnaquelemomentonão importavaocredoouaprofecia.Muçulmanossunitasexiitas,zoroastras,cristãos,judeusemesmoateus confessos uniam-se nessa epopéia que faria do Irã uma nação dehomens emulheres livres. Não tínhamos nenhum programa em comum,tudo o que visávamos no início era depor um governo corrompido queabraçara os valores ocidentais em prejuízo das nossas tradições.Queríamos sentir outra vez o que era ser iranianos e não apenas cópiasmalfeitas de Hollywood. Os Estados Unidos e sua mania de mandar nomundo inteiro já nos tinhamprejudicado o suficiente. Estava na hora devoltarmosasernósmesmos,umdospovosmaisnobresdoplaneta.

Behruz,NargeseRassul,seufuturomarido,eramosmaisengajados.Iam e vinham da universidade, o centro nevrálgico da luta anti-Xá emShiraz. Eu cursava o último ano do ensino fundamental, mas nas horasvagasajudavacomopodia.NacasadeBehruzviasempreairmãdele,quetinha desistido domeu suposto rival eme olhava de ummodo cada vezmaisdoce.

-Hosseinnãopassadeumgarotoquederrubapedrascomumabolade tênis. Você levantou fundos para o movimento de oposição com seutalentoparaoxadrez.–Fatymedissera,referindo-seaotorneio,quehaviasetransformadonumsegredodepolichinelo.

Sentia-meenvaidecido,sóquenessemeiotempoestavavendoZibãescondido de todos, por causa das nossas religiões. É claro que nuncadiscutira esse tipo de coisa em casa, nem precisava. Era uma daquelasregras jamais mencionadas, porque óbvias. Eu me casaria com umamuçulmanaescolhidapelosnossosparenteseassumiriaopostodeAghoJun na loja do Bazar. Se quisesse cursar uma faculdade, sem problemas,desde que não negligenciasse os negócios da família. Minha vida estavamuito bem delineada no horizonte turbulento, mas por ingenuidade euachavaque,comarevolução,tudomudaria.TalvezinfluenciadoporZibãesua crença na liberdade e no discernimento individual pregados pelo

zoroastrismo, eu imaginava que no futuro próximo cada um poderiaescolherseucaminhonumpaísdepluralidadeétnicaetolerânciareligiosaecultural.Bastavaterumpoucodepaciência.

Parame encontrar comZibã, que eu chamava de “minha princesazoroastra”,inventavapretextosmirabolantes.Comopassardosmeses,fuime convertendo em um mentiroso hábil e descarado. Via Zibã naspasseatas,quandonosperdíamosnamultidãoparaficardemãosdadasetrocar confidências. A maioria das pessoas estava ocupada demaisberrandopalavrasdeordemeerguendoospunhoscerradosparanosdaratenção.Meus amigos usavambandanas atémesmona escola, dentro dasala de aula. Naquele estado de revolta patriótica, também acabeicontagiado.Nomeiodosjovens,velhoseatécriançasqueiamocupandoasruaseavenidas,eutinhaanítidaimpressãodequefaziapartedeumtodo.Maisdoqueisso,euachavaqueestavaajudandoaescreveraHistória,comHmaiúsculo. Ao civismo exacerbado, somava-se minha paixão crescenteporZibã, arrastando-meaumestadode euforiaqueme levou a cometerpequenasloucuras.Pareciaembriagado,estavatãoforademimquantonaúnicavezemqueexperimenteiduastaçasdevinhoeacabeideporre.

Para fugir do burburinho, às vezes faltávamos às aulas eperambulávamos pelas imediações de Shiraz, visitando monumentoshistóricos onde haveria menores chances de sermos vistos. Com aefervescência política, os turistas estrangeiros tinham desaparecido epoucosiranianossearriscavamaseafastarparalongedoseubairro.Numadessasmanhãs fomos aomausoléude Saadi. Eupodia avistá-lode longe,com suas colunas esguias, na ponta do boulevard Bustân, ou Avenida doPomar, títulodeumadassuascélebresobras.Zibãsabiadecorosghazaldo livroGolestãn, Jardimderosas,quecantavaoamor físicoemísticodemaneiraeleganteeenvolvente.NoslábiosdeZibãospoemasadquiriamumsignificadoespecialeeumaquinavanacabeçacomopoderiafazerparaumdiamecasarcomelasemmagoarnossasfamílias.

- Já sei! – ela falou numa ocasião. – Podemos fugir para asmontanhas...-Eviverdoquê?–indaguei,entrelisonjeadoepreocupado. -Dandoaulas,ora.Eusemprequisserprofessoranumvilarejoqualquer...

Deiummeiosorrisoechuteiumapedraaoacaso.EragozadocomoZibãsempretinhaumasoluçãoparaqualquerproblema,nãoimportavaadimensão. Seusplanosdiferiambastantedaquelesdamaioriadasmoças,que preferiam os grandes centros urbanos com bares, restaurantes ediversão.MinhaprincesaconfessaraodesejodeensinarcriançasdasvilaspobresdoIrã.-Minhamãeeraprofessoraprimária,achoqueherdeiojeitodela...–acrescentou com um ar tão cativante que dava vontade de beijar cadapalavrasaídadasuaboca.

-Eupossovirarpastordeovelhas...Ouumnômadedodeserto...–brinquei,semdaradevidaimportânciaaoqueZibãtinhadito.Enquantoeufaziagracejos,elafalavaasérioarespeitodonossofuturo.Talvezpelofatode ter sido criada sem amãe, pareciamais sábia do que eu e bemmaismaduradoqueasgarotasdamesmaidade.Oscabelosdelaagoraestavamsoltosebatiamquasenacintura.Vestiaumasaiapregueadaesandáliasdesaltobaixo.Comooúltimobotãodecimadablusatinhaescapado,euviaoiníciodosseiosredondoscujoscontornostentavaadivinhar.

Como sempre, ela leumeuspensamentos. Semqualquerhesitaçãocolocouminhamãodireitasobreumdelesefechouosolhos.Eupermaneciali,saboreandocomapontadosdedos,atravésdotecido,aconsistênciadeumaromãaindaverde.Por incrívelquepareça,emlugardoalvoroçodasemoções, senti umapaz desconhecida.Queria que o tempoparasse.Umasegurança também tomou contademim. Iria casar comZibã custe oquecustasse.Elaeraminhaalmagêmea,dissoeutinhaamaisabsolutacerteza.

Saímosde ládebraçosdadosecomocoraçãonasnuvens.Fizum

agradecimentomudoaKhodaeporunsinstantesfixeiavistanopequenolagocompeixesqueintegraoconjuntodotúmulodeSaadi.Elebrotavadeuma fonte natural que vela pela alma do poeta cujos versos enfeitam asparedes internas do mausoléu. Desenhei com a vista o lustre compridopendendo do teto revestido de pastilhas e, seguindo o costumedo lugar,atirei moedas no espelho d’água para que meus desejos secretos serealizassem. Só bemmais tarde descobriria que omecanismo imagináriodafonteforadesativadopormãosinvisíveis.

Dali para frente os acontecimentos precipitaram-se de formaincontrolável.Grevesparalisaramaadministraçãopública,interrompendoaexportaçãodopetróleo,basedanossaeconomia.Afinal,em16dejaneirode1979,oXá fugiudopaíscoma família real.Suapartida, recebidacomalívioporquase todaa sociedade,possibilitouavoltadeKhomeinidali aduas semanas. Os enfrentamentos entre a velha guarda imperial e asunidadesdoexércitofiéisaoaiatoláintensificaram-se.Apopulaçãoficoudoladodele,que,nanoitede2deabril,proclamavaaRepúblicaislâmica.

Nargespreparouumafestaderuaparacomemorarmosavitória.Osvizinhostrouxeramsalgados,doces,tâmaras,cháquenteegelado,afshorehesharbat,ascaldasdeflordelaranjeira,rosas,violetaefrutas.Oshomenssentavam-se na calçada fumando o nerguilé e comentando as últimasnotícias do dia. Agho Jun lia em voz alta as manchetes do Keyhan,rivalizando com Rassul, que folheava as páginas doEtelaãt. Logo não seconseguiaouvirumafraseinteira,tamanhaagritaria,comtodosfalandoaomesmotempo.

Pela primeira vez vislumbrei o sentido do termo cidadania.Observava a animação geral e experimentei um orgulho que ia além dopatriotismo. Ele abarcava algo maior, mais profundo e indizível. Eu eraapenasum jovemmal saídoda adolescência e já tinhaumahistóriaparacontar aos meus filhos e netos. Acreditava que tudo à minha volta iriamelhorarenadapoderiaestragaraquela felicidadedifícildesercolocada

empalavras.SólamentavanãopossuirotalentodeumSaadiouHâfezparatraduzir em versos o estado de espírito que tomava conta de mim, daminhafamília,dacomunidadeedomeupovo.

FuiperceberqueascoisasnãoestavamtomandoorumodesejadoapenasquandoBehruzseaproximoudemimdeumjeitohostil.Elefoimeolhandomeiode soslaioenão retribuiuo sorrisoqueestampeino rosto.Apalpeinobolsoda calçao relógiodoqualnuncameseparavaeencareimeu amigo. Eu ia fazer qualquer comentário bobo a respeito das nossasconquistas recentes quando gelei ao som da voz dele, tão diferente dequandosedirigiaamim.

- O que está acontecendo entre você e minha irmã? – sua frasevibravanumtomacusatórioquemecausouumtremendomal-estar.

Eu conhecia bem o gheirat, nosso dever de proteger e defender ahonradasmulheresdafamília,masnuncapenseiquepudesseprovocaraira domeumelhor amigo. Além de confundir tudo, Behruz jamais falaracomigodaquelejeito,porissofiqueisemação,oqueeleinterpretoucomosinaldecovardia.-Vocênãoserveparaela!–elefaloudededoemristecomosemeameaçasse. -Oquevocêquerdizercomisto?–eubuscavaparecercasual,emboradentrodemimumaluzamarelacomeçasseapiscar.-Queroavisarparanãoseaproximardela!–elerespondeu,aindamaisagressivo. Denovofiqueiatônito.ComonuncatinhadiscutidocomBehruz,sentia-me extremamentedesconfortável.Abaixei os olhos, o quepara elesoou comouma rendiçãomuda. Foi o suficienteparaumataquedireto ecruel.-Vocêsóprestaparaaquelaimpura...Agorafuieuquemtomouadianteira.Sempensar,deiumsocoemBehruzenominutoseguinteestávamosrolandopelochãonumalutaferoz.

Ànossavoltaformou-seumapequenaplatéiademeninosquenosatiçavamcom gritos e assovios. Ficamos engalfinhados, nos esbofeteando entrepalavrõesexingamentosatéqueosadultosvieramnosseparar.-Nãoousefalardeladessejeito,seuimbecil!–berreipordetrásdosbraçosdeRassul,queacustomecontinha.–Juroquematovocê!Elemeolhoudeummodoarrevezado,eentredentesmurmurou:“-NãoéadmissívelqueoProfetaeosquecrêem imploremperdãoparaosidólatras (...) após haver-se tornado evidente, para eles, que são oscompanheirosdoInferno”. A festa acabou namaior rapidez. Não haviamais clima paracomemorações, cada qual tratou de arrumar o restante das comidas ebebidas,recolhermesasecadeirasediscretamenterefluirparadentrodasquatroparedesdosseuslares.Comacamisasujadesanguequeescorriadonariz,entreiemcasatranstornado.Queriairdiretoparaomeuquarto,masminhamãeinsistiuem tratar meus machucados. Ela não imaginava que os mais profundoseraminvisíveiselatejavamcomosetivessemcortadoforaumpedaçovitaldomeucorpo.Quandoafinalmedeiteinacama,exausto,escuteiumalevebatidanaporta.Semesperarresposta,Nargesfoientrandodevagar. - Você está bem? – ela passeou os dedos pelosmeus cabelosenquanto eu tentava segurar o choro. Dali a pouco esqueci que já tinhacrescido, virado adulto e até me apaixonado. Simplesmente me deixeiembalar feito umbebê e desatei numdaqueles prantos que servemparalimpartodasaspequenasdores,ofensasemedosacumuladosaolongodajornada.Ao finaldeunsminutos,senti-mealiviadoepudeencararminhairmã,queforamandadacomoemissáriadeAghoJun.-NuncamaisqueroverBehruz!–exclamei,numsoluço.-Nãodigabobagens,vocêssãoamigosdeinfância...-Fomosamigos,éumverboqueestánopassado.–refutei.

-Quenada,daquiaumtempinhovocêsvãofazeraspazes!-Issonunca!–euberrei.–QueroqueBehruzmorra!.Emboraestudassemedicina,Nargestinhapendoresparapsicóloga.Viuquenãoeraachancedemepersuadiraaceitaroamigodevolta.Emvezdisso,aproveitouparamesondararespeitodeZibã.-Vocêgostamesmodela?–insinuou,comoatestarminhareação.Eubalanceiacabeçaerespondicomoutrapergunta.-Gosto,porquê?Éproibido?

Nargesficouemsilêncio,araciocinar.Sabiaqueotemaeradelicado,masnãoqueriaperderaquelaoportunidadede tratardeumassuntoqueAgho Jun a encarregara de resolver. Então começou a falar como serecitasseumtrechodecorado.

-ÉnossodeverlembraromartíriodoImãHussein,netodoProfetaMaoméesenhordosjovensdoJardimdasDelícias,opilardoscrentes.–Elaparou para certificar-se de que eu estava prestando atenção, paracontinuar.

-ElesacrificousuavidaparaqueoIslãfossepreservadoepudessechegar,semmáculas,aténós...

Fiqueiperplexo.-Oquetudoissotemaver?...Nargespermaneceuquieta.Osilênciodelavaliapormilpalavras.Eu

tinhaquedizeralgumacoisa.Entãodesafiei:-SóporqueZibãnãoémuçulmana?-Vocêachaissopouco?–eNargesestavadefatoindignada.Devagarlevantei-medacama.Pelajaneladoquartodavaparavero

jardimcomopéderomãqueAghoJunplantaranodiaemquenasci.Todoano ele dava frutos doces como mel, mas nesse eles caíram antes deamadurecer.Minhamãeenxergounaquiloummaupresságio.AghoJunrirada superstição,dizendoqueera coisadegente atrasada,mashoje eumeindagava se ela não estava certa. O futuro que até há pouco parecia

resplandecente e cheio de esperança, agora vazava feito areia entre osdedosdamão.

O diálogo comminha irmã não seria fácil, mas tinha quemandarumamensagemaAghoJun,mesmoqueissosignificassemagoá-lo.

- Narges, não importa o nome que damos a Ele – eu argumentei,citandoaspalavrasdeZibã.–PodeseratravésdeMaomé,CristoouBuda...–fizumapausapararecuperarofôlego–Deusestádentrodecadaumdenós...

Minhairmãmeolhoucomoseeufosseumcompletoestranho.Pior,elameencarouquasecomhorror,feitoseeutivesseviradoummonstro.

- O que acabou de dizer é amaior blasfêmia que já ouvi. – e saiubatendoaportacomforça.-Nuncapenseiqueissofosseacontecer,vocêéumcasoperdido!–tevetempodegritar,antesdesumirdomeucampodevisão.

Nossa conversamal sucedidamedeixou de sobreaviso. Ela estavadiferente,maisagitadaeradicaldoqueaNargesqueeuconhecera,semprecalmaeponderada.Algoestavaforadecontrole.Minhavidinhaesfacelara-se,minhafamíliasepuseracontramimeopaísinteiropareciaemtranse.Opiorestavaporvir.Issoeunãosabia,maslánofundodesconfiava.

ParteIIIRevolução

IAs peças começariam a encaixar-se no quebra-cabeças em que se

transformaraomundoàminhavoltaquandosoubequeBehruzintegraraaprocissão de Ashura. A princípio não acreditei. Saí correndo de casa emdireçãoaocentroepudeconstatarcommeusprópriosolhos.Amúsicaaltaencobriapartedaspalavras,masassimmesmopudeescutarasinvocaçõesde “Louvado seja Alá, Senhor do Universo!”, enquanto observava,constrangido, meu amigo se autoflagelar. Colegas que no passado

criticavam aquele tipo de manifestação religiosa, agora engrossavam asfileirasimitandoocalváriodeHussein.Concentrado,Behruznãomeviu,oufingiuquenão.Aliás,desdeanossabriganãohavíamosnosfaladomais.Emoutra época aquela ruptura teriameaniquilado,mas agora eu tinhaZibãemquempensareaquemdesejar.Deumjeitooudeoutro,apresençadelasubstituíaovácuodeixadopelomeuamigodeinfância.

FiqueialgumtempoperambulandopelasruasparaassistiraoteatropopularmostrandoosepisódiosdolorososdavidaedamortedeHussein.Por mais que me esforçasse, não era capaz de me comover diante dospalcosmontadosaoarlivrequesempremecativaram.

Fuiandandoparacasa.Asimagensdoscorposensangüentadosnãomesaíamdacabeça.NofundoeulamentavaterperdidoodomdeadmirarasencenaçõesquedesdepequenocostumavaacompanhardemãosdadascomAgho Jun.Elemeerguianosombrosepacientementeexplicavacadadetalhe do drama que se desenrolava diante de nós. Apontava para osatores e dizia: “Ali vai o califa Yazid junto comAbbas, irmãodeHussein.ObserveagoracomoShemravançaàfrentecomseussoldadosparaatacaroimã”.Eutapavaosolhosesóabriaquandoelegarantiaqueomassacrehaviaacabado.

Meudesencantonãofoimenorquandosoubemaistarde,atravésdeFarzane, queAgho Jun hámuito separara paramimomahr, um dote dealguns milhares de tomans administrado por Amir para quando eu mecasasse coma irmãdeBehruz! Semmeuconsentimento, asduas famíliasfizeram acordos prévios e selaram um compromisso. Só não explodi derevoltaporqueZibãmedeteve.Elacontinuavaaprincesaqueeuviadepoisde peripécias inimagináveis para driblar a vigilância redobrada de todosemcasa.

- Talvez seja melhor pararmos de nos ver até as coisas seacalmarem.–elasugeriucertamanhã,quandopelaenésimavezeufaltavaàescolaparairtercomela.

Apesar de não gostar da idéia, tive que concordar. Zibã nuncaerrava,masmedespedi como coraçãopesado.Ao vê-la afastando-se atésumir entre as árvoresdoParqueMelli, encolhi depenademimmesmo.Lembreideumdaqueleslivrosquelogonãoseriammaisbemquistos,emtornodoamorimpossívelentreduasfamíliasrivaisdeVerona,osCapuletoeosMontechios.RecordeiemespecialotrechofunestoemqueJulieta,aoolhar a figura deRomeu embaixo do balcão onde se encontraram, temopressentimentodequeovêpálidonofundodeumatumba.

Caminheicomosecarregasseumpesodesproporcionalparameusombros desacostumados ao sofrimento. Tudo ia acontecendo rápidodemaisparaqueeupudesseassimilar tantamudança.Amaiordelasveiocomoumchoque.

- Khomeini fechou as universidades. – Narges me revelou. – Vãoreformulartodososcursos.

-AquiemShiraz?–indaguei.-Nopaísinteiro.Ela contou-me então que as reformas passavam pela extinção das

classes mistas, troca de professores e substituição da bibliografia, entreinúmerasoutrasmedidasparaadequarocurrículoàsharia,queabarcavaagoratodasasesferasdonossocotidiano.

“Não sepode aceitarumaparte e descartar a outra.Adivisãodospreceitos do Islamismo é inaceitável”. – advertira o aiatolá em uma dassuasconstantesaparições.

- Prometeram que resolveriam a questão em meses. – Nargescomentou. –Mas ninguém acredita que consigam reestruturar o sistemaeducaionalinteiroemmenosdedoisanos.

Visivelmente abatida, minha irmã via seu plano de receber odiplomademedicinaadiadoparaumfuturoincerto.Eeu,queconcluíraoensinomédio, contemplavaaperspectivadeumcursosuperiorcomoumsonho inatingível. Mas não foi tudo. Dali a semanas, ao entrar em casa,

esbarrei em um rapaz que carregava nas costas a nossa velha antena detelhado.Esboceiumareação,maslogoAghoJunexplicou.

- O novo governo não quer que sintonizemos as emissorasocidentais.

- Mas a gente nunca pegou canal estrangeiro nesta porcaria! -protestei.

-Eusei.Masnãoconvémarriscar.Játenhoproblemassuficientes...–Agho Jun falou, argumentando que queria evitar um eventualenfrentamentocomossoldadosrevolucionários.

Não apenas as universidades, mas as escolas e clubes foramfechadosportempoindeterminado.Qualquerinstituiçãopúblicateriaquepassar pelo crivo dos novos donos do poder, que ditavam as regrassegundo interpretações rígidas do Alcorão. As mulheres começaram aandar cobertas da cabeça aos pés. Narges foi uma das que mais seincomodou com a medida. Do dia para a noite seus cabelos estavaminvisíveis e totalmente encobertos. Era o chador que as mais velhas, defamílias tradicionalistas e religiosas, nunca haviam deixado de usar. Ocostumeforaabandonadopelasmoçasdanovageração,queviamnaquiloumarestriçãoàsualiberdadeindividual.

-Pensarquelutamostantoparaterminardestejeito...–minhairmãselamentou. -Eusei.–respondi.–Tambémtiraramdecirculaçãorevistasejornais.-Estãoprendendomuitagente,euachavaque...–enãoconcluiuafrase.Nargesnãochegouaverbalizar,masdeixavaclarooquesentia.Nãoforapara issoque se empenhara,nãoera esseodesfechoesperado.Tivepenadela,queseengajaranarevoluçãoaoladodetantagente,buscandoomelhorparaopaís.Queriamdestituirumgoverno tidocomovassalodosEstadosUnidos,masterminaramcontribuindoparaaislamizaçãoradicale

compulsóriadopovo. Foiumaépocaárduapara todos.Poucosousavamreclamarempúblico,amaioriaobedeciaresignada.Alguns,comoBehruzesuafamília,tornaram-se fanáticos a abraçar a causa dos aiatolás. Ficamos divididosentre os que apoiavam o novo regime e os que faziam restrições aosexageros,masacabavamsubmetendo-sepormedoderepresálias.Nossafamíliaencaixava-senestesegundogrupoquequestionavaasmedidasextremasqueéramosobrigadosaseguir.DeixeideverZibã.Paraevitarperseguições,elasemudaraparaumacidadedointerior,emcasadeparentes, onde nem telefone havia. Ela poderia escrever, mas como ascartas teriam que passar pela censura, combinamos aguardar osacontecimentos antes de trocarmos correspondência. Assim mesmo nãopassavaumdiasemqueeuficasseàesperadocorreio,suandofrioecomocoraçãoamil.Éóbvioquenofimmeviasempredemãosvaziastentandodisfarçar a frustração. Demoraria um longo tempo até que eu tivessenotíciasdela.

Mas não apenas os “descrentes” sofriam hostilidades. OscolaboradoresealiadosdoXátambémcaíramemdesgraça.Amir,cunhadode Agho Jun, fugira para os Estados Unidos nas primeiras levas queacompanharamafamíliarealaoexílio.-Vocêtemquesairdoseuquarto.–minhamãeavisou,certamanhã.-ShahineosfilhosvirãomorarconoscoenquantoAmirconsegueospapéisparairemembora.-Porquejustomeuquarto?

Elame olhou com uma expressão cansada e só então notei comominha mãe tinha envelhecido. Alguma coisa mexeu comigo. Naquelemomento, e não nas ruínas de Pasárgada ou Persépolis, eu entrei para aidade adulta. A passagem se fez sem alarde, de forma discreta e quaseimperceptível.Numsimplesestalardededos,passeidemeninoahomem.Nosilênciodanoite,comumapontadanocoraçãoaoverorostoenrugado

etristedaminhamãesempretãoalegreeotimista.Maisdoquedepressadesocupeioespaçoondedesdecriançaviveraos momentos bons e ruins. Limpei as gavetas da escrivaninha e retireiminhas calças, camisas e casacos do armário. Enquanto fazia a limpeza,fiquei pensando nas reviravoltas que a vida dá. Dizem que Amir saiu dopaíscomaroupadocorpo,emboraAghoJunapostassequeeletinhaumagorda conta bancária no exterior. Isso eu também só soube pela minhairmã,poiscomodepraxeeleeracontrafalatóriosemaledicências. Nomeiodaarrumação,aproveiteipara jogarforaummontedecoisaqueperderaagraça,agoraquemetornaragentegrande.Oálbumdefigurinhas,guardeiparameuprimo,alanternadecaçarmorcegonoescurocujaspilhastinhamvazadofoiparao lixo,assimcomooestilingueeumabola de futebol murcha que Behruz me dera há tempos. Numa dasprateleiras encontrei um saco repletodepeçasde xadrez, elas evocavammáslembrançasetiveramomesmofimdalanterna.Omaisdifícil foidarcabodoslivros,amaioriadosquaiseuadorava.AghoJunexplicaraqueosclássicos nuncamorrem, trazem sempre perspectivas diferentes e a cadanova leitura, parece sempre a primeira vez. Foi quando combinei comminhasduasirmãsmanterosmelhoresnumburacocobertocomumtapetedebaixodacamadeNarges.Ali,devidoaumproblemadeacabamentonosoalho,amadeiradespregaracomfacilidade.Ecomoochãoforafeitocomumamisturadepoucocimentoemuitaareia,davaparacavarquaseàunha.

Fomosremovendoomaterialcomumapáde jardimeemquestãodehorastínhamosondemanteraqueleslivrosquenosacompanhamvidaafora.Elesdeveriampassardepaiparafilho,masapósarevoluçãoislâmicatornaram-se símbolo da decadência ocidental que contaminava nossacultura.Antes, eramumbálsamoparaa alma, agoraviraramporta-vozesdo mal. Entre eles, fiz questão de guardar um exemplar do Avesta quepediraemprestadoaZibã.Ovolumequepegueime fez lembraras torresnasquaisoszoroastrasdepositavamseusmortosparaseremescarniçados

pelas aves de rapina. Como aquele detalhe me incomodavatremendamente,umdiatocaranoassuntocomZibã.Recordocomoelasetornara séria ao explicar que por questões de higiene e saúde pública, ocostumeforabanido.Paraqueoscorposcontinuassemsemcontatocomoselementos sagrados, passaram a enterrá-los em covas lacradas comcimento.

Ao fecharmosoesconderijo, coloqueiemcimados livroso relógioganho de Behruz. Nunca mais toquei no assunto com Agho Jun, quetampoucomeperguntouarespeito.EleiaevoltavadoBazarcomoarcadavez mais desiludido. Nossa família inteira submergiu num cotidianosoturno, quebrado apenas pela algazarra dos filhos pequenos de Shahin.Eles agora chamavam Agho Jun de babai e eu não estranhava. Farzaneestava comprometida com um rapaz apresentado a ela por um parentedistanteecomonãotinhaidéiadoquesepassavanaesferapolítica,levavaumaexistênciasatisfatória.Sepor tradiçãonós, iranianos,damosenormeimportânciaaoslaçosfamiliaresefazemosdetudoparaapoiarmosunsaosoutrosnosmomentosdifíceis,minhamãelevavaaquelamáximaaolimite,desdobrando-se para suavizar nosso dia-a-dia. O fogão jamais funcionoutantoquantonesseperíodoque ficariamarcadocomoperfume indeléveldascomidasalipreparadas.

Narges passava o dia revendo seus livros de medicina para nãoesqueceroquehaviaaprendidonauniversidade.Nãodavaobraçoatorcer,queria estar preparada para quando pudesse retomar o curso. Eu ouviradizer que talvez não fossem mais permitir às mulheres se tornaremmédicas, mas tratava-se de outro assunto tabu em casa, já que elasobreviviagraçasaessaesperança.Palavra,aliás,queiarareandoàminhavolta.Zibãnãomandavanotícias,meuquartoforaocupadoeagoraeuviviacomo um hóspede, dormindo nas almofadas da sala e dividindo comminhasirmãsoarmáriodoquartodelas.Comohaviapoucoespaço,maisdemetade das roupas ficaram emumamala que nunca abria.Meus objetos

tornaram-se o reflexo da minha própria existência, espalhando-se pelosaposentos sem que eu nada pudesse fazer. Retratavam aminha história,cujoscontornoseuestavaperdendodevista.

Nãoconseguia lersossegado,poisos filhosdeShahinquasenuncasaíamdecasa.Elaprocuravanãoseexporparanão levantarsuspeitas, jáqueomaridoforadeclaradoinimigodoregime.Vaidosa,pintavaasunhasedepois tirava com acetona para que nehuma visita eventual notasse aextravagância. Só parou quando seu estoque de esmaltes chegou ao fim,mas continuava tirando as sobrancelhas finas e pintando os cabelos delouro, agora dentro do hejab, lenço que cobre a cabeça e o peito. Shahinfumava um cigarro atrás do outro e nunca esvaziava os cinzeiros.Minhamãereclamava,AghoJunpediacompreensão.

-Imaginealguémquemoravanumapartamentotrêsvezesmaiordoque esta casa, com duas empregadas, ser obrigado a viver de favorespremidonumquartinho?–meupaiargumentava,semmuitosucesso.

-Elapodiaaomenosdaratençãoaosfilhos,jáquepassaodiasemfazernada.–minhamãerespondiacontrariada.

-Coitada, apobrezinhaandanervosa... –Agho Jun tentavaemvãojustificarocomportamentodairmãquemalolhavaparaosdoismeninos.

Parameudesespero,elesmeviamcomoumacriançacrescidacomquembrincardeigualparaigual.Nãoentendiamporqueeupreferiaenfiara cara entre as páginasdeum livrodoque jogar futebol coma bola quehaviamtrazido.Paraconseguirumpoucodepaz,resolviensinaromaiorajogarxadrez.

- Hoje dei um Xeque-mate nele, babai. - Omid correu para avisarAghoJun,apontandoparamimodedinhovitorioso.

Meupaisoltouumsorrisopoucoconvictoesemnadadizertirouossapatosefoidiretoparaoquarto.Comotodosnós,eletinhaessamaniadeandardescalçodentrodecasaparasentiramaciezda lãdos tapetesquemassageia a sola dos pés. Depois da chegada de Shahin, a rotinamudou

completamente. Ele fazia suas preces longe dos nossos olhares e nuncamais ficouna sala fumandoonarguilé, enquantominhamãe terminavaojantar.Permanecianoquartoatéomomentodedescerenossentarmosemtornodarefeição.Ficavasempredeolhosbaixos,comoaevitarShahin.

-Algumanovidadedomeumarido?–elapressionouAghoJun,quenão sabia mais o que inventar pela demora de Amir em resolver aspendênciasemandá-losbuscar.

- Tenha paciência,minha irmã. – ele ponderou. –Mais dia,menosdia,ascoisasvãoentrarnoseixos,vocêvaiver...

Nóstodosfazíamosumesforçosobre-humanoparaconfiaremAghoJunmas,nofundo,tínhamosconsciênciadequeelepróprionãoacreditavanassuaspalavras.Edefatonadasairiacomogostaríamos,pelocontrário.Seasituaçãopolíticajáestavacomplicadacomasrixasnoseiodogoverno,opondoostradicionalistaspartidáriosdosaiatolásKhomeinieBehesthideumladoeosprogressistasseguidoresdeTaleghanideoutro,elaagravou-secomaeclosãodosmovimentosseparatistascomoodoAzerbaijão.Sejánão bastasse, nomeio dessa encrenca toda Saddam Hussein resolveu sevingarda tomadadaBabilôniadoismil e quinhentos anos antes, quandoDarioderrotouoexércitoassírio.ComoapoiodosEstadosUnidos,quenãoperdoava nossa ânsia de liberdade e autodeterminação, aproveitou queestávamosvulneráveis e frágeis paranos invadir. Em22de setembrode1980 as tropas iraquianas penetraram à força pela região fronteiriça doCurdistão,ondeficamosprincipaiscampospetrolíferosdoIrã.Quemtinhaumresquíciodelucidez,perdeuasesperanças.

VIII

No climade revolução seguidadaguerra,minha formaturanocolegial ocorreu sem grandes festejos. Behruz nem compareceu parabuscarodiploma.Ocupadonas reuniõesde jovensapoiadoresdoaiatolá,

eleparticipavadogrupoqueestudavaoAlcorãoparadecidiroquetirarepornoscurrículosescolares.Apesardosproblemasedaausênciadeperspectivas,pudenotarobrilhonosolhosdeAgho Junquandoodiretor anuncioumeunomeparareceberocertificado.Caminheiatéele sobo retratodoaiatoláKhomeini,penduradonolugardoXábanido.Aindanãoconseguirameacostumarcomafacebarbadadeturbanteescuro.Elepareciameencarardemodoseverocomosecobrasseasoraçõesdiáriasquehámuitoeunão faziaemcasaemenosaindanamesquita.

Concluíocursocomboasnotas,oqueagoranão importavaquasenada.Assimmesmo,umasemanadepoisdaformatura,minhamãecismouquedeveríamoscomemorar.Aprincípiomeopusàidéia,masdepoisviqueaquilonãopassavadeumpretextoparaaliviaroclimadoméstico,cadadiamais pesado. O futuromarido de Narges fora convocado pelo exército eescrevia relatandohorroresdocampodebatalhaea terrível escassezderecursos médicos. Assim, já que a universidade estava fechada, ela seofereceu comoenfermeiravoluntáriapara cuidardos feridos.AqualquermomentoseriachamadaparaumambulatóriodefronteiralongedeShiraz.OmaridodeShahinnãodavaoardagraçaenemmesmoumtelefonemapara amenizar o desespero da esposa. Farzane reclamava da falta dedinheiro para comprar o enxoval porqueAgho Jun se queixava da quedadasvendasnalojadoBazar.Eeu...bem,eucontinuavaesperandoporumacartaquenuncachegava. “Rirparanãochorar”,penseicommeusbotões,concordando com a festa da qual seria o protagonista principal einvoluntário. Num instante a atmosfera da casa transformou-se. A cozinhacomeçou a funcionar a pleno vapor, Farzane disparava convites pelotelefone, Narges tentava esquecer o noivo em perigo enchendo a sala detulipasfrescascolhidasnonossojardim.Shahinesqueceuporunsdiassuacondiçãodeviúvacommaridovivoparausaravastaexperiênciaemfestas.

Embora o orçamento disponível não chegasse aos pés do que estavaacostumada,confessoquefezmilagrescomostomansdisponíveis.

Nodiamarcado todas asmulheres, incluindo as tias e primasquevieramde longe, trajavam túnicas longas que desciam até o tornozelo. Amaioriapreferiu coresescuras, sóNargesousoucolocarum lenço floridonacabeça.Euvestiumacamisabranca,comcalçaecoletepretos.Quandosaídobanheiro,depoisdemolharmeucabeloparanãocairnorosto,AghoJunmeestendeuumafaixaparecidacomumcinto.

-Ponhaisto.Useiquandomecaseicomsuamãe.-Maseunãovoumecasar,AghoJun!Eleriu.Pelaprimeiravezemmeseseuoviasorrindodenovo.-Claroquenão.Maséumdiaimportante...-Porquê?–perguntei.–Senempossoirparaafaculdade...AghoJunbalançouacabeça.- Escute, filho, eu também não fiz curso superior. Nem por isso

minhavidasearruinou.Fiquei calado por uns instantes. Ele nunca falava comigo nestes

termos, semprepreferiamandarmensagensatravésdaminhamãeoudeNarges.Acheiincômodaaquelaconversadehomemparahomem,maseleprosseguiu.

-Queriaquevocêsoubessequenãoéofimdomundo...Eudeideombros,nãosabiadireitodequeformaagir.-Nofundo,talvezsejaatémelhorassim...–elefezmençãodepassar

a mão na minha cabeça, mas congelou o gesto no ar. Não era dado ademonstraçõesdeafeto,essaparteeletambémrelegavaàminhamãeeàsminhasirmãs.

-Nós temos a loja noBazar. Você vai herdá-la demim como eu arecebidoseuavô.Éumatradiçãodefamília.-eabriuosbraçosanimado.

-Vouteensinarossegredosdaprofissão,comoselecionarumbomSarooq,avaliaraqualidadedeumBakhtiyari,distinguirosmaisfinos,com

50nósporcentímetroquadrado...-Tradiçãodefamília...–eudissecomumindisfarçáveldesdém.–E

passarorestodavidaatrásdobalcão?Nemterminei, jáestavaarrependido.Queriarecuperaraspalavras

de volta, mas era tarde, elas tinham escapado dos meus lábios e agoraformavamumaparedeinvisívelemaciçaentrenósdois.

Agho Jun colocou as mãos no estômago como se aparasse umdaqueles socosquevíamosnos filmesdebangue-bangue, antesde serembanidos pelos aiatolás. Só que ao invés de ficar bravo eme dar um tapacomoeumerecia, eleme faloudeum jeitodoce, fazendocomqueeumesentisse inferior e desejasse desaparecer da face da terra de tantavergonha.

-Umdiavocêvaiaprenderqueparanósiranianos,afamíliaétudo.Enquanto estivermos juntos e unidos, ficaremos bem. Khoda ainda vaicolocarissonoseucoração.–esaiucomopassinholeve,pisandodescalçoochãomaciodosnossostapetespersas.

Fiqueiparadonocorredor,segurandoaquelafaixacomoumtroféuimerecido.NuncanavidaofendiAgho Juneaquelaprimeiravez teveumsabordefel.LembreientãoafamosahistóriaescritaporFerdussisobreoscampeõesdaforçaRostameSohrab,quelutamentresisemsaberquesãodo mesmo sangue. No livro, o pai só descobre que acabara de matar opróprio filho quando retira o capacete do rapaz caído inerte. Agora euinverteraofinal,apunhalandoAghoJundeformatraiçoeira.Comoreverteraquelamalcriação?Enroleiafaixanacinturaedescicomocoraçãopesado.SepudessepegariaochicoteusadonaprocissãodeHusseinebateriaemmimmesmoatéensopardevermelhoacamisaalvaquemandaramfazerparahoje.

Lá embaixo, a sala estava lotadade convidados. Parecia que todomundoansiavaporumpoucodediversãonaquelestempossombrios.Alémda parentela de perto e de longe, a vizinhança toda fez questão de

comparecer, cada qual trazendo um presente e uma bandeja de comida.Haviaumpoucodetudo,dokalampolo,olegumecomarrozebolinhosdecarneatéotradicionalkebâbkubide,acarnedecarneiromoídanoespetocomtomate,queAghoJunpreparavacomochurrasconomanghaleserviaembrulhado no nune sangak, o pão triangular bem consistente commanjericãoemcima.

Osjeanssumiramdomapa,eramsinônimodelixoocidentalcomoamaioria das coisas a que estávamos acostumados no dia-a-dia. Teatro,livros,revistas,enlatadosdetevê,discosderock,t-shirts,têniseumasériede outros produtos e manifestações artísticas foram proscritos. Novosfilmes nem se cogitavam, estavam todos muito ocupados em destruir equeimarassalasdeexibição.Antesdessaondadefúria,AghoJunforaumdosúnicosaalertarcontraainvasãodaculturaocidentalque,segundoele,esgarçavaanossaidentidade,masquaseninguémlhederaouvidos.Agoraeu tinha a impressão de que passara a minha existência dentro de umalixeirasemsaber,poistudodebomtinhasetornadoruim.Davaparanotara diferença ali na sala de visitas. As mulheres estavam quaseirreconhecíveiscobertasporlençosexales,aopassoqueoshomensagorausavambarbasnosrostosantesescanhoados.Nematoalhaqueserviademesanochãocontinuavaigual,elaperderapartedocoloridoedaalegriadosdiasfestivosdeoutrora.Estavamláochelo,okebâb,okoreshtemasteokoreshte rivas, o iogurte e o rubabo, osdolemehbarg, as folhas de vinhacortadas, além do sabzi polo va mahi, o arroz com ervas e peixe. O cháfumegava no samovar, os nân, pães de todos os formatos disputavamespaçoentreasguloseimasvariadas,masosdoces tornaram-seescassos.Faltavam ingredientes nomercado para preparar o gez, o pashmak e osfaluderegadosasucodelimão,águaderosasoucaldadecereja.Tínhamosquenoscontentarcomfrutasnasobremesa.

Comamúsicatambémbanidamesmoemfestasparticulares,Nargesnemligaraavitrola.OsdiscosdeHaydeeÂrefficaramempilhadosaolado

do aparelhomudo. Naminha cabeça os acordes de Vigen, um dosmeusprediletos, ecoavam em descompasso com a algazarra provocada pelasconversasepelasbrincadeirasdascrianças.Malsabiaqueessescantores,quefaziamomaiorsucessoentreosjovens,abandonariamopaísempoucotempo.Masessaseriaapenasumadasconseqüênciasdoendurecimentodoregimeislâmicoquedeumjeitooudeoutroafetariaradicalmentecadaumdenós.

Detodos,Shahineraamaisanimadaeaúnicaquevestiaumatúnicade seda clara, comdebrumbrilhante nasmangas e no colarinho fechadoalto, abaixo do queixo. Ela colhia os elogios da sua dedicação e pareciatranqüilacomohámuitoeunãoavia.Diriaqueestavaquasefeliz,emboraacadadiaiaperdendoasesperançasdepartirparaaAmérica.Escassos,ospassaportessóeramliberadosemcasosespeciaiseelanãoseencontravaentre estes, pelo contrário. Se fosse a uma delegacia solicitar o seu, eracapazdesairdiretoparaaprisão.EdeoutrocontinenteAmirpoucopodiafazer.Ojeitoeraaguardarporumtempoindefinido,enquantoelamoravadefavornacasadeparentesvendoosfilhoscresceremsemapresençadopai.

AghoJunnãoaparentavaodesgostoqueabrigavanofundodaalmaporminhacausaeacolhiaa todoscomacortesiadesempre.Eu tambémtentava fingiralgumaalegria.Donadaobserveiumamoça fixandoavistaem mim, mas só a reconheci por detrás do traje severo quando ela mecumprimentou.

-Comotemandado?–falouFaty,queseafastaradospaisparavirfalarcomigo.

Leveialgunssegundosparamerecompor.-Salaamaleikum–foitudooquemeocorreudizer.- A paz esteja com você também – Faty retrucou. Em seguida, fez

menção para que sentássemos nas almofadas de um canto. Eu aacompanheieelasussurrou.

-Tenhoumrecadodomeuirmãoparavocê.-Behruznãovem?–indaguei.-Eleestálongedaqui,Kurosh.Maspediuparadizerquepassabem.

–elafezumapausacomoachecarminhareaçãoeprosseguiu.-Meuirmãonãoguardarancorcontravocê...Eu mordi os lábios, por mais que tentasse não seria capaz de

perdoarBehruz. Algo tinha se rompido entre nós, o elo que formávamosforaquebrado.Nomáximo,conseguiríamosremendá-locomesparadrapo,comoosóculosdeAghoJun.Masacicatrizcontinuariaali, latejandofeitoumaferidaquenãosevêdefora.EunãopoderiamaisseramigodeBehruzeprecisavaarrumarumjeitode fazerFatycompreender isso.Queriaqueela entendesse sem precisar explicar. Nunca fui muito bom com aspalavras,hajavistaoqueacabarade fazercomAgho Jun.Então tiveumaidéiagenial.

-Dálicença,esperaumpouco?–pedie,semaguardarresposta,subidetrêsemtrêsosdegrausquelevavamaoandardecima.Entreinoquartodasminhas irmãs, afastei a cama de Farzane, puxei o tapete e levantei atábua da nossa biblioteca secreta. Retirei do buraco o relógio ganho notorneioeumRobsonCrusoétraduzidoparaofarsi.Estavacomabeiradaspáginas gastas de tanto uso,mas não deixava de ser umbom livro. Paramim,omelhordetodos.Antesdedescer,folheeioexemplarelembrei,comum sorriso, que aquele fora um dos únicos que consegui fazer Behruzapreciar.Elesemprefoimelhordoqueeuemtodasasmatériasetambémnos jogos, menos em xadrez e em literatura. Naquele momento, o livrosimbolizavacomoeumesentia.Sozinhonumailhadesertaeabandonadopeloúnicoamigoverdadeiro.

Com o exemplar escondido entre os braços cruzados, atravessei asala emdireção a Faty. Ela levantouo rosto aome ver e senti que aindagostava de mim. Por isso, ao entregar o que trouxera, pedi notícias deHossein.Elaabaixouosolhos,euprovoquei.

-Achoquevocêsdoisformamumbelocasal.Fatyiadizeralgumacoisa,massecalou.Creioquelembrouatempo

que para o Islã uma moça deve permanecer casta e jamais expor ossentimentos.Cabeaohomem tomara iniciativa.Estendi entãopara elaolivrocomorelógiojunto.

-Entregueparaseuirmão.Estavamcomigo,maspertencemaele.Elapegouolivro,examinou-oedissequenãopoderia levá-lopara

casa.-Issoélixoocidental.Euqueriadarumagargalhada,eraacentésimavezqueouviaesta

frase,estavagastacomoumaroupausadaalémdaconta.-Vocêporacasojáleu?-Não.Claroquenão.-Poisnãosabeoqueestáperdendo.Éumahistóriae tanto... –E,

paraconvencê-la,acrescentei.-UmadaspreferidasdeBehruz.Faty hesitou, mas acabou concordando em levar o livro para o

irmão.Revirouorelógioeguardounabolsa.Eumesenticomosetivessemtiradoumpesodaminhaconsciência.Afinaldecontas,aindaquetarde,euobedeciaAghoJun,quememandaradevolveraquelepresente.Nissoavozaflitadaminhamãemechamoudelado.

-Kurosh,temalguémláforaprocurandoporvocê.Pelo rosto preocupado dela percebi que não se tratava de uma

simplesvisita.Porumafraçãodesegundomeucoraçãobateuacelerado.Ese fosseZibã,bemali, do ladode foradaporta?Umavertigemquasemederrubou,tivequemeapoiarnobraçodaminhamãeparanãocair.Andeientãoomaisrápidoquepudesematrairaatenção,jáimaginandoasfrasesque diria e ansiando como nunca pelo perfume dela. Tão embriagadoestavapelodesejodereverZibã,quenemrepareinohomemaltopostadodebaixodopostede luz,noportão.Eu só tinhaolhosparaenxergaruma

determinada figura feminina, nada mais eu conseguia distinguir nanebulosidadedaminhaprópriaimaginação.

-Lembra-sedemim,haji?Aos poucosminha vista foi enquadrando a silhueta de um senhor

meio encurvado. A princípio pensei tratar-se de um daqueles derviches,andarilhos místicos que, proibidos de espalhar sua sabedoria ancestral,virarammendigossoboregimedosaiatolás.Noteiapalidezdorostoefizumesforçosobre-humanoparalocalizar,namemória,odonodaquelavoz.Foi pior do que levar um tiro. Não havia sinal de Zibã e, num flash,reconheciBãbak,quemederaasproveitosasaulasdexadrez.Apoiadonasua bengala, estava mais magro e envelhecido, as roupas sujas e puídascomosehámuitonãoastrocasse.

Não recordo o que disse em seguida. Só sei que estávamos lado alado,nochão,emvoltadaterceiratravessadekoresthebademjun,ocaldodecarnedecarneirocomberinjela frita,especialidadedaminhamãe.Eleservia-secomapetite,parecendoquehámesesnãocomia.

Bãbak se refestelou até não agüentar mais. Então recostou-se naparedeecaiunumsonoprofundo.Nãosemexeuatéoúltimoconvidadosedespedir.Nãoeratarde, todostinhamreceiodapolíciarevolucionária.Eucutuqueiobraçodele,quedespertounumsobressalto,maslogorelaxou.

-Oquêresolveu,haji?-Sobreoquê?–pergunteicomumapontadealarmenavoz.-Ora,sobreaminhasituação...–esóentãorelembreiopedidodele,

feitodurantemeuestadodechoquepelaausênciadeZibã.Ohomemqueriaabrigo,precisavasairdecirculaçãodevidoàsuasrelaçõescomoXá,paraquem fornecera peças de marchetaria, coordenando os trabalhos deentalhenospaláciosreais.Seuateliê foradestruídoeelenão tinhaoquecomerporfaltadetrabalho.

- Olha, preciso consultar Agho Jun... quer dizer Haj Hassan –expliquei, caminhando em direção à cozinha, onde ele fumava o seu

narguilé.Aosair,Bãbakmepuxoupelamangadacamisa,esussurrou.-Lealdade,haji,lealdade...

Eumesolteidelecomraivaeemlugardeiràcozinha,subiparaoquartodasminhas irmãs.EstavanamaiorenrascadaesóNargespoderiamesocorrer.Elameouviuemsilêncioeaofinalcomentou:

-VoufalarcomAghoJun.Masachodifícil.Faltaespaçoedinheiro.ComShahineosfilhos,acoisaestáfeia.Sabequeelaveiocomaroupadocorpo,nãotemumtomannemparacomprarcigarro...

Sim, eu tinha conhecimento do estado desesperador daminha tia,masoquefazerarespeitodeBãbak,aquemeujuraralealdadenacertezadequejamaisprecisariacumprircomapalavra?

-Vamosveroqueépossível.–Nargessaiudoquartoemdireçãoàcozinha enquanto eume encolhia na camadela, suando frio. AgoraAghoJun ficaria sabendo dasmentiras e dasmeias verdades, dos tomans e dorelógio,dasfaltasàmesquitaedodinheiroganhoatravésdeapostas,queele condenava com veemência. Ao meu arrependimento pela ofensa doinício da festa, somava-se o desaponto de tornar a inflingir sofrimento aquemeutantogostava.Deixeiaportaentreabertaparacaptaraconversa.

-Issodevesercastigo,oquefizemosdeerrado?-ouviminhamãesequeixar.–Maisumabocaparaalimentar! Jánãobastasuairmãeasduascrianças!

-Ora,Shahinnãotemculpadequeomaridoéumcrápula!–AghoJunargumentou.

-Eusei.Porissonósaacolhemos.Masumaoutrapessoa,umquasedesconhecido,aíjáédemais...

Paramim também foi o limite. Chutei a porta, que se fechou numestrondoe tapeiosouvidos.Fiquei zunindobaixinhoparaabafarossonsquevinhamládebaixo.NissoNargesapareceu.

-Desça!AghoJunquerfalarcomvocê.

Levantei-medeumsalto.Estavatremendo.-Masoquecontou?Oqueeledisse?Comoreagiu?Nargestinhaosemblantemaislevedoqueeuprevia.–Elepediuparavocê iraté lá.–ebateunomeuombroemvezde

passar a mão na minha cabeça como quando eu era criança. Aquilo meencorajouecorriparabaixo.Seprecisavaenfrentarasituação,quefossedaforma mais rápida e indolor possível. No caminho, esbarrei com minhamãe,quemeolhoucomreprovação.

EncontreiAghoJunsentadodefronteaBãbak.Ambostomavamcháefumavamcigarro,poisonarguiléficaranacozinha.Esquadrinheiorostodo meu pai, mas nada descobri. Ele percebeu minha aflição, mas fezquestãodepermaneceremsilênciocomoamepunir.Porfim,levantouosolhosedisse:

- Sua irmãme contou tudo... –deuuma tragadae soltoua fumaçasempressa.Meucoraçãoiasaltarpelaboca,quandoelefalou:

- Decidi que Bãbak fica aqui em casa até conseguir arranjar-se. –apagouocigarronocinzeiroedeuumgolenabebidaquente.

-Vocêdividecomeleasalmofadasdasala,umamaisouamenosnãovaimudarmuitacoisa...

-Obrigado,Haj Hassan, obrigado – e o homem balançava o corpoparatráseparafrentecomoaenfatizarsuaspalavras.

AghoJunlevantouamão.-Nãofaçoissopormim,nemporvocê,Bãbak.FaçoporKurosh.–ele

serviu-sedemaischáfortecomosedependessedeleparaprosseguir.-Meufilhoprometeulealdadeeumhomemnãodevefaltarcomsua

palavra.Diante daquilo, eu me encolhi num canto. Segurei os joelhos e o

vexame, pois Agho Jun me dava uma dura lição. Ele pagava minhasmentiras eofensas comumgestodegenerosidade.Euqueria abraçá-lo epedir perdão, mas estava envergonhado demais. Nem uma palavra de

agradecimentofuicapazdepronunciar.Sóajudeiminhairmãarecolherorestantedalouçaefuivestiropijama.Quandodesci,Bãbakdormiaasonosolto ao lado da bengala e de uma maleta surrada com seus únicospertences. Foi quando ouvi um latido comprido que mais parecia umlamento.Abriaportaeláestava,nacalçada,oenormecachorrodeBãbak,queabanouacaudaparamim.Ascostelassaltavamnocorpanzilmarromavermelhadoepareciatãofamintoquantoodono.

-Erasóoquefaltava!Agoraminhamãememata!–eoleveiparaofundodoquintal.Dei a elemeiabandado cordeiroque sobrarada festa,que devorou como se fosse sua única ração em meses. Aí acomodou-sedebaixodopéderomãeprestesadesabarnosonomeencaroucomseusolhõesmolengascordemel.Estiquei-meentãonumaalmofadaqualquereantesquemedesseconta,dormiaprofundamente.

IX

A porta da frente foi arrombada com um murro. Pessoas cujos

uniformes não distingui na penumbra reviravam tudo o que viam pelafrente.Quandoumdelesseaproximoudajanelaquefiltravaaluzdoposteda rua, uma claridade bateu em cheio no rosto do soldado. Quase nãoreconheciBehruzcomabandananacabeça,umaespéciedeespadanamãoeolhosfaiscandodeódio.Imóvel,domeucantoobserveicomoeleergueuobraçoe, semcompaixão,perfurouopeitodeBãbak.Parameupavor,nãoparecia saciado e se pôs a retalhar o artesão, separando osmembros dotronco.Osnervossaltavamnospontosemqueasjuntasforamcortadas,aboca dele abriu-se num esgar quando a cabeça foi decepada do corpo.Triunfante,Behruzaespetounapontadaarmaquesacudiu, respingandosangue pelas paredes da sala inteira. A balbúrdia atiçou o cão, que latiu.Meuspaisacordaramedesceramasescadasàspressasparaencontrarosfanáticosnumacarnificinajamaisvista.

Estarrecido, eu continuava assistindo à barbárie sem conseguirmoverumdedo.Primeiro,trouxeramocachorroládefora,quefarejouosrestosmortaisdodonoespalhadosnosoalho.Nargesapareceusemovéu,oque alimentou a fúria revolucionária dos rapazes, diversos dos quaisamigosdeinfânciaoucolegasdeclasse.AtrásdelavinhaShahineFarzane,tambémsemochador.

- O que fazemos com prostitutas que violam a sharia sagrada? –indagouumdeles.Foio sinalparaqueosdemaisavançassemsobreelas,arrancando suas roupas até ficarem nuas. Preso nas malhas da minhaprópriacovardia,nãoeracapaznemderespirardireito,quantomaistomaralgumaatitude.Apenasumódiomortalrasgavameupeito,umódioamargomisturadoaumarazoáveldosedemedo.

Num instante, eles passaram a chicoteá-las aos urros de “Alá sejalouvado”. Nisso Agho Jun avançou. Trazia uma velha espingarda de caça,quedescarregounoprimeiroinvasor.Nãotevetempoparamaisnada,foiterrivelmenteespancado.

- Sabemos que vocês abrigam traidores e infiéis! – era a voz deBehruz que eu escutava. – Alá não perdoa quem desobedece aosmandamentos divinos, você é tão desprezível quanto suas filhas e acunhadainfame–acrescentou,fixandoavistanaminhamãe.

Eugostariadeteracoragemderevidar,masestavapetrificado.Aíviraram-se para mim como se apenas agora lembravam-se da minhaexitência.Behruzseaproximoucomumolharqueatravessavameucorpoparafincarnumpontoindefinidodohorizonte.

- Há quantos anos você não reza? – ele fez uma pausa, meexaminandodealtoabaixo.–Quandoestevenamesquitapelaúltimavez?– estalou a língua em reprovação. – Algum dia pensou em fazer aperegrinação aMashad? – e elevando a voz, respondeu em tom jocoso. –Claroquenão!Afinal,paraquevisitaratumbadoimãReza?Elenãopassadooitavonahierarquia,nãoémesmo?“NoDiadaRessurreição,renegareis

unsaosoutrosevosamaldiçoareisunsaosoutros;evossamoradaseráoFogo;enãotereissocorredores”.–acrescentou.

Tenteiarticularquedizeralgumacoisa,masminhavoznãosaiadagarganta. -Comojustificaodinheirosujoquefaturounosjogosdexadrez?Você pode esconder isso do seu pai,mas não doDeus supremo, que Aláestejaconosco!EntãoBehruzsacoudobolsoorelógiodepulsoeergueu-oparaquetodospudessemver. -Eleachaquepodemecorrompercomumabobagemdestas!Eusouminhairmãparamandarrecado,porquenãoseatreveamedizernacara! -Vocênãoentendeunada... – consegui, afinal, ordenarminhasidéias.-Nãomevenhacomdesculpas!Quemprecisadasfrasesdeefeitoqueaprendeunessetipodelixo?–ecomaoutramãomostrouoexemplardeRobinsonCrusoé.-Sabeparaqueserveisso?–esemesperarresposta,picouolivrocom a espada ainda manchada do sangue de Bãbak. Mas Behruz nãopareciasatisfeito.-Aondeestãoosoutros? Comonão respondi, ele agarrou-mepela gola do pijama emesacudiu.-Seiquetemoutrostextosemseupoder.Recusa-seameentregar?Nãoseideondetireiaidéianemcomodribleiomedo,maspropusumatroca.-Vocêdeixaasmulheresempazqueeufaçooquequiser...Umagargalhadageralecooupelasala.Behruzpediuqueficassemquietosepudeescutarosoluçodesesperadodasminhasirmãsedaminhacunhada,cujoscorposestavamcobertosdevergõesavermelhadoseroxos.

Varri o cômodo com a vista para contabilizar o estrago. Todos osrepresentantes do sexo masculino tinham sido assassinados, menos eu.Nesseinstante,umafúriaincontroláveltomoucontademimeencareimeuamigodeinfânciatransformadoemcarrasco.-Então,oquevaiser?Sequermeutesouroteráquepagarporele!Behruznãoseintimidou.Encostoudeleveaespadanomeupescoçocomosefossemedegolar.

-Sempremetidoavalente!Acreditaquepodemedesafiar?–eelepisoteouorelógiocomtodabrutalidade,deixandonosoalhoumamisturade engrenagens minúsculas e vidro moído. Deixei de lado qualquerresquício de amor-próprio e implorei pelas vidas de Narges, Farzane eShahin.

-Emnomedosvelhostempos,tenhacompaixão!Ele cuspiude lado,mas fezumgestoparaosdemais.Os soldados

afastaram-se, guardando os chicotes de couro que respingavam sanguepelas pontas. As trêsmulheres cobriram-se e nos rostos desfigurados depavor,nenhumalágrima,sóumaraivaindizível.Semmaispalavra,Behruzmeempurrouescadaacima.Dealgumaformaeleadivinharanossoesconderijo.Noquarto,afasteiacama,retireiotapete e destapei o buraco. Foi como se tivesse revelado o conteúdo dacavernadeAliBabá.Elescaíramemcimacomomoscas.Aosimpropérios,entrecortados com bordões de guerra e trechos de preces, foramretalhandoasfolhas impressasqueflutuavampeloquartocomoflocosdealgodão.Umadelasposoupertodemim,fixeiavistanochãoeconseguiler:“Vronskiprocuroulembrar-sedelatalcomoeraquandoaencontrarapelaprimeira vez na estação,misteriosa, encantadora, afetuosa, procurando edistribuindo felicidade, e não cruel e vingativa como durante a últimaépocadasuavida”.PorumátimovoeiparaocentroferroviárioondeAnaKarêninajogou-senostrilhos,atéouvirumbarulhoqueaprincípiotomeipeloapitodotrem:

- Basta! – ordenou Behruz. – Esse cão maldito vai ter o fim quemerece.

-Oquemaisquerdemim?–euperguntei,espantandoparalongeasimagensdaRússiaczarista.–Jánãodestruiuosuficiente?

-NadaésuficientequandotrabalhamosemnomedeDeus.- Alá seja louvado! – disseram numa só voz os soldados à minha

volta.-Seudesgraçado,vocêacaboucomaminhavida!

-Estáenganado.VocêmesmoterminoucomelaquandoparoudecumprirsuasobrigaçõescomoIslã–eleentãoadquiriuumtomlevementeirônico–Aliás,nemdevese lembrardequeislãéumapalavraárabequesignifica"submissão"...

-Maseununcamateininguém!Nãosurreimulheresindefesas!- Cale a boca, infiel! Sei das imundícies que anda praticando com

aquelaoutraprostituta,renegadadeAlá!Elatambémreceberánossavisita! AoperceberqueelesereferiaaZibã,perdiacabeçaepartiparacimadele,masfuicontidopelosoutrosantesquepudesseatingi-lo.

-Seumaldito,vocêmepaga!-Ajoelhe!-Nãoobedeçosuasordens!–revidei,duvidandodaminhaprópria

audácia.Behruzdeu soconaminhaboca, que começoua esguichar sangue.

Numinstantemeempurraramparadentrodoburacoonderepousaraumaamostradasmaisbelasmanifestaçõesartísticasdahumanidade.Oabrigodaliteraturaagoraseriameutúmulo.-Deite-seaídentro!–Behruzordenou.-Eminhasirmãs?Eminhatia,oqueserádelas?–perguntei,prestesaserenterradovivodebaixodacamanoquartodeNarges.

-Nóssaberemoscuidardelas–eBehruzchutoumeusolhos,queseapagaramcomosefizessenoite.

-Váparao infernoencontrar seupai eos traidoresquevocêsestavamacobertando–elesentenciou.Foramasúltimaspalavrasqueescuteiantesdecairnolimboenaescuridão.Elespregaramasaídacomumatampademadeira,puxaramdevoltaotapeteeacamaesumiramdoquarto,cujaportatrancaramporfora.

Desesperado, primeiro arranhei a tampa até minhas unhassangrarem.Entãoumavozdistantepareceuperguntar:

-VocêsaberecitaroAlcorão?-Sim,euconheçoalgumasdassuras.–apressei-mearesponder.-Oquedizoversículo57:25?–voltaramaperguntar.Concentrei-me, tentando recordar a ãyãt sobre os mensageiros, o

Livro e abalança,maso todomeescapava feitoum filmeantigodoquallembramosapenasosprotagonistasenãooenredo.

-Eentão,oquerezaoversículo,seuherege?-Apostoqueeleesqueceu–umaoutravozmaisgraveintrometeu-se.–Éoqueaconteceaosquetrocamasprecesnamesquitaporjogosdexadrez...

Franziocenho,buscandorelembraroqueportantasvezesleraaoladodeAgho Jun,masas letras embaralhavam-se.Depoisdescolavamdotextoeescorriamdaspáginasque,parameuhorror,tornavam-sebrancasevazias. Com asmãos em concha eu procurava retê-las para colocá-las devolta,mas elas escapavampor entre os dedos feito areia. Aos poucos fuidesistindo,enquantomeucorpoescoavaparadentrodeumburaconegro.Meuspulmões fizeramoderradeiroesforçoparaprocessaroxigênio,maseu morria sufocado. O fim estava chegando, e era surpreendentementeacolhedor. Não havia nada a fazer. Dei um grunhido tímido como últimorecurso.Semesperança.Vazio.

Na escuridão que se fez, senti uma mão pousada no meu ombroesquerdo.AbriosolhoseviBãbak.

-Estápassandobem,haji?

Esfregueiosolhos.Elenãoestavaempedaços,tinhapernasebraçoscoladosaotroncocomoumserhumanonormal.Nasala,nenhumsinaldaviolênciaqueacabaradeexperimentar.

-Achoquevocêteveumpesadelo–eleexplicou,passandoumpanoúmidonaminhatestagotejandodesuor.Foiotempodecorrerparadespejarnocanteirodetulipas,aoladodo cão, o conteúdo do meu estômago machucado de tanta apreensão. Afesta,odiálogotruncadocomAghoJun,aconversacomFatyeachegadadeBãbaktinhamsidodemaisparamim.Passeidoisdiasdecama,noquartodos meus pais, tentando digerir tanta emoção desencontrada. Nesseintervalo, aprendi que crescer eramuitomais complicado e doloroso doqueeuimaginava.Estavaassim,deitadonacamalargaordenandomeuspensamentos,quandoAgho Jun entrou. Ele voltaramais cedo do Bazar para conversarcomigo.Desta vez resolvi por tudo para fora antes de perder a coragem.Precisava falardomeuarrependimento, senão a feridanão fechariaparacicatrizar.

-Desculpe,AghoJun.Eununcadeveriaterfaladodaquelejeito!-Sossega, filho–ele faloucomvozmacia,congelandoogestopara

me fazer um carinho. Extravasar afeição não era costume do meu pai.Achavaqueessetipodecoisapertenciaaouniversofeminino.

- Nós também erramos. Deveríamos ter avisado sobre a irmã deBehruz... – ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavrasapropriadas e prosseguiu. – Tínhamos a intenção de contar, mas ele seprecipitou...Euolhavasuatestariscadadesulcoseoscabelosquemepareceramaindamaisbrancosemmeioaalgunsfiosescuros.

-Aliás,achoquetudoestáacontecendorápidodemais...–elelimpoua garganta. – Quer dizer, as coisas estão mudando de maneira radical ereceioque,nadavaitranscorrercomoprevíamos.

-Eusei.–respondi.–Minhairmãnuncavaiconseguirseformar.AghoJunagoraalisouoprópriorostoedeixouescaparumsuspiro.

Ele jamais fora grande entusiasta dos projetos de Narges, mas nãosuportava que roubassem o sonho da filha dele que, por tantos anos, sededicara aos estudos comdisciplina e afinco. Para tentar animá-lo, reunitodoresquíciodeotimismoquehaviadentrodemimefalei.-Agoraquetermineiocolégio,voutrabalharcomosenhortodososdiasnoBazar.Parameudesaponto,avozsaiuesganiçadaeforadetom.Eraóbvioque eu me esforçava para demonstrar uma alegria que não sentia. Ele,porém,fezcomoquenãotivessenotadoafalsidadedaminhafrase.-Claro,claroquesim.Euficareicontentecomisso,filho.–esaiudoquartoantesquefossetraídopelasemoções.

Para compensar, uma surpresa me aguardava lá embaixo. Nargesveio ao meu encontro e, disfarçadamente, me entregou um envelope noqualreconhecialetradeZibã.Meucoraçãodisparouesubicorrendoparaobanheiro, o único lugar onde poderia desfrutar de um pouco deprivacidade.SóqueosfilhosdeShahintomavambanho,etivequeenfiaracartanobolsodacalçaatédepoisdojantarqueparecianãoterfim.Fiqueientão sabendo que Narges também recebera uma correspondência. Foraafinal chamadaparaumpostomédicopróximoà fronteira como Iraque.Deveria partir dentro de dois dias. Fiquei impressionado como aquilopoucomeafetou,tãoaflitoestavaparaconheceroteordacarta.Assimquetodosterminaram,corridenovoaobanheiroecomasmãostrêmulasabrio envelope. Tive que fazer um esforço para decifrar a letramiúda e umtantorebuscadadeZibã.

“MeuKurosh,

Pensoemvocêenosmomentosespeciaisque tivemos juntosparaagüentara solidãodeste

ermo.Avidanãotemsidonadafácil,isoladosnestedesterro,oqueporoutroladoébom,poispouca

genteficasabendodanossaexistência.Nuncamaisfomosàescolaemeuirmãosequerpôdebuscaro

diploma.Dissequenãotemamínima importância,porqueonovogoverno jamaispermitiriaqueele

fosseparaauniversidade.Õrashacordademadrugadaparaajudarmeutiocomorebanhodeovelhas,

elevasempreumlivroparanãoseesquecerdoqueaprendeu.Meupaipassaodiafumandoetentando

sintonizaralgumaestaçãoderádio,nuncapeganadadireito,sobretudodepoisquefecharamamaioria

delas.Eletememagrecidoaolhosvistos,afaltadoquefazersópioraseuestadodeespírito.

Quanto a mim, me encarrego do serviço de casa. Lavo a roupa e cuido das duas filhas

pequenasdaminhatia.Amaioréespertaeinteligente,masaoutranasceucomumretardomentale

precisadeajudaparatudo.Dizemqueficouassimemvirtudedademoranoparto,mascortaocoração

veracaradomeutiosemprequeaencontrapelafrenteefingequenãoavê.Elenãoseperdoaporter

insistido em chamar a parteira em vez de ter levado minha tia ao hospital. Não sei direito o que

ocorreu,porqueninguémgostadecomentaroassunto.

Otempoaquiéparado,eledemoraapassar.Ànoite,apesardofriodasmontanhas,saiocom

meu irmãoparaadmiraras estrelas. EmShiraz elas eramofuscadaspelas luzesda cidade,masnas

montanhascintilamcomominúsculossóisnaescuridão.Nessashoraslembrodevocêcommaisforça,

rezoefaçomilpromessasparaqueagenteaindasevejaumdia.Tenhofédequeissovaiacontecer,éo

quememantémvivaumdiadepoisdooutro.

Desculpesenãoperguntosobresuafamíliaesuavida,masestaéumacartademãoúnica,

poisocorreionãochegaaqui.Mesmosechegasse,seriaimprudente,comomeutionãosecorresponde

comninguém,qualquercoisalevantariasuspeita.

Eumedespeçocomumbeijo,

Asempresua,

PrincesaZibã”

Dobreiafolhacomdevoção,sabendoqueareleriaumacentenade

vezes. Zibã tinha razão, era arriscado escrever de volta, por isso nemmandouoendereço.Asabedoriadelacontinuavamesurpreendendo.Masafrase sobreonosso relacionamentomedeixou forademim.E seagentenuncamaisseencontrasse?Sentiumenjôoseguidodetontura.Teriaumarecaída não fossemeu priminhome puxar pelamão para brincar com o

cachorro.-Comoelesechama?–Omidquissaber,esóentãomedeicontade

queeunãotinhaidéia.-Vamosperguntar.–elevei-oparaoquintal,ondeodonodavaum

banhonoanimal. Aonosver,Bãbakabriuumsorriso largo.Elesedavabemcomcrianças,mas Shahin não parecia gostar do nosso hóspede e evitava queseusfilhosficassempertodele.Aproveiteiumadasrarasausênciasdamãeparadeixaromeninobrincarjuntodoanimal.FoiquandoBãbakdisse.

-Precisamosinventarumnomeparaele.Eunãocompreendi.Comoalguémtinhaumanimaldeestimaçãopor

tantotemposemlhedarsequerumnome?DaíBãbakagachou-separaficarnamesmaalturadeOmidefalou.

-Vocêssabemguardarsegredo?–enósdoisfizemosquesimcomacabeça.

- É que ele se chama Jimmy... – ele disse. – De Jimmy Carter, opresidentedosEstadosUnidos...

- Jimmy! - gritouOmidparao cãoqueabanouo raboaoouvir seunomeproferidodepoisdetantassemanas.

-Shhhhh...–pediuBãbak.Ninguémpodeficarsabendo.-Porquê?–perguntouOmid.

Bãbakmeencaroucomosepedissesocorro.EupusOmidsobeosjoelhos e inventeiumahistória. Se contasseoverdadeiromotivo, elenãoentenderiaeaindapoderiaacabarnosexpondo.

-JimmyeraopaideBãbak,quemorreuhápouco.Porissoagenteprecisa arrumar um outro. Senão, cada vez que alguém chamar pelocachorro,eleselembradopaieficatriste. -Eutambémficotristequandolembrodomeupapai.–elefaloucomavozinharouca.

Sóentãocaíemmimsobreabesteira,masjáeratarde.

-Masseupainãomorreu,Omid,elevaivoltaraqualquermomentoelevarvocêsembora.-Minhamãedissequeeleseesqueceudenós...-Asmulheresadoramfazerdrama–Bãbakintrometeu-se.–Elasnãosabemdenada.Masnós,homens,somosmaisespertos.-Éverdade?–eleperguntou,olhandonaminhadireção.-Ésim.Eparaprovarisso,Bãbakvaifazerdevocêumcraquenoxadrez.-Eeuvoujogartãobemquantovocê?-Muito,muitomelhor!Eissomedáumaidéia.Jáseiquenomedaraocachorro.-Qual?–ambosquestionaramaomesmotempo.-Xeque-mate!–respondi,arrancandopalmaserisadasdeambos. Comestedesfecho inesperadamente feliz, terminamosde lavarXeque-mateeentramosnasala.Bãbaktrouxedasuamaletaumtabuleirodexadrezquearrumouemcimadeumatoalhaestendidanochão.-Estassãoespeciais.–elerevelou,examinandoasfigurasdeperto.–Eumesmoasfizháséculos... -Devemcustarumabsurdo.–exclamei,aoverpequenaspedrasincrustadasemcadaumadelas. - Principlamente estasduas - ele retrucou, segurando as duasrainhas.–Sãodiamantes...Edamaiorpureza...

Bãbak aparentava contentamento, mas dava para perceber atristezanavozdele.PorsorteaanimaçãodeOmidedoseuirmãomenor,Dariush, que logo se juntou a nós com um interesse inusitado para suapouca idade,distraiuBãbak.Osemblantedeledescontraiunamedidaemque os pensamentos nostálgicos sobre sua boa vida pregressa tambémforamsumindo.

- Sabiam que no final do século XI, Ibn Ammar e o rei Afonso VIdisputaram um lugar chamado Sevilha em um jogo muito parecido em

este?–eleindagou,relantandoentãooutrosepisódiosrelativosàquelejogoque os árabes disseminaram através dos persas durante a Idade Média.Contou que no jogo original os bispos eram elefantes e os peões, ossoldados da primeira fila como em um front de batalha. As criançasencantaram-seeemquestãodeminutosnosconcentramosnadisputaemtorno do tabuleiro. Tão entretidos estávamos, que nem vimos Shahinentrar.-Oquesignificaisso?–elaperguntou,deolhosarregalados. Euiainventarumadesculpaqualquer,masnesseinstanteOmid,todo contente, mexeu uma dos peões e gritou “Xeque-mate”. Em algunssegundos, o cachorro, pensando ter sido chamado, corria para a sala,jogando-seemcimadomeninodepurasatisfação.Otabuleirofoiparaosares, as peças espalharam-se pelo chão e na bagunça ele acabouderrubandoShahin. -Issoéumdespropósito!–elaberrouenfurecida,recolhendoascomprasda sacola tambématiradaaochão. Seuhejab tinhaescorregado,deixandoàmostraumabelacabeleira.

–Vouterumapalavrasériacomseupai–elaameaçoucomraiva,aomesmotempoemquepegavaosfilhoscomomercadorias.-Quantasvezestenhoqueavisarparanãoseaproximaremdestesujeito? – continuou, atraindo a atenção da minha mãe, que correu dacozinha.-Oqueéisso,Shahin?Bãbakéumhóspedecomovocê!-Comotemapetulânciademecompararaestehomem,quesequeré da família? – minha tia transbordava de indignação e, sem aguardarresposta,saiubatendoospés.Aosubirasescadascomosdoismeninossedebatendo nos braços dela, lançou um olhar fulminante em direção aBabãk,queseencolheunocantocomXeque-mate.-Nãoseiporquetantaimplicância...–murmureientredentes.-Muitainsolênciaparaquemestámorandodefavor!–minhamãe

exclamou.Emvezdetirarpartido,Bãbakpôspanosquentes.-Temosquedarumdesconto.–eledisse.–Apobreestáassimporcontadomarido,quesumiudomapa...Parameuespanto,minhamãediscordou.-Todosnósenfrentamosumafasemuitodesconfortável,nemporissoperdemosocontrole.Evirando-separamim,completou:-Euaviseiaoseupaiqueissodemanterairmãdeleaquiportempoindeterminadonãoiaacabarbem.ImagineseAmirnuncamaisdásinaldevida?Oque faremoscomela,acostumadaa terdobomedomelhor?–evoltou à cozinha para colocar mais magia na comida. Com isso elaacreditava amenizar os conflitos domésticos gerados pelas mudançaspolíticasradicaisesuasconseqüênciascadahoramaispesadas.X

SeeuficaraindiferenteànotíciadaconvocaçãodeNarges,odiadasuapartidasetransformouemumdosmaistristesdequemerecordo.Elafora minha confidente, aturou com paciência meus arroubos juvenis eestendeuamãosolidáriaduranteminhascrisesdeinconformismo.Sóaeladei o privilégio de ler a carta de Zibã, que mantinha no bolso. QuandoestavasónalojadoBazar,euaestendiasobreojoelhoatrásdobalcãoemeperdiaentreaslinhasquejásabiadecor.SólevantavaosolhosdaletrinhamiúdaaoserinterrompidoporumfreguêsouaoescutarospassosdeAghoJun voltando de alguma fábrica ou ateliê nas redondezas. Com a ida deNarges, só me restava aquela folha de papel já rasgando nas dobras detanto abrir e fechar. Certa ocasião foi preciso amassá-la depressa, poisAgho Jun apareceu sem que eu me desse conta. Depois, em casa, fiqueihoras tentando passá-la a ferro, sem sucesso. Continuou amarfanhada eganhouduasmanchasescurasdequeimado.

Despedi-medeNargescomocoraçãoapertado.Elavestiaumaroupaescura, incluindoochadorquedetestava,maseraobrigadaausar.Eusabiaqueminhairmãoferecera-secomovoluntáriamaispordesesperodoqueporamoràcausa.Entrenós,familiares,elacriticaraosexcessosdonovoregime,massepermanecessereclusaacabariamorrendoaospoucos.Nopostomédicopoderia, aomenos, aplicar seus conhecimentos e salvarvidas.Detodos,AghoJunfoioquemaissofreucomaquilotudo.Apesardeguardar para si as lágrimas derramadas pela minha mãe em coro comFarzane, Shahin e filhos, ele estava dilacerado por dentro. Embora nãotransparecesse,nutriaumaenormeadmiraçãoporNarges.Paracompensá-lo,trateidemeempenharnotrabalho,fingindoumentusiasmoquenuncasentideverdade. Comapartidaeumetransferiparaoquartodela,quepasseiadividircomFarzane.Agho Junpendurouno tetoentreasduascamasumKilim que funcionava como uma espécie de divisória, mantendo aprivacidadedecadaumdenós.NasaladormiaBãbakcomXeque-mate,quedepoisdonovonomepassouaconviveremharmoniadentrodecasacomoummembrodafamília.SalvoShahin,todosadotaramocão,quesetornoudócilecomportado,apontodenuncamaisderrubarotabuleirodexadrez.Aliás,bastavaShahinpegarabolsaeosmeninosjáficavaminquietosparajogar com Bãbak. Muitas vezes eu voltava do Bazar para encontrá-losabsortosnumapartidafeitogentegrande.Espertos,depressaaprenderamartifícios para usar diante damãe. Eles fingiam tão bem que Shahin nãodesconfiava da profunda amizade que ia solidificando-se entre eles eaquelehomemaquemelaviacomoumintruso. Omid e o irmão eram as únicas luzes que iluminavam nossocotidiano. Cada dia era igual ao anterior, o que se traduzia em um tédioindizível. Não se podia ouvir música, e a televisão só transmitia osprogramasautorizadospeloscensoresdoregime.Nemprecisodizercomoerammaçantes.Passear,sairànoite,iraumrestauranteouaumbarzinho

beber Delester Golden, nossa cerveja sem álcool, também estava fora decogitação.Comorefluxodoturismo,asvendasnalojacaíramparamenosdametade justoagora,que tínhamosmaispessoasparaalimentardentrodecasa. Agho Jun ajoelhava-se cinco vezes todos os dias no tapete deorações voltado para Meca, mas não conseguia me persuadir a fazer omesmo. Quando ele insistia diante dos vizinhos do Bazar, eu fingiaacompanhá-lo,sóqueemlugarderezar,pronunciavabaixinhoonomedeZibã.Certodia,deitadonacama,enquantoeuoescutavafazersuasprecesantesdeseguirmosjuntosparaotrabalho,minhamãeapareceu.-Levante-se,queremfalarcomvocêláembaixo.-Quemé?–pergunteicomocoraçãonaboca,emborasoubessequeaschancesdeverZibãporalieramremotíssimas.Semresponder,eladesceuasescadascompressa,oquesóatiçouminha curiosidade. Enfiei uma calça, calcei os chinelos e sai abotoando acamisa.Nasala,Bãbaklançouumolharnadireçãoopostadeondeestavasentadoe,numsusto,reconheciFaty. Cauteloso, aproximei-me dela comminhamãe vindo atrás econvidando-aparasentar-se.-Vouprepararumchá.–esaiufazendoumgestoparaqueBãbakaseguisse,deixando-nosasós.Fatymudaradesdeaúltimavezqueavira.Aroupaseveratornavasuasfeiçõescarregadasenoteiqueasmãostremeramdelevequandomecumprimentou. Nem precisei indagar o que a trouxera ali, pois ela seencarregoudeiniciaraconversa.-VimavisarqueBehruzdeveirparaaguerra.

-Elefoiconvocado?-Não.Alistou-secomovoluntáriodoSepahePasdaran...

Fiqueisemreação.Aqueleeraogruporeligiosodamilíciaxiita,afacçãodoislamismopredominantenoIrãequedefendiaarevoluçãosobo

Alcorão. Muitos acabavam de fato seguindo rumo a Ostãne Khuzestan, aoeste,paracombaterastropasinvasorasdeSaddamHussein.-EleparteamanhãdaPraçaSetadparaDarvazeyeKazerun.–elaprosseguiu.-Nãovaiaomenosrecebertreinamento?Eladeudeombroseeusolteiumsuspiroquemisturavadescrença,desalentoeraiva,tudojunto.Sabia,nofundo,queBehruzseriacapazdeumgestodaqueles.Sempreforacorajoso,nuncarecuaradiantedeumdesafio.Paraelenãopoderiahavernadamais justodoque lutarcontrao inimigoqueatacavaseupaís.Porqueeunãoconseguiapensardamesmamaneira?Oquehaviadeerradocomigo? Faty cortoumeuspensamentosaomeoferecerovelho relógioganhoapósotorneiodexadrez.-Meuirmãopediuqueentregasseavocê.-Jádissequenãopossoficarcomisso.Nãomepertence...Comosolhosmarejados,FatymordeuoslábioscomoZibãfazia.Alembrançadelanaqueleinstantemedeixoutontodeemoção.Amoleci.-Aceitecomoumaespéciedetrégua.Behruznãoquerpartirsemteragarantiadequecontinuaseuamigo.Amigo...penseicomigomesmo.Nãolembravamaisosignificadodapalavra,elaperderao sentidoenãoprovocavaemmimqualquer tipodesentimento.ParanãodesapontarFaty,pegueiorelógiodevoltaedestavezcoloquei direto no pulso. Agho Jun estava a par de tudo, não haviamaismotivosparaescondê-lo.-Obrigada...–elafalou,levantando-separairembora.Euhesitei.Nãotinhaidéiadoquedizer:-Mandelembrançasaoseuirmão. Ela só balançou a cabeça e foi saindo em direção à porta.Despedimo-nossolenescomodoisestranhosefiqueiparadonacalçadaatésua figuradesaparecerno finaldarua.Quandoentreinasala,minhamãe

vinhacomabandejadecháeseusfamososgez.-Elajáfoi?Porquenãoesperoupelolanche?Semresponder,subiemdireçãoàmetadedoquartoquemecabia.Estirei-menacamaefixeiavistanoteto.Daliapoucomeupaimechamavaparairtrabalhar.Eramnovehorasdamanhãeestávamosatrasadosdevidoaunstelefonemasqueeledera. Notrajeto,AghoJunmeviuconsultandoorelógioseguidamente,mas não comentou nada. Perguntou sobre Behruz e eu respondi pormonossílabas. Caminhamos no mais completo silêncio, cada qualalimentando seus pensamentos. Os meus estavam no garoto quecompartilharacomigoosdiasalegresdaminhaexistência.Osdele,comoeupoderia até adivinhar, giravam em torno da iminência da minhaconvocaçãoparaoexército,algoqueeletemiaacimadetudo. Odiaarrastou-secomuma lentidãoenlouquecedora.Osparcosfreguesesacabavamnadalevandoeminhaimpaciêncianãocontribuíaparamelhorarosnegócios.Quandoviaumdelesseafastardemãosvazias,AghoJunresmungavabaixinho,lamentandoamásorte. -Temquecativarocliente,Kurosh-eleensinavapelacentésimavez, sem qualquer sombra de repreensão na voz, o que me fazia sentirainda pior. Sabia que a situação em casa se agravava com o dinheiroescasso.Sóqueeunãohavianascidocomodomdocomércio.Apósaquelaagressão gratuita que me mortificava, eu fazia de tudo para disfarçar otédiodashorasperdidasatrásdobalcão.Antesaomenoseujogavaxadrezcom Farzane, mas ela desistira de ir até o Bazar para nossas partidas.Preferia cuidar do enxoval, apesar do adiamento das bodas devido àscircunstânciaspolíticas.QuandoAghoJunajoelhou-separaaquartaoraçãododia,euexulteide contentamento. Embora não tivesse nada para fazer em casa, ansiavapordeixaraquelelocalefaziacontagemregressivadosminutos. Denovonãoconseguicomerquasenadanojantareminhamãe

olhavaparamimpreocupada.Seusdonsculináriossurtiamcadavezmenosefeito no meu humor que ia da indiferença ao cinismo, passando pelodeboche puro e simples. Por volta das oito horas eu já estava entre oslençóissemsequermedaraotrabalhodetrocarderoupa.Antesdaminhairmã se acomodar, já dormia. Aquela seria uma das primeiras noites emqueexperimenteiumsonoreparadoresemsobressaltos.Aoacordarlogocedoviqueodianemamanhecera.Arádioaindanãohavia nos convidadopara as orações. Estranhei. Emgeral eu era umdos últimos a despertar. Consultei as horas eminha paz evaporou juntocomasmemóriasdeBehruz.Aslembrançasiamevinhamcomoasondasdo mar. Traziam recordações de momentos preciosos, mas ao refluíremdeixavam na areiamolhada tocos demadeira, galhos secos e retorcidos.Naquelaescumalhaestavamossímbolosdanossaamizadecorrompida. Semconseguirvoltaradormir,desciasescadasefuibuscarumcopod’água.Aoveratravessadegez intocadaqueminhamãefizeraparaoferecer a Faty, dei um pulo. Behruz partiria dentro de algumas horas.Volteiparaasalapéantepéeabriaportadafrente.UmalufadadearfriobateuemXeque-mate,queacordoucomumarremedodelatido.Assustado,Bãbaksentou-senaalmofadaeesfregouosolhos.-Depénumamadrugadadessas,haji?Tenteidisfarçar,inventandofomeesede.Andavaparaláeparacásemsaberoquefazer.Porfimresolvimeabrircomnossohóspede,quemesondavadesconfiado.-BehruzestárumandoparaOstãneKhuzestan–dissebaixinho.

-Elevaiparaofront?-Achoquesim.ComoSepahePasdaran...-Humm.–fezBãbak,balançandoacabeça,enquantoeucontinuava

esfregandoasmãosumanaoutraeconsultandoorelógiocomoseelefosseum oráculo. Osminutos corriam depressa e pela segunda vez eu desejeipoderpararotempo.Abriefecheigavetas,soqueiasalmofadas,quefaziam

umbarulho fofo, brinquei comXeque-mate. Sentia-meperdido, precisavafazeralgumacoisa,masnãosabiadireitooquê,nemcomo.FoiBãbakqueminterpretouminhaaflição,traduzindoempalavrasodesejoqueeutentavaesconderdemimmesmo.-Vocêquersedespedirdele...Eracomosetirassemumpesodecemtoneladasdasminhascostas.Osmúsculosdomeurostodescontrairam-se,oalíviopercorreumeucorposoltando os nós da angústia. Devo ter demonstrado isso, mas ainda nãoestavaconvencido.-Vocêachamesmoquedevoir?–euqueriasóumempurrãozinho.-Énatural,eleéseuamigo...

Osomdessapalavraficouzunindonomeucérebro.Relaxei.PerdoeiBehruzcomametadedomeucoração.Avontadeimediataeraabraçá-loedizer isso a ele, mesmo que lá no fundo restasse um vestígio demágoa.Torneiaolharorelógioeperdiofôlego,sequisessedefatovê-loprecisavacorrer. O caminhão que o levaria junto estava no estacionamentoaguardandoseucarregamentohumano.

-Conteparameupaioquefuifazer.–faleiparaBãbak.Fizmençãodeabriraporta,maselemepuxoupelobraço.

-Comopretendechegarlá?Não sabia o que responder, na pressa nem havia pensado nessas

questões práticas. A praça Setad ficava no outro extremo da cidade.Caminhar até lá estava fora de cogitação, pegar um ônibus poderiaconsumirminutosprecisos,masnãotinhaumtomamparapegarumtáxi.

-Espereumpouco–eleavisou,enquantoenfiavaamãonofundodamaleta.

Poruminstanteimagineiqueelefossepegarumadassuaspeçasdexadrezenfeitadasdediamantes.Emvezdisso,tirouummaçodedinheiropresonumelástico.Masemlugardemedarasnotas,começouarabiscarqualquercoisanumpapel.Acheiquefosseaorientaçãodecomoencontrar

apraça,sóqueestavaenganado.-EstoudeixandoumrecadoparaHajHassan.Fizcaradeespanto,eleexplicou.-Voucomvocê.Seideumatalhoparachegarmoslá.–eantesqueeupudesseprotestar,eleacrescentou.-Podeserperigosoirsozinho.Dizendoisso,Bãbakenfiouostomansnobolsodacalça,porbaixodatúnicalongaquevestiusobrearoupa,pegouabengalaemeempurroupara fora. Encolhi de frio dentro do casaco fino. Por sorte ele tinha umgorroeumcachecolextra,queenroleiatéonariz.Comocoraçãobatendoacelerado, andamos por um bom tempo até acharmos um táxi namadrugada ainda escura. Fizemos o itinerário sem trocar uma palavrasequer.Sóele falava,dando instruçõesediscutindocomomotorista,queerrouquatrovezesantesdeseguirarotacerta.Euolhavaapavoradoparaos ponteiros do relógio que pareciam girar mais depressa do que eugostaria. ChegamosporfimaoendereçodadoporFaty.Estava lotadodesoldadosuniformizadosquezanzavamdeumladoparaooutro.NãoseriafácilacharBehruznomeiodaquelamultidão.Saltamosdocarroeaperteiavista.Naluztênuedaauroradistinguidooutroladodapraçaalgunsjovensque seguravam o Alcorão na altura de cabeça dos colegas. Como decostume, estes beijavam o Livro Sagrado e passavam por baixo dele. Emseguida invertiam os grupos e repetiam o ritual para se protegerem naviagem.Aproximei-mecomcuidadoepudeouvi-losrepetindoemconjuntopalavrasrelacionadasàguerraqueiriamenfrentar.”Sealguémforferido,opovo receberá um ferimento semelhante. Tempos assim vão existir paraqueDeuspossareconheceroscrenteseescolherosmártires.Deusnãoamaoinjusto.Deusdizaverdade”.SóqueBehruznãoestavaentreeles.Bãbakfoimelevandoemdireçãoaoscaminhõesestacionadosemfila dupla. Alguns estavam lotados de soldados que levavam na cabeçabandanas em vez de capacetes ou quepes. Outros carregavammunição e

armamentosdetodotipoencobertospelalonaverde-oliva.Quandoíamosalcançarumdeles,umsoldadoseaproximou.-Quemsãovocês?Oquequeremaqui?Tremidacabeçaaospés,iasaircorrendoquandoBãbakmereteve.

-Estouprocurandoumsobrinhoquevaipartir...–elefalou.–Tenhouma encomenda para ele. – e, para minha surpresa, Bãbak mostrou umpequeno embrulho que eu nem sabia que ele tinha. O soldado nos olhoucomdesconfiança.-Qualonomedele?-Behruz.

-Tudobem,podempassar....Suando frio,comeceiacaminharcomaspernasbambas,quandoo

mesmosoldadovoltouanosinterpelar.-Eesterapaz?–perguntoucomavozestridente.-Émeufilho...–respondeuBãbak.-Quantosanoseletem?Eantesdeobteraresposta,osoldadodisse.-PareceemidadedelutarpeloIslã.Porqueelenãoembarcajunto

comosoutros?Apavorado, eu estava preparando uma justificativa convincente,

quandoBãbakinterveio.-Eleésurdo-mudo.–fezparamimgestoscomasmãoscomosinais

eprosseguiu. -SenãoteriaamaiorhonraemserviremnomedeAlá,quesejalouvado!OsoldadoolhoudemimparaBãbakemeperguntou-Vocênãoouveoqueeufalo?

Semresponder, tenteimanterumaexpressãocondizentecomadealguémquenãocompreendedireitooqueeledissera.Algunssegundossepassaram.Orapazpareciarefletir,enquantomeexaminavadealtoabaixocomoparachecaraveracidadedaminhadeficiênciaauditiva.LogoBãbak

tornouàcarga.- Eu não disse? Ele é surdo como um poste! – e piscou para o

soldado, que virou as costas e foi sumindo da nossa vista. Quando eledesapareceu,Bãbaklimpouatesta,quegotejavadesuor.

Aquela fora por um triz, eu fiquei de fato mudo de susto, e saipuxandodeumaperna.Elemesacudiu.

-Vocêésurdoenãomanco!Quemtemproblemanapernasoueu,haji!

Eu queria rir, mas não conseguia. Meu estômago doía e minhacabeça zumbia. Não era capaz de raciocinar e só então lembrei que nãocomeranada.Odiaamanheceraeumsolzinhofracoiluminavaaconfusãoaonossoredor.Bãbakentãoapontouumoficiallendoemvozaltaosnomesdoqueembarcavam.

-Talvezelepossanosdarinformações...Reanimado, esqueci o mal-estar e fomos caminhando naquela

direção. Ao invés de mancar eume esforçava para não correr. Tive quefazer um esforço monumental para controlar minha ansiedade e nãoagarrarooficialpelocolarinhoparasaberondeestavameuamigo.Queriaolhar Behruz de frente e sem rancores, nem que fosse pela última vez.Precisavasaberqueeuotinhaperdoado,agoracomocoraçãointeirinho,semrestrições.Elevoltavaaserapessoaqueridadesempre.Aspalavrasiam se ordenando nomeu peito prestes a explodir de tanta emoção. Eusentiaqueestavaaumpassodeabraçaroamigodeinfância.EstasensaçãoaumentouquandoBãbakpediuparaverificarnalistaqueooficialtinhaemmãossepoderiaacharseu“sobrinho”.

-Qualéonome?- Behruz. – eu me apressei em responder. – Behruz Hashemi. –

anunciei,esquecendo-medequeerasurdo-mudo.Bãbakcolocou-senaminha frente, tapandoavisão.O soldadoque

nosinterrogaraestavaentretidoacompanhandoovai-e-vemdosmilitares

enãopareceutermeescutadofalar.Sóqueaburocracianãoacompanhavameu estado de agitação. Ela arrastava-se nos movimentos lentos docomandante da seção dos voluntários do Sepahe Pasdaran. Seus dedosescorregavam pelos nomes devagar, sem amenor pressa. Depois de umtempoquepareceuumaeternidade,eleperguntou.

-Sabeaqueunidadeelepertence?Bãbaknegoucomacabeça.Ocomandantelevantou-se,trocouumas

palavrascomumcompanheiroevoltou.-Eleestáemoutralista.-Maso senhornãopoderianos ajudar? –Bãbak implorou. –Éde

sumaimportância!OoficialolhoucomdesdémparaBãbak.-Issoaquinãoéumparquedediversões,estamostrabalhando!- Desculpe, senhor, mas preciso entregar estes medicamentos ao

meusobrinho!–eBãbakmostrouoembrulhoque trouxeraconosco.Daí,parameuespanto,disfarçadamentepassouobolode tomansàsmãosdohomem.

-ParaasmilíciasdeAlá...–Bãbaksussurrou.O oficial enfiou depressa o maço nos bolsos da calça cáqui do

uniforme.-Vouveroquepodeserfeito.–disse.Emseguidapegouumrádio

transmissoreseposaconversar.Daliaumtempo,apontouparaaoutraextremidadedapraça.

-Elevaisairdelá.Pelomenoséoquemeinformaram.Agradecendo, Bãbak foi me puxando no rumo indicado. Eu ainda

tentava digerir a cena que acabara de presenciar, mas a premência dotempomeobrigouavarrer tudoquenãodissesserespeitoaBehruzparaforadosmeuspensamentos.Naqueleinstanteeuqueriaterasasparavoarsobreoamontoadodegentequemeempurravadeumladoparaooutro.PareciaoBazarnosdiasqueantecedemoRamadã.Eutinhaaimpressãode

quetodosresolveramatrapalhar,barrandonossapassagemdepropósito.-Poraqui!–gritouBãbak.-Não!Desteladoémelhor.–respondi,entrevendooqueachavaser

umatalho,masemmeioatantossoldadosficavadifícilenxergarporondeir. No fim, acabei me perdendo de Bãbak. Fiquei rodando em círculos equandome dei conta eu alcançara a direção oposta. De novo senti a vozsalvadoradeBãbak.

-Haji,vocêestáperdido.Depressa,venhaatrásdemim.Com o seu corpo esguio, mesmo puxando de uma perna ele foi

esgueirando-sepor entre as levasque se abriamparanosdarpassagem.Num átimo tínhamos chegado ao lugar certo. Imediatamente ele deu onome ao encarregado. Nova espera, outra consulta nas listagens. Meuestômagodavasinaldevida,umadorzinhainsidiosaiasubindodaliparaaminhacabeça,quelatejavacomoseeuestivessecomfebrealta.

Pelamilésimavezconsulteiorelógio.Passavadasnovehoras.-Behruz...Behruz...–ouviomoçomurmurarembuscadonometão

procurado.Diferentedosdemais,elenãousavaturbanteesimumcapaceteescuro.Tenteimeaproximarparaleropapel,maselelevantouorostoparamimtriunfante.

-BehruzHashemi – ele gritou. - Achei, aqui está! – ememostroucomdedoalinhacomonomedomeuamigo.Exultei,olhandodeumladoparaooutrocomonumapartidadetênis.Custavasegurarminhaeuforia.

-Onde?Ondeeleestá?Sóentãoorapazcaiuemsi.Aexpressãodelemudoueeuestremeci.-Acaboudeirembora.Ocaminhãosaiunãofazcincominutos.Osoldadorecolocoua listanoenvelopecomumgestomecânicoe

subiunacabinedoveículo.Prestesadarapartida,acrescentou,numtomqueiadacensuraaoconsolo.

-Setivessechegadoumpouquinhoantes...

XIHáduassemanaseunãome levantavada cama.Agho Junesgotou

sua paciência quase infinita tentando me reanimar e minha mãeexperimentoutodosostruquesculináriosparametirardotorpor.Tudoemvão. À minha volta, acumulavam-se jornais e revistas que minha irmãtrazia.Eumesentiaumintrusonestemundoqueroubarademimomaisprecioso. Narges partira para longe, Zibã ficou fora do alcance e Behruzsumiusemqueeutivesseaoportunidadedelhedarumabraçodeperdão.Bãbakgastaraàtoasuasúltimaseconomiasnumatentativafrustradapelaminhaprópriateimosia.Nãomeconformavaemnãotê-loseguidonomeiodamultidão.Cincominutosteriammudadoocursodahistóriaeagoraeuestariacomaconsciênciatranqüila.ChegaramacogitarchamarFaty,maselaviajaracomospaisparaacidadedosavós.

MeurelógiodepulsovirouumtalismãqueacariciadocomosefosseorostodeBehruz.AimagemdeleseconfundiacomadeZibãedeNarges,lutandoparasobreviverenquantoeusequerforacapazdechegaratempopara uma mera despedida. Agora estava à mercê de um duploarrependimentosemqualquervislumbredesolução.DeixaraBehruzpartirsem falar com ele e fiz Bãbak desperdiçar o pouco que conseguiu salvarpara uma eventual emergência. Embora ele insistisse que tinha maisdinheiro, era óbvio que aqueles tomans representavam as derradeirasnotasdesuaminguadaalgibeira.-Vocêtemquereagir.Nãofoisuaculpa,soutestemunhadisso.

Ele repuxava a barba que deixara crescer como a maioria dosiranianos neste período pós-revolucionário. Elas surgiram no rosto detodos os homens adultos na mesma proporção em que os cabelosfemininossumiramdebaixodochador.

-Oqueosmeninosvãopensar?–Bãbakmudavadetática,depéaoladodacama.Apegara-setantoaosgarotosqueShahinacaboudesistindo

de afastá-los dele. Ensinara-os a jogar um xadrez de gente grande e, nofundo,terminoupordividircomAghoJunopapeldopaiausente.Porumasfraçõesdesegundoeumeanimava,masdepoisviaoretratodomeuamigosobre a cadeira que servia de mesa de cabeceira e a depressão voltava.Pensaramemconsultarummédico,masninguémtinhaumtostãoeNarges,queresolveriaoproblema,estavalongeparacarregarmaisestepeso.Chegueiacogitaremdarcabodetudoesónãoleveioplanoadiantepor Agho Jun e Zibã. Nutria alguma esperança em revê-la e isso memantinha vivo nosmomentosmais dilacerantes. A falta de convívio compessoasdaminha idade, agoraqueasescolaspermaneciam fechadas,meabatia ainda mais. Com o país inteiro semi paralisado em virtude dasmudanças impostas pela revolução seguidas da guerra com o Iraque, acomunicaçãoentreosórgãospúblicosfuncionavadeformaprecária.Nessabrechainúmerosescaparamàconvocaçãocompulsória.Nãoqueogovernocontasse compouco contingente, sobravamvoluntáriosdispostos a dar avida em nome de Alá. Só por isso as autoridades não saíam à caça dosjovensemidadedeserviroexércitocomoeu.

Deumahoraparaaoutra,semqualqueraviso,aluzsefez.Percebiquenãoeraapenasumestranhonomeuprópriocorpo,mastambémumexiladonaminhapátria.EusóconseguiriasuperarafrustraçãoseseguisseospassosdeBehruzefizessealgodeútilpelomeupovo.Comonocasodeuma picada de cobra, eu teria que tomar soro feito com o veneno daserpentesequisessemecurar.Eraissooumorrerdedesgostoporalgoquepoderiatersido. Nesse instanteresolvimealistaromaisrápidopossível.Estariacumprindo com meu dever e arrancando do peito aquela dor que nãocalava. Pulei da cama, coloquei a roupa e,meio zonzodevido à fraqueza,desci as escadas num salto. Por sorte, não havia ninguém em casa paraquestionaraqueladecisãosúbita.Bebiumpoucodecháfrioecomiosnân-e sangak que achei namesa da cozinha. No bolso da calça apalpeimeus

documentos, duas fotos 3x4 e abri a porta. Consultei o relógio, cujomostradorpareciasorrir.Behruziriaseorgulhardemimemesmoquenãoo encontrasse nuncamais, ele ficaria sabendo domeu gesto. Estava levecomo há séculos não me sentia. Peguei a chave e, ao fechar o portão,esbarreiemBãbak,quevoltavadopasseiomatinalcomXeque-mate.-Vejoquesarou!–elemeseguroupelobraço–Aondevaicomtantapressa,haji?

Deiumadesculpaqualquerecontinueiandando.Bãbakcorreuatrásdemimcomdificuldadeporcausadaperna.

-Espere,espere!Fingiquenãoescuteieacelereiopasso.Eletornouaberrar.-Ei,tenhoumacartaparavocê!Parei no ato. Nem um raio teria me detido com tanta eficácia.

Primeiro um tremor quase me derrubou. Depois, uma ansiedade semlimitesmeempurrouemdireçãoaoenvelopepardoqueeleseguravaemumadasmãos.Daícomeceiasuardeemoção,antevendoaescritamiúdadeZibã.Oqueelacontariadestavez?TeriaarrumadoumjeitodeviraShiraz?Suas palavras doces já borbulhavam diante de mim quando reconheci aletra de Narges. Balbuciei qualquer coisa, sem esconder a decepção. Tãodesencantadoestava,quenemestranheiofatodelaterescritodiretoparamimenãoparaAghoJunetodaafamíliacomoserianatural.

- Não vai abrir? – Bãbak indagou, tentando decifrar minhaexpressão.

-Depois–respondi,enfiandoacartanobolsodajaqueta.- Não está curioso? Mandaram entregar no vizinho com a

recomendação de que eu desse direto a você. – ele fez uma pausa,examinando-medecimaabaixo.–Nãoveiopelocorreio,foitrazidaporumportador.Decertoelaquisevitaracensuradogoverno.

Balanceiacabeçaefuiandando.Acartanãomeinteressavatantoapontodemedeter.Tinhaumametaestabelecidaeagoranadapoderiame

tirardocaminho.FoiquandosentidenovoavozfirmedeBãbak.-Sejaláoqueforfazer,podeesperar.Voltecomigoparacasaeleiaa

cartaantesdopessoalvoltar.Fiqueicomraiva,elenãotinhaodireitodeatrapalharmeusplanos.-Venha,podeserimportante!–eleinsistiu.Então avaliei que era cedo.Ospostosde alistamento funcionavam

atéanoite.Odiaapenascomeçavaemeiahoradeatrasonãorepresentavaperigo.VireiparaseguirBãbak,semmedarcontadequepelasegundavezconsecutivaelesalvavaminhavida.

“MeuqueridoRoshy.Esperoquenãofiquezangadodeusaroapelido”,Nargesdiziana

primeiralinha.EuestavasentadonaalmofadadeXeque-mate,quedividiaoespaço comigo e prestava atenção feito gente. Parame deixar à vontade,Bãbakentraranacozinhaparaesquentarochá.Dalieuescutavaobarulhodas xícaras eda chaleirano fogo.Continuei a leitura comesforço, a letradelaestavatremidacomosetivesseescritocompressa.

“Você deve estar achando estranho eu endereçar esta carta a você, mas precisava contar

sobre o que tem acontecido aqui sem deixar nossos pais angustiados. Consegui como emissário um

parentedovizinhoqueseofereceuparaencaminharestacartaemmãos,semcorreroriscodecairnas

malhasdosmilicianosencarregadosdacensura.

SoubequeficouarrasadocomapartidadeBehruz,dequemnãoteveaoportunidadedese

despedirnemsereconciliar. Imaginocomo issooabaloue temoqueacabe tomandoalgumaatitude

precipitada.Primeiro,saibaqueeleestavacientedasuaamizadeedoseuperdão.Fatymecontouque

ofatodeteraceitadoorelógiodevoltarepresentoumuitoparaBehruz.Elepartiucomacertezade

que você continuava o mesmo amigo de sempre. Quanto a isso, fie-se na minha palavra. Eu não

mentiriaaomeuirmão.Sabedisso,nãoé?

Um dosmotivos pelos quais envio estas linhas é para fazer um breve relato do que tenho

vividoporaqui.Sealgumdiavocêchegouaimaginarcomoseriaoinferno,nãodevechegaraospésdo

que vejo diariamente à minha volta. Os soldados vão para o campo de batalha sem o menor

treinamento,dispostosaseimolarememnomedoIslã.Muitossãoquasecrianças,asfaceslisasesem

pelos,avozquebradiçamudandodetom.Ospaisosincentivameatéosforçamasealistar.Acreditam

queassimestãofranqueandoaentradadafamíliaaoParaíso.Seouvissemcomoestesmeninoschoram,

chamandopelasmãesnomeiodanoitecomocriancinhaspequenas...

Falo sério, dá vontade de por cada um deles no colo. Mas nossa presença é proibida e só

podemos estar comeles acompanhadas por ummédico e nempreciso lembrar que isso é coisa rara

nestefimdemundo.Asatrocidadessucedem-secomumafreqüênciainacreditável.Comooscirurgiões

sãorequisitadosparaatenderosoficiaiseaspatentessuperiores,osgarotosterminamabandonadosà

própriasorte.Selevamumtironacanela,acabamcomapernaamputadaporquenãoháquemfaça

umaoperaçãosimpleseextraiaabala.Outrasvezesesperamaferidagangrenareoscoitadosmorrem

de infecção generalizada por falta de medicamentos. Fazemos o possível, mas os antibióticos são

racionados,denadaadiantaboavontadeseminfra-estrutura.Acostumeicomocheirodepodridãoque

infestaasbarracastransformadasemenfermaria,nemvomitomaisaoveroscorposquechegamem

caixas de papelão, como sangue escorrendopelas dobras e tingindo o chão de vermelho, formando

umalamaquegrudanasoladossapatosfeitocola.

Nãohárefrigeradoresparaguardarosmortosouoquerestoudeles,masemvezdeenterra-

los, o que seria omais lógico e higiênico, preferemesperar para remetê-los às famílias nas diversas

regiões do país, e com isso conseguir uma repercussão de grande impacto semmaiores esforços ou

gastos.Osprópriosmártiresqueregressamnoscaixõesconvertem-senomaiorartigodepropagandaa

favordosalistamentos.Apóscadafuneralcoletivo,cresceocontingentedenovosvountários.Elessão

enviadoscomovanguardadastropasparareceberdepeitoabertoosprimeirostiroseajudaralivrara

área das minas terrestres. Atrás deles chegam os tanques e os soldados de verdade. E ninguém

questionaoabsurdodisso.Saimaisbarato,éeficazeogovernoaindadáaimpressãodeestarfazendo

umfavoraosfamiliaresdasvítimas,queassimsentem-seorgulhososdosfilhosestraçalhados.

Quantoaosquesãocapturados,procuronempensar.Poucossobramparacontarahistória,

masouvicoisasquegostariadenuncaterescutado.HospitaisdeBagdámantémcentenasdelesvivossó

parairtirandopedaçosdepeleefazerenxertosnosiraquianosqueimadosnofront.Quandoviramuma

massa de carne, sem nenhum tecido encobrindo o corpo, são enterrados vivos para economizar

munição.SaddamHusseinnãotemumpingodeescrúpuloe,comaajudadogovernonorte-americano,

ignoraasconvenções internacionaissobreprisioneirosdeguerra.Receioquelogo,porvingança,nós,

doladodecá,estaremospraticandomonstruosiadessemelhantes.Olhoporolho,dentepordente...

Éevidentequesóescrevo issotudoporquetenhogarantiasdequeacartaseguiráporvias

segurasequeminhaspalavrasjamaisserãorepetidasporvocêànossamãeeAghoJun.Creioqueeles

nãosuportariamsaberoquetenhopassado.”

Dobreiasfolhassempressaecaminheiatéoquintalparatomarum

poucodearfresco.Tinhaquefazerumapausa,asnotíciasdeNargeserampesadas demais parameu estômago enfraquecido por semanas de jejum.Bãbakmeseguiu,masnãodissenada.Esquadrinhavameurostoembuscadepistas,maseutinhaosolhossecosevazios.Elerespeitoumeusilêncio.Xeque-mateseaproximouabanandooraboelambendominhamão.Fiqueicominvejadocachorro,desejandotrocardelugarcomeleparaescapardasarmadilhas feitas pelos homens. Como seria bom esquecer tudo emergulharnovácuodainconsciênciacanina...

Umabrisasoprouasfolhasdopéderomã,espalhandoumperfumecom sabor de infância. Épocas alegres, quando a única preocupação eraescolherotipodebrincadeira,apostarquemapanhariaasmelhoresfrutaspara fazero rôbeanor,meudocepredileto.Umtempoqueagorapareciatão remoto como as lendas sobre nossos heróis que costumava ouvir deAgho Jun quando éramos pequenos. Não apenas o passado, mas meupresenteefuturoesfacelavam-sediantedemimsemqueeunadapudessefazer.

As tulipas recémplantadasnãohaviambrotado. Lembreide comoficávamosexcitados,àespreitadosbrotos.Eulevantavaantesdasminhasirmãsparaseroprimeiroanotarafloresgueirando-separaforadaterraembuscadosol.Paramimaquilosignificavaumpequenomilagrequeserepetia a cada primavera. Agora tudo estava saturado da paisagemprecocemente envelhecida. Dava a impressão de que as plantas não iamflorescer nuncamais. Como eu, Behruz,Narges e uma geração inteira dejovens,elasmorrereriamencruadassemdesabrochar.

Atormentado por tais pensamentos, sentei no degrau que davaacesso à cozinha ao lado de Xeque-mate e tornei a abrir a carta. Quantosangue ainda pingaria daquelas páginas? Reuni coragem e continuei aleitura.

“Meucansaçoàsvezesmefazconfundirascoisasenessemeioagenteperdeasreferências

como se tivesse sofrido uma lavagem cerebral. É difícil, quase impossível manter um resquício de

lucidez diante de tanta crueza. Tento me agarrar ao fiapo de humanidade que me resta para

prosseguirproporcionandoalívioaosquesofrem.Infelizmenteépouco,lamentavelmentepoucooque

possofazer.Sobretudodiantedoimensopoderdefogodosnossosinimigos.Recordoaspalavrassábias

deAghoJun,dequeestávamosnosafastandodosnossosprincípiossoboregimedePahlevi.OsEstados

UnidosfizeramdetudoparanosdesviardoIslã,nossaraizmaisprofunda.Agoraquenoslivramosde

um regimequeobedeciaàs ordensdopoderoso impériodoNorte, eles se vingamajudando Saddam

Husseinesuastropasassassinas.Issomelevaàrazãoprincipaldestacarta.Ouseja,adepediravocê,

imploraremnomedetudooque julgamais importante,queNÃOSEALISTEnestaguerra.Acimade

tudo, evite qualquer contato com as milícias, e se for convocado, não se apresente. Acredite, o que

presencioéumpreçoaltodemaisparaadefesadapátria.FrenteaoarsenaloferecidoporWashington,

lançamosmãodofanatismocomoúltimorecurso.Sóqueeledestróividasenãolevaanada.Aguerra,

ameuver, vai searrastarporanosa fio, enesseperíodo será tambémusadacomopretextoparao

governonosmanter sobomais rígidocontrole.Eu jáestouaqui,dandomeuquinhão.O seupapelé

permaneceremShiraz,cuidandodanossafamília,aoladodosnossospais.AjudeAghoJun,sobretudo

agora, comos gastos extras de Shahin e os filhos. Eles precisammais de você aí do que aqui, nesta

loucura.

Precisaprometer,meuirmão,dequefarádetudoparaescaparaestaloucuraquenãotem

nadaavercomreligiãoesimcomdesespero.Detodocoração,nãopossoacreditarqueAláaproveesta

carnificina inútil. Por isso oro todos os dias, mas, sinceramente, fico cada vez mais cética e sem

esperanças.

Assimqueconseguirumalicença,vouatéaívisitá-los.Enquantoisso,durmoumpoucomais

tranqüilasabendoquevocêatenderámeupedido.Aliás,issoéumadasúnicascoisasquememantém

viva, senão seria capaz de morrer. Sei que posso contar com você neste momento, que sempre me

escutoueagiudemodosensato.Agoranãoserádiferente.Esseéoapelodasuairmã.

TerminoaquicomumbeijoeopedidodequenadacomentecomAghoJun.

Asempresua,

Narges”.

Nãomerecordoquantotempopermaneciali,mudo,semmexerum

dedo.Por foraeucontinuava inerte,masdentrodemimhaviaumvulcãoem plena atividade. Estava prestes a selar o meu destino com Behruz,quandoNargesvememejogaparaoaltocomoumaplantadesenraizada.Oque fazer? No fundo eu pensava como ela, decifrava as entrelinhas dosjornaisenotavaaestupidezdos fanáticos.Agho JunprecisavamesmodemimnoBazar.Poroutrolado,eueraumjovemcomobrigaçõesedeveres,enemsempresepodefugirdiantedeumaameaça.Aguerratambémtinhaseuladobom,ocompanheirismoeacamaradagemqueaprendinosfilmes,semfalarnahonraenoorgulhonacional.Maisdoquetudo,aaventuradastrincheirasmeexcitavaemeatraía,seriamaisinteressantedoqueminhavidaenfadonhaeprevisível.

Soltei um suspiro tão fundo que fez Xeque-mate dar um latido.Visivelmente curioso,Bãbak se aproximou,masnão se intrometeu. Ficouremexendooscanteiros,maseusabiaqueeleestavaaliparamim,paraocaso de eu querer desabafar. Engraçada figura este homem, pensei commeus botões. Chegou feito um intruso, mas moldara-se à nossa famíliacomosejátivessenascidonela.Eraumhóspedeinvisível,jamaisocupavaobanheironohoráriodosoutros,nuncacomiaoúltimopedaçodecarneiro,jamais tomava o derradeiro gole do chá. Suas pouquíssimas roupas elemesmolavavanotanqueesecavanãoseicomo,poisnuncavimosnenhumadelas pendurada no varal. Dormia pouco e ajudava em tudo o que fossepreciso. Fazia pequenos reparos na casa e conquistou Shahin com osobjetos delicados que fabricava comos retalhos demadeira trazidos pornósdomercado.Caixas,porta-retratos,vasoseenfeitesdasmaisvariadas

formas foramdecorando a casa. Após unsmeses, Agho Jun sugeriu levaralguns para vender no Bazar, aumentando a renda familiar. Não erapossívelcobraropreçojusto,tínhamosqueserdiscretosenãodavaparaalardearqueosobjetoshaviamsaídodasmãosdomaiorartesãodeShiraz.Bãbaknão se importava, ficava radiante em contribuir e nunca reclamouqueelesfossemvendidosmuitoabaixodoseurealvalor.

Comonãotinhafilhos,adotouosmeninoseShahin,quetratavacomumcarinhodeenternecer,sobretudoOmid,dequemseorgulhavacomosefosse sua carne.Ogarotoganhava todosos torneiosde xadrezda região,estavaacaminhodesertornarumcampeão.Tudoissoveioàminhamentequando nossos olhos se cruzaram. Decidi compartilhar minhas afliçõesdandoacartaparaeleler.

-Temcerteza?–Bãbakperguntou.Emitiumsomqueeleentendeucomosinalpositivo.Bãbakpegouo

envelope,entrounasalaeeuosegui.Elesentou-senaalmofada,colocouosóculoseaocomeçaraindapediuveladamenteminhaautorização.Aguardeinomaiscompletosilêncioporinfindáveisminutos.Aofinal,eleretirouosóculosemeencarou.

-Vocêestavaindosealistar,nãoémesmo?“Apenas pedem-te isenção os que não crêem em Alá nem no

DerradeiroDia;eseuscoraçõesduvidam;entãovacilamemsuadúvida”.Asura 45 zunia diante de mim. Este capítulo do Alcorão vibrava como setivessevidaprópria.Sentia-menumbecosemsaídaeobomhomemnotoumeudesespero.

-Filho–eraengraçadoouvi-lochamando-meassim.–IngressarnoSepahePasdarannãovairesolverseusproblemas.–Eletocoumeuombro,naqueleseugestocaracterísticoecontinuou.–Nãoadiantafingir,vocênãoconsegueenganarasipróprio.

Bãbak fez uma pausa como se pesasse cada uma das próximaspalavrasquepoderiamdecidiromeudestino.

-Porumlado,vocêsente-semalporBehruz...–eleparoudenovofeito se hesitasse. –Mas sua vontade de ingressar namilícia émotivadapelofatodeestarentediadonoBazar.

Engoliemseco,eleadivinhavacadaumdosmeussentimentoscomoseeu fosseumesquemadexadrez.DenovoviXeque-matebalançandoorabo e desejei virar um ser irracional cujas escolhas eram feitas porterceiros.Euqueriaterumdonoquemedesseordensparaeunãoprecisardecidirnada,nemmesentirculpadoporissoouaquilo.

- A resposta para sua falta de horizonte não é o suicídio... – eleacrescentou.–Issoseriaumagrandecovardiadasuaparte,eseioquantovocêpode ser corajoso. –Bãbak soprouaomeuouvido comose temessequesuasfrasesseperdessem.

Uma sensação estranhame invadiu, as pernas bambearam emeufrágil muro de certezas desabou como um castelo de cartas. Soltei umsoluçofundoemeusolhossecosafinalmarejaram.Bãbakmeabraçouforte.Deixei as lágrimas correrem como as águas de um rio caudaloso quetransbordapelasmargens.ElasestavammolhadasdorelatodeNarges,dasmalcriações feitas a Agho Jun, da solidão de Shahin, da melancolia deFarzaneedofanatismodeBehruz.Elastambémtestemunhavamadordeuma nação violentada, de jovens soldados imolados, da economiaestagnadaedo futuroroubado.Acimade tudo,elasestavamencharcadasdesaudadedeZibã,cujoscontornoseperfumesuaveeuacustoconseguiarelembrar.

XII

AghoJuneminhamãejamaissouberamdacartadeNarges,nemque o único filho homem deles quase partira para morrer na guerra.Tampouco tinham noção exata do quanto Bãbak estava se tornandoimportante para a nossa família. Uma dasmaiores provas disso ocorreu

quandoelecolocousuavidaemriscoparasalvaroutravida–destavez,adeFarzane.E,novamente,emparteporminhacausa. Aconfusãocoincidiucomo iníciodaprimavera.As tulipaseosamores-perfeitosfloresciamnojardim,emboraagoraeupoucoligasseparaasplantas.PusnacabeçaaidéiadesatisfazerAghoJunaqualquerpreçoeoBazar agora me ocupava em período integral. Aprendia as artes docomércio mais facilmente do que imaginara, apesar de continuardetestando o que fazia. Mas como meu círculo de amizades encolheradepoisqueamaioriadosrapazesforamparaaguerra,euprocuravaficarodiainteiroforadecasaparaevitaroambientefamiliarcadavezmaistenso.OmaridodeShahinafinalconseguiramandarnotícias,maselasnãoeramnadaboas.Eleavisavaqueseriaquase impossível retirá-lado Irãcomascrianças,demodoquealiberavaparasecasardenovosedesejasse.Aquilofoiumchoqueparaminhatia,quesetornoumaisirritadiçadoqueantes.Não dava amínima atenção aos filhos, educados pelosmeus pais com aajudainestimáveldeBãbak.

Omid, que ia crescendo a olhos vistos, ao invés de se desesperarpassou identificar o pai com os Estados Unidos, um inimigo tão mortalquantoSaddamHussein.NoteiqueseafastaradeBãbak,aquemviacomdesconfiançacomosehouvesseherdadoaquilodamãe.Aprincípionãodeimaiorrelevoaofato,masnãotardariaaconstataraprofundidadedaquelerancornemaondeeleseriacapazdelevar.

Oscolégioshaviamreaberto,assimcomoauniversidades.Oensinomédioera franqueadoa todos,masasvagasnoscursossuperiores foramreservadasaosfamiliaresdospatriotas.Porisso,emcasa,sóascriançasdeShahin estudavam. Entre os dois, Omid era omais aplicado e chegava asurpreender.Trocavabrincadeirasderuaporaulasextrasdereligião,cujosensinamentos procurava dividir conosco. Encontrara no aiatolá YusufBastanioseuMarjae taghlid,o líderespiritualqueelegeracomofontedeinspiração e o qual imitava com fé cega. Agho Jun se divertia com a

religiosidade do menino com quem rezava logo de madrugada, mas euficava irritadocoma insistênciaparaqueosacompanhasse.Aocontráriodemuitosamigosegentedaminhaidade,eumeafastavacadavezmaisdoIslãquetornavameucotidianoenfadonhoesemperspectivasdemudançaacurtoprazo.Comoqualquer jovemeu tinhapressa, tinhasededeviver.Eu suportava mal o tédio do dia-a-dia, mas estava cético demais paraencontrarrefúgionareligião.Sobretudoagora,quandoelafanatizavaantesparamatardepois.

- Você soube do Farshad? – minha mãe perguntou, de manhã,enquantoserviachá

Diante da minha negativa ela contou que meu antigo colega foralevadopelamilícia.

-Alguémodenunciouàsautoridades.–elaexplicou.–Foiacusadodeconspirarcontraogoverno.-Maseuoconheço!–protestei.–Enuncasoubequeeleestivesseenvolvidocomosgruposdeoposição.-Poisé...–elacompletou.–meoferecendoaquelespãezinhoscujoperfume suavizavaminha revolta. –Hoje emdia não precisa fazermuitacoisa para cair em desgraça. Basta dizer qualquer coisa e ser malinterpretado...Elaentãopassouosdedospelosmeuscabeloscomoacertificar-sedequeestavaalipresente,aoladodela. - Eumorro de pena damãe dele, coitada. Chora sem parar,apavorada,eninguémpodefazernadapelofilho...-Paraondeolevaram?–perguntei,levantandodamesacomosepudessetomaralgumaatitudeconcretaparaajudaromenino.

-Nãosesabe...–elaretrucou,olhandoparaBãbak,queentravapelaportaatraídopeloaromadoforno.

Minhamãeinterrompeuoassunto,maseleescutaraoqueforaditoecomosempretentounosaclamar.

-Qualquerhorasoltamorapaz,nãoháprovaalgumacontraele.-Nãoseiluda–minhamãedisse.–Eugostariadeacreditarnisso.–

Elaparou,meencarandocheiadecompaixãoemedo,paracompletar.–Omaisprováveléqueoexecutemfeitoumanimal...–esoltouumsoluçoquereunia as dores de todas as mães iranianas cujos filhos estavam sendosistematicamentetrucidados.Daísaiucorrendoemdireçãoaoquartoparachorarerezarlongedanossavista.

Bãbak sentou-se à mesa da cozinha e acendeu o narguilé. O arpesava.Eracomoseumvéunegroenvolvessenossacasa,oquarteirão,acidade,opaísinteiro.Naquelaescuridãopoucosconseguiamenxergarcomclareza.

- Esse é o problema das revoluções. – ele ponderou, dando umabaforadanotabaconegro,deforteodor.–Elassemprepecampeloexcessono início. –Ele fezumapausa como se refletisse. –Depois atingemcertoequilíbrio,maslogonocomeçoopêndulotendeparaumladosó...

- Isso é uma injustiça! - desabafei, liberando minha raiva eindignação.

-Eusei,eusei...–Bãbakprocuravameaclamar,maseudeimurrosnaparedeatéficarcomospunhosdoloridos.

-Escute,Kurosh,ogovernotemdiversasfrentesdeluta.Háaguerracontra o Iraque, há os complôs dos opositores apoiados pelos EstadosUnidos...

-Vocêestádefendendoessainsanidade?–euquasegritavadetantoódio.

-Óbvioquenão!Sóestoutentandoexplicarumacoisasimples.–Elemepuxouaté conseguirmesentarna cadeira. - Semumaboamedidaderadicalismonenhumarevoluçãosobrevive.

-Nãoacreditoqueestouescutandoissojustodevocê!-SóporqueeuapoiavaoregimedePahlevi?Eu ia responderde forma ríspida,masaovê-lo ali àminha frente,

magroeenrugado,osolhossembrilhoeasmãosdededos finoscomumligeirotremor,sentipenaeengoliemseco.Bãbakeraumsobreviventequebuscava compreender e se adaptar à realidadeque roubara seu estilodevida. De rico comerciante respeitado pela comunidade e invejado pelosconcorrentes, passara a refugo, um trapo humano que só não caíra nasarjetagraçasaoespíritocaridosodeAghoJun.Eraumpáriasemdireitosnemesperanças.

Aquela noite tive sonhos lúgubres, mas ao acordar, duas notíciasagradáveis esperavampormim. Primeiro, fiquei sabendoque o noivo deFarzane conseguira uma licença e iria encontrá-la próximo a Persépolis,ondesua família residia.ComoestávamoscomdinheirocurtoeAgho JunnãopodiaseausentardoBazar,euforaescolhidoparaacompanharocasalquesereveriadepoisdelongotempo.

Minha irmã estava exultante e sua felicidade só não superava aminha,queacabaradereceberasegundacartadeZibã.DenovoforaBãbakquem me entregou o envelope, trazido pelo portador anterior. Ele meestendeu aquelepequeno tesouronomomento emque eu embarcavanoônibus junto com minha irmã. Só deu uma piscadela e virou as costas,sumindo na multidão barulhenta de parentes que se despediam dospassageiros.

Noinstanteemquedeixamosaestaçãopenseiemabriracarta.Sóque Farzane desandou a falar e não tive como interromper o fluxorepresadodurantemesesafio.Elafaziaplanosdesecasardaliameioano,quandoParvizfossedispensadodoserviçomilitar.AocontráriodeNarges,elanunca foimuitopróximademime raramente conversávamos.Viqueestava tão ansiosa paramudar de vida quanto eu. Para Farzane, a uniãocomParvizsignificavaaoportunidadedefugirdeumcotidianomaçanteerepressor,jáquearevoluçãomostrava-seespecialmenteduraparacomasjovensmulherescomoela.Semumafévigorosaficavadifícilabrirmãodasregalias e privilégios garantidos durante o antigo regime. O hejab

representava, por fora, a submissão o comportamento recatado impostoemquasetodosossetoreseatividades.

A carta de Zibã ficou no meu bolso durante todo o percurso atéPersépolis,ondeonoivodelanosesperavadecarro.Enquantoela falava,meuspensamentosvoaramparalongeequandomedeiconta,jáhavíamoschegado. Saltamos num ponto na beira de estrada, no qual Parviz já nosaguardava.Eleviera sozinho, comumabraçadade tulipasnasmãos.Nãopudereprimirainvejaaovercomoosdoisseolhavamcomumcarinhoqueainda não podiam demonstar fisicamente. Eu faria qualquer coisa parasentirapeledeZibãdeencontroàminha.Atodomomentotocavaopapeldo envelope dentro do bolso. Precisava ler a carta senão enlouqueceria.Numestadodemuitaexcitação,tiveumaidéiabrilhante.

- Por que vocês não me deixam em Naqsh-e Rostam, perto dePersépolis?perguntei,ansiandoporleraminhapreciosacartaemmeioàsruínasimpregnadasdasnossaslembranças.

Paraminhaalegria, Farzane concordou.Queriamestar a sós antesdeencontraremcoma famílianacasadele,ondenão teriamprivacidade.Quem sabe trocariam um beijo proibido? Era contra a lei, se fossemapanhadospoderiamserpresoseatéaçoitados,masnaquelalonjura,quemiriaflagrá-los?Parvizredirecionounossarotatemendoqueeumudassedeidéia.Percorremosossetentaquilômetrosqueseparavamasduascidadesancestraiscomose tivéssemosasasemvezderodas.Descidoautomóvelsem virar para trás, combinando revê-los no final da tarde. Não mepreocupeiemsaberoparadeirodelesnesseintervalo,tudooqueeuqueriaerasaborearaspalavrasdeZibãnaquelecenário.

Ao me despedir do casal que seguiu feliz, dirigi-me à região dastumbas milenares. Queria voltar ao local exato em que vira a delicadafiguradeZibãrecortadacontraofundomontanhoso.Nãoconseguiirlonge,poisminhacuriosidadefaloumaisalto.Malmecertifiqueidequenãohavianinguémpor perto, já que osmonumentos estavam fechados à visitação,

sentei-me no chão arenoso sem procurar por nenhuma sombra. Rasgueiuma das laterais do envelope e retirei duas folhas finas dobradas emquatro.Estavamligeiramenteamassadas,mascomeceiabeberaspalavrasaporuma.Minhaânsiaeratamanhaquesódepoisdaquartaouquintavezasfrasescomeçaramafazersentido.

“Kuroshquerido,

Osdiascorremlentosetristes.Asituaçãoquejánãoeradasmaisanimadoraspioroucoma

mortedaminhapriminha.Eladespencoudeumbarrancoenquantomeuirmãopastoreavaasovelhas.

Euhaviaidoàscomprassemanaiscomminhatiaemeutioforaàaldeiavizinhanegociaravendadelã.

Õrash descuidou-se por um segundo. Foi o quanto bastou para acontecer a tragédia. A irmã dela

presenciouacenaedesdeentãonãoemiteumsom.A saúdedomeupai,quemal seagüentaempé

deteriorouaindamaiseoambientetambém.

Nãotemosparaondeir,masaquinãoépossívelcontinuar.Seformosparaumacidademaior,

corremossérioperigodesermosdenunciadoseemlocaismenoresnãohátrabalhonememprego.Por

issoÕrashoutrodiacogitoudeixaroIrã.Comoosserviçosdepassaporteestãosuspensos,eleteriaque

armar uma fuga. Soube que há gente escapando da convocação e das milícias radicais através da

fronteiracomaTurquia.Eleemeupaifazemplanosparaassimqueconseguirmosjuntarosuficiente.

Tudo issomedeixamuitoangustiada,masnãovejoalternativaparanossas vidas. Forado

paísÕrashpoderiaenviardinheiroparaeucuidardonossopaiemalgumpontoremotoondenãonos

possam encontrar. Ouço histórias de delações e execução dos que tentam fugir, fico arrepiada de

preocupação,emborasaibaquenãotemosescolha.

Esperoquecomvocêavidatenhasidoumpoucomaisgenerosae,apesardetudo,continuo

acreditandoquepoderemosnosverumdia.

Deixoaquiumbeijoafetuosodasempresua,

Zibã”.

Depois da décima leitura, guardei as folhas em estado de choque.

Pelaprimeiravezviadiantedemimumaportasemi-aberta.Amençãodapalavra“fuga”reverberavafeitoumeco.Elezuniaaomeuredorquenem

enxamedeabelhas.Apesardenãosaberquecaminhoseguir,nemaquemrecorrer,sentiqueaquelacartaselavaomeudestino.PartirdoIrãassumiaaformadeumapossibilidaderealaserconsiderada.Aindaeracedoparatomarumadecisãoconcreta,masaquelaidéiaabriaumafendanamuralhaerguida à minha volta. Até a falta de Zibã encolheu frente à luz que,inesperadamente,iluminouminhavida.Descobriquehaviaumuniversoláfora.Atraenteeaomesmotempopecaminoso,umatábuadesalvaçãoaqueeumeagarravanomeiodonaufrágio.

Osoljáseescondiapordetrásdasruínasquandoviofaroldocarro.EraParvizjuntocomumtio.Nosmeusdevaneioseuhaviameesquecidodetudoelevanteinumpulo.Malrepareiqueestávamosemoutroautomóvel.Sentei nobanco traseiro feitoumautômato, jantei na casados sogrosdeFarzane como um forasteiro dentro do meu corpo. Dormi pesado e, aodespertar, encontrei um outro ser no lugar de Kurosh. Este agora tinhacomoúnicoobjetivoafugadoIrã.

-Quecaraéessa?Parecequeviufantasma!–eraavozfamiliardeBãbakmetrazendodevoltaàrealidade.

Apesar de levá-lo na mais alta conta, nem a ele revelei o meusegredo.Nãoconteianinguém,mesmoporqueumasériedecircunstânciasviria atropelar meus planos. Farzane estava doente. Sem revelar nada ameus pais, para não preocupá-los à toa, ela e Parviz haviam sofrido umpequenoacidente.Paraevitarapolíciarodoviária,jáqueestavamsósenãoeram casados, pegaram uma estradinha de terra abandonada cheia deburacos cobertosporpedriscos.A certa altura, emumadescida íngreme,Parvizperdeuocontroledoautomóvelquesóparouaoatingirumarochametrosadiante.Apesardisso,conseguiramvoltarparaacasadospaisdele.Lá, comaconivênciadeumtiomaisnovo,esconderamo fatoparaevitardescobriremquetinhamficadosozinhoseestragaroclimaalegredafesta.Emcasa,sónosinteiramosdetudoquandoelacaiudoente,comumafebrealtaquenãocedia.Ummédicoex-colegadeNargesfoichamadoàspressas.

Sóentãoelaconfessouqueganharaumcorteprofundonacabeçamantidoocultopelohejabquenãousavanomomentodabatida.

Quando soube, Agho Jun olhou paramim de um jeito queme fezencolher de vergonha. Eu fora escalado para acompanhar minha irmã efalhei ao abandoná-la para ler em paz a carta de Zibã. Com a minhaimprudência tinha contribuído, ainda que indiretamente, para aqueledramaquepunhaafamíliainteiraemperigodiantedalei.

-Elaficaráboa–Bãbakcomentoucomigo.–Nãováacumularmaisestaamarguranopeito,fazmalàsaúdeenãoresolvenada.Ecitoupartedasura79:“OquequerdebomquetealcancevemdeAlá,oquequerdemauquetealcancevemdetimesmo”.

Obviamentenadadissoaliviavameusremorsos.Alémdoproblemapolicial,haviaoriscodemortesenãodebelassemainfecçãodaferidaquenãoforalogodesinfetada.

-Elaprecisadeantibióticos. –omédicoavisou.–Não tenhocomoconseguir, e se for a um hospital será pior, vão acabar descobrindo omotivoeaínemqueropensar...

- Minha filha pecou, mas não merece morrer! – minha mãe sedesesperava, procurando curar Farzane com suamagia culinária. Só queeles não surtiam efeito e ela delirava dia e noite. Narges talvez tivesseresolvido o problema, mas de novo encontrava-se longe. Aliás, já haviaalgumtempoquenãotínhamosnotíciasdela.

Shahin mostrou-se a mais prestativa, pois nem Agho Jun tinhacondiçõesdetomarprovidências.Numadascrises,FarzanedissequetemiaOmid.

-Vocêviucomoelemeolha?–elaperguntou,enquantoeuenxugavaosuordorostoesgotado.

-Quebobagem,Omidéumacriança!-Mastemunspensamentosestranhos.-Vocêéqueestácomidéiasesquisitas.–retruquei.

-Tenhomedodele.Porfavor,nãoodeixesozinhocomigo.Garantiquerespeitariaodesejodelae,nessemeiotempo,Bãbakdesapareceu.Quandoregressou,doisdiasdepois,trazianamaletadecouroumvidrodecomprimidos.Conseguiraomedicamentoqueestendeuparaum incrédulo Agho Jun com os olhos fixos na embalagem. E antes quefizessemqualquertipodepergunta,Bãbakseadiantou.-Aindatenhoalgunsconhecidosinfluentes...-Vocêsearriscou...–foitudooqueminhamãepôdebalbuciar.-Nãofoinadacomparadoaoquevocêstêmfeitopormim.–Bãbakrespondeu.Detodos,sóeuadivinhavaopreçoqueelehaviapago.Eaquilomedeixoumaisdeprimido.-Vocêsedesfezdelas?–perguntei,referindo-meàspeçasdexadrezincrustadasdediamantes.-Ora,nãosepreocupecomisso.-Vendeuasduas?–e,semaguardarresposta,corriparaamaleta,ignorando as advertências para que eu não pusesse as mãos ali. Virei oconteúdo sobre o tapete à procura das rainhas, que parameu desesperologicamentenãoestavammaislá.-Nãosobrounenhuma?–indagueiàbeiradaslágrimas.Euestavacomovidoe,aomesmotempo,revoltado.

- Sabe quanto custa uma única dose de antibiótico em tempos deguerraebloqueio?–eBãbaktentavaesconderamágoaperceptívelnasuavoz.NessemomentoeuodieioIraque,osEstadosUnidos,osaiatoláseos fundamentalistas.Acimade tudo,odiei amimmesmo,um imprestávelquecolocavaemriscoemachucavaaspessaosdequemmaisgostava. - Estas coisasmateriais não têm importância, haji. – ele disse,colocandoamãonomeuombrodaqueleseujeitopeculiarquesignificavaummeioabraço.–Oqueinteressaéquesuairmãvaificarboa.

De fato, Farzane acabou superando a infecção no limiar de umaseptcemia.Masademoraemsermedicadadeixounocourocabeludoumaimensacicatrizquelatejavaquandoatemperaturavariava.Aquilodeixou-aprostrada.SejáhaviaabdicadodotrabalhonoBazar,agoraficavaandandodeumladoparaoutrocomobaratatonta.Irritava-seàtoaetinhaamaiorbirradeOmid.

- Esse menino realmente me dá calafrios. – disse, mostrando aparede ao lado da cama dele enfeitada com um retrato de Khomeini e anovabandeirado Irã.Nasbordasdas listasvermelhaeverdeo leão comespada forasubstituídopelosdizeres"Deuségrande,maiorque todasascoisas".Afrase"AllahoAkbar"érepetida11vezesemcadafaixa.Asomadelas marca o 22º dia do mês Bahmân, quando a Revolução de 1979derrubou o regime no 11º mês do calendário iraniano. Isso tudo ia mepassandopela cabeça ao observar aquele símbolodapátria reformulado,quandofuicortadopelaminhairmã.

-Elenãobrincaláfora,nemseintegracomasoutrascrianças.Destaveztivequeconcordar,entreoutrascoisasporqueeledeixara

dedisputarpartidasdexadrezcomBãbak.Pior,impediaseuirmãomenorde jogar.Notei o ponto a que chegaraquandoo flagrei virandono lixo oúltimo tabuleiro que restava na casa. Ao questioná-lo, eleme respondeusempestanejar:

-QualquertipodejogodeveserbanidosobosensinamentosdoIslã.-Comoousafalarassimcomigo?-“QuemobedeceaoMensageiro,comefeito,obedeceaAlá”.Euduvidavameusprópriosouvidos,maseleprosseguiu.- “De Alá é a soberania dos céus e da terra. Ele dá a vida e dá a

morte.Enãotendes,alémdeAlá,nemprotetornemsocorredor”.A princípio dei risada, mas vendo a seriedade do rostinho dele,

fiqueipreocupado.FuifalarcomAghoJun.-Deixe o garoto em paz. Ele vai crescer um bommuçulmano que

rezaascincovezesaodia.Perdi as palavras diante daquela indireta, mas passei a observar

Omiddeperto.Elehaviasidocooptadopelosfanáticosefuncionavacomoum pequeno espião no nosso bairro. Afinal, quem desconfiaria de umasimples criança? Eu deveria ter tomado uma atitude, insistido comAghoJun, conversado com Shahin. Mas preferi ficar calado, ruminando meusproblemas.Quandodeipormim,era tardedemais.ÀsvésperasdoNoruzseguinte,maisumdurogolpeatingiuafamília.

- Viemos buscar Bãbak. – um soldado da polícia política notóriapelos métodos truculentos, gritou à porta no instante em que nossentávamos em volta da toalha para jantar. Atrás deles estavam maisquatroou cincomilicianosdaAmaken.Nanoitepouco iluminadanão foipossívelcontá-losdireito.

AghoJunempalideceu,minhamãeficoumudaeFarzanecomeçouatremer.Sempensar, levanteideumpuloemecoloqueià frentedorapazcujabarbaralatraíasuapoucaidade.

-Achoqueestáenganado,aquinãotemninguémcomessenome.Comumviolentoempurrãoeleavançouemdireçãoàminhafamília.

Ia dizer qualquer coisa,mas fui interrompido pelo próprio Bãbak que sepôsdepésemnosdarqualquerchancedeimpedirogesto.

- Souohomemqueprocuram. – ele falou, encarandoo rapaz. –Oquedesejamdemim?

-Vocêmesegue.-Paraonde,possosaber?-Caleaboca!Nãotenhoquelhedarsatisfações.NissoAghoJun,recomposto,tambémselevantara.Aliás,todosnós

fazíamosumcírculoemvoltadeBãbaktentandoprotegê-lo.- Você é bem-vindo àminhamodestamoradia,mas não temmeu

consentimentoparalevarninguémdaqui!Sem hesitação, o rapaz deu uma pancada em Agho Jun com a

coronha da arma. Ele caiu no chão com os lábios rachados eminhamãeajoelhou-se ao lado para estancar o sangue. E antes que mais violênciafosse desencadeada, Bãbak acenou para o soldado e saiu pela porta dafrente.Entãolançou-nosumolharquemisturavatantacoisa juntaqueeujamaisseriacapazdedescrever.

Nomeiodotumultoviamaletasurradaaoladodaalmofada.Levadopelomesmo impulso que tive ao enfrentar amilícia, corri para fora paraentregá-la aodono.Bãbakestavaprestes a entrarno jipe estacionadonomeio fio. Ele parou, eu me aproximei. O soldado também ficou nosobservando,semnadadizer.Bãbakentãomepuxoucontraopeitoedestavez me deu um abraço completo. Depois entrou no veículo e partiu,deixando-mesozinhocomsuavelhamalanacalçada.

XIIINãofoidifícildescobriroautordadenúncia.Omidnãofezomenor

esforçoparaescondê-la,eviasuaatitudecomoumatodeheroísmo.Paraele,entregarumsimpatizantedoregimePahlevi,queusufruiunopassadodas benesses do governo, significava ganhar pontos junto aos seusorientadores religiosos. O menino estava orgulhoso e, ao mesmo tempo,indiferenteàsinadopobrehomem.

- Como teve o desplante de fazer uma barbaridade dessas? –pergunteicompletamentetranstornado.

- Você não tem nada que me cobrar. – ele me encarou como umadulto e disparou. – Se fosse um bom muçulmano saberia das suasobrigações...

-Oquequerdizercomisso,seupirralho?-Sabemuitobemoqueestoudizendo!Eleparoue, semnenhumvacilodiantedemim,que tinhaquaseo

dobro do tamanho dele, me acusou de evitar as milícias, a guerra e o

islamismo.Daímudoudetom,buscandoumaconciliaçãoqueeunãoestavadisposto a aceitar. Não depois de entregar para a execução certa umhomemquenunca fizeramal aninguéme ainda salvaraminhavidaedaminhairmã.

-AláéoMisericordiador.Se implorarporsocorroesearrependerEleoperdoará.

-Vocêéquedevepedirperdão!Traiunãosóumamigo,mastodaanossafamília!

Primeiroosolhosdeleinjetaram-sederaiva.DepoisabrandarameOmidsaiubalançandoacabeça.Antesdesumiremdireçãoàescada,virou-separamimedisse.

-Achomelhorpensarduasvezesantesdedizerblasfêmias.Estoudeolhoemvocê,nosseuslivrosproibidosenasuairmã...

Euiaresponderqualquercoisa,maselemecortoudenovo.-Tambémsoubedaquelaimpuradequemcostumarecebercartas...

–edesapareceudomeucampodevisão.Nãoprecisodizeroquantoaquilotudomeabalou.Opequenoespião

estavaapardecadadetalhedasnossasvidas.Enãodemonstravaumpingode remorsopelo que fizera.Nemparecia quehá algunsmeses apenas sedivertia e ria sem parar ao lado de Bãbak. Eu tinha ouvido falar do quefaziamcomascriançasnasmadrassas,massóagoratomavaconsciênciadagravidade do problema. Vínhamos alimentando uma cobra no seio dafamília. Resolvi conversar com Agho Jun, a quem relatei o diálogo quetravaracomOmid.

Ele não pareceu surpreso, apenas mais triste do que nos últimosmeses. Refletiu e disse que Shahin e os filhos não podiam continuarmorando conosco. Só que antes de comunicar isso à irmã, soube delaprópriaqueelesiriamembora.

-AceiteiopedidodecasamentodoprofessordeOmid.Estranheiavozpesadaesembrilho,maslogoveioaexplicação.

-Sereiasegundaesposa...–edesatounumprantolongo,nosbraçosdeAghoJun.

Nessemomentotivemaispenadeledoquedela.Imagineioquantoera duro para Agho Jun ver sua família desmantelar-se sem que nadapudessefazer.Acostumadoatomararédeadasnossasvidas,agoraeleseconverteranummeroespectador,passivoesempoderdedecisão.Demãosatadas,eraincapazdeinterferirnosenredos.Porissoaidéiadafugasaídada carta de Zibã refluiu para uma parte oculta do meu cérebro ondepermaneceriaemestadolatenteporalgumtempo.

Emduas semanas Shahin partiu, levando consigo as crianças e ospoucos pertences. Agho Jun lamentava-se de não dar a ela sequer umaquantiamínimadefundospróprios,oqueatornariamenosvulnerávelaoscaprichosdonovomarido.No íntimo, todosnós sabíamosqueela teriaafunçãodemera empregadadoméstica coma carga extra de satisfazer osdesejossexuaisdoesposo.Nossapreocupaçãoaumentouquandovimosopretendente,ummuládebarbaevesteslongas,comumturbantequenãotiravadacabeça.Bemmaisvelhodoqueela,eraumdoslídereslocaisdoSepahePasdaranetinhaidéiasultraconservadorasarespeitodopapeldamulhernasociedade iraniana. Iriammorarpertodamesquitadaqualeleeraomuezim.

DeploreioinfortúniodeShahin,masnãotivemosmuitotempoparaissodevidoàproximidadedasbodasdeFarzane.Acerimôniafoimarcadapara dali a dois meses, quando Parviz estivesse dispensado do exército.Minha mãe sumiu dentro da cozinha, agora precisava usar de todo seutalento criando iguarias especiaispara servir comoumcurativo tamanhofamília. Estávamos machucados por dentro, inclusive Xeque-mate. JáabatidoesemapetitedepoisqueBãbakse foi,caíraemdepressãoapósapartidadascriançascomquemcostumavabrincar.

Coma iminência da festa, por quatro semanas consecutivas nossacasaentrounumaverdadeiraebulição.Comonãohaviadinheiroextraem

caixa,precisávamosfazernósmesmostudoqueosfestejosdemandavam.Adecoração ficou por minha conta e não passava umminuto sem que eulamentasseaausênciadeBãbak,cujashabilidadesetalentoteriamsidodegrandevalia.

OutroladobomdasnúpciaseraqueNargeschegariaapósquaseumanofora.Pediraumalicençaparaassistiraomatrimôniodairmãeeumaisdoquetodosansiavaporrevê-laedesabafar.

Uma semana antes da data marcada acordei com uma sensaçãoestranha. Havia recuperado meu quarto depois da partida de Shahin eagora não precisava dividir espaço comminha irmãmais nova. Levanteisem fazer barulho e deduzi que Agho Jun já fazia suas preces matinais.Desciparaprepararocháemecanicamentepegueiacomidadocachorroqueme acompanhava no café damanhã enquanto eu lia o jornal. Abri aporta e chamei-o pelo nome. Distraído, coloquei a vasilha próxima aocanteirodeflores.Senteinaalmofadadasala,aguardandoXeque-mate,queseacomodavaaomeuladoapósdevorarsuaprimeirarefeiçãododia.

Os minutos foram passando e só notei que ele não viera quandodobrei o jornal inteiramente lido. Sem me preocupar, caminhei até osfundos assoviandopara ele.Nada aconteceu. Por um instante pensei quetivesseescapado.

“Deveter idoatrásdosmeninos”,cogitei,quandoviocorpanzildobichodeitadonofundodoquintal.Aproximei-meepasseiamãosobreseupelomacio.Elecontinuouinerte.Xeque-mateestavamorto.Minhaspernasbambearam e eu soltei um soluço baixinho, testemunho das sucessivasdesgraçasquetinhavivido.

NomesmodiaenterramosXeque-matenocanteirodastulipasqueeste ano não preparamos por falta de dinheiro para comprar os bulbos.Tivemos que cavar um buraco profundo, pois o cachorro parecia tercrescido após a morte. Uma tristeza diáfana caiu sobre nossa casa emantecipaçãodefesta.Aquiloeramaupresságio.

Narges chegoudemanhãzinha, às vésperasdo casamento.Amoçaque quase um ano antes saíra de Shiraz agora regressava precocementeenvelhecida. Sem ver os cabelos debaixo do chador, eu adivinhava osnumerosos fios brancos. Os contornos dos olhos ganharam pequenossulcosquemorriampelaslateraisdasfacesequandooslábiosressequidosabriam-senumsorrisoforçadopercebia-seafaltadeumdente.

Malconversamos,ospreparativosnostomavamcadahoradodiaedas noites sem dormir para deixar tudo pronto para a cerimônia. Nãohaveria grandes festejos, apenas os pais e irmãos de Parviz estariampresentes,alémdeRoya,airmãmaisnovadaminhamãequemoravaemIspahan. Shahindeclinoudo convite, elanãoquerianos constranger semnecessidade.Assimmesmoatrabalheiraeraintensa,nacozinhaminhamãerecebiaasbandasdecarneiro,frangos,pãesetodososingredientesqueiaprocessandocomoauxíliodeNargesedeFarzane.

A correria tinha um lado bom. Deixava-nos ocupados e livres dospensamentos sobre Bãbak, queAgho Jun não conseguiu localizar atravésdosamigosdoBazarcombonscontatosnamilícia.Eudesconfiavaqueelessabiamoqueforafeitodonossohóspede,maspreferiramsecalarparanãoaborrecerAghoJun.Oparadeirodaqueles identificadoscomadinastiadoXáerabastanteconhecidoedivulgadopelosmeiosdecomunicação.Paramim,nãopairavadúvidaalguma.Bãbakforaexecutadoapóslongashorasdetortura.Eunãomehabituaraàausêncianemdele,nemdeXeque-mate,cujoslatidosaindaescutavanomeiodanoite.Amalasurradaficounomeuquarto, edentrodela, parameuassombro, achei a segunda rainha comapedraincrustada.Elementiraparamimaodizerquevenderaasduasparacomprarosantibióticos.Revireiapeçadexadrezentreosdedoscomoseaindaouvisseoecodasexplicaçõesdoseudono.“Antigamenteestaseramovizir,queemfarsisedizfersan”,Bãbakmecontaraquandorevelouseutesouro.Comreverência,guardei-anofundofalsodeumagaveta.Pretendiausá-la para dar um funeral digno ao amigo solidário se nos devolvessem

seucorpo.Faltavamdoisdiasparaasbodasquandorecebemosumtelefonema

noBazar.Agho Jun fechouasportas e corremospara casa. Lá, soubemosqueospaisdeParviztelefonaramavisandosobreamoredele.Levaraumtironatestaemplenofront.

Para surpresa de todos, Farzane não se desesperou comoprevíamos. Rearranjou os comes e bebes do casamento para oferecer àsvisitasdepêsames.Trocouasvestescoloridaspelohejabequeimouotrajequeusarianacerimôniareligiosa.

-EstouapreensivacomocomportamentodeFarzane–NargesmeconfidenciouduassemanasapósamortedeParviz.–Elaestáguardandoopesareissonãofazbem.

Nargestinhaquereassumirseuposto,masadiavaapartidacomosetemessepelopior.Nãopodiapreverquejamaisretornariaàguerra.Équena manhã seguinte à nossa conversa, acordamos para descobrir queFarzanetinhasumido.Foiemboradeixandoumbilheteseconoqualdizianãotermaisnadaafazernacidade.Nãoexplicouasrazões,nemparaondepretendia ir.Apenasdesapareceuna caladadanoite, levando a roupadocorpoeodinheirododote.

AghoJundenovomoveucéuseterraparadescobriroparadeirodafilha.NargesmobilizouseupequenoexércitodeconhecidoseatéShahinsepropôs a cooperar através dos amigos influentes do marido, mas nãoconseguimos notícia alguma. Agho Jun e minha mãe definharam comoromãs colhidas ainda verdes e Narges permaneceu em casa para darsuporteemocional.Afamília,quehápoucotransbordavadegente,agorasevia reduzida a quatro membros que se locomoviam como vultos de simesmos.Nema comida interessavamais àminhamãe,queabandonouacozinha agora comandada por Nerges, com minha ajuda na compra dosingredientes.

Sem a profusão de bocas a alimentar, fomos conseguindo juntar

algumdinheiro.OnoivodeNargesacaboudispensadodoexércitoapósumferimentoque lhecustouumadasvistas.Oclimapesavadentroe foradecasa,atelevisãoeosjornaisiamdesfiandoascatástrofesemeucírculodeamizadesfoiencolhendonaexatamedidaemqueseenchiamoscemitérioseospátiosdasmesquitas.A cadamanhãeu temia receber a convocação,era dos únicos jovens nas redondezas que não fora chamado nem sealistarapor vontadeprópria. Embora eu andasse feitoum fantasma, sematrair a atenção sobre mim, esta atitude, tida como inadmissível,desencadeou uma série de pressões. Dois guardas da Revoluçãoapareceram no Bazar sem qualquer aviso. Pensei que fossemme levar àforça,masemvezdissodirigiram-seaAghoJun.

-Vocêtemquefecharaloja!–disseoprimeiro.-Ouconfiscaremostodososseusprodutos!–concluiuosegundo.Observeiqueamboserammaisnovosdoqueeu,etinhamnosolhos

o mesmo brilho que vira em Behruz. A minha vontade era enfrentá-los,discutir,masAghoJunmefezcalarefoitercomeles.

-Porquê?-Porqueestamosmandando.- E os outros? O que fiz de errado? – Agho Jun estava à beira do

desespero.-Aindapergunta?-Jáseesqueceudequeabrigousobseutetoumprocuradopelalei?De trás do balcão eu esquadrinhava a feição dos milicianos para

tentaradivinharatéaondeseriamcapazesdeir.Umdelesretiroudobolsoumafolhadepapele,lendonelaumnome,perguntou.

-QuerteromesmofimdeBãbak?Semconseguirmeconter,deiumsalto.-Oquefizeramcomele?OndeestáBãbak?-Caleaboca–avisouosoldado,guardandodevoltaopapelnobolso

dafarda.

Agho Jun tentou senerar os ânimos. Seria pior irritar osrevolucionários.

-Porfavor,nãovamosbrigar.Escolhamoquequiseremefiquemosempaz,queAláoMisericordiosonosproteja.

Nessemeiotempo,umapequenamultidãojuntara-seànossavolta.Umdosvendedoresvizinhosinterveio.

-Deixeohomemempaz,eleéumcrentequesegueospreceitosdoIslã,dissosoutestemunha.

Outros também vieram defender Agho Jun, fazendo os soldadosrecuarememseu intentode fechara loja.Aatitudedoscomercianteseraditada mais por sobrevivência do que solidariedade. Sabiam que seabrissemaquelabrecha,qualquerumpoderiaditarregraseprejudicarosnegóciosjádemalapior.Osguardasentãosaíramavisandoquevoltariam.

Defato,elesretornariaminúmerasvezes,infernizandonossavidaeassustandotodomundo.Portemerrepresálias,osvelhoscompanheirosseafastarameatéosclientesfiéispassaramaevitarnossobalcão,queviviaàsmoscas.Sódaísoubeque,emboranuncativesseseenvolvidoempolítica,Agho Jun fora associado à Rasta-Khiz, um partido da época do Xá quereuniaprofissionaisdaárea.Elenuncamencionaraaquiloporqueeraalgoabsolutamente normal. Na verdade, o Bazar constituía um sistemaorganizado, de perfil conservador, agrupado em corporações quecontrolam quase três quartos do comércio interno. Não havia nada deerradonisso.Sempremanteveestreitasligaçõescomosprodutoresruraise também com o clero e os organismos do governo. Não é à toa queministros, juízeseaiatolássãofilhosdebazaris.AghoJunnãoparticipavadasreuniõesdosetor,maslembrodetervistoalgunsboletinsanuaisquechegavamemcasaantesdaRevolução.

-Elesachamqueestamosnadandoemdinheiro,quesomospodresde ricos. – Agho Jun disse, explicando a ação das milícias que não nosdariammaissossego.

Como prometido, eles apareciam toda semana para aterrorizar.Tentavamnos provocar de todas asmaneiras,masAgho Junmantinha osangue-frioeconseguiupormesesafioevitarqualquertipodebriga.

Agora eu olhava para os lados com desconfiança. Assisti àtransformaçãodocomportamentodaspessoasànossavolta.Danoiteparaodiaconvertiam-seemfanáticosapoiadoresdogoverno,deixavamcrescerabarbaemudavamoestilodevida.Pregavamaobediênciaincondicionalànova interpretação dada aos mandamentos do Islã e não admitiamdiscordância.Apalavra“liberdade”haviasidoapagadadosdicionáriosdomeupaís.

Nãoera fácil trabalharnaquelasituaçãoqueseagravavadia adia.Emplenoinverno,chegaramperguntandopormeupaiqueestavadecamapor conta de uma gripe. Expliquei isso ao líder do grupo. Tentei usar amaiormoderação possível, pois prometera a Agho Jun jamais entrar emconfrontodireto.

-Avise-oqueelenãopassadeumporcocapitalista!Se tivessem me dado um soco, teria sido mil vezes preferível. A

mençãodaquelenomeimundoatéparaumnãopraticantecomoeuerairlonge demais. Num átimo esqueci as promessas feitas a Agho Jun, osperigosquecorria,opoderdapolíciaeminhacondiçãopessoaldelicada.Partiparacimadelesetudooqueme lembroédeacordar,algumtempodepois,comaáguafriamecongelandoatéosossos.

Abri os olhos e tentei me mexer. Cada centímetro do meu corpodoía,eracomosetivessesidoatropelado.Aospoucosfuimerecompondo,atéconseguirsentarnochãoúmido.Entãopercebiqueestavaemumacela.Aomeu lado um policial segurava o balde cujo conteúdo usara paramedespertar.

-Comosechama?Tentei responder, mas minha língua inchara dentro da boca,

impedindoa fala.Eupodiaouvirarespiraçãodo inquisidoreopulsardo

meucoração.-Vocêésurdo?Experimentei um breve tremor, será que ele sabia da minha

encenaçãoaoladodeBãbak,quandofomosprocurarBehruz?Logoviqueumacoisanadatinhaavercomaoutra.Quissaberháquantotempoestavaali.Opolicialsoltouumarisada.

-Quemfazasperguntasaquisoueu.Ele deu alguns passos rodeando-me e tornou a perguntar meu

nome, endereço, a profissão do meu pai e quanto ganhávamos na loja.Respondiqueelessabiamondeeumoravaetinhamtodasasinformações,poisnuncasecansavamdenosvisitarnoBazar.

- Não banque o esperto comigo. Sabemos das suas atividadessubversivas.

-Eunãotenhonenhumaatividadepolítica,nãopertençoanenhumpartido.

-NemaoRasta-Khiz?-Jádissequenãosounemjamaisfuifiliadoaqualquerorganização

política.-Emqueescolavocêestuda?–eleinsistiu.-Jámeformeinocolegial.-Efreqüentaauniversidade?Fizquenãocomacabeça.- Claro! – ele disse com desdém - Lá dentro só aceitam bons

muçulmanosenãogentedasualaia!-Eusouumbommuçulmano.-Sefossemesmo,nãoficariaalimentandoidéiaspolíticascontrárias

aoregime.-Nãosousubversivo.EuapóioaRevolução.Duvidandodasminhaspalavras,osoldadoagachou-seaomeulado

emeencarounosolhos.

-Vocêquerverseupaidenovo?Eu não sabia o que responder e temi pela vida de Agho Jun.

Qualquer coisa que falasse poderia ser usada contra ele. Resolvipermanecermudo.

-Seteimaremmantersilêncionuncamaisvaiversuafamília...–osoldado levantou-se, apagou o cigarro na sola da bota e ordenou que euficassedepé.

-Fale-mesobreaquelehomemquesustentaram...Comosechamavamesmo?Bãbak,nãoé?

Eusóabaixeiacabeça,doíalembrarnossoamigoeimaginaroqueeledeveterpassadonasmãosdapolíciapolítica.

-Dequemfoiaidéiadeacolherumapessoadaquelas?Pressenti que ele estava buscando um pretexto para incriminar

AghoJun.Queriamconfiscaralojadele,masprecisavamdeumadesculpa,nem que fosse pura invenção. Decidi manter a boca fechada, dos meuslábiosnãosairiaumapalavraquepudessemachucarmeupai.Eujáhaviaferidomuitagente,agoraeraaminhavezdepagaraconta.

-Sabequepodemosmantervocêaqui,semjulgamento,peloprazoquebementendermos,nãosabe?–e saiubatendoaportademetal, comumbarulhosecoquepermaneceriaguardadonamemóriaparaorestodaminhavida.

Nada mais fazia sentido. Permaneci isolado por três dias. Nãoconseguiacomeramisturaquetraziamnahoradoalmoçoedojantar.Nãoera uma greve de fome e sim falta de vontade de continuar lutando. Sóbebiaáguaetomavaumcaldogordurosocomsaudadedacomidadaminhamãe. Passei o tempo todo numa espécie de limbo, em uma zona semi-consciente que me fazia voar para longe dali. Recordei os últimosacontecimentos numa ordem confusa,misturando as invasões na loja doBazaràmortedomeucunhado,dachegadadeNargesàprisãodeBãbak,do desastre de Farzane aos meus devaneios sobre Zibã em Pasárgada.

PenseiemBehruzenairmãdele,nosestudantesqueestavamnafrentedebatalha e nos que fugiam das milícias. Pensei nos fanáticos e nosdescrentes, nos revolucionários e nos que se opunham à rigidez da novaordem.NomeiodetudooquemaismecomoveufoialembrançadeXeque-mate com seu doce olhar canino, o focinho úmido me reconhecendo naescuridãodanoite.Nãovierammaisme interrogareao cabodo terceirodiadisseramqueeuestavalivre.Simplesassim,semmaisnemmenos.

Àsaída,opolicialdeplantãomefezassinarunspapéiscujoteoracusto fui capaz de ler devido aomeu estado físico. Estava escrito que eujamaispoderiatirarcartademotorista,nemseroproprietáriodequalquerimóvel. Não permitiam que trabalhasse em lugares públicos e meordenavamacomparecertodomêsàdelegaciaparareportartodasminhasatividades.

- Se for visto envolvido em qualquer manifestação política, seescutarmos um pio seu, não haverá uma segunda chance. – ele avisou,recolhendoodocumentoassinado.

Quandosaíparaarua,tivequetaparosolhoscomasmãos.Apesardofrio,aluzdosoldeinvernoiluminavaacidadeinteira.Naoutracalçada,distinguiuma figurahumanaque tentei identificar.EraAgho Jun,quemeaguardavacomumsorrisoacanhadoemãostrêmulas.

Controlando o ímpeto de correr, fui caminhando devagar até ele,queentãomeapertoucomosenuncamaisfossemelargar.

-Vamosparacasa...–esaímosdemãosdadassemolharparatrás.

XIVOs três dias que passei na prisão tiveram um efeito psicológico

avassalador na minha família. Não se convenciam de que não sofreratorturafísica.Pormaisqueexplicasse,nãoengoliamofatodequeosroxosemtornodosmeusolhosepelocorpoforamresultadodabriga,oumelhor,

da surra que levei na loja do Bazar quando revidei o xingamento contraAghoJun.Nãopedirampararepetiropalavrão,intuindodoquesetratava.Para nós, muçulmanos, nada é mais ofensivo do que xingar alguém de“porco”.

Por conta do episódio não me deixavam por os pés fora de casa.Minha mãe me empurrava comida goela abaixo acompanhada de umaenxurradadepalavras.Elagarantiaquenãodeixariamemachucaremequecuidaria de mim, me sustentando pelo resto da vida, se necessário. Eupassavaodia estiradona cama cantarolandomúsicasdosBeatles já que,pormedidadesegurança,AghoJundestruírameutoca-discos.Eletambémmandarajogarforatodososimpressos,fotografiasourevistasdeconteúdoocidental, além das calças jeans e outros objetos que pudessem meincriminar.

Éramos suspeitos em potencial, não podíamos correr riscosdesnecessários.Comoelenãosabiadoburacodebaixodacamanoquartodasminhasirmãs,nãotocounoslivrosescondidos,eNargesguarodunossosegredo.ElaagoraajudavameupainoBazar.Tinhamquereaveros50miltomans que Agho Jun pagara parame tirar da cadeia. Além do dinheiro,levaram uma boa quantidade de mercadorias, só tapetes forammais detrinta. Eu achava aquilo uma grande injustiça, mas não havia a quemreclamar,nofinalaindatínhamosqueagradecerpornãoteremfechadoalojaemdefinitivo.

Comtempodesobra,semqualquertipodeobrigaçãoemesentindouminútil,eucaminhavapelosparques,ruaseavenidasatécansarecairdeexaustãoànoite.Sobcensura,osjornais,rádioetelevisãodavamsempreasmesmas notícias a resepito da guerra, da revolução, dos mártires e dostraidores – estes, exemplarmente executados. Eu procurava esquecerFarzane e Bãbak, ao mesmo tempo em que tentava apagar a figura deBehruz dos meus pensamentos. Tudo corria de forma monótona até euatenderumtelefonemanomeiodecertamanhã.Estavasozinhoemcasae

comeceiatremerquandoouvidooutroladodalinhaavozdeZibã.-Soueu,Kurosh...Osilêncioqueseseguiuerasintomáticodaquantidadedepalavrase

idéiasqueeuqueria,masnãoeracapazdeformular.-Estámeescutando?Com esforço articulei qualquer frase num tom de adolescente

mudandodevoz.-EstouemShiraz...–elafalou.–Precisovervocêcomurgência...-Aconteceu...algumacoisa?–gaguejeicomoAghoJunquandoficava

nervoso.Agora foi a vez dela permanecer muda, o que atiçou a minha

curiosidade. Marcamos um encontro às duas da tarde no mausoléu deSaadi,queacreditávamossermaissegurodevidoàvisitaçãoconstante.

Desligueiapreensivoefiqueiconsultandoorelógio.Minhavontadeera quebrar o vidro e adiantar os ponteiros. Só então lembrei daminhasituaçãoinusitadadeprisioneirodomiciliarporimposiçãodafamília.Nãopoderiasumirdecasa,acabariamatandomeuspaisdeaflição.DeixeiumbilheteparaminhamãeefuiaoBazarfalarcomNarges.

Pela minha expressão, ela adivinhou do que se tratava. Por sorteAgho Jun tinha ido buscar mercadorias para repor o estoque desfalcadopelopagamentodomeu“resgate”enãoregressariaatéofinaldatarde.Eladissequeinventariaumadesculpaconvincente,efuiaoencontroquetantodesejavaeaomesmotempomeamedrontava.

Apé,cruzeiacidadede lesteaoeste,atéchegaràavenidaBustân.Como tinha três horas de folga, economizei o dinheiro da passagem queNargesmederaparaavolta.Desconfiado,euprestavaatençãonaspessoasaomeuredor,achandoqueescutavamabatidasdomeucoraçãoacelerado.Tambémtemiaquelessemmeuspensamentosoumereconhecessem.Nãoraro tinha pesadelos em que era arrastado de volta à prisão sob o olhardesesperadodaminhaamada.Tãoabsortoestavanasminhasalucinações,

quenempercebiserdelaasilhuetafemininasentadanobancodojardim.-Nãomereconhece?Avozmudaradetimbre,pareciamaisadultaemadura.Aproximei-

medevagarparaapreciarorostoemolduradopelochadorescuroeparei.OsaresdamontanhatinhamfeitobemaZibã,delineandomelhorabocadelábiosespessoscomoumaflorprestesadesabrochar.Sóosolhospareciammaisfundos,emborasoltassemfaíscasluminosasquandomeviram.

-Comovocêestálinda...–aliseiabarbaquetinhadeixadocrescerefaleimaisparamimdoqueparaela.–Quasetinhameesquecidodoquantoébonita...

Um sorriso franco, de dentes alvos abriu-se para logo fechar numrepuxode tristeza. Fezmençãopara eume sentar ao seu lado no banco.Não nos tocamos, mas sentir de novo o perfume dela já era suficiente.Baixinho,quasenomeuouvido,eladisse.

-Meupaimorreu,Kurosh...Eufiqueisemsaberoquefalar,elacontinuou:-Talveztenhasidomelhorassim,elenãoagüentavamaisotipode

vidaqueéramosobrigadosalevar...Sóentãolembreidafamíliadelaepergunteipeloirmão.-Õrashestáaqui,emumrefúgioseguro.Zibãolhouemvoltae,vendoquenãohaviapessoaspróximas,pegou

minhamão.Cerreiaspálpebrasparamelhorapreciaraquelecontato,masomomentonãoerapropícioaromantismos.

-Elevaiembora...-VaisemudardeShiraz?–indaguei.-Não.ElevaipartirdoIrã.Vaifugirdopaís...-Issoémuitoperigoso...–foioquemeocorreucomentar,paralogo

mesentirumcompletoidiota.-Eusei.–elaretrucou.–Masnãoháoutrasopçõesparagentecomo

nós.Pelomenosagora,comaguerraetodooresto.

- Concordo. – agoraminha voz saiu firme e semalterações. –Massaiba que para muitos muçulmanos a situação também não é dasmelhores...–econteiosúltimosacontecimentosdesdequehavíamosnosseparado.RelateisobreOmidesuadenúnciacontraBãbak,minhaprisão,achegada deNarges, amorte de Parviz e o sumiço de Farzane. Só pulei apartedadoençadela.Porumsentimentodeculpapersistente fiquei comvergonha de revelar a minha participação indireta no evento que quaseresultounamortedaminhairmã.

-PobreKurosh!Penseiqueapenasfamíliasiguaisànossasofressemasconseqüênciasdosextremismosreligiosos.

Zibãsoltouumsuspiroecomseusdedosfinosajeitoumeuscabelos.- A barba caiu bem em você... – e pude sentir o hálito fresco que

despertouemmimosdesejosmaisinconfessáveis.- Não imagina o quanto eu pensei em nós dois... – ela prosseguiu

avivandoofogoqueeunãoconseguiacontrolar.DesúbitoZibãlevantou-seedissequeestavacompressa.Noteique

tinhacrescido,estavaquasedaminhaaltura.Ocorpodela,queeutentavaenxergar através do tecido grosso do hejab, tornara-semais delgado emalgumaspartesearredondadoemoutras.Aspernaseramesguiascomoasdeumagarça,masosquadrishaviamseavolumadodeleve,dandoaosseuscontornos uma feminilidade até então ausente. Zibã se transformara emmulher,emboraaindaconservassetrejeitosdemenina.

Aosedespedir,elaroçouoslábioscontraosmeus,apóscertificar-sedequenãohaviagenteporperto.Segureiodesejodeapertá-lacontrameupeito, colar minha boca na dela e sentir a umidade da sua língua deencontroàminha.Forampensamentosquezuniramnumpiscardeolhos,quandodeipormimelaseafastaraatésumirdevista.

Emcasaninguémperguntounada,masconfidencieiaNargesoquesepassaranoencontro.Ela refletiuporuns instantese comosempremesurpreendeu.

-VocêpensoualgumavezemseguirospassosdeÕrash?Ela me pegou desprevenido e comecei a gaguejar. Na verdade,

tempos atrás eu cogitara na possibilidade de fugir, mas com todos oseventosenvolvendominhafamíliaeumesentiaacorrentadoaShirazcomoumcondenadoàprisãoperpétua.Aindanãoresolveraascontradiçõesqueaumentavam e me confundiam. Sempre amei minha cidade e meu país.AdoravaAghoJuneminhamãe,tinhaespecialdevoçãoporNarges.Nuncasoube direito que profissão escolher quando crescesse,mas isso nãomepreocupava, eu poderia ser qualquer coisa neste mundo. Não tinha umplanode vôo comoBehruz nemalimentava sonhos impossíveis,mas nãoduvidava de que alcançaria as nuvens se assim desejasse. Para tanto,bastaria escolher um percurso eme dedicar aos estudos com seriedade.Agoraqueviraraadulto,ascertezasesvaíramjuntocomasoportunidades,inexistentesnomeuIrãatacadodeforaedevorando-sepordentroemumsinistro ritual autofágico. Se antes o Alcorão servia de guia e consolo, anova ordem determinava que os preceitos islâmicos deveriam orientarcada um dos nossos passos. Religião e Estado confundiam-se em um sóórgão que ditava nos detalhes o cotidiano dos cidadãos. A sobrevivênciados que não se alinhavam com os ensinamentos de Maomé ou dos quebuscavamumaliberdadeindividualdescoladadoLivroSagradotornava-sepraticamenteimpossível.Eeu,queháanosvinhameafastandodasrezasedas mesquitas, estava entre os discordantes e os excluídos. Naquelemomento,concordavacomBãbak.Secometersuicídionaguerranãoeraarespostaparaminha faltadeperspectivas,a fugapassaraarepresentaraúnicasaída,sobretudodepoisqueeuentraraparaalistanegradaAmaken.

- Por que você não conversa com o irmão de Zibã? - Nargesperguntou,cortandoofiodasminhasreflexões.

-EAghoJun?-perguntei.-Eumeencarregodisso,Roshy,deixeestaparteporminhaconta...Após o diálogo comminha irmã, fui procurarÕrashpara saberos

pormenores dos planos. Ele não pareceu surpreso emme ver, acho queZibãintuíraminhapredisposiçãodeiremboraeorientou-oadartodasasinformaçõesnecessárias.Depossedelas,crieicoragemparaencararAghoJun,masnãofoiprecisousarmetadedela.

Nesse meio tempo recebemos a notícia da morte de Behruz nocampominado.A princípio eu senti apenas uma secura indescritível. Eracomo se estivesse no meio do deserto mais árido do planeta. Passei asemanaqueprecedeuo funeral anestesiadopordentro. Fazia tudo comoumautômato, sememoçãonemdesejos.Apaisagemperdeu as cores e ocotidianoadquiriuumatexturamonótona,comtonsqueiamdomarromaosépia. Às vésperas do enterro,minhamãeme obrigou a tomar umpratofundo de kufte sabzi, o caldo verde bem grosso, com aquelas deliciosasalmôndegasfeitascomumamassadearrozmisturadoalegumesecarnedecarneiromoída,quesempreadorei,masagoraacontragostoengolia.

-SeBãbakestivesseaqui,elediriaquenãoadiantavocêfingirquenão está sofrendo. – ela falou com doçura, passando a mão na minhacabeça,esquecidadequeeunãoeramaisseucaçulamimado.

Fecheiosolhospararegistaraquelegestodecarinhotãocomumnaminha infância, perdida junto com o passado feliz e despreocupado. Eledesaparecera assim como Behruz, meu melhor amigo de quem não tivetempodemedespedir.Naqueleexatominuto,todaatristezaeodesesperoque eu vinha armazenando escoaram como as águas de uma comportarebentada.Odesertoviroumareentãopercebiquenemsechorassetodososriosdomundoconseguiriaexpressaradorquedefatosentia.

Com o rosto vermelho e o nariz respingando, fui acompanhar osfuneraisdeBehruz.Opaidelenãojuntoudinheirosuficienteparasepultá-lonamesquitadeVakil,pertodoBazar,nemnadeNasiral-Molk.Tevequesecontentarcomumcemitériopúblico.Nocortejofúnebre,quandofizumesforço sobrehumano para carregar o esquife com seus restos mortaispelas ruas da cidade, vi que Agho Junme olhava diferente. Era como se

quisessegravarminhaimagemnamemória.Euaindanãomedavacontadeque no fundo ele estava, silenciosamente, despedindo-se de mim. Acatástrofedomeuamigodeinfância,queexplodiuemcentenasdepedaços,foi a gota d'água. Ele chegara à conclusão de que corria um riscoincalculáveldeperderofilhoseeucontinuasseemsoloiranianopormaistempo.

O lema “Deus é nosso objetivo; o Alcorão é nossa Constituição; oProfetaénossolíder;alutaénossocaminhoeamorteemnomedeDeusénossamaioraspiração”,ecoadoduranteo funeraldeBehruz, ilustravadeforma definitiva o perigo que eu corria em Shiraz. Minha breve prisãoapavorou-o de tal forma que ele abririamão de qualquer coisa paramemantervivo,mesmoamilharesdequilômetrosdedistância.Assim,quandomencionei a idéia deme juntar aÕrash na fuga desesperada, a perguntadeleteveumcaráterbastanteprático.

-Ondevamosarrumartodoessedinheiro?Enfieiamãonobolsoesaqueiapeçadexadrez.-Bãbak largou isto para trás... - eu disse em voz baixa. - Guardei

pensandoqueumdiausariaparadaraeleumenterrodigno...-Filho.–elegaguejavadenovo–nossoamigoestariafelizemajudar

você...AghoJunentãoexaminouarainhadeperto.- Vou levá-la para ser avaliada comodeve. – e saiu emdireção ao

Bazar,deixando-meentregueaosmeusprópriospensamentos.FoiquandoZibãligoudenovoparasaberasnovidades.Conteimeus

planos por alto. Combinamos de nos ver, pois temíamos que nossostelefonesestivessemgrampeados.Ninguémmaistinhasegurançaemfalaranãoserpessoalmente.Destavezfuiatéacasaemqueelaestavamorandocomoirmão,numbairrodeperiferia.Demoreiquaseumahoraparachegaredepoismeperdipelasruelasebecoshabitadosporpessoassimplesquemeolhavamdemodoestranho.Zibãmechamoupelonomeepudedenovo

versuafiguranovãodaporta.Elaabriuseusorrisofrancoefezumgestoparaqueeuentrasse.

Fingiquenãonoteiasparedesdescascadas,a iluminação fracaeoodor de gordura impregnado no chão. Tentei parecer o mais naturalpossível, apesar domeudesejo de correr com ela para longe dali.Minhaprincesazoroastramereciaumpalácioenãoumachoupana...

-Tudoissoéprovisório. -elacomentou, lendomeuspensamentos,comoeraseucostume.

MurmureiqualquerbesteiraereveleiapermissãodeAghoJunparaaminhafuga,seÕrashmeaceitassecomoparceirodeviagem.

Zibãpegouminhamãoelevou-aaoslábios.-Vousentirfaltadevocês.Trêmulo, dei-me conta de que talvez nuncamais a visse. O futuro

nãotinhaamenorgraçasemaperspectivadereencontrá-la.-Fiquetranqüilo,umdiaagenteserevê.-elagarantiucomosolhos

úmidos.Nissoaportaseabriucomumbaqueeo tiodelasurgiudiantede

nós. Era um homem encorpado, um poucomais jovem do que Agho Jun,comorostocurtidopelosoldasmontanhas.

Elemecumprimentoueantesqueeurespondesse,prosseguiu:- Minha sobrinha contou sobre sua intenção de partir junto com

Õrash.Servindo-sedocháquefumegavanosamovar,continuou.-Achoótimoeleterumacompanhianestaaventura...Levantou-se, veio parapertodemime quis saber se eu já tinha a

quantiadequeprecisava.-MeupaiestánoBazartentandovenderumobjetoparaconseguiro

dinheiro.-respondi.-Atéamanhãdevemosterumaresposta.Elerepuxouabarbacomoeuvinhafazendo.Paraamaioriadenós,

iranianos,barbaeraalgoinusitado,iríamosdemorarumlongotempopara

nosacostumarmosaela.- Tudo bem, mas isso não pode demorar. Os arranjos estão

adiantados.Euiaindagaromotivodapressa,maseleseadiantou:-Éprecisoaproveitaroinverno,quandoasfronteirasestãomenos

patrulhadas.-Temquelevarmuitaroupadefrio,émelhorvocêirsepreparando.

-Zibãfalou,comoumamãezelosa.Saíde ládeprimido.Eudeveriaestarcontentecomapossibilidade

concretadedarumrumoàminhavida,masaidéiademeafastardeZibã,talvez para sempre, tornava tudopesado e cinzento.Nema felicidadedeAgho Jun, mostrando a pilha de tomans obtida com a venda da peça deBãbak me animou. De qualquer jeito, minha família deu início aospreparativos. Embora fosse a menos conformada de todos, que selamuriavapelos cantos,minhamãe tratoudearmazenarumaquantidadedescomunaldealimentoscomosefizesseofarneldeumpelotãointeiro.

AghoJunestavaemcontatocomapessoaencarregadadenoslevarparaforadopaís.Porintermédiodele,escolheujuntocomotiodeÕrasharotadefugaqueseguiríamosentreasváriasexistentes.AfronteiracomoIraque estava fora de cogitação, devido à guerra. Poderíamos ir a leste,atravésdoPaquistãoouentãopormar,peloGolfoPérsicoatéoKuwaitouaArábiaSaudita.Paramim,quemoravaemShiraz,esteseriao lógico,masachamos por bem viajar ao norte em direção à Turquia, cujas baixastemperaturas no inverno diminuíam o policiamento ostensivo. A últimaparadaemterritórioiranianoseriaacidadedeRezaye,assimchamadaemhomenagemaRezaPahlevie convertidaemOrumiêdepoisdarevolução.DalicortaríamosacordilheiradoAlbrozparaalcançaropaísvizinho.

Essaprimeirapartedoroteiro,queincluíaviagemdeônibus,carro,avião e a cavalo na parte montanhosa, levaria cerca de oito a dez dias.Combinamos telefonar para um número "limpo" de um conhecido de

Narges, sobre quem não pairavam suspeitas de grampo, tão logopisássemos em solo turco e antes de seguirmos para Istambul, onde osdocumentos necessários para emigrar estariam à nossa espera. Nessaidade,emcondiçõesdeirparaaguerra,solicitarpassaporteaogovernoerapedirparaserpreso.De lápegaríamosumvôoparaMontreale,umavezem área canadense, pediríamos asilo político. Isso Agho Jun contou,tentandocontrolaronervosismo,visívelnagagueiraqueelenãoeracapazdesuperar.NargesencomendaranoBazarroupasdefrioebotaspesadasparaanevedonorte,ondeenfrentaríamosaté15grausnegativos.

Enquanto organizavam a minha ida, eu fingia que nada estavaacontecendoàminhavolta, emborautilizasseo tempovagoparaestudarmapase guiasqueNarges conseguira.Eu tinhapelomenos três semanaspara dizer adeus à minha família e à minha cidade. Foi quando Zibãapareceu em casa despencada das nuvens. Eu não sabia como agir, masNargesmeacalmou.

-Eucuidodamãe,váfalarcomamoça.Descientrecuriosoetensoe,aomerever,elaabriuumsorrisoque

logomorreunoscantosdoslábios.-Meuirmãofoiconvocado...–dissedesupetão.-Comoassim?–perguntei,tentandomerefazerdosusto.-Minhatialigoucontandoqueacartaestavanocorreiodaaldeiana

montanha.Eu puxei-a pela mão, fazendo-a sentar-se numa almofada. Ela

obedeceucomoumautômato,massemperderofiodameada.- Não sei como conseguem descobrir um endereço tão remoto! –

exclamou,paraacrescentar.-Eledevetersidodenunciado!-Masvocêmesmadissequeeleficavasemprecomasovelhas,longe

dosolhosdetodosdovilarejo.- Eu sei – ela disse, repuxando o chador. – Mas quando minha

priminha morreu, a polícia esteve na casa pra fazer perguntas e ele foi

obrigadoaaparecer.Ela fez uma pausa para relembrar um fato que teria gostado de

esquecer.-Doispoliciais falaramcomÕrash.Elesqueriamsaberdetalhesdo

acidente.Zibãdissequeseofereceraparadizerqueelaestavacomamenina

nahora,masoirmãonãopermitiu.-Foiumagrandebobagemdele...Euconcordei,emborativessegostadodogestodeÕrashprotegendo

minhaprincesa.Sóqueaqueleincidenteresultaranaconvocaçãodele,umpéssimosinal.

-Oquevãofazeragora?–perguntei.- Não sabemos. Minha tia disse que ele conseguiu fugir antes da

milíciachegar,masestamosaguardandonotícias.SuspireialiviadoaoconstatarqueaindapoderiaestarcomZibãpor

algumtempo,masdaliadoisdiaselemetelefonoupedindoquefossevê-la.Corri até lá como se tivesse asas nos pés e desta vez não me perdi noemaranhadoderuelasebecossemsaída.Quandodeipormim,jáentravapela portinhola em direção à sala que haviamudado desdeminha visitaanterior.O chão fora esfregado e ganhara almofadas coloridas.Haviaumtapete tapando um remendo no soalho e uma cortina rota. O ambientetornara-se pelo menos agradável. Balancei a cabeça de um lado para ooutro,nãohavianadaquemãosfemininashabilidosasnãoajeitassem.MasZibãcortouminhasreflexões.

-Vocêprecisairembora!–eladissenumfiapodevoz.-Eumalcheguei...–gaguejeifeitoAghoJun.-Não,nãodestacasa!–elaafastouochadorquecaírasobreatesta,

quaseencobrindoosolhos.–Temquesairdacidade,dopaís!Noteiotimbredepavorepedicalma.-Sente-secomigoecontetudooqueaconteceu.

FiqueientãosabendoqueÕrashfizeracontato.Refugiara-seemumacomunidadezoroastrapróximadeYazd,emumvilarejodenominadoCham.

- Você tem que ir encontrá-lo omais rápido possível, se for pegoserá executado no ato. – Zibã rematou, não esclarecendo se estava sereferindoamimouaoirmão.

No fundo, isso não importava tanto, pois na verdade nós doiscorríamos sério risco de vida caso caíssemos nas mãos do SepahePasdaran.Éramosproscritosnanossaprópriaterraeninguémpoderianossalvar.

ParteIV

FuganacordilheiraXVOladopositivodaminhapartidaiminentefoiquefaltoutempopara

pensarmos na separação. Os últimos preparativos não deixaram espaçoparanostalgianemarrependimentosprévios.ComaconvocaçãodeÕrash,em menos de uma semana eu embarcava no ônibus intermunicipal emdireçãoaYazd.Seriamaislógicopartirrumoaonorte,maseufaziaaqueledesvio de rota a pedido de Zibã. Levava comigo uma mochila de trêsandares,recheadacommudasderoupas,sapatoseprovisões.Aliás,comidaera o que não faltava e, se me perdesse por cem dias no deserto, nãomorreriadefome.Minhabagagemmalentrounocompartimentodemalasdoveículo,apoltronaerapequenaparaacomodarofarnelfeitoporminhamãe, que ainda costurou uma espécie de cinto de pano para eu levar odinheiropresoàcintura,dentrodacalça.

Despedi-medeZibãedeminhamãe,quesaiucorrendoparachorartrancadanoquarto consoladaporNarges, que aproveitouparaderramarlágrimas pelo noivo distante, combatendo na guerra contra o Iraque. Narodoviária,sobramosAghoJuneeu.Ambossabíamosoquantoseriaduraa

separação,mas evitávamos nos fitar de frente commedode que umdosdois,ouambos,desabassem.Nãoeraconvenientedarumshowempúblico,tínhamosquepassaraimpressãodequeeupartiaemviagemdeférias.AAmakenmantinhaolheirosaondemenossuspeitávamoseaqueleera,pormotivosóbvios,umlocalbastantevisado.Porissoescolhemosumhoráriodefinaldetarde,chegandoaodestinofinaljánoitefechada.

TenteipensaremqualquercoisaaoseguraramãodeAghoJun,quesempre evitava explicitar seu afeto. Desta vez ele não se reprimiu, meapertandonumabraçoparecidocomaqueledequandoeusaídaprisão.

-Nósestamosotimistas,filho.Tratedesecuidar.No rosto vincado dava para notar asmarcas de seu sofrimento. A

barbaqueeleadotaraparaagradaràsmilíciaseselivrardeencrencasnoBazar davam-lhe uma expressão estranhamente séria. Agora parecia defatoumavô,sóqueOmidnãoestavamaisaquiparachamá-lodebabaí.

Embarqueisemolharparatrás.Qualquerpalavranaquelahorateriadesencadeado uma avalanche incontrolável de emoções represadas.Escolhiumbancovagoe,atravésdajanela,viafiguradomeupaidiminuiratévirarumpontonapaisagem.Eupodiaimaginarotamanhodasuadorao relembrar uma frase que nãome saía damemória. “Um dia você vaiaprender que para nós, iranianos, a família é tudo. Enquanto estivermosjuntoseunidos,ficaremosempaz”eledisseranodiadaminhaformatura,quandoreagicomdesprezodiantedapossibilidadedepassaravidaatrásdobalcãonalojadoBazar.

Por uma cruel ironia, Khoda conseguira colocar aquilo no meucoração.Elemeensinouadarvaloràfamíliajustonomomentoemqueeunão poderia tê-la comigo. Aliás, seria o primeiro Noruz, em toda minhavida, que passaria longe deles. Talvez fosse um castigomerecido. Tardio,masmerecido.Nesseinstantefecheiosolhose,mesmosempoderajoelhar-meemdireçãoàMeca,reciteibaixinhooversículo107doAlcorão:“E,seAlátetocacomuminfortúnio,nãoháquemoremovasenãoEle;e,seElete

desejaumbem,nãohárevogadordeSeuFavor.Comeste,ElealcançaráaquemquerdeSeusservos”.

Como por um passe de mágica, senti minha alma pacificada e odesesperoesvaiu-se.OônibusdeixaraparatrásaentradaparaPersépoliseeu divisava no horizonte a cordilheira de Zagros. Quando eramais novo,costumavafazertrakingnestasmontanhasporumdiainteirocaminhandopelos vales com Behruz, que localizava as figueiras de frutosmaduros edocesfeitomel.Naprimavera,porcercadedoismeses,opanoramamudade cor e entre as rochas gigantes amareladas podem-se ver nesgas devegetação rasteira muitas vezes com flores pequenas e coloridas. Asárvoresmaiores são escassas e sombra, uma raridade.No augedo verãotudo seca, restando uma ou outra planta resistente ao calor, espinhosa ecombelasfloresdotamanhodomeupunho.

Agoraoverdesumiraporcompleto,daquiapoucoaneveencobririaospicosmaisaltos.Aproximávamos-nosdaestradaparaParsárgada,oqueevocavaemmimlembrançasromânticasdeZibã.Dormitandoenroladonamantanaquelefriodoiníciodeinverno,eurecordavanossoencontronasruínas da cidade sagrada, quando amenina de tranças despertaraminhaatençãopelainteligênciaebomsenso.Aobalançodoveículo,fuirefazendopassoapassonossorelacionamentodesdeoprincípioatéadespedidafinal.Eusentiaoperfumedoscabelosque imaginavadentrodochadorescuro.De repente Zibã estava entre meus braços, pulsando de paixão e desaudadeantecipada.Antesdisso,minhaprincesaretiraraolençodacabeçae,semqualquerresquíciodefalsopudor,foidesvestindoatúnicaquecaiuaseuspéscomumbarulhomolenga.

-Oqueestáfazendo?–eudiziacomavozesganiçada.- Você não quer? – ela posou emmim os olhos de amêndoa que

jamaisesquecerei.- Não é isso... – eu de novo gaguejava feito um bebê, perdido no

labirintodosmeusreceios.–Eseutio?Elepodechegar...

-Elesóvoltatardedanoite,fiquetranqüilo...Zibãentãoseaproximoudemimcomohálitofrescodecháderosas

e colocou minha mão direita sobre seu seio esquerdo. Agora não haviatecidoentremeusdedoseapele comtexturadepêssegoseenrijeceuaoprimeirocontato.

-Vocêtemcerteza?–balbuciei,numvestígiodelucidezeprestesaperderoautocontrole.

Zibã afastou-se com raiva, cruzou os braços sobre o peito nu elevantouoqueixo.Pudeverque seus lábios tremiamde leveeumruborencobriaasfacesantespálidas.

-VocêsabeoqueoSepahePasdaranfazcomasirmãsdostraidores?Empânico,nãopuderesponderenquantoflashesdomeupesadelo

demesesatrásvoltaramnumsurtodepavor.Eumesentiaàbeiradeumprecipício.

-Porquevocênãovemconosco?–agoraeuaseguravacomtodaaforça.–Vocênãopodeficarparatrás.

-Nãosepreocupe.Seimecuidar.–elaentãomepuxouparamaispertoenossoslábiossecolaram.Minhalínguaprocurouadela,quenãoseesquivou. Numminuto estávamos na cama do quartinho mal iluminado,minhascalçasespalhadaspelochãoenquantoeuiatateandoascurvasdocorpoquepareciamais reconhecer do quedescobrir. Era como se desdesempreestivéssemospredestinadosumaooutro,faltandoapenasselaralinossauniãoperfeita.Eissosefezdeformainstintivaenatural,mascomaafoitezaprópriadaidadeedafaltadeexperiênciadeambos.Fuientrandonela como um hóspede há muito esperado. Sem grande dificuldade,consegui romper o véu diáfano que escondia o Jardim das Delícias. Aprincípiomeperdinaságuasprofundasdaqueleoceanoproibido,maslogome encontrei para, de novo, desejar morrer a fim de perpetuar aqueleinstantetãosublimequantofugaz.

Mais familiarizado com a sensação impossível de ser descrita em

palavras,nasegundavezdemorei-meaexplorarosrecônditossecretosqueela abriraparamimsemnenhuma restrição.Devagar, fuipenetrandoemcâmara lenta,minhasmãos por detrás empurrando seu quadril contra omeu,acariciandoapelederegiõesjamaisvisitadasporqualquerforasteiro.Comumsoluçoseco,elameaceitouemeacolheu,trançandoaspernasporcimadasminhascostasecomprimindomeurostoentreosseios.Aminhavirgemprometidadissolveu-separaqueeu,peregrinoecrente,satisfizesseminhafomedacarneedoespírito.

Ao saborde taisdevaneios, umsolavanco causadoporburacosnaestradame trouxe de volta à realidade dos fatos. Acordei para constatarquetudonãopassaradesonhocujasmarcaseramvisíveisapenasnaminhacalçaúmidaemtornodabraguilha.Naverdadenemforapossíveldespedir-medeZibãcomodeveria,elaapenaspassaraemcasacomotioacaminhoda aldeia nas montanhas. Permaneceria morando com eles até recebernotíciasnossas.Acalentávamosaidéiadedarumjeitodefazê-lajuntar-seanós assim que alcançássemos o Canadá. Não me perguntem como ouquando.Euprecisavaacreditarnestapossibilidaderemotaparamemantervivo.DescobririaqueÕrash,muitounidoàirmã,iludia-sedamesmaforma.

Na única parada até Yazd, desci para tomar um chá quente eaproveitei para trocar a roupa de baixo e a calça. Lavei-me da melhormaneira que pude naquelas circunstâncias e segui viagem. Passava dasnove horas. O frio apertara e o horizonte desaparecera na escuridão danoite. Semquerer, lágrimas começarama escorrerpelomeu rosto, numamistura de medo do desconhecido e pena da minha profunda solidão.Agoraeraapenaseumaiseu,semninguémparameconsolar,apoiar,darconselhos. Como um enxadrista solitário, enfrentava de peito aberto ainsegurança de um futuro incerto distante de todos, numa torrente delembrançasdeentesqueridos.Behruzabriualistadasperdas,seguidoporBãbak, Farzane, Shahin,minha família inteira e até Xeque-mate. Sorri aorecordar o cão companheiro, que definhara após o sumiço do dono. Até

Omidentrounomeuroldecarências,encerradoporZibã,cujaimagemmefaziaenrubescerdevidoaosonhorecente.

Com a brecada do ônibus, que afinal alcançara o destino, tive queengolirasreminiscênciasemerecompornamaiorrapidez.Aluztênuedaestação nãome deixava ver direito o exterior,mas logo ao desembarcarumapessoadirigiu-seamim.

-Kurosh?-ohomemperguntou.Desconfiado,aceneipositivamentecomacabeça.-Porfavor,venhacomigo.-enotandominhahesitação,acrescentou.

-SeuamigoÕrashestáesperandoporvocê.-Elenãoveio?-Não... - respondeu. - Estou aquipara levá-lo até ele, na aldeiade

Cham.PenseiemtelefonarparaAghoJunoumesmoparaZibã,masdepois

raciocineimelhoredecidiobedeceraoestranho.Entreiemumcarrovelhoque nãome parecia capaz de cobrir o pequeno trecho demeia hora atéondemeuamigomeaguardava.Omotoristaapresentou-secomoBehnam,naturaldeYazd,econheciatodaaquelaregião.Elepareciasaberdonossopropósitodefuga,masnãodisseumapalavrasobreoassuntodurantetodoo trajeto. A noite escura atiçavaminha curiosidade sobre as imponentestorreszoroastrasnasquaisdepositavamosmortos.

- Não praticammais este tipo de funeral, foi proibido já antes darevolução-eledisse,confirmandoainformaçãodeZibã.-Mesmoassimolugaréimpressionante,quandoamanhecervocêverá.

Passamos pelas poucas casas da aldeia e nos dirigimos àsmontanhas por uma estrada tortuosa por mais vinte minutos. Afinal eleparou em frente a um pequeno sobrado de adobe nomeio de um vastojardim mal cuidado. Ao descer, discerni a figura de Õrash andando emnossa direção. Ele também se beneficiara do ar das montanhas. O rostoadquirira feições másculas graças à barba cerrada à altura do queixo.

Estavaencorpadoequaseumpalmomaisaltodoqueeu.-Fezboaviagem?-perguntou,estendendoamãodededosdelgados

comoosdeZibã,semi-encobertospelasmangascompridasdocasacodelã.Respondi commonossílabos. Amochila imensa parecia pesar três

vezes mais e a fome apertava mas como a irmã, ele parecia ler meuspensamentos.

- Tem um lanche esperando por você. - disse, conduzindo-me àcozinha, emcujo cantoa lenha crepitavanum fogão, irradiandoumcaloragradável.

Ao comentar que ali fazia mais frio do que em Shiraz, Õrashprovocouemmimumavontadequase incontroláveldechorar.Asimplesmençãodaminha cidademe comovia, fazendo-me lembrardeque talvezjamaisretornasseaela.Elepercebeuopesareprocuroumedistrair.

-Estejaàvontade.Tempão,queijodecabraegeléiadedamasco.-falou,servindo-mesopaquenteechápretofumegando.

Enquantoeucomia,elefoidetalhandoosplanos.- Ficaremos nesta chácara de um velho conhecido domeu pai até

acertaremnossaidaparaTeerã,oquenãodevedemorar.-Quemmoraaqui?–euquissaber.Õrashfezcomobraçoumgestolargo.-Aqui?Sóocasalquetomaconta.-Ondeestáodono?- Ele mudou-se para longe, depois que perdeu os dois filhos na

guerra. -Õrash respondeubaixinhocomose temesseo somdasprópriaspalavras.

Sentado na banqueta, engoli em seco. Era disso que fugíamos, deumacondenaçãoàmortecertasecontinuássemosnopaís.

-Sorteasuanãotersidoconvocado...-eleacrescentou,elevandootomdavoz.

-Porenquanto.-respondi. -Ésóumaquestãodetempo.Maisdia,

menosdiairiammeachar...-Esuafamília?-Oquetemela?- Você não temmedo de uma retaliação quando descobrirem que

fugiu?Colocado daquela forma, sem rodeios, aquilome deixou perplexo.

Largueiopãoameiocaminhodabocaesegureiacabeçaentreasmãos.Nomeuegoísmoextremadoeununca tinhapensadonisso. Simplesmente fuiembora, deixando Agho Jun, Narges e minha mãe à sanha da Amaken.Fiqueilívido.Õrashlevouumsustoesepôsdepéaomeuladocomamãonomeuombro,comoBãbakcostumavafazer.

-Desculpe,eunãodeveriaterditoisso.Elesficarãobem...Passadosalgunsminutoseumeacalmei.Nãohavianadamaisaser

feito. Minha decisão não tinha volta. Agora restava torcer para tudo darcerto. Lembrei que Narges tinha amigos influentes e me prometera nãodeixarnenhummalaconteceraeles.

Morto de cansaço, carreguei o mochilão para o quarto, onde umbraseiromantinhaoambientequenteeacolhedor.Aofecharaporta,Õrashperguntou:

-Comoestáminhairmã?-Ela...Elaestáótimaemandoulembranças.Vaimorarcomotionas

montanhasaté...-gaguejei.-Atéascoisasseacalmarem...Despedimo-nosemejogueinacamaderoupaetudo.Numafração

desegundoscaínumsonoprofundo,semsonhosnempesadelos.Quandoabriosolhoscomaluzfiltradapelajanelabatendoemcheio

nomeu rosto, passava da umada tarde. Eu havia dormidomais de dozehoras.Esfregueiavista,afasteiascobertasefuiprocurarumbanheiro.Nocorredor uma mulher me ofereceu o almoço e disse que Õrash meaguardavanasala.Expliqueiquegostariadetomarumbanho.

-Entãovoufalarparaeleesperar. -esaiucarregandoumcestode

roupasnosbraços.Comasforçasrefeitaspelanoitebemdormida,enchiabanheirade

água e fiquei imerso por algum tempo. Lembrei do cheiro do hamam, obanho turco do meu bairro, que eu freqüentava com Agho Jun desdeadolescente. Agora, o mesmo odor penetrava nos meus poros como umpresentedeNoruz.Laveioscabelose,aomeenxugar,viumalâminasobreapia.Numrepenteinexplicável,livrei-medabarbacomoquemraspaforaopassadoesepreparaparao futuro.Saídobanheirocomaalma lavadaeprontoparaoqueviesse.

Õrash fez um sinal para eu sentar à mesa da cozinha. Só entãorepareiqueeletransformara-seemumhomemdesdeaúltimavezquenosencontramos.Emborafossequaseumanomaisnovodoqueeu,pareciaoirmãomaisvelho.Aomeuredor,admireiaconstruçãoemtijolo,tradicionaldaregião,assimcomootetoemabóbadaqueterminavanumaespéciedechaminé perfurada por uma série de buracos na parte superior. Õrashexplicou que estas torres do vento funcionavam como um sistema deventilaçãoeficazquepermitiaacirculaçãodoardentrodecasaeserviampararefrescaraáguanostórridosverões.Atravésdasjanelasrasgadasaolongodafachada,observeiqueapropriedadedeveriatersidobemtratadanopassado,masagoraomatotomavacontadojardimsemfloresnomeioda vegetação escassa. Uma terra amarelada cobria as colinas que seestendiam a perder de vista, formando um cenário agradável sob o solamenodoiníciodeinverno.

Após o almoço, Õrash sugeriu darmos um passeio a cavalo pelasredondezas. Eu não estava acostumado amontar e aquela seria tambémuma aula de equitação, um treino para nossa travessia rumo à fronteira,depoisquealcançássemosOrumiê.Subindonoanimalmaismanso,saímosparaexplorararegiãodeumabelezarara.OvilarejodeChamsituava-senomeio de um cinturão de campos repletos de figueiras e laranjeiras.Evitamosocentrodaaldeia,apesardaminhacuriosidadesobreotemplo

zoroastralocal,próximoaumafrondosaárvorecentenáriaconformeÕrashmecontou, e seguimosalgunsquilômetrosadiante.Eumeequilibravanolombo do animal obedecendo às instruções dele, exímio cavaleiro.Parávamos aqui e ali para admirar os arredores e trocar idéias sobre aviagemàTurquia.

- Resolvi tentar a Inglaterra. – ele me informou, sem diminuir oritmodotrote.

-PorquenãooCanadá?–foiaminhapergunta.-Odonodo sítio onde estamos temum irmãoquemorapertode

Birmingham.Eleseofereceuparamerecebereajudarnocomeço.- Sorte sua. – retruquei. - Eu vou ter que me virar sozinho em

Montreal.Õrash pareceu constrangido com pena de mim. Para desviar a

atenção do assunto, disparei num galope arriscado. Eleme acompanhou,doisfugitivoscorrendoalegrespelosdescampados.Tãoocupadoestavaemnão ser derrubado da cela, que nem reparei que subíamos uma colinasuave.Foiquando,numsusto,vinomeiodemontanhasaindamaisaltas,ummonumentoimponente.Aluzdocrepúsculobanhavaasedificaçõesdetijolo, comenormesportas emarcoe tetos emabóbada.Algumas formascirculares precediam a torre principal, dando ao conjunto um toque demagia. Paramos ao mesmo tempo e, sem pronunciar palavra, alipermanecemosemreverênciaatéosoldesaparecerporcompleto.Sóentãoretomamosasrédeasdosanimaisefomosvoltandoempassolento,comobarulhodoscascostateandoochãoiluminadopelasestrelas.

Namanhãseguinte,aproveitamosparavisitarYazd,erigidanomeiodonada,entreosdesertosdeKeviraonorteedeLuta leste.Cercadadelagos salgados, durante séculos alimentou-se de água por um complexosistema de canais descendo pelas colinas. À entrada, na vastidão áridasalpicada de minaretes, vi as formas cônicas de duas torres de adobe asinalizar a presença de cisternas profundas, cujas águas são refrescadas

pela corrente de ar criada entre elas. Nessemomento não pude evitar alembrança deAgho Jun. “Nós, iranianos, somos umpovo engenhoso, queinstruiuosárabesetemmuitooqueensinaraorestantedomundo”.Sorri,torcendo para que os canadenses pensassem do mesmo jeito e meacolhessem.

NocentrodaquelacidadequetinhasemodernizadoàforçasoboXá,sobraraoportaldeumteatrodoséculoXIX,erguidoparaasapresentaçõessobreHussein.Õrashmeaguardouàportadamesquitade JameeentroucomigonadeVaght-o-As’at.Emtroca,elemelevouparaconhecerotemploAtashkadeh, guardião do fogo sagrado que arde há mais de 1500 anos.ConformeBehruzhaviameexplicadonopassado,achamaforatransferidaem1940paraaquelacomunidadezoroastra,amaiordetodooIrã.

Depois de lavar as mãos, assegurarmo-nos de que nossas roupasestavam limpas e colocarmos uma touca, entramos pela porta, sempredestrancada,emumpátiocalçado.Estedavaacessoaumaconstruçãodeestilo imitando o grego, com colunas redondas e a fachada em triângulo,exibindo os símbolos do mazdaísmo e algumas figuras humanassemelhantesàsdoEgitoantigo.Nomeiodoedifício,dentrodeumaespéciedecâmaradevidrocircundadaporcadeirasparaosfiéisrezaremquandomelhor lhes conviesse, queimava a pira acesa desde o ano 470 da eracristã.

Àsaída,Õrashmeexplicouque,aocontráriodoIslã,ozoroastrismonãosemisturacompolíticaecultivaaalegriadeviver,desencorajandoapenitência, a mortificação e o luto típicos dos xiitas, a populaçãomajoritáriairaniana.Noladodeforaeleapontouumdosretratosdosquecontribuíramparaergueraqueleprédiofeitoespecialmenteparaacolherachamasagradaedisse.

-Esteéodonodacasaondeestamoshospedados.Olheicomreverênciaafiguradohomemgrisalhoesentipenadele

aolembrarqueperderadoisfilhosnaguerra.

Continuamosacaminharpelolabirintoderuelasestreitasdocentrovelho como dois turistas às avessas, em processo de despedida e não dedescobertadeumpaís.Quandoafomeapertou,aguardamospacientesnalongafilaqueseformavadiantedeumapadaria.Flagreimeuamigocomosolhos rasos de lágrimas, decerto prevendo que jamais veríamos, noOcidente, o processo artesanal de feitura desses nune sangak, nem asdemonstrações de habilidade dos padeiros orgulhosos do seu ofíciomilenar.Deaventalbrancoemãos ligeiramente trêmulasdevidoaocalorconstante que enfrentavam todos os dias, eles pressionavam amassa deleve comosdedos antesdela ser colocadadireto sobrepequenaspedrasincandescentesnofornodetijolos.Comissoprovocavambolhas,tornandoaindamaiscrocantesospãesqueapósalgunsminutosretiravamcomumapádemadeira,nãoraroaindacomumououtroprediscogrudadonacasca.Eumesmomelembravadasvezesemquemequeimeiemcriançaquandoalguma dessas pedrinhas em brasa rolara do alto do balcão para cairdentrodaminhacamisaatravésdocolarinho.Talvezporissoeupreferisseonunebãzãri,umpãomaisleveassadonasparedesdofornodebarro,mascomomemsoformatotriangulardebordasarredondadas.

Do mausoléu dos Doze Imãs pegamos um táxi para o jardim deDowlatAbad,naparteoestedeYazdparaverdepertoamaisaltatorredevento existente em todo o Irã. Agora no inverno ficava difícil apreciar ofrescorde15grausamenosnapartededentro,masnoverãodavaparaimaginar que seus 35 metros faziam toda a diferença. Há séculos nossopovodominavaosprincípiosdafísicaqueregematemperaturadoar,maislevequandoaqueceevice-versa.Guardeinocoraçãoaquelasimagenspararecorrer a elas quando estivesse no outro ladodoplaneta. Esta eramaisuma dura lição de Khoda. A paixão pela minha terra crescia na medidaexataemquemepreparavaparadeixá-la.Veioentãoàminhamenteumasuraquedizia:“EmcasasqueAlápermitiufossemerguidaseemquefossecelebradooSeuNome,nelasglorificam-nO,aoamanhecereaoentardecer”.

XVINa terceira noite na propriedade rural, tivemos notícia da pessoa

contratadaparanostirardopaís.Fomosavisadosdequesairíamosdentrode 24 horas, de ônibus, em direção a Teerã, numa viagem de 500quilômetros. Dali um carro nos transportaria direto a Tabriz, de ondeseguiríamos por um atalho de terra até Orumiê, evitando a estradaprincipal. Até agora tudo ia saindo de acordo com o planejado. Antes dedormir conversei comÕrash. Contei a ele que gostaria deme casar comZibã assim que meu futuro estivesse definido com clareza. Ele não semostrouotimistapoisachavaquaseimpossívelconseguirmoslevarairmãdali.

- Para umamulher é mais complicado. – ele falou, acrescentandoacreditarqueaguerraseprolongaria, tornandoaindamaispenosaavidadetodos.

Entrei no quarto desnorteado. Sem conseguir pegar no sono, fuiassaltado por uma sucessão de dúvidas e perguntas sem respostas. Seráque estava de fato fazendo a escolha acertada? Não teria sido melhorpermanecer em Shiraz, isolado de tudo e de todos, mas protegido pelosmeus familiares de quem já sentia tanta falta? “Umaescolhaequivocada,feita com paixão, que é o contrário do equilíbrio, limita suas jogadasfuturas, levando ao encurralamento final”,me ensinaraBabãkdurante asaulas de xadrez. E o que seria de Zibã, condenada a morar com os tiosenquantoo irmãoeeu,quedeverímosprotegê-la,aabandonávamosparacuidardasnossasprópriasvidas?Acimadetudo,seriacorretoignorarumaconvocaçãoparadefenderapátriainvadidaevilipendiada?

Cheiodeangústia, acabeiadormecendo.De repente,bateram fortenaporta.

-Acorda,Kurosh,acorda!

Demoreipararecobraranoçãodascoisas.Tateeiatéoabajurqueacendipara consultarodespertador.Eram trêshorasdamadrugada,porqueestariammechamandocomtantaurgência?

Bêbadode sono, girei a fechaduraparadarde cara coma caseira.Seurostoeraamaisautênticaexpressãodoterror.

-Depressa,depressa!Peguesuascoisasevenha!Descalço, saí arrastandominha mochila. Passamos pela sala e ela

abriuaporta, apontandodois cavalos já seladosnoquintalda frente.EmumdelesestavaÕrash,que tentavaequilibrarsuabagagemnagarupadoanimal.

Coloqueiabotaecaminheiaoencontrodelesobofachodalanternadorapazquepuxavaoanimalpelarédea.

- Rápido, no caminho explico tudo – Õrash disse, sem disfarçar aaflição,enquantomeajudavaamontarcomamochilaajeitadaàscostas.

- Você consegue galopar? – e sem aguardar resposta, meu amigodisparoupelaescuridãoatenuadapelaluzleitosadoluar.

Engoli em seco e o segui superando a insegurança que sentia emcimadeumcavalocorrendoàscegasatrásdooutro.Sóconseguiapensarno frio cortante que congelava os dedos e a ponta das orelhas. Numinstantemeunarizcomeçouapingareavistaembaçou.Arfando,alcanceiÕrashnomomentoemqueeleiadesaparecernumacurva.

-Oqueaconteceu?Paraaondeestamosindo?Ele pareceu não ouvir, ou fingiu que não escutou. Eu desisti de

perguntar, concentrando-me apenas em não ser derrubado do cavalo emanter as mãos dentro da manga do casaco, que puxei na tentativa deaquecê-las.Enxergueientãoluzesbruxuleandononegrume.

-Chegamos.–Õrashavisou.–Vamosdeixarosanimaisaqui.Descidocavalocomdificuldadedevidoàmochilaqueagoraparecia

pesar mil toneladas. Seguimos em direção à luminosidade e só entãopercebitratar-sedatorredosilêncioquetínhamosvistonopasseiopelos

descampados.-Vamosnosesconder.–Õrashfalou,apertandoopasso.–Umgrupo

dehomensusandoammamesforamvistospelasredondezas-eleexplicou,referindo-se aos turbantes pretos dos mulás descendentes de Maomé. –CreioquesãomembrosdoSepahePasdaran-acrescentou.

-Vieramatrásdagente?–perguntei.-Nãotenhocerteza,mastemosquenosprevenir.-Vocêachaquealguémnosdenunciou?–volteiaperguntar.- Não sei. Talvez estejam apenas de passagem. Em todo caso não

vamospagarparaver.Aopédatorrevimosumsenhorcujabarbabatianacintura.Estava

enroladoemumamantagrossaquecobriatodoocorpo.-Dorud–eledisse,cumprimentando-nos.-Dorud–respondeuÕrash.-EsteéosacerdoteBeman.–meuamigomeapresentou.-Salam–retruquei,sentindo-meentãocomoumestranhononinho

aoutilizarotermoárabeemlugardofarsipurocomoeles.- Podemvir comigo. – e eledestrancou aportaquedavaparaum

salãosemqualqueriluminação.Comoeuhesitasse,Õrashexplicou:-Éoúnicolocalseguro.Vamosterquepassarorestodanoiteaqui-

eentrousemolharparatrás.Apesar do medo, eu o acompanhei. O senhor que nos recebera

passouachaveporforaeseafastou.Nosilêncioquesefez,davaparaouvira som dos cascos dos cavalos que ele levava pela rédea. O barulho foisumindoatédesaparecerporcompleto.Sóentão,comavistaacostumadaàpenumbra,ouseiolharàminhavoltaeabafeiumgritodeterror.Naoutraextremidade, centenas, talvez milhares de ossos e crânios desafiavamminhacredulidade.Acheiquetinhaficadolouco.

-Estamosondeestoupensando?–indagueinumfiapodevoz.- É melhor não pensar. – ele aconselhou. - Fique quieto e tente

dormir.-Vocênãoestáfalandosério!–retruquei.- Tome isto. – e eleme passou uma pílula que examinei entre os

dedoscomdesconfiança.-Paraqueserve?Õrashficouimpaciente.-Tome.Vaiajudá-loarelaxar.Semmaisrodeios,engoliocomprimidoesenteinochãorecostado

namochila.Emalgunsinstantesdesaparecianasnévoasdeumsonoopaco.Quando tornei a abrir os olhos, horas depois, estava envolto em duasmantasqueÕrash retiraradabagagemdele.Meuamigoaindadormiaaomeulado,tambémcobertodacabeçaaospés.

Devagarcrieicoragemevarricomavistaoambienteaomeuredor.Umarrepiogeladopercorreumeucorpodolorido.Encontrávamos-nosnointerior de uma torre do silêncio, naquele fosso em que os ossos doscadáveres são jogados após toda a carne ser devorada pelos abutres notopo da construção. Por alguns momentos não consegui mexer ummúsculo.Aospoucosfuirecobrandoodomíniosobremeusnervosequaseri de mim mesmo. Não era eu que morria de curiosidade sobre esteslugaressagrados?Pois láestava.Receberadepresenteumaoportunidaderara e conhecia de perto um espaço a que apenas os sacerdotes tinhamacesso. Se conseguisse mesmo partir do Irã, aquela seria uma históriaincrível para contar aos meus filhos e netos. Nisso fui sacudido por umtremor.Quemgarantiaquenós íamos sobreviver?Naverdade, começavamalnossaaventura.Passaranoitetrancafiadosemmeioarestoshumanos!Aquilonãopoderiasignificarumbompresságio...

Cutuquei Õrash com a ponta da bota. Ele esfregou os olhos e meencarou,adivinhandooqueiapelaminhacabeça.

-Nãoprecisatermedo.Tudovaiacabardandocerto.Nemterminaradefalar,umachavegiroudoladodeforaeafigura

deumhomemsurgiunoumbraldaporta.-Vocêspodemsair,elesjáforamembora.Nós dois levantamos de um pulo. Õrash agradeceu o sacerdote

zoroastraqueabriraumaenormeexceçãonasnormasreligiosasparanosadmitir naquele recinto sagrado. Eu duvidava que algum imã fizesse omesmopor alguémquenão fosseumcrentemuçulmano.Arrasteiminhamochilae,naclaridadedamanhã,viosdoiscavalosànossaespera.Juntodelesestavaocaseirocarregandoumacesta.Eleavisouqueprecisávamospartirimediatamente,poisalguémnoshaviadenunciado.CadaminutoerapreciosoeumautomóvelnosaguardarianomeiodocaminhoparaYazd.Montamos apressados e, guiados pelo bomhomem, emmeia hora vimosumcarroparadoàbeiradaestrada.DedentrodelesaiuBehnam,amesmapessoaquemebuscaranarodoviáriaparamelevaraCham.

-Ascoisasseprecipitaram.–elefalou.–VoudeixarvocêsnoônibusparaTeerã–eestendeuparanósumenvelopecontendoduaspassagensrodoviárias.

Despedimo-nos do caseiro, que levou os cavalos e entramos noautomóvel.Euestavafaminto,masnãoousavaabriracestadaqualsaíaumcheiro irresistíveldequeijos,pãoe frutas frescas.Lembreicompesardospratos da minha mãe que talvez jamais voltasse a experimentar, mas avisãodosossosnatorredosilêncioacabouporcortarmeuapetite.Õrashnão parecia ter se intimidado, ou talvez para ele as imagens do quehavíamosvistopelamanhãjáfizessepartedoseuimaginário.Ofatoéqueeledevoroumetadedoconteúdodacesta.

Daliapoucochegávamosaumpontodeônibusnomeiodaestrada.Behnam achara mais conveniente esse arranjo do que arriscarmos arodovia principal, sempre vigiada. Tentando afugentar as lembrançasmacabrasda torre, emmenosdemeiahoraembarcamosparaTeerã.Erauma longa viagem, eu estava exausto e logo adormeci. Acordei temposdepoiscomumcutucãodeÕrash.

- Aqui é a entrada para Nâin. – ele falou, indicando uma placa nabeiradaestrada.

Já havíamos rodado quase 160 quilômetros e meu estômagoreclamavadefome.Daliapoucooônibusfezumaparadaedescemosparacomer.Muitosdospassageirosdesembarcaramali,poiserasexta-feira,diade prece para os muçulmanos. A maioria dirigia-se ao vilarejo bastanteprocuradoporsuamesquitadoséculoX, todaornamentadacommotivosgeométricoseflorais,alémdebelosexemplosdecaligrafiaemestuque.

Agora que sobravam poltronas, estiquei-me no banco e voltei aadormecersobobarulhoapaziguantedomotor.Perdianoçãodotempoedo espaço até que um estrondo seguido de uma freada brusca mearremessou contra o banco da frente. Tenteime segurar,mas fui jogadoparaosladoseparacimacomodentrodeumliquidificador.Ouvigritosechoros,eoônibusafinalesancouporcompleto.Poralgunssegundos,fez-seumsilêncioprofundo,maslogoasvozescomeçaramasubirdetom.

- Você está sangrando. – Õrash dizia, me estendendo a mão paralevantar.

Ainda sem compreender o que acontecera, fomos deixando oveículo. Do lado de fora, o motorista avaliava os estragos causados peloestourodopneudianteiroesquerdo.Aomeulado,umasenhoraajeitavaolençoarrancadonomeiodaconfusãoeoutra,maisjovem,tentavaacalmaro filho pequeno esperneando nos seus braços. Vendo a cena, lembrei deNarges e de Farzane e tentei ajudá-la, mas ela se afastou de mim compressa. Só então lembrei que as mulheres eram proibidas de falar comestranhosempúblico,umaregraqueiasetornandocadadiamaissevera.

Foiummilagrenãotermoscapotado,pensei,reparandoosulcoqueoveículodeixaranoasfaltoaoderraparechocar-secontraobarranco.

-Sónosfaltavaessa!–Õrashmurmurouentredentes,examinandominhaferida.-Parecesuperficial.Massequiseriraomédico...

-Nempensar. - respondi rápido.–Nãoqueremoschamaratenção,

lembra-se?Eleconcordou.Seriaprecisotrocararoda,danificadaaoentrarem

contatodireto como chão. Isso senão tivessemque repararo eixo.Comsorte, retomaríamos a viagem no início da noite. De pouco adiantavaprocuraroutracompanhia,àssextas-feirasrarosônibuscirculavam.Alémdisso,nossodinheiroestavacontado.

-Ojeitoéesperar...–concluiuÕrash,desinfetandomeucortecomagaze embebida num líquido que tirou da caixa de primeiros socorrosoferecidapelomotorista.

Aoverorolodeesparadrapoqueelemanuseava,lembreidashastesdosóculosdeAghoJunemeusolhosumedeceram.Andavamesmodemalapiornossaepopéia!Nãoseriamaisprudentevirarmosascostaseretornara Shiraz? Quem sabe aqueles últimos incidentes não significavam umalerta?

- Vocês podem passear em Abyâneh enquanto consertamos oestrago.–ohomemsugeriu,mostrandooentroncamentoquelevavaàvila.–Deixemabagagemaqui,nóstomamosconta.–elegarantiu.

Semescolha,caminhamosatéopostorodoviáriodeondecomeçavaaestradinhasinuosaeestreitaserpenteandoovale.Deixandoparatrásosvastosespaçossemidesérticos,apaisagemsurpreendentemefezesqueceradoreasdúvidas.Subimosacompanhandoocursodorioaolongodoqualplantaramárvoresdelaranja,maçãedeameixa.Apesardanossalentidãodevidoàfadigaacrescidadosusto,emmenosdemeiahoraalcançávamosAbyâneh,quedivisamosapósumacurvafechada.Paramosdequeixocaídoparaadmiraravista.Diantedenós,aguirlandadecasinholasenganchadasna falésia era de tirar o fôlego. Sua imagem divulgada pelas fotografiasestampadasnasrevistasenosjornaisdoIrãinteiro,tornava-serealmenteimpressionanteaovivoeemcores.Sobretudoàquelahora,nolusco-fuscodatarde,quandoasminúsculasmoradiasagarradasumasàsoutrascomoase resguardar do frio e do vento, adquiriam tons que iam do rosado ao

vermelhosangue,desmaiandoemummarromclaronamedidaemqueosolsepunha.

- Deve ser assim a entrada do Paraíso. – exclamei, retomando opassorumoaovilarejonoqualosautomóveiseramproibidosdecircular.

Azicontouquealiumapequenacomunidadezorástricasobrevivia,procurandomantersuaspráticasmilenares.Vagamospelocentromarcadopelaarquiteturatípicadasregiõesmontanhosasiranianas,descobrindoasconstruções feitas de adobe com balcões e terraços onde secam osdamascos e pêssegos vendidos nas lojinhas da rua central. Na outraextremidade,umamesquitamodestaacomodavaosfiéisqueaindausavamos trajes tradicionais – calças bufantes para os homens, vestidos e xalesmulticoloridosparaasmulheres.Noaltodominarete,omuezimchamavapara a última prece do dia: “Não existe nenhum deus, mas sim Deus, eMaomééSeuprofeta”.Quandonosdemosconta,haviaescurecido.

-Seráqueoônibusficoupronto?–indagueiaÕrash.-Esperoquesim.–elerespondeu,tomandoadianteiradocaminho

de volta num passo apertado. – Tomara que esperem por nós. –acrescentou,comumanotadepâniconavoz.

Aoveroveículoestacionadoecomomotorligado,acheiquenossasorteafinalestavamudandoparamelhor.Conseguiramfinalizaroconsertoepartiríamosdentrodemeiahora.Paraevitaroventogélidoquecomeçaraasoprarsentamosnaspoltronasparacomerasfrutassecasquehavíamoscompradonovilarejo.Logomaisomotoristaacionouoveículo,quevoltouarodarnormalmente.Notrajeto,a154quilômetrosdeTeerã,passaríamospelacidadesantadeQom,umcentroxiitadoséculosétimoquesetornaraum importante ponto de peregrinação desde amorte de Fatma, irmã doimãReza.

Apesardaferida,aproveiteiparadescansarenroladonamantadelãde carneiro que Narges comprara no Bazar de Shiraz. Õrash tambémdormiu, e dali a cercade trêshoras começamos a ver as luzesda capital

iraniana.Entrávamosemumgrande centrourbanoqueeu tinhavisitadoanosatrás,quandoShahinmoravalácomomaridoAmir.Recordeioarcodo triunfoquemarcavaa fundaçãodo Impériopersa,oalmoçoalegrenoapartamentoamplodairmãdeAghoJun,oscabelossoltosdasmulhereseaalegria despreocupada da reunião familiar. Tempos que pareciamlongínquose,piordoqueisso,destinadosanuncamaisvoltar.AgoranãohavianinguémconhecidoemTeerã,ondeatéomonumentoerguidosobrequatro pilares alargados na base mudara de nome para Azâdi, Torre daLiberdade. Se nosso contato não estivesse nos esperando na rodoviária,estaríamosperdidos.

-Nós ficaremosbem,Kurosh.–denovoÕrashmeconsolava, justoele,quemtinhamaisatemer.

De fato, mal estacionamos, e um homem entrou nos procurandodentro do veículo. Relaxei ao ver que o esquema estava operando acontento.Fomoslevadosaumpequenohotelnasimediaçõesdarodoviária.Pedimosa refeição no quarto, lavamos as roupas de baixo, tomamos umbanho e caímos exauridos na cama. O relógio da mesa de cabeceiramarcava uma hora da madrugada e só fomos acordar com o telefonetocando,estridente,àsduasdatarde.

-Oguiadevocêsvaipegá-losamanhãcedo.–avozavisoudooutroladodofio.ElesechamaEhsãn,estejampreparados.

Eu queria dar uma volta pela cidade, mas Õrash, semprecompenetrado, achoumelhor não arriscarmos. Capital da Pérsia desde oséculo XVIII, Teerã tinha mais de quatro milhões de habitantes.Esparramava-seporumavastaáreasobasombradacordilheiradoAlbrozna qual se via o pico do Monte Damavand, vulcão extinto com encostasnevadas ideais para a prática de esqui. Eu sentia-me atraído peloburburinho vindo lá de baixo e afinal desci sozinho. Peguei um táxi paraconhecer a estação de trem, construída na década de 1930 e um dosorgulhosdacapital.Volteiapéparaohotel,poisacorridasaírabemmais

caradoqueimaginei.Jantamosnaredondezaeregressamosaoquarto,poisapartemaiscríticadanossaodisséiateriainícionodiaseguinte.

EmpoucosminutosÕrash ressonavana cama ao lado,masminhacabeça não parava de funcionar. Até Tabriz, a última parada antes deOrumiê, eram cerca de 600 quilômetros,mas como pegaríamos estradasvicinais, levaríamos um dia inteiro para cobrir o trecho. Não sei quantotempopermaneciacordado,masàssetedamanhãotelefonesoou.Ehsãnnos esperava na porta de trás do hotel comum carro velho que nãomepareceu adequado para uma longa viagem como a nossa. As bagagenstampouco couberam no porta-malas, minha mochila imensa teve queocuparobancodafrente.

Ehsãnmorava na região, era quase da nossa idade e tinha poucaexperiência. Ele perdeu-se várias vezes pelas estradinhas de terra queescolheuparaevitaraviaprincipal.Nãopregamosoolho.Dormirpoderiasignificar nossa perdição nas mãos daquele rapaz que deveria estarganhandounspoucostomansparasearriscarlevandodoisfugitivoscomonós. À certa altura, os faróis iluminaram um par de olhinhos fixos noautomóvel.Ehsãnnãoconseguiudesviar,atingindoobichinhoquesaiusearrastandocompletamenteaturdido.

Afinal despedimo-nos de Ehsãn e tomamos o ônibus em TabrizrumoaOrumiê.Opobrecoelhonãomesaíadamente,aquilopareciaoutromauagouro.Tinhaa ligeira impressãodeque sabiamdanossapresença.Minhas suspeitas se agravaram quando, apesar de sentados na últimafileira,osguardasvieramdiretoaténós.ElessubiramabordoaopararmosnopostorodoviárioqueseparavaaprovínciadoAzerbaijãodo leste,cujacapitaleraTabriz,doAzerbaijãodooeste,quetinhaemOrumiêseucentrocomercial.Aomostrarminhaidentidade,umdelesestranhou.

-TãolongedeShiraz?Oqueestáfazendoporaqui?Eumeremoíapordentro,masopolicialvirou-separaÕrash.-Vocêtambémédelá?

Meu amigo fez que sim e, para agravar a situação, ao puxar odocumentodedentrodacarteira,elegrudounoplásticoúmidoerasgouaomeio. Õrash ficou pálido e mudo. Aquele tinha sido o pior momento daminha vida, nunca experimentara tamanha angústia. O homem pegou osdoispedaços,olhoudeleparamimedisse.

- Issonãoé identidadeque se apresente...Vocêsvãoacabar tendoproblemas... – mas, para nosso espanto, saiu sem nada acrescentar,liberandooônibus.Õrashrecuperouascoreseobomhumor.Soltandoumassovio de alívio, sentei ereto no banco como se olhasse meu futuro defrente.Tudoiadarcerto,nadanospoderiadeter.

XVIIO pior ia ficando para trás, ou pelo menos assim imaginávamos.

Seguimossemmaiorestemoresparaacidadezinhaedificadaemumplatôfértilaolongodamargemdireitadolagode4500quilômetrosquadradosquedavaonomeaOrumiê.Euhavialidoquesuaságuassalobrastornavamquase impossível a vida vegetal e animal, mas em compensação erambenéficas contra reumatismos, como se podia comprovar nas váriasestaçõestermaisespalhadasaoseuredor.Tambémsabiaqueapopulaçãolocalcompunha-sedeumamisturadearmênios,caldeus, turcosecurdos.Profundosconhecedoresdaregião,umgrupodelesirianosguiarporcercadedezdiasatravésdacordilheiradoAlbroz.

Euestavaexcitado comaperspectivade chegar aOrumiê, célebreporseuconjuntoecumênicodemesquitasetemplosprotestantes,alémdeigrejas católicas e russas ortodoxas. Agora tudo parecia simples e quaseautomático. Dali a menos de duzentas horas eu telefonaria para minhafamília de solo turco, relatando o sucesso da empreitada. Apesar doscontratempos, tudo saíra como planejado, sem maiores atrasos. UmaespéciedeeuforiatomoucontademimecontagiouÕrash,quesorriucomo

selesseoquecruzavaminhamente.Contornamos o lago, tido como a maior do país. Embora o frio

apertasse, davapara ver os pássarosque vinham fazerosninhosàbeirad’água. Fiquei imaginando como aquilo tudo deveria ser bonito naprimavera, quando as nesgas de verde colorem as montanhas agoraencobertas por uma camada fina de neve. Dali a pouco entramos narodoviária.Sóentãorepareiointensomovimentodepassageiroseaperteiosolhosnaesperançadedistinguirnapequenamultidãooguiaqueestarianos aguardando. Ao longe, vi uma figura que parecia acenar para nós.Apontei-oaÕrash,quejuntocomigoretirouasimensasmochilasdoporta-bagagem.

- Por ali – eu disse, mal reprimindo a animação, enquanto abriacaminhoentreaspessoasquezanzavamcomoabelhasnacolméia.

Sentiumcutucãonascostasevoltei-mealegre,acreditandotratar-sedonossohomem,masdeidecaracomumguardadamilícia.

-Aondevãocomtantapressa?–eleindagou.Tinha alguns anosmenos do que eu,mas o uniforme lhe conferia

umainquestionávelascendênciasobrenós.Õrashdissequalquercoisaeelededuziu, pelo acento, que não éramos daquele lugar, onde se falava umfarsicomcarregadosotaqueturco.

-Seusdocumentos...–pediunumgestoautoritárioquefezsoarumalarmedentrodemim.Minhavontadeerasairemdisparada,massentia-mepresoaochãocomonaquelespesadelosemquevocênãoconseguesemoverdiantedoperigoiminente.

Comasmãos trêmulas,Õrash apresentou as duas partes do papelqueformavamsuacarteiradeidentidade.Aminha,oguardanemsedeuaotrabalhodepegar.

-DeShiraz?...Oquefazemporestasbandas?Olhei paraÕrash, cuja palidezme deixou completamente abalado.

Comosealguémsoprasseumadesculpaqualquernomeuouvido,respondi

rápido.-Vamosaumcasamento.- É issomesmo! –Õrash animou-se. – Temos parentes que vão se

casar...-Comessasmochilasdequaseummetro?–osoldadoacrescentou

com ironia. – Deixa ver o que tem aí dentro. – e, sem cerimônia,desamarrouumadelasdaqualfoiretirandocasacos,gorrosemeiasdelã,bota deneve e ceroulas grossas. Em tornodapilha de roupas formou-seuma platéia de curiosos. Varri com a vista a rodoviária e nosso guiadesaparecera. Estávamos nas mãos de Khoda, decerto ocupado demaisnaquelemomentoparaselembrardenós,doissimplespecadores.

- Me acompanhem – o soldado ordenou, enquanto eu e Õrashpúnhamos as roupas de volta na mochila, que então me pareceuanormalmentechamativa.

Euqueriaperguntarparaondeestávamosindo,masaspalavrasnãosaíam. Meu coração batia em descompasso com as pernas que searrastavamcomoacorrentadasaumaboladechumbo.

- Entrem aí dentro – ele abriu a porta de um jipe do exército,empurrandoÕrasheamimparaobancode trás.Nossasmochilas foramacomodadasemoutroveículoqueparouaolado.Omotoristauniformizadodesceueperguntoualgumacoisanumamisturade farsiecurdo,quenãocompreendidireito.

Nossocaptornosdeuduasfaixasparacolocarnosolhos.-Ébomtaparemdireito,seeupegarvocêsespiandopara fora,vai

serpior.–eledissenumtomquegeloumeusanguenasveias.Atamosasvendascomosdedos trêmulos.Ocarrodeuapartidae

começamosarodarrumoaumdestinotãodesconhecidoquantotemeroso.Quaseriaopensarquehámeiahoraeucantavadealegriaacreditandoterescapadodopior.Agoranossasortesofreraumdurorevés.Porqueaquiloestava acontecendo? Como tinham o direito de nos prender em solo

iraniano só porque carregávamosmochilas vistosas em vez das cestas emalassurradasdamaioriadaspessoas?Mesmosemnadaver,percebiqueo jipe ia para frente e para trás de propósito como se quisessem nosconfundir e meter medo. Apesar de não termos feito nada de errado,estávamos à mercê de fanáticos, e eles eram jovens, muito jovens,poderiam nos executar a qualquer minuto. Se fôssemos levados a umcentrodaguardarevolucionária,sóummilagrepoderianossalvar.

-Desçam!.–ordenaramdedentrodoveículo.Levantamos tateando na escuridão. Sem dizer nada, eles nos

conduziramaolongodequepareciaumcorredor interminável.Entãoumsommetálicodeportamelevouàconcluirqueentrávamosemalgumtipodecela.Agoraumoutrosoldado,cujavozsoavaaindamaisjovemdoqueoprimeiro, mandou que soltássemos as vendas. Obedecemos e pudedistinguirumcubículomaliluminadocomumajanelinhaminúsculaquasejuntoaotetofechadaporbarrasdeferro.

-Tiremasroupas!–oguardafalou.Õrasheeuhesitamos.- Estão surdos? Precisam de ajuda pra arrancar as calças? – o

soldadoberravapertodosnossosouvidos,alisandoumcassetetequetraziapresoàcintura.

Olhei para Õrash e, juntos, começamos a nos despir. Quase nãoconseguiadesabotoaracamisa,tamanhaatremedeira,insuportávelcomoar gélido do final da tarde. Ao fim de alguns minutos, paramos nus nocentroda sala.Encolhido, eunão sabia seusavaasmãospara taparmeusexoouparacruzá-lascontraopeitonatentativademeprotegerdofrio.Nãopreciseidecidir,poissemmaisnemmenos,osoldadocomeçouamebater enquanto eu tentava aparar os golpes comosbraços, evitandoquepegassemminhacabeça.

- O que estão fazendo aqui? – ele perguntou. - A que grupopertencem? – tornou a indagar, batendo alternadamente em mim e em

Õrash.Mandouentãoqueajoelhássemos.-Viradosparaooutrolado,nadireçãodeMeca!Atordoado, naquela circunstância eu não era sequer capaz de

discernir a direção da cidade sagrada. A ponta da bota nomeu rostomeguiouparaorumocerto.

-VocêsaberecitaroAlcorão?–eleperguntouaosgritos.- Sim, eu conheço algumas suras. – respondi baixinho, limpando o

sanguequepingavadosmeuslábiospartidospelochute.- E quanto ao seu amigo? – ele enfatizou a questão com uma

bordoadanascostasdeÕrash,quesoltouumgrunhidoeolhouparamimembuscadeajuda.

-Eufizumapergunta!–epuxouoscabelosdeÕrashatécolocá-lodepé.

Vi o desespero domeu amigo e entrei emparafuso. Ele não sabianenhumversículoporquenãoeramuçulmano,massedescobrissem isso,morríamosnaqueleminuto.Fecheiosolhosparanão testemunharminhaprópria execução,mas em vez de outra pancada, senti umamão nomeuombro.Quandocriei coragemparavoltaraabri-los,quemestavaaomeuladoeraBãbak.Comumaexpressãocalmaesábia,eledeuavoltaemtornodeÕrashecomeçouafazerunsgestosparamim.Esfregueiosolhos,sementender o que acontecia. Por ummomento pensei que tivessemorrido,mas num susto percebi que Bãbak tentava se comunicar comigo. Dali ainstantes revi a cena da nossa busca por Behruz na periferia de Shiraz.Lembrei que ele me fez fingir de surdo-mudo para escapar do SepahePasdaran.Estaleiosdedosepassei,eupróprio,arepetiralgunsgestoscomosdedoseasmãos.

-Elenãopodefalar...–eudisseemaltoebomsom,surpreendendoosoldado,que largouÕrashnumcantoe caminhouparamim.Masantesque ele dissesse qualquer coisa, eu emendei, inspirado por Bãbak, que

salvavaminhavidapelaenésimavez.-Eleésurdo-mudo!-Como?-Elenãoconseguefalar!–eurepeti,quaseaosberros.Observeiqueo rapazvacilou.Nãosei como,aproveiteia chancee,

sem parar de fazer sinais malucos para Õrash, imitando a linguagem desurdos-mudos,garantiqueeuconheciaoAlcorãodetrásparafrente.Fiqueisurpreso com o tom de desafio, eu estava fazendo o papel do herói queatraiaatençãodaferaparasalvaramocinha.Eraburrice,eumeafastarado Livro Sagrado há anos, só gravara alguns fragmentos esparsos edificilmente recordaria algo mais específico. Por que agira de modo tãoimpulsivo?Quemmepassaraaquelabravurarepentina?

Bãbakmeencaravado ladoopostodacela,elecontinuavacalmoesorria como se dissesse: “Vá em frente, confie em si mesmo que eu oajudareiaganharapartida”.

Nesse meio tempo, que durou apenas frações de segundo, nossoalgozmordeuaisca.Curioso,elemefezumaproposta.

-Sevocêrecitaroqueeupedir,tragosuasroupasdevoltaevocêsaindaduramatéamanhã.Casocontrário...–bateucomocassetetenacoxa,andandodeumladoparaooutro.

-Tudobem...Rezooquequiser.Masdeixemeuamigoempaz,eleédoenteenãoconseguefalar...

O soldado passeou amão pelo queixo tentando sentir os pelos dabarbaqueserecusavamasombrearseurosto.Olhouparamimincrédulo,antevendooquantoiasedivertirnosmatandoabordoadas.

- Então repita o versículo 57:25. – e balançou o corpo, como sedançasse.–Vamos...estouesperando.Tenhoanoiteinteira,masvocêsvãoacabarmorrendodefrio.

Sóentãopercebiquenãosentiaosdedosdasmãosnemaspernas.Tenteime concentrar no livro queAgho Jun abria sobre o tapete da sala

parameensinarasprecesquandoeueracriança.Elefolheavadevagardetrás para frente, seguindo com os dedos as linhas de cima para baixo erecitava alto para eu repetir cada uma daquelas passagens. Eu aprendiadepressa e ao me alfabetizar já sabia de cor a maioria das suras. Agoraenveredava pelos labirintos da memória, abrindo gaveta por gaveta deinfindáveisarquivospara localizaroversículo57:25.FoiquandodenovosentiapresençaamigadeBãbak.Elepiscouparamim,enaescuridãodacela,enxergueialuz.

“Na verdade, enviamos os nossos Mensageiros com sinaismanifestos,ecomelesenviamosoLivroeaBalançaparaqueoshomenspromovam a justiça...”. – sussurrei, sem acreditar nas minhas própriaspalavras.

Osoldadoficoumaisassombradodoqueeu,semsaberoquefazer.Entãoajoelhou-seaomeuladoerecitoudenovo juntocomigoasuradosmensageiros.Emseguidalevantou-seesaiu,batendoatrásdesiaportadeferro.

Escutamos os passos dele afastando-se e, sem forças para nada,Õrasheeunosolhamossemacreditarqueestávamosvivos.Nãotínhamosânimoparadizerumapalavra, apenaspara recuperarnossas roupasquefomosvestindodevagar.NosilênciodanoiteprocureipelafiguradeBãbak,maselenãoestavamaisali.Sobreochãodecimento,apenasdoiscolchõesvelhos, cujo recheio de palha escapava pelas bordas. Em mais algunsminutos, a porta tornou a abrir e a fechar depois que nossas mochilasforamjogadasatravésdafresta.

- Aí tem algumas mudas de roupas. O resto foi confiscado pelarevolução-avisaramdoladodefora.

Enfiamos os gorros até o pescoço. No fundo do bolso da jaquetapeguei o relógio de Behruz, que por milagre não haviam encontrado.Também achei uma barra de chocolate meio derretida, que reparti comÕrash.Deitamos cadaqual no seu colchão enroladosnos cobertores com

cheirodemofoquederameporunsinstantesficamosquietos,desfrutandoochocolatecomoumconsolopelosmaus-tratossofridos.Aluzdocorredorfoi apagada e afundamos na escuridão. Da guloseima sobrou apenas alembrançadoprazerqueterminourápidodemaisparacompensarnossasdores. Ela trouxe consigo docesmemórias de casa e junto com isso veiouma saudade imensa. Misturada ao sentimento de injustiça e à revolta,tornavaminhaexistênciaquaseinsuportável.Eujáhaviadesejadomorrerpara preservar um prazer sublime. Agora pensava na morte como aredenção finalparaumsofrimentoatroz.Nãoseioque iapelacabeçadeÕrash mas, sem aviso, desatamos num pranto como se tivéssemosensaiado.

Na lassidão que se sobrepôs ao desespero, ambos dormimos. Porquantas horas não saberia dizer. Fomos acordados comumapancada naporta,chamandoparaaprimeiraprecedodia.Norelógioqueescondinacanela,sobameia,viqueeramcincodamadrugada.

Afugentei o sono e cutuquei Õrash, queme encarou com os olhosinchados.Tivepenadele,queriaabraçá-lo,mas fiquei sem jeito.Pediqueficassetambémdejoelhos,comacabeçatocandoosolo,fingindorezar.

-Paraestelado-avisei,agoraquesabiaadireçãodeMeca.Aotérminodasorações,abriramaporta.Umsoldadotrouxecháem

dois copos de metal e um pão achatado. Eu queria perguntar ondeestávamoseoqueiamfazerconosco,maselesefoiantesqueeupudessearticular uma frase sequer. Õrash e eu bebemos o chá com tamanhasofreguidãoquequeimamosalínguaeocéudaboca.Depoisdevoramosopãoamanhecidoenossentamossobreocolchão.

-Eagora?–eleperguntou.Deideombros.Poucoimportava.-Achoquevãonosmatar.–eledisse.-Nãosei... – retruquei.–Sequisessem, teriamdadocabodagente

ontemmesmo.

-Aliás...–Õrashfalou.–Euqueriateagradecer.Permanecicalado.-Vocêsalvouminhavida.–eleesboçouumsorriso.–Deondetirou

aquelaidéiagenialdesurdo-mudo?Eu não sabia o que responder. Não fora eu quem pensara aquela

maluquice,foraBãbakquemmederaadicanomeiodoaperto.ConteiaÕrashsobreoepisódio,quandofui tentarmedespedirde

Behruz.Eleriufeitocriançacomafaçanha,enaquelemomentotivecertezade que seríamos salvos. Eu teria a ajuda de todos os que se foram ouestavam longe. Bãbak, Agho Jun, Narges, minha mãe, Zibã e até Behruztomariam conta da gente. Nada nos aconteceria de grave se nãodeixássemosaesperançamorrer.ForaoqueBãbakmeensinarananoiteanterior,foioquefeznasváriasvezesemquemeprotegeu.

-Sepermanecermosjuntoseconfiarmosumnooutro,tudocorrerábem–proferiemvozsolene, sentindoqueAgho Junenãoeu falavapelaminhaboca.

Combinamos uma estratégia para sobreviver. Eu sabia que logovoltaríamosaserinterrogados,porissoprecisávamoscombinaroquefalarpara não cairmos em contradição. Para início de conversa, ele teria quemanter-se como surdo-mudo e sódariadepoimentospor escrito.Depois,não éramos criminosos, não pertencíamos a nenhum partido ou facçãopolítica. A situação dele era pior do que a minha, pois além de não sermuçulmano,elenão responderaà convocaçãoparaaguerra, tornando-seum desertor. Mas daquele fim de mundo as comunicações com Shirazdeviamsercomplicadase,assim,contávamoscomaineficiênciadosistemaedaburocraciaparanãodescobriremnadaenosmantermosvivos.

Nodiaseguinte,levaram-nosasalasseparadasparatentartirardenósdepoimentoscontraditórios.Diantedemim,sobreumamesa,vinossopequeno arsenal de cadernetas de endereços, anotações e mapas. Tinhatelefone do Paquistão, de Istambul e até do Canadá. Quem eram aquelas

pessoaseoqueeupretendiafazerforadopaís?Comomenegasseadarinformações,elesmandaramtirararoupae

ficar sódecuecas.Umhomemmaisvelhosentadoatrásdamesa faziaasperguntasenquantoumsoldadojovemmevigiava.

-Quantosanosvocêtem?-Vinteeum.-Porquenãoestánaguerra?-Nãofuiconvocado.-Porquenãosealistoucomovoluntário?–eantesqueretrucasse,

ele levantou-se e vislumbrei uma barriga proeminente debaixo da túnicacomprida do mulá que, diferentemente do restante dos milicianos, nãousavauniforme.

– Você não quer defender sua pátria? Não gosta do Islã? NãorespeitaoAlcorão?

-Claroquesim-respondidepressa.–Souumbommuçulmano...- Então por que não está na guerra junto com os rapazes da sua

idade?-Souarrimode família.– inventeinahora.–Meupaiestávelhoe

doente,tenhoquesustentarminhamãeeminhasirmãs.-Quemiaencontrarnooutroladodafronteira?-Eusóestavaindoaumcasamento...-Entãoporquetantosendereçosetelefonesestrangeiros?Para aquilo não havia resposta convincente. Só restava recitar a

cantilenaqueabraçavacomoumnáufragoseagarraaumatábuaemaltomar.

-Nãomateininguém,nãotenhoatividadespolíticascontraoregime,pertençoaumafamíliatradicionaleestouviajandodentrodomeupaís.–dissedeenfiada, tremendo diante daquele homemque tinha nasmãos opodersobreminhavida.Bastavaumestalodededoseeumorria.Ele fezumgestocomamãoefoisaindodasala.Oguardapassouentãoabaternas

minhaspernasenascostascomumpau,repetindoasperguntasdomulácomoseestivesselendoummanual.EumeconcentravanafiguradeBãbakemaisumaveznegavaasacusações.

Quandoelesecansou, foisubstituídoporoutroguarda.Estebateunomeujoelho,nacabeça,nospés.Umterceiroresolveumelevarparaumgirodescalçonaneveecomoeucontinuassenegandotudo,desceucomigoatéumporãocomcheirodecarniça.OcolegadelecismouqueíamosparaaUniãoSoviética,éramosespiõesdisfarçadosepagaríamoscaropelatraição.Antesdedesistirdemim,tentoumejogarcontraÕrash:

-Nãofaçapapeldeherói,seucomparsaentregoutudoaoprimeirotapa.

Estremeci ao pensar emÕrash. O que teriam feito com ele? Se eucontassesobreafuga,talvezapancadariadiminuísse.Mascombinaranadadizere,defato,nãoacreditavaqueelehouvessenosdelatado.Meuamigoera valente, tinhamais a perder doque eu e por issoprossegui negandotudo.Estavaexausto,comtodoocorpodoloridoeabocasangrando,massurpreendentementenãosentiamaisomedodoinício.

No final da tardedevolveramminhas roupas e fui jogado emumacela menor. Não tinha dois metros quadrados e apenas uma pequenaabertura na porta, através da qual passavam a comida. No jantar,trouxeramuma sopa aguada; no outro, batata com carne,mas eu estavadeprimidoefiqueidiassemmealimentar.Denovo,pormilagre,orelógioganhodeBehruznão fora confiscado e, comele, eupodia ir contandoosminutos, as horas, os dias. Para ir ao banheiro, era preciso colocar umavendanosolhos,tatearaparedenoescuroatéofinaldocorredorerepetiramesmaoperaçãonoretorno.

Apagavamasluzesàsdezhorasdanoiteeacordavamtodosàscincopararezarbatendooscadeadosdasportas.Aquilomerevoltava,iacontratodos os mandamentos do Islã, pelo menos aquele que eu conhecia eaprenderaarespeitarnaminhacasa.Amúsicaconvocandoparaaspreces,

que no passado soava como uma canção anunciando um novo dia,convertera-seemtortura,virandosímbolodefanatismoreligiosoeabusodepoder.Não tinhanotíciasdeÕrash, sequer sabia se aindaestavavivo.Pedi para telefonar paraminha família, eles riram.Ao fimdodécimodiaconsecutivode interrogatório, fuipostonumacela comoutrapessoa.Eraum rapaz tão jovem quanto eu e cujo crime elemesmo desconhecia. Nahora de dormir, repartimos o colchão imundo e o único cobertordisponível.

Aproximidadecomumserhumanoquenãoiamebatermedeixoudesnorteado. Nem perguntei o nome dele, mas contei o que tinhaacontecido,comofomospegostentandosairdopaís,queminhafamílianãosabiadenada.DeiaeleotelefonedecasaemShirazeimploreique,sefossesolto,ligasseavisandosobreaprisão.Quandoacordeinamanhãseguinte,elenãoestavamais lá.Ajoelhei entãoemdireçãoaMeca.Destavez, comumafégenuína,pediaKhodaquepermitisseaosmeuspaissaberdomeuparadeiro. “Na verdade, enviamos os nossos Mensageiros com sinaismanifestos,ecomelesenviamosoLivroeaBalançaparaqueoshomenspromovamajustiça...”.repetibaixinho,numsussurro.

XVIINaescuridãoquemeenvolviapordentroeporfora,euobservavao

fachodeluzdifusaentrandopelajanelapróximaaoteto.Norelógio,únicobemquemerestava,otemponãopassava.Euacordavacedo,fingiarezar,engoliaocháque traziamepermaneciadeitado, tentandomeresguardardo frio que ia aumentando na medida em que o inverno avançava. Asroupasdançavamnomeu corpo. Eudeveria terperdidounsbonsquilos.Pelosmeuscálculos,estavahávintediasdetido,semacusaçãoformal,nemprevisão de julgamento. Os interrogatórios haviam sido suspensos, osguardas pareciam ocupados com os novos prisioneiros que chegavam e

cujos gritos eu tentava não escutar, tapando os ouvidos com força ecantando alto algumas estrofesdasminhasmúsicasprediletas. Conformeficaria sabendo mais tarde, existiam em Orumiê grupos políticos deoposição atuando na área. Daí a desconfiança ao verem dois estranhoscomoeueÕrashdesembarcandodeumaviagemdesdeShiraz.

Se a tortura física cessara, a pressão psicológica prosseguia. Naminhafichaconstavaqueeumenegaraafalar.Poroutrolado,nãotinhamcomo provar meu envolvimento com atividades contrárias ao regime.Assimmesmonosmantinhamali, comoprisioneiros políticos, emvez denos mandarem para uma cadeia comum. Eu pensava no plural mas, narealidade,nãosabiadoparadeirodeÕrash.Nãofazia idéiasemeuamigocontinuava vivo, mas evitava pensar no assunto para não enlouquecer.Quandoalcançavao limiteda resistênciae cogitavanummeiodemorrerdepressa, via a figura de Bãbak, os olhos fixos num ponto indefinido dohorizontecomoadizerqueeudeveriaalimentarachamadaesperançaemanterosangue-friocomoohábilenxadristaqueera.Aindaaprendicomelequeaspessoasnuncamorremseasguardarmosdentrodenós.Esseeramaisummotivoparanãodesistir.Eu fora incumbidodemanterBãbakeBehruzvivosnomeuespírito.

AimagemdeZibãtambémmeajudavaanãodesanimar.Elasopravapromessas de delícias com as quais eu sonhava acordado. Lembravatambém da minha família, torcendo para que tivesse sido avisada pelorapazcomquemcompartilharaacela.

Na manhã em que completaria um mês no cárcere , um guardaescancarouaportabrandindoalgoqueaprincípionãoenxergueidireito.

- Agora achamos a prova de sua participação política! – e elememostrouoretratodeumapessoadeperfil,comobraçoesticadoaolongodocorpo.

-Essenãosoueu.–respondiexaminandoafotografia.- Como não? Você é um grande mentiroso, mas agora não tem

escapatória!Esfregueiosolhos,semacreditarnaquelanovaarmadilha,sóque,ao

olharparaasminhasmãos,encontreiasaída.-Eleéparecidocomigo,masveja só isso!– e levantei amangada

camisamostrandomeusbraçospeludos,diferentesdodele,totalmenteliso.Osujeitoesquadrinhoumeurosto,davaparapercebera raivaque

tentavacontrolar.Deourolado,euestavaexultante,masminhainsolênciacustaria caro. Naquela tarde o soldado levou-me de novo para a sala deinterrogatório.Emcimadamesa,papeleumacanetaesperavampormim.

- Escreva uma carta de despedida para sua família. – ele nãodisfarçavaaalegria sádicapordetrásdabarba.–Vocêseráexecutadoaocairdanoite...

Minhas pernas bambearam de tal modo que tive que me apoiarcontra a parede para não cair. Por um breve instante achei que ele secomoveu.Mas não foimais que um lampejo e, nomomento seguinte, fuiempurradoparasentarnacadeira.

- É sua última chance. Se fosse você eu confessaria tudo para terumamorterápidaeindolor...

Olheiparaopapelpautadoàminhafrente.Aslágrimasembaçavama visão, turvando os contornos dos móveis e objetos. Queria gritar porsocorro,massabiaqueerainútil.

-Vamos,escrevaaíaquegrupovocêpertenceeosnomesdosseuscomparsas.

Comosdedostrêmulos,malconseguindomanteracanetafirme,fuipreenchendo as linhas com palavras de conforto àminha família. “Estoumuito bem, não vai acontecer nada comigo, saibam que nunca cometinenhumcrimenemparticipeideatividadepolítica,vousairlogodaqui,vouchegar,voltarparavocêsassimquemelibertarem,acreditem,estareiaíembreve”.Assineieentregueiafolhaagoraúmidadosuordasminhasmãos.Oguardaleuemvozaltaeordenouqueeuvoltasseparaacela.

-Estejapronto,logoirãobuscá-lo.–avisoucomdesprezo.Defato,daliameiahoratornaramaabriraportaeestenderampara

mim uma viseira. Depois amarraram minhas mãos às costas e meempurraramparafora.Agidemodoautomáticoeporincrívelquepareçanãosentiamedo.Naverdade,estavaenjoadodaquilotudoeexperimentavaalívio ao encarar amorte de frente. Pensava apenas em Õrash, de comoteriagostadodemedespedirdele,emborasemsabersehaviasobrevivido.Sóque,aoinvésdemeencostaremnoparedão,fuicolocadoemumveículo.

-Paraondevamos?–ouseiindagar,aindadeolhosvendados.-Aquiquemfazasperguntassomosnós.–eomilicianocalou-sede

vez.Nopercurso,queduroucercademeiahora,procureimeconcentrar

emqualquercoisaquenãofosseamorteiminente.Sobreoquepensavamoscondenadosacaminhodocadafalso?Nãotinhaamínimaidéia,poistudooquesabiaarespeitodoassunto,viranosvelhosfilmesnorte-americanosdaépocadoXá.Edesdeaminhaprisão,ascoisastinhamcorridodiferentesdoqueeuassistiranocinema.Acomeçarpelacaptura,quandomepegaramsemjamaisdizeraquelafrasetípicadetodoseriadodeTV:“Vocêestápresoemnomedalei,temodireitodepermanecercalado,poistudooquedisserpoderáserusadocontravocênotribunal”.Nomeucasonãohouvealgemase muito menos a promessa de um julgamento. Apenas tortura física epsicológica,humilhação.Agora,porexemplo,deveriamestarbuscandoumlocal deserto para evitar a trabalheira de limpar o sangue após ofuzilamento.Maisalgunsmetroseacaminhoneteparou.

“Pronto,estouacabado”,foitudooqueconseguipensar.-Podetiraravenda...Vocêestálivre,podevoltarparasuacasa...Não entendi direito, achei que estivessem brincando. Fui então

tomado por ummisto de espanto e euforia. Iria pegar o ônibus de voltaparaShiraz,nãosemantesajoelharparaagradeceraDeustersobrevividoeganharaliberdade.Sóque,emvezdarodoviária,estacionamosdefrontea

umprédiomaiordoqueoanterior.Espremiavistaeviumaplacanaqualselia:“CadeiaPúblicadeOrumiê”.

-Desgraçados!–vocifereibaixinho,maisparamimdoqueparaeles.Quasemepegaram,osmalditosguardasrevolucionários.Haviamtentadoaúltimacartada,masnãoconseguiram.Mesmoabalado,nãoconfesseioquenão tinha feito e, sem provas definitivas, em vez de me soltar, metransferiram.

Apesar da decepção inicial, acabei me conformando. Após osprocedimentos de praxe, fui colocado em uma sala de triagem lotada degente.Eraapertado,tinhaexcessodedetentos,masparamim,quepassaraosúltimostrintadiasnumasolitária,pareciaocéu.Avontadedeconversar,não importa com quem, transbordou num fluxo de frases a princípiodesconexas.Eunãoparavadefalarcomtodos,domaissimplescamponêsaté o criminoso de último grau. Devo ter conversado com assassinos, eunãoligava,oimportanteeraquetinhaalguémparacontaroquehouvera.Pela noite adentro até o dia seguinte prossegui naquele falatório,reconstituindo cada passo da minha aventura e com isso,inconscientemente, lambendo as feridas que trazia lá no fundo, onde dóimaiseninguémenxerga.

Nofinaldatardedosegundodiagritarammeunome.Deiumpulo,acreditandoquedestavezseria liberado.Fuiconduzidoatéumhallondehavia dezenas de homens de todas as idades. Alguns eram homicidasconfessos, traficantes ou ladrões reincidentes. Um deles tinha umaprofunda cicatriz que tomava o rosto inteiro, da testa ao queixo. Outroshaviamcometidodelitosconsideradosleves,comotentarfugirdopaís.

Fomosseparadosemgruposdiferentesdepoisquerasparamnossoscabelosebarbas.Emseguida,comcobertoreseuniformesdepresidiáriosnas mãos, atravessamos a única porta do saguão que dava para umcorredor comprido.Ao longodaquele espaçoestreito atulhadode roupaspenduradasemvaraisimprovisados,abriam-secelasfeitasparameiadúzia

depessoas.Nósentramosecadaqualescolheuumcantinhoparaseesticar,masnofimtivemosquedormirencolhidos,encostadosunsnosoutros.

Fizamizadecomummédicocirurgiãoqueestavatentandofugir,umalto oficial do exército aposentado,mas progressista, que apoiara a filhanumprotestocontraousodochadoreatéumfotógrafoqueandavaparacima e para baixo com sua câmara tirando fotos coloridas de todos nós.Comoagradavaosguardas,conseguiafilmes,mandavarevelaredepoisnosvendia de lembrança. Eu próprio cheguei a comprar uma delas em queapareçonafiladafrente,juntocommaisquatorzepresos.Acomidanãoeraruim,batatacomcasca, carneiroequeijos.Engordeierecupereiascores,pois além de me alimentar relativamente bem, tínhamos permissão defazerexercíciosetomarsol.Sónãodeixaramtelefonarparameuspaisque,àquelaaltura,deveriamestarmorrendodepreocupação.QuantoaÕrash,não ouvi mais falar dele e por duas razões não perguntava sobre seuparadeiro.Temiaprejudicá-lo,masacimadetudo,ficavaapavoradocomaidéiadeletersidomorto.Adúvidaerapreferívelaumacertezatenebrosaepor isso,duranteostrêsmesesemeioemquepermanecinaquelaprisão,nãotiveamenornotíciadomeuamigo.

Ànoite,antesdeapagaremaluz,ogeneralreformadoliaoAlcorão,selecionando trechos para se defender dos ataques contra a atitude dafilha,masomédicopreferiaconversar.Contousuafugafrustrada,quandoforapegoporumamilíciaapoucosquilômetrosdafronteiracomaTurquia.

-Vocêsatéquetiveramsorte.Alémdeficarpresoporseismeses,euquasemorridefrionomeiodaneve.

-Paraondepretendiair,depoisdaTurquia?–perguntei,curioso.-ParaoBrasil.-Brasil?-É!Opaísdofutebol,doPelé...- Eu sei o que é Brasil. - respondi. -Mas por que justo lá? – quis

saber, já queparamim, aquelapareciauma terra longínqüademaispara

sercogitadacomoumapossibilidadedeexílio.Omédicosorriudemansinho.-Vocêsabeguardarsegredo?Eufizquesimcomacabeça.Eleolhouàsuavoltaedissebaixinho:-LátemumlugarchamadoRiodeJaneiro...–elefezumapausapara

certificar-se de que ninguém nos escutava e prosseguiu. – É uma cidademaravilhosa,nãotemoutraigual...

-Porquê?–insisti.-Ah....Porcausadapraia...-Aquitambémtempraia...- Mas não é Copacabana... Ali natureza caprichou, não existe

paisagemmaisexuberante.Foraosamba,aalegriadopovo...-Eleparoudenovo,comumapontademistério.–Nessapraiaasmulheresusammaiôsminúsculos,osfamososbiquínis...

-Sãotodasprostitutas?–indaguei,entreconfusoedesconfiado.Eledeuumarisada.-Claroquenão!-Entãoporqueandamassim?Elesegurouoqueixo,comoserefletisse.-Culpadocalor...-MasoIrãtambéméquente!Noverãoviraumverdadeiroforno–

argumentei,semdesviarosolhosdele,porque,nofundo,tinhacertezadequeestavainventando.

- Onde estão osmaridos e os pais destasmulheres? E os irmãos?Comoadmitemtamanhodesrespeito?

-Sevocêserefereaogheirat,esqueça...-Porque?–insisti,cadavezmaisatônito.-Láoshomensdafamília

nãoprotegemezelampelassuasmulheres?Ele tornoua fazerumapausa, formulandoumaexplicaçãodidática

paraqueeuentendessetamanhacovardiaefaltadehonra.Paramim,nada

daquilotinhaomenorsentido.- Os costumes variam de um país a outro. – explicou, paciente. -

Aqui,antigamente,asmulheresnãoeramobrigadasasecobrirdacabeçaaospés,vocêlembra?

Fecheiosolhosetenteirecordaropassadorecente,quandoirmãs,primaseamigasandavampelasruasdecalçacompridaecamiseta.Agoraescondiam-sesobhejabsechadorspesados,deixandoapenasasmãoseosrostosdefora.Aliás,háquantosanoseunãoviaumfiodecabelofeminino?Braços,pernaseocolotambémficaramdebaixodostecidosescuros.Seráque não sentiam um calor infernal? Em que página do Alcorão estavaescrito que elas deveriam vestir-se como na Idade Média? Por queperseguirogeneralesuafilhaquenãosesubmetiaàsharia?NesseestadodeespíritoacidademaravilhosadoRiodeJaneirotambémmeconquistava.Lembrei, com nitidez, de um artigo em uma revista de turismo que lerahavianãoseiquantosanossobreaspraiaspovoadasdegentebonitaquesedeitavanaareiaparatomarsol.SerialáoParaísoterrestre?

Aperguntaficousemresposta,masoBrasilnãomesaiudacabeça.Nemmesmonadataemque fuichamadodiantedeum juiz,narealidadeum líder religioso,paradeterminarminhapenaoua libertação imediata.Numtomhumilhante,elemechamoudetraidoredecoisaspiores.Aoseulado,trêshomensarmadosmeobservavam.

-Porquedeixaropaís?Nãoamaasuapátria?- Claro que sim. Estou arrependido. – declarei. – Foi um terrível

enganoeprometonuncamaistentarfugir.Paramim,defato,naquelemomentosópensavaemsairdaprisãoe

dava graças a Deus não ter morrido. Onde estava com a cabeça quandoresolveraembarcarnaquelaaventura?Omulá faloucomigocomdesdém,eumeachavaumleãoenãopassavadeumcarneiro,maslevandoemcontaque era jovem e jovens cometem erros, decidira me dar uma segundachance. Ele me libertaria sob uma série de condições. Eu deveria me

apresentartodomêsàdelegaciapolíticadeShiraz,nãotinhapermissãodetrabalharemuitomenosdefreqüentarauniversidade.Alémdisso,sefossepegodenovonãohaveriaapelação,seriamortecerta.Assineio termodecompromissoquejureilevaraopédaletra.Omuláentãodespachoumeualvará de soltura, que recebi junto com uns poucos tomans que tinhamrestadonacarteira.

Antesdepartir,conseguiautorizaçãoparamedespedirdomédico.Ele me apertou num abraço que trouxe Bãbak para perto de mim. Noinstanteemqueatravessavaaportaemdireçãoà saída,deimeiavoltaetireiorelógio.

-Podeficarcomele.-Nãopossoaceitar.–eledissesemmuitaconvicção.-Vocêvaiprecisarmaisdoqueeu...–insisti.-Édeestimação...Peloquemecontou...- Tudo bem. Você me devolve quando nos encontrarmos em

Copacabana...–esaísemolharparatrás.Minha primeira medida foi chamar para casa de um telefone

público.AghoJunatendeue,paraminhasurpresa,jáestavaapardetudo.-Õrashnosligou.-Como?Quando?–pergunteieufórico,semaguardarreposta,pois

dooutro ladoda calçada, uma figurapareciameobservar.Desliguei semdesconfiardaangústianavozdeAghoJune,numpassorápido,atravesseiarua.

- Finalmente você saiu! – era a voz de Õrash soando nos meusouvidosincrédulos.

Sem nos importarmos com quem passava por perto, nem com aatençãoquepoderíamosdespertar,nosabraçamosepermanecemosassim,apoiadosumnooutro.

-Quandosaiu?Oqueaconteceu?Porqueaindaestáaqui?–asfrasesvoavamdaminhabocasemdarchancedeleresponder.Resolvemosandar

emdireçãoàrodoviária,comprarpassagensparaomaislongepossíveldeOrumiêevoltarparacasadeumavezportodas.Noteiqueeleestavamaismagroecomoscabeloscurtoscomoosmeus.Soubeentãoqueforasoltoháduassemanas,poislogoconfessaraosplanosdefugaparanãomaissertorturado. Só que permanecera na cidade acompanhandomeu processo,negando-seapartirenquantonãomeliberassem.

- No primeiro dia descobriram o disfarce do surdo-mudo. – elecontou.–masporsortenuncasouberamquesouzoroastraedesertor...

Examineimeuamigodealtoabaixoemepergunteiparaondeeleiria,agoranacondiçãodeduplamenteproscrito.

-PorquevocênãovemcomigoparaShiraz?Podemosmorarnacasados meus pais até as coisas se acomodarem para o seu lado. – sugeri,tentando amenizar a injustiça cometida pelos atuais dirigentes queinviabilizavamavidadeumnãomuçulmano.MasÕrashtinhaseusplanose,maisdequeisso,nãoqueriamecausarproblemas.

-Fiquetranqüilo,jámonteiumesquema...nocaminhoeuconto.Entramosnoônibuscomumasensaçãodealíviocomojamaissenti.

Nuncamais queria ver aquela cidade, com suaBabel de línguas e etnias,nem a cordilheira doAlbroz coberta de neve. A lagoa de água salgada iaficandopara trás enquanto rodávamos rumo aTabriz, Teerã eQom.DalicombinamosqueÕrashpegariaaestradaparaYazdeeuparaIsfahan.Nãomedeteria lásequerparavisitarminhatiaRoya,a irmãdaminhamãe,emenosaindaparaverdepertoanotávelponteKhâdju,todaconstruídaemarcosnoséculoXVIIequeeumorriadevontadedeconhecer.Odesejodevoltar para casa depressa era mais forte do que minha curiosidadearquitetônica. E, embora houvesse uma opção curta e rápida a oeste,passandoporKermanshâh,KhoramshareYâsuj,preferiarotamaislonga,poistaislugaresficavampróximosàfronteiracomoIraqueesuasestradaseramostensivamentepoliciadas.

Emumadasparadas,desciparacomprarumjornalemeinteirardo

que se passara no Irã durante minha temporada na prisão. Ao abri-lo,estremeciaoleranotíciasobrefugitivospresosnafronteiracomaTurquia.Muitos tinham sido executados após julgamentos sumários e outrostiveram que amputar amão ou os pés após se perderem pelas encostasgeladasdasmontanhas.NovamenteagradeciaKhodapor tersobrevividoincólume, apesar das más recordações do contato com a milíciarevolucionária.

Õrashdormiaasonosoltoaomeulado,maseunãoconseguiafazeromesmo.QueriasaberdeZibã,sepoderiavê-la,masnãoousavaarticularaquelas perguntas ao irmãodela. Ao fimde algum temponão agüentei osilêncioeocutuquei.

-Vocêestáacordado?-Hum?-Estádormindo?Eleapenasentreabriuosolhos.- Sabe de uma coisa? – eu falei, na esperança de atiçar sua

curiosidade.- O quê? – Õrash hesitava entre despertar e retomar o sono,

embaladopelozunidoconstantedomotor.-Andeipensando...-Hum?-SenossafugativessedadocertoeeuviajasseparaoCanadá,talvez

depoisfossemorarnoBrasil.-Brasil?–agoraeledeuumpulo,sentando-seatentonapoltrona.-Sim!Opaísdofutebol,doPelé...-EuseioqueéoBrasil!–eleretrucoucomoseestivessecopiando

meudiálogocomomédiconaprisão.–Masporquejustolá?Agora ele se mostrava tão animado quanto eu, e completamente

desperto.Minhaestratégiasurtiraefeito.-PorcausadeCopacabana!

-Oquetemlá?–elequissaber.-Muitamúsica,natureza...emulhereslindasdemaiôsminúsculos–

eu exagerei de propósito, mas para minha decepção, ele não pareceuimpressionado,nemindagouseeramtodasprostitutas.TampoucofezumdiscursocontraaexploraçãodocorpofemininocomoAghoJunfarianessecaso.Aoinvésdisso,falou:

-Deondetirouessaidéia?-Umcirurgiãoqueconhecinacadeiamecontou...–eudisse,meio

sem graça, juntando dados saídos da minha imaginação. – Lá ninguémprecisa trabalhar, todo mundo passa o dia inteiro na praia cercado degarotascadaumamaislindadoqueaoutra.

-Impossível...–eleduvidou.–Nãoexisteumlugarassim,vocêficoumaluco...

-Nãoestouinventando,omédicomegarantiu...Õrashcortouaminhafrase,entreirônicoechateado.

-Eupenseiquevocêgostassedaminhairmã!Pontoparamim,pensei.Aliás,meioponto,porqueseagoraeupodiafalar da irmãdele, tambémparecera fútil e irresponsável ao citar as taismulheres brasileiras, ainda que inatingíveis a milhares de quilômetros,numpaístropical.Estavaprestesamesaircomumaevasivaqualquer,maspreferi ir direto ao assunto, num tom que pareceu tê-lo convencido daminhaseriedade.-VocêconversoucomZibã?Comoestáela?Õrashdeudeombros.-Maisoumenos...

Agora era eu que me aprumava para escutar sobre minha doceprincesazoroastraquenuncaabandonarameuspensamentos.

- Zibã anda triste com a nossa ausência. Está aliviada por termossidosoltos,poisavidadelaficousemgraçadepoisquefomosembora.

- Pois avise que, da minha parte, pode sossegar. Aconteça o que

acontecer,nuncamiasvouabandoná-la.Comestapromessa solene feitanasproximidadesdo santuáriode

Shâh Ismâil, na bifurcação de Qom, Õrash e eu nos despedimos. Lá foranevava de leve, enquanto nós dois encerrávamos um dos capítulosmaisconturbadosdasnossasvidas.

ParteV

AauradoscurdosXVIIOitomeses.Estefoiotempoqueleveiparamerecuperardotrauma

daprisãoe cogitarnovamenteapossibilidadeda fuga.Taispensamentosnem passavam pela minha cabeça ao desembarcar em Shiraz depois dalongaviagemdesdeOrumiê.Narodoviária,apenasAghoJunmeaguardavacomuma expressão que ia do alívio àmais profunda desolação. Logo deinícionãoentendiadordilaceranteestampadanoseurosto.Seráquenãoestava feliz emme rever são e salvo? Desviei os olhos para as ruas dacidade, fomos deixando a área mais pobre, apinhada de casinhas malcaiadas e ruelas lamacentas e esburacadas, para cruzar o centro com oscanteirosadormecidosquenaprimaveraexplodiamemflorescoloridas.Aspessoas andavam apressadas, fugindo do inverno rigoroso e lotavam oscafése as casasde chá.NãonevavaemShiraz,masnemassimo frioeramenosintenso.

Tudo issopassavapelaminha cabeçade filhopródigo,quandoelerevelou que minha mãe tinha morrido. Dois meses após minha partida,lendo nos jornais e ouvindo rumores sobre execuções sumárias dedesertoresefugitivospegosnasfronteiras,elanãoagüentou.Sucumbiuaoverosmembrosda sua famíliadizimadosumaum.Farzane,minha irmãmaisnova,acabaravoltando,masemumestado lamentável.Emboranãofosse capaz de relatar tudo o que acontecera durante o tempo em queestevefora,seutormentoeraevidente.Ànoite,elaacordavaacasainteira

comgritosduranteospesadelos,eninguémmaisconseguiapregaroolhoimaginandoassituaçõespelasquaisdeviaterpassado.

Aoentraremcasasentiummistodeeuforiaedesespero.Percebiapresença de um vácuo antes preenchido pela presença vigorosa, massempre discreta, da mulher que me trouxera ao mundo. Fui entrandodevagar, quase comoumestranho, e a falta dela bateu emmim feito umsoconoestômago.Nãohaviaocheirodepãesassandonacozinhanemsinaldosquitutesquepreparava.Minhavistafixou-senumretratoemolduradosobreumamesinhadecantoemepergunteiquem,agora,iriacurarminhasferidas invisíveis. A comida com o dom de cicatrizar os machucados daalma havia sumido junto com minha mãe e eu custava a acreditar quecontribuíraparaaquilo.

Narges fez o que pôde para aliviar meu remorso, tentandopreencher o vazio que saturava os cômodos, envenenando o ar que eurespirava. Pisei em solo canadense de cabeça erguida. Agora eu tinhaconsciência de ser um novo homem. Omenino amedrontado ficara paratrás, comseuspesadelose temores.Segurodemim,nãosentimedonemhesitação. Estava amparado pela memória da minha mãe, de Babãk, daminhaamadaedomeupaís.Resoluto, enfrentariaodesconhecido, a lutapela sobrevivência, a solidão.Tudovalia a penapara viver em liberdade,desenharmeudestinoeserfeliz.

Página 157/158: Substituir o trecho pelo que segue agora emamarelo.

Narges fez o que pôde para aliviar meu remorso, tentandopreencher o vazio que saturava os cômodos, envenenando o ar que eurespirava. No meio da madrugada parecia escutar meu pai chamando-apelonome,“Samán,ondeestáofumodonarguilé?”.Paratodaafamília,eracomo terummembroamputado.Eleestá sempre láànossadisposiçãoenunca lhe damos a devida importância. Só percebemos realmente a faltaquefazquandonãootemosmaiscoladoaocorpo.Assimfoicomamorte

da minha mãe. Cada um de nós sofria à sua maneira, mas à minha dorsomava-seoremorsoportercontribuídoparaapressarofimdeumavidaque ainda poderia desfrutar longos anos pela frente, vendo os netosnasceremecrescerem.Porissoeusufocavadetristezaedeculpa,esónãoenlouquecidevezporqueFarzanejábastavacomofontedepreocupação.Distraída e sem raciocinar dentro dos parâmetros normais, minha irmãpassava o dia inteiro no jardim, lidando com as tulipas e os amoresperfeitos.Ànoite,porém,elaarrancavaasplantasdasquaistantocuidaraparafazê-lasdormiraopédasuacamafeitoanimaisdeestimação.Aomever,esboçouumsorrisoquemorreunocantodos lábiosenãodisseumaúnica palavra. Quando decidia conversar, não falava coisa com coisa,perdendo-se num labirinto de frases complementadas por gestos aindamenos compreensíveis. Os médicos consultados por Narges foramunânimesemafirmarqueFarzanesofreraumapancadanacabeça,masosexamespara comprovaçãoestavam forados recursos familiares.Por issoelapermaneciasolitárianoquintalemqueXeque-mateforaenterrado.

A novidade boa era que Narges casara-se com o noivo, recémliberado do exército devido a ferimentos no campo de batalha. Ele tinhaperdidoavistaesquerdaduranteumbombardeioeagorausavaumtapa-olho similar ao dos piratas dos livros daminha infância. Devido àmorterecentedaminhamãe,acerimôniarealizou-senaMesquitadoRegente,namaiorsimplicidade,esemapartedosdocinhosquesejogamnacabeçadanoiva.Rindomuito,Nargescontouque,detãonervosa,respondeusimdeimediato quando o mulá perguntou se aceitava o esposo, ao invés deesperaraterceiravez,comomandaatradição.

Meucunhadovieramoraremcasaeassumirameupostonaloja,aopasso que minha irmã tomava conta do lar, tentando fazer com queparecesseaconchegante.AghoJundissequeRassullevavajeito,tinhatinocomercialparaacompraevendadetapetes.Graçasàsuacondiçãohonrosade veterano de guerra, restituíra à família a respeitabilidade que eu

colocara em cheque com minha tentativa de fuga. Ele estava satisfeitoporqueajudaraosogroaconquistarnovosclienteseexpandirosnegócios.Alémdisso,meucunhadocontentava-secomaqueletipodevida,diferentedemim, que sempre quisera voarmais alto emais longe do queminhasasaspermitiam.Sentia-meingrato,culpadoe infeliz,nãonecessariamentenessaordem.

Impedidodetrabalhar,passeavapelasruasdacidadequesepareciacadavezmenoscomo lugarondedesfrutaraosmelhoresanosdaminhaexistência. Pelas avenidas, nos muros e nos prédios de órgãosgovernamentais, havia painéis retratando o aiatolá Khomeini emmaiornúmero do que antes. Cartazes de protesto contra os Estados Unidostambémproliferavame as entradasdas lojas e locais públicos advertiamsobre o uso obrigatório do chador. Na fachada de um grande centro decompras,umanúncioluminosoemnéonpiscavacomosdizeres:“Amulhercobertatemabelezadapéroladentrodaconcha”.

Shiraz mudara desde que eu partira, tornando-se uma sombrapálidadorecantodasfloresedospássarosdescritonosversosdospoetasenosguiasturísticosdeoutrora.Comaschuvasdeinverno,mergulharanalama e na sujeira, entrecortada pela multidão de desempregadosperambulandosemeiranembeira,quevinhamsesomaraosmutiladosdeguerraemandrajos.Adecadência sealastrava.Cães sarnentos reviravamlatas de lixo, disputando restos de comida commendigos. Impotente, viaminha terra natal sucumbir na mesma velocidade em que morriam ainocênciada infânciaeossonhosda juventude.Mirandomeureflexonasvitrines desfalcadas das lojas, eu enxergava o vulto de um velhomelancólico que abdicara da esperança.Naquelas caminhadas descobri osignificadodapalavra“solidão”.

Depois de uma demorada visita ao túmulo da minha mãe, ondedepositeisuasflorespreferidas,conseguiumresquíciodepazdeespírito.Sempre amais sábia de todos, apesar de ter passado a vida disfarçando

isso,ládocentrodaterraelasoprouaomeuouvidoqueescrevertambémeraumótimoremédiocontraas feridas invisíveis.Saísentindo-me leveedecididoaminimizarotédiodoócioinvoluntário,fazendoumaespéciedediário. Comprei um caderno pautado e algumas canetas esferográficascoloridas para destacar algumas idéias de outras. Também rascunhavacartasparaZibãquejamaisseriamremetidasporfaltadoendereço.Aliás,estavasemqualquernotíciadelaedeÕrashdesdequenosdespedimosemQom.Eutentavaimaginarsuavida,nomeiodasmontanhas,longedetudoedetodos,masnessashorasmevinhaàcabeçaaquelamadrugadanatorredo silêncio. Ainda sentia um calafrio ao rememorar as visões dos restoshumanosaoredordenóscomoestivéssemosenterradosvivos.Tudo issoconfiei às páginas do meu novo companheiro que testemunhava, emsilêncioesemcensura,cadapassoecadaidéia.

A rotina de um jovem na minha idade, em qualquer canto doplaneta, era repletade surpresas edesafios. Issonãoocorriano Irã, pelomenos naquele momento histórico. Quem não lutava na guerra estavamorto,nohospitalouvagandoporaíemumacadeiraderodascomopeitotilintandodemedalhas.Asrarasexceçõescomoeu,incluíamosproscritoseosdesertores,condenadosaviverexiladosdentrodoseuprópriopaís.

Agho Jun sugeriu que eu arrumasse um pequeno biscate. UmconhecidonoBazar tinhaumparentedonodeum laboratório fotográficoque precisava de um ajudante. Como o salário era ínfimo, dispunha-se aensinarossegredosdarevelaçãodefilmeseampliaçãodefotografias.Eraumserviçoleve,fácilenãomeexporiaaoriscodeservistoedelatado,poisalémdeficaremumbairroresidencial,euseriaoúnicofuncionário.Aceiteie, em menos de um mês já dominava as técnicas e dava conta de tudosozinho. Aprendi a utilizar a câmara escura e experimentava uma ligeiraemoção semprequeas imagensadquiriamdefiniçõesnopapel submersonolíquidoreveladorconformeeuagitavaabanheira.Quandoaspenduravapara secar, passava minutos seguidos examinando-as como se, através

delas, pudesse espiar o cotidiano das pessoas, sempre mais atraente emovimentado do que o meu. Trancafiado no meu cubículo, sem contatocomopúblicoatendidopeloproprietárioparaqueeunão fossevisto, fuientrando em um túnel sem nenhuma luz no final. Por isso dependia daminha escrita que representava a salvação.Mal chegava em casa à noite,tomavaumrápidobanhoe,antesmesmodojantar,jogavanaspáginas,aosborbotões, meus sentimentos, medos e os vestígios de sonhos sobre osquaistornara-mecompletamentecético.

NosextomêsapósavoltadeOrumiêeprestesa tornar-me tiodofilhodeNarges,fuidescobertoporAghoJun.Eleentroucertanoitenomeuquarto de supetão e me pegou debruçado sobre o oitavo volume deescritos.

-Oqueestáfazendodeluzacesaaestahora?Tenteiesconderocaderno,maselecaiunochão.-Oquesignificaisso?–AghoJunperguntou.-Nada...–sóumasbobagensquetenhorabiscado...-Sãodesenhos?–elequissaber.- Não. Apenas umas coisinhas sobre... – e fiqueimudo, sem saber

comoterminarafrasesemmentirnemdeixarAghoJunpreocupado.Notandominhahesitação,elepegouocadernoecomeçouafolhear.

Permaneciemsilênciocomoseestivessediantedeumprofessorlendomeuexame final. Não dei um pio nem tentei interferi no julgamento dele. Aocabodealgunsminutosquemepareceramintermináveis,eleindagou,comummistodeinteresseereceio.

-Desdequandovocêtemescritoestas...coisas?- Há pouco tempo... – pausei para ganhar coragem. – Desde que

cheguei...-Querdizerquevemregistrandotudooqueacontecedesdeodia

emquevoltou?Eubalanceiacabeça.Eleolhouànossavoltacomoseprocurasseum

criminoso atrás da cortina. Afinal, recolocou o caderno sobre a mesa e,passeando os dedos pela estante, indagou quantos outros eu tinhaguardado.

Cogiteieminventarumamentira,masnãofuicapaz.-Sete...–dissenumsopro,naesperançadequenãofosseouvido.-Oquê?–AghoJunretrucounumtomaltoincomumparaele.–Mais

setecadernosgrossoscomoesterecheadosdedetalhesdasnossasvidas?Eutivequeadmitirquesim.-Vocêficoumaluco?-Porquê?-Estáloucocomosuairmã?-DeixeFarzaneforadisso,elanãotem...- Eu estou falando – Agho Jun cortou, nervoso. Dava para notar o

pomodeadãosaltandonopescoçomagro,raramenteoviratãobravo.- Eu... eu acho... eu acho que... – ele começou a gaguejar, sem

conseguir concluir o pensamento. Por fim, num esforço sobre-humano,pôdearticularumafrase.

-Euachoquevocêtemquedestruirissotudo!Para mim, uma pancada na cabeça teria sido menos ultrajante.

Separar-me dosmeus cadernos seria tirar demim a única coisa quemerestava,oúnicocanaldediálogocomarealidade.Elepodiaacharestranhoenãocompreender,masaquelas linhaseramoselosdacorrentequemeprendiam à vida. Sem elas eu seria comoumbalão sem lastro, umnaviosemâncora.

-Comoassim,destruir?–pergunteiincrédulo.-Picar,jogarnaprivadaedaradescarga.Ouqueimar!Eu estava petrificado. Seria possível que Agho Jun, a quem tanto

amava,nãotinhacoração?Ondeforapararopaicompreensivoesolidáriosempre pronto a me defender? Será que não avaliava o que aquilosignificava para mim? Ele deve ter intuído que eu estava à beira do

descontroleesuavozadquiriuumtomconciliador.-Filho,euseioquantoissotudopodeserimportanteparavocê...–

dissedeenfiada,para logoemseguida tropeçarnaspalavras.–Mas,masnãovêque...que...

- Que coloco em risco a nossa segurança? – juntei de modoautomático,comoseumaoutrapessoaestivessefalandopelaminhaboca.

Elerespiroufundoetentouseaproximardemim,masrecuou.- Se descobrem este... arsenal... bem, você sabe do que eles são

capazes...-Nãotenhobombasescondidasnoquarto!–protestei.–Sãosimples

cadernosanotados!Prevendo uma longa discussão, Agho Jun puxou uma cadeira e

sentou-se. Cruzou as pernas e colocou asmãos no colo. Seu rosto estavasulcado, o nariz parecia ter crescido e os lábiosmal se viam sob a barbaembranquecida.Sóagorapercebiaestardiantedeumancião.Comamortedaminhamãe,Agho Jun transformara-senobabai que eume recusara aadmitirquandoassimchamadoporOmidemPersépolis.Sóquenolugardoavô robusto e radiante do passeio de Noruz, eu enxergava um homemmassacradopelasvicissitudesdavida.

-Filho-elecomeçou.–Vocêjátemproblemassuficientes.Eseporacasodescobremestescadernos?

-Comoiriamdescobrir?Quemcontariaaeles?–indaguei,agarradoaomeumontedeparágrafospreciosos.

Agho Jun ficou ainda mais sério. Talvez não houvesse razõesconcretas para tanto receio, mas chegáramos a um estágio em que tudorepresentava perigo. Qualquer coisa suscitava a sanha da guardarevolucionária, gente era executada por muito menos. Para reforçar seupoderdepersuasão,elearmouparamimarmadilhasentimentalinfalível.

-Senãoforporsuacausa,penseentãonasuasirmãs...Ele limpou as lentes dos óculos cujas hastes afinal consertara e

implorou:- Farzane... Não preciso detalhar os problemas dela, eNarges está

paraganharumbebê...Contrataisargumentos,meuegoísmodissolviafeitosaln’água.Não

havia alternativa a não ser queimar todo omaterial suspeito. Antes quemudassedeidéia,leveiosoitocadernosparafora,abriumburaconumdoscanteiros próximos à cova de Xeque-mate, joguei querosene e fuiqueimando os meus diários. Por quase uma hora a escuridão da noiteiluminou-sedefagulhas,decentelhasdesonhos,desejos,fantasias.Nodiaseguinte o jardim amanheceu coberto de cinzas e de espirais de metalretorcidas.Transformadaemlixoepó,minhavidaperderaosderradeirosalicerces,ruíracomoascasbásdebarrodepoisdeumdaquelesterremotostãocomunsnoIrã.Erachegadaahorademealistar.

Com esta decisão, peguei meus documentos já separados em umenvelope que apresentava todo mês na delegacia política conformedeterminado pelo mulá após a prisão em Orumiê. Sem dizer nada aninguém, falteiaoserviçono laboratórioe fuicaminhandoemdireçãoaopostodoexército.Ofriohaviadiminuído,masumachuvinhafinacaíasemparar e num instante eu estava ensopado. Voltei para trocar de roupa epegarumacapa.AproveiteiparaalmoçarcomFarzane,queficarasozinhaenquanto Narges fazia as compras do mês. Como algumas mercadoriasestavam racionadas ou em falta, a simples operação de abastecer adispensaconsumiahorasemfilasintermináveis.

Despedi-medeFarzane como um soldado partindo para a guerra.Inconscientementetreinavaparaopapelesabiaqueempoucotemposeriaconvocado. À saída, porém, escutei uma voz conhecida e, ao me virar,depareicomafiguradeBãbakquejogavaxadreznumtabuleirodesenhadonacalçada.Eleergueuacabeçaefezumgestoparaquemeaproximasse.

-Deixadebobagem!–disseamimmesmo.–issonãopassadefrutodaminhaimaginação.

Bãbaklevantouosolhos.-Possoserumfantasma,masvocêsabequetenhorazão.-Emquê?-Ora,nãovaimenegarqueestavaparacometeraquelabesteirade

novo?!-Quemévocêparamejulgar?Comosabeoqueécertoeerrado?Elerecolheuaspeçaselevantou-separameencarar.Noteiquenão

usavamaisaantigabengalaepareciacuradodoproblemanaperna.-Ládeondevenho,dáparaveroquevocês,aqui,nãoenxergam.–e

apontou o nosso quintal. – Por exemplo, sei que você queimou todos osseusdiários.

Fiquei lívido e trêmulo. Fizmençãode ir embora, nãodeveriadartantaasaàminhaimaginaçãoouacabarialoucocomoFarzane.

Bãbakleumeuspensamentosebarrouocaminho.-Nãopodesealistar,haji!-Paredemechamardehaji!Eledeixouescaparumsuspiroderesignação,masnãoseconteve.-Vocênãoquerfazerpapeldetolo,quer?-Nãoachoestúpidodaravidapelapátria.–malfalara,jácensurava

oclichêbaratoquedeixarasairdaminhaboca.Bãbaknãosefezderogado.-Quebelafrasedeefeito!Seelavalessepelarealidade...-Escuteaqui,vocênãopassadeumespectroeeunãosounenhum

príncipedaDinamarca–completei,sentindo-meorgulhosoecultoporcitarHamlet no meio da discussão. Narges lera para mim um trecho daqueledrama de Shakespeare há milhões de anos, nem sei como ainda melembravadaquilo!Voeipara longe,para a épocaemque líamos clássicosuniversaissemmedodesermospresos.Umtremorpercorreumeucorpo,sentiumarrepeioseguidodeumaquenturaestranhacomoseardesseemfebre.Bãbakmeencaravadeumjeitoirônicocomosenãotivessepressa.Sacudiosombroseretomeiofiodameada.

-Nãovouperderumminutocomestaconversamole,tenhomaisoquefazer.

-Claro!Pisarnumaminaevoarpelosares.–eledeuumagargalhadatétrica. – Ótimo, terei companhia para as minhas solitárias partidas dexadrez...–eacrescentou,debochado.–Sevocêaindativerbraçosededosparamoveraspeças...

Fizqueiaembora,elesepôsnaminhafrente.- Você está encurralado como um mau jogador. Vai perder a

partida...-Quemseimporta?-Eusim.Tenhoumnomeazelar.-Pensaqueéumprofessorforadocomum?-Umdosmelhoresentreosmaiores!–eleergueraavoznumtom

bemacimadonormal.-Comtodorespeito,achoqueamorteafetouseusensocrítico...-Tudooquevocêsabedexadrez,conheceuatravésdemim,seumal

agradecido!-Poisaí está... – retruquei,dandoo trocoaoadotarum tomainda

mais irônico do que ele tinha usado comigo. - O que o aprendiz nãoaprendeu,omestrenãoensinou...

Eleparoude súbito comose tivesse levadoumxeque-mate.Dali asegundos,mudoudetática.

- Lembre-se de Behruz, da carta que Narges escreveu quando eraenfermeiranofront...

- Issoestáficandopatético...–balbuciei,admiradocompersitênciadele, que atacou com forças renovadas por um flanco inesperadamentevulnerável.

-Pensenasuamãe...-Deixeminhamãeforadoassunto!-efuiandando,agoraapassos

rápidos.Nadapoderiamedeter,muitomenosumaassombraçãoobcecada.

Maselenãodesistiu.-Porquemorrercomomártir?ParaganharoParaíso?–enumtom

cantado propositadamente sarcástico, começou a declamar um trecho doAlcorão. - “Sobre eles haverá trajes de fina seda, verdes e de brocado. Eestarão enfeitados com braceletes de prata. E seu Senhor dar-lhes-á debeberpuríssimabebida”.

Parei num susto, ia protestar contra a blasfêmia, mas ele meinterrompeu.

-Esteéumdosmaioresengodosdahistória.-Esperaaí,vocêsempreacreditouemDeus,porquedizissoagora?Bãbaknãosefezderogado.-EsenãoexistirParaísoalgum?Esetodosvirarempoeiracomoas

cinzasdosseusescritos?-VocêestáafrontandooAlcorão!-Nofundo,ouniversoéumgigantescotabuleirodexadreznoqual

sedisputaumjogodepoder.- Jogo de poder? – eu disse com desprezo, para logo me trair,

demonstrandoumacuriosidadequenãomeagradava.-Comoassim?–perguntei,apesardemimmesmo.-Naverdade,oIslãnasceudeumpovobárbaroquechegouàPérsia

para encontrar uma civilização de cinco milênios com livros, aquedutos,rededeesgotoseumareligiãomonoteísta,ozoroastrismo...

-EstoucarecadesabersobreograudedesenvolvimentodospersasqueusavamtalheresantesdeCristoeblá,blá,blá! –cortei-ocomraiva.-AghoJunnuncasecansoudeenaltecernossagrandiosidade.Belaporcaria,vejaaqueelanoslevou!

Bãbak não pareceu se importar com aquele misto de revolta eironia.FalousobreasraízeshumildesdoprofetaMaomé,quenãoprovinhadasfamíliasabastadasqueserevezavamnopodernaPenínsulaIbérica.

-Tudoiabematéqueelenomeoucomosucessorseugenro,Ali,em

vezderecorreraocostumeirorodízioentreoscalifas.-Tambémconheçoestapartedalenda,podeeconomizarasaliva!Ele fez ouvidosmoucos e prosseguiu feito Agho Jun quando tinha

umaplatéia.-OdescontentamentoseagravouquandoAli,porsuavez,escolheu

parasucedê-looprópriofilho,Hussein.- Que se casou com a filha do último rei da dinastia sassânida,

selando a expansãomuçulmana rumo à Pérsia... – completei, impaciente,maseledenovofingiunãoescutarecontinuou.

- Além de legitimar o Islã como a religião nacional, essa uniãoseparouossunitasárabes,queseguiramoscalifasdapenínsula,dosxiitaspersas...

–Eunãosou idiota,aondevocêquerchegarcomessediscursodecolegial?

-Ora,ora...–eleponderou.–Sóestouexplicandoojogodepoder.-Eoquetemavercomigo?Oquevocêquerprovar?QueDeusnão

existe?Elefezumapausacomoserefletisse.- Nunca afirmei isso. Só posso dizer que a melhor coisa é... estar

vivo.-Escute,nãoligoamínimaparaseusconselhos.Vocêjámesalvou

duasvezesenãohaveráaterceira.–deiascostasequandofuiatravessararuacorrendo,teriasidoatropeladoseelenãomesegurassepelamangadacamisa.

- Calma, calma... – Bãbak disse, enxugando o suor da testa. – Pelomenosdeixeparamorrernocampodebatalhacomoumheróideverdade...

Brancodesusto,comocoraçãodescompassado,senteinomeiofio.Meuamigo,ouaimagemdeledentrodaminhacabeça,descansouaomeulado.Esperouquemerecompusesseeentão,numavozconciliatória,faloupausadamente.

-Tudobem,nãoquerocontrariarsuadecisão.–Daí,disseemtomdesúplica.

-Maspossoaomenosdarumapequenasugestão?Concordei. Tínhamos ido tão longe que não custava escutar a

propostadele.-Espereatéofinaldatarde.-Quediferençafaz?–indaguei.-Éocorreio.Sóentregamacorrespondênciadepoisdascincohoras.-Edaí?Eledeuumapiscadela.-Bem,vocêverácomosprópriosolhos.Indeciso,termineiconcordando.Afinal,atenderaopedidodelenão

ia prejudicar ninguém. Alémdomais, Bãbak representava umpedaço demim, um grau daminha consciência queme chamava ao juízo quando obomsenso falhava.Eraa lucidez contrao impulso cego, a razão contraofanatismo. Por isso obedeci. Contrariado, dei meia volta e fui andandocabisbaixo.Alcanceioportãode casa e entrei.Ao fechar aporta atrásdemim,deiumaespiadaláfora,naesperançademedespedirdeBãbak,maselejátinhasumidodevista.

Sentei numa almofada perto de Farzane, que lia pela enésima vezuma revista gasta de tantomanuseio. Não parecia infeliz, só distante detudo, como se nada lhe dissesse respeito. Por uns instantes senti invejadela, da sua indiferença à realidade dura e cheia de arestas. Razão tinhaminha irmã, pensei comigo, recolhida no seu casulo, onde nada poderiaafetá-la.Semdizerpalavra,elamepuxousobreocoloecomeçouaalisarmeucabelocomoseeufossecriança.Paraminhasurpresa,quehátemposnão a ouvia articular uma frase, Farzane se pos a murmurar uma lalaí,antigacançãodeninarquenossamãecantavaquandoéramospequenos.Lágrimasbrotaramsemqueeutentasseimpedi-las.Daliapoucofecheiosolhosparareteraquelemomentoespecialenominutoseguintedormiaum

sonoprofundo.Acordeinãoseiquantashorasmaistarde,despertadopelacampainha.Comcautela,paranãoassustá-la,fuimeafastandoeandeiatéaporta de entrada, que abri, meio zonzo. O carteiro acabara de passar,deixandoalgumacoisanacaixadecorreio.

Nem preciso dizer o que senti. Tive que fazer um esforçomonumental para cobrir a curta distância que me separava da pequenafendapor onde enfiavama correspondência.Ummilhãodepensamentospassoupelaminhacabeça.Podiaseraconvocaçãodoexército,ummandatodeprisãoou,sonhodossonhos,algumaslinhasescritasporZibã.Pegueiomaçodeenvelopese,apressado, fui separando-osumaum.Haviacontasde luz e água, propaganda, o carnê da pensão para meu cunhado e umimpressodobanco.Nomeiodeles,sobressaíaumcartãopostalcujaletraaprincípionãoreconheci.Comdificuldade,decifreiaslinhasquediziam:“Oqueestáesperando?Venhalogobuscarseurelógio”.Nãotraziaassinaturanemqualqueroutra informação.Aindasemcompreender,vireiocartãoevi a imagem da praia de Copacabana, na cidade maravilhosa do Rio deJaneiro. Por razões óbvias, sem as “prostitutas” de rajes sumários.Enquantoretornavaparadentro,tiveanítidaimpressãodequeBãbakmeseguiacomumnadadiscretosorrisonoslábios...

XXDesde pequeno, em casa com Agho Jun ou durante as aulas de

histórianocolégio,aprendiqueasguerraseramtravadasentrenaçõesemtorno de problemas específicos. No caso do Irã, acreditava que naquelemomentoopaísdefendia-sedeumagressorexternochamadoIraque.Como desenrolar dos acontecimentos, porém, cheguei à conclusão de queestávamos combatendo contra nosso próprio povo. Ou melhor, que ossoldados recrutados acabavam envolvidos em perseguições aos seusirmãosemlutaporliberdade.

A minha lista de motivos para não me apresentar ao centro deconvocaçãocresciaeasalucinaçõescomBãbak,quepreviraachegadadenovidades pelo correio, me deixaram atônito. Eu revirava nos dedos opostalremetidopelomédicoqueconheceranaprisãodeOrumiê,tentandoadivinhar como conseguira, afinal, escapar em direção à sua terraprometida.Naquelemomentoestariaestendidonapraia, cercadoporumharém de mulheres de biquínis oferecendo copos de caipirinha, sobre aqual ele também me contara. Dissera que era feita com limão, açúcar epinga, uma bebida típica do Brasil. De tanto pensar naquilo, comecei aperder o interesse no laboratório e a tudo o que lhe dizia respeito. Defuncionário competente e confiável, tornei-me desleixado ao cúmulo deestragaralgunsfilmesevelarfotografias.Passavahorasseguidasmirandoa orla de Copacabana e esquecia os papéis boiando na banheira derevelação, que viravam borrões pretos sem chance de se transformaremem imagens. Ao final do mês, quando fui recolher o salário simbólico,acabeidespedido.

Paramimfoiumalívionãoterquedesperdiçarosdiastrancafiadoemumacâmaraescurajustoquandoansiavaporhorizonteslargosemeucoração latejava por terras longínquas. “Você é como um albatroz”, medissera certa vez Bãbak. “Nasceu para se tornar uma dessas avesmigratóriasqueatravessammareseoceanos”.Defato,pormaisquetivessegostadodeagradarAghoJun,eunãoserviaparapassarorestodeminhaexistênciaatrásdeumbalcãona lojadoBazar.Eusonhavaemmetornaralguém decente. Sempre acreditara que tinha um potencial acumulado,bastandoaoportunidadededesabrochar.Diantedaguerrainterminável,asmudanças radicais e a islamização de todas as atividades dentro do Irã,minhas perspectivas reduziam-se a zero. Sem trabalho, amigos, sem odireito de fazer um curso superior, nem a liberdade de escolherminhasleituras ou filmes, proibido de viajar para longe do local de residência eobrigado ame apresentar regularmente na delegacia política, eu nãome

importaria emmorrer. Aliás, se não havia nada depois daquilo, por quelevar adiante este cotidiano insosso e injusto?Meu Deus, eu estava comapenas vinte e dois anos e nunca mais saíra com os amigos para medivertir! Onde tinha ido parar a alegria típica desta fase da vida? O querestava para mim neste pedaço de chão que no passado remoto fora oumbigodomundo?

Afogado na depressão, comecei a conjeturar sobre as razões queestavam levandoosmuçulmanosa retrocederemaosusos e costumesdeantigamente,adotandoaopédaletraashariaeinterpretandooAlcorãodaforma amais retrógrada possível. Vi que tudo se resumia a nostalgia dopassado, de épocas emque a sabedoriaherdadadospersaa imperavanaterra.Da IdadeMédia,quandooOrientecomandavaaagendadoplaneta,desenvolvendoa astronomia, amatemática, as artes e a literaturaque sedisseminariam, enquanto a Europa submergia nas trevas. No rastro dodesejoderetornaràeradeglórias,surgiuaidéiadeque,adotandoasleisislâmicas rígidas, o período de ouro voltaria. Os aiatolás e os homensencarregados do cumprimento das leis não desconfiavam que o passadonão pode ser recuperado. Pode, nomáximo, ser imitado,mas como umacópiafajuta.

Viver triste e commedo, sob constante pressão psicológica. Era oque sobrava para mim naquele contexto de fundamentalismo eintolerância.Nãosuportavaosbarbudosdeuniformecantandopneupelasruas nos seus Land Rovers, metade do corpo para fora da janelaperseguindopedestres,principalmenteasmulheresquedeixavamescaparalguns fios de cabelo. “Khahar, hejab!”, eles berravam prepotentes,aterrorizandoasmoçasaquemchamavamde“irmãs”.Tampoucoengoliaasujeição humilhante das pessoas mais próximas que, por razões desobrevivência,fingiamaceitaraordempolíticaparapreservarseuscargosoumanterseusnegócios.

Com as rotas de fuga reais ou imaginárias assim bloqueadas, o

cartão postal do Rio de Janeiro transformou-se em talismã. Eu o tratavacomo se fosse uma lâmpadamágica que fosse trazer a soluçãodosmeusproblemas. Só que tinha chegado ao meu limite, dali não era possívelcontinuar.Qualasaída?Aperguntamartelavaminhacabeça,enofundoeusabia que sóme restava tentar outra fuga. Se antes fracassara, agora, jáadulto,commaiorexperiência,nãocometeriaerrostãogrosseiros.Estavaseguroefirme,masfaltavacoragempararevelaraAghoJunminhadecisão.

Apesar de me sentir desconfortável ao lembrar o sofrimento quecausei, resolvi me abrir com meu cunhado Rassul. Ele então meconfidenciou que todos estavam profundamente preocupados comigo.Tantoquenãoseoporiamaumanovatentativaseeudefatodesejasse.SóDeussabecomoaquilomedeixoualiviado,emboraosmausbocadosquehaviapassadonasmãosdaguardarevolucionáriamedessemcalafriossódepensarnoassunto.Esemepegassemdenovo?

O meu futuro estava em jogo, não dava para hesitar. Apaguei asimagensnegativasdomeucéreberoeresolvienfrentarasituação.Sentadosnochãoemtornodatoalha,comíamossemapresençadaminhamãe,algoa que nenhum de nós conseguia se acostumar. Narges esmerara-se napreparação dos pratos, mas nada tinha o sabor a que nos habituáramosdesde pequenos. Discutíamos os problemas que minha tia Roya vinhaenfrentando em Isfahan, onde morava. Na sua vinda a Shiraz para osfuneraisdaminhamãe,contaraqueomarido,professordaUniversidade,foradespedido.Elesviram-seobrigadosamudardecasae,paranãopassarfome,elacosturavaparaavizinhançaeambosdavamaulasparticularesdeinglêsclandestinamente.

O clima refeltia a frustração dos nossos sonhos roubados e, antesqueeuabrisseaboca,Agho Jun fezumsinalàminha irmã,suaemissária“oficial”.Pelojeitodela,percebiqueRassulanteciparaaelesoqueeutinhaadizersobreminhaintençãodeirembora.

- As coisas no país não vãomudar tão cedo. – o marido puxou o

assunto.- Juntamos uma quantia razoável com o aumento das vendas no

Bazar–acrescentouAghoJun,animado.- E não vai negar que anda com aquela foto de Copacabana para

cimaeparabaixo?–Nargesbrincou,mesurpreendendo.-Copacabana!Copacabana!–Farzanerepetiucomoumpapagaio.-YãKhoda,AllahoAkbar!-exclamouAghoJun,agradecendoaDeus

aoverafilhafalandopelaprimeiravezemmeses.Maslogocaiuemsi.-Foto?Copacabana?Quehistóriaéessa?Não respondi. Só olhei para aquele grupo de pessoas sofridas e

solteiumsuspiro.Nargesnão conseguiraodiplomademédica, omaridoficarasemumolho,AghoJunperderaamulher,Farzaneterminarasemonoivo e eu assistia minha juventude escoar pelo bueiro. Mas aindaformávamos uma família e agora, por incrível que parecesse, acreditavaque,enquantocontinuássemosunidos,nadapoderiaacontecer.

- A pior desgraça na vida de um homem é perder a esperança. –AghoJuninterveionumtomgrave.–Evejoquemeuprópriofilhoestácadadiamaisdescrente.

- Por isso queremos que saiba que pode contar conosco, Roshy –Nargescompletou,afagandominhacabeçacomonostemposdecriança.

A atitude deles me deixou feliz e confiante. Minha família afinalapoiavaadecisãodeumoutroensaiode fuga.Omais inacreditávelaindaestavaporvir.

- Zibã telefonou. Ela aguarda sua ligação de volta. – Narges mesoprou,tentando,semsucesso,parecercasual.

Nemprecisodizerquedeiumpulo.Malconseguiadiscaronúmerorabiscado no papel. Nem em sonho pensava que esse milagre viesseacontecertãocedo.ComeceiagaguejarfeitoAghoJun,enquantodooutroladodalinhaZibãmedissequeasituaçãoiademalapior.PorissoÔrashresolveratentarsairdopaísdenovo.Elemoravanumaaldeiaaospésda

cordilheiraBarghan,a85quilômetrosdeTeerã,paraondeelaviajariaparasedespedirelevaraoirmãodinheiroeosdocumentosnecessários.

Quandoconteioteordanossaconversatelefônica,todoscalaram-see por longos minutos um silêncio profundo caiu sobre nós. Cabisbaixos,Narges e Agho Jun procuravam raciocinar. Por fim, eu disse de supetãocomosetemesseperderachance.

-Eupartojuntocommeuvelhoparceiro.Eles se encolheram mudos, cada qual esperando que o outro

tomasseainiciativadefalar.Apósmaisalgumtempo,AghoJunassumiuadianteira.

- Filho... Se é isso que você quer... – ele repuxou a barba rala eprosseguiu.–SabemosqueaquinoIrãvocênãoestáfeliz...

Elesedetevepararecuperarofôlego.Estavavisivelmenteabatido,davaparavislumbraralutaquetravavadentrodesi,abrindomãodoúnicofilho homem que sempre sonhara ter ao seu lado dando continuidade àtradiçãodoofíciodefamílianoBazar.Tenteiimaginaroquantoforaduro,para ele, pronunciar aquela frase. Uma emoção avassaladorame sacudiuporinteiro,adespeitodosmeusesforçosparamecontrolar.

Apósuma longapausa, acertamososdetalhes.Agho Junmedeu apassagemdeidaparaTeerãnumvôodaIranAir,umaporçãodetomansetrêsmildólaresparaasdespesas.NacapitalZibãmeentregariaorestantedosdocumentos,queeulevariaatéÕrash,novilarejopróximo.Delá,nósdois seguiríamos de carro até Orumiê, para não corrermos o risco desermospegosdentrodoônibusounarodoviáriasemprepoliciada.

-Desta vez tudo vai funcionar. –Agho Jun garantiu. –Os contatosforamfeitoscomgentesériaeexperiente,prometoquenãovaiserpego...–eavozdeleespatifounomeiodafrase,levando-oavirar-sedecostasparanãodemonstraroquejulgavaumafraqueza.

Nasvésperasdepartirfuiatéotúmulodaminhamãe.Ocemitérioestavavazionamanhãgelada,masumsolzinhotímidoteimavaemclarear

o cinzento do céu.Meu coração estava pesadoquando ajoelhei diante dalápidecomasinscriçõespintadasemverdeclaro,suacorpredileta.Passeeios dedos pelos caracteres em farsi relembrando a figura damulher quesilenciosamente fora o suporte, o alicerce quemantinhanossa família depé. Rezei pela alma dela, pelo fim da guerra e pela minha própriasegurança. Prometi que se chegasse incólume ao outro lado da fronteira,ajeitaria a vida e regressaria, custe oque custasse, para cuidardaminhafamíliacomoéodeverdeumbomfilhoiraniano.Depositeiumramalhetedetulipassobreonomedelaefuiemboramaislevedoquechegara.

Em casa, arrumei uma mala discreta, bem diferente da mochilaimensadecoresberrantesquelevaranaprimeiravez.Tampoucocarregueiumfarnelcomoaquelepreparadoporminhamãe.E,aocontráriodeantes,quandoapenasAghoJunfoisedespedirdemimnarodoviária,agoranossafamíliainteira,ouoquerestavadela,meacompanhouatéoaeroporto.Osquatro permaneceram ao meu lado até anunciarem, pelo alto-falante, oembarquedovôocomdestinoaTeerã.

- Khoda esteja sempre no seu coração. – foi tudo o que Agho Junsentiu-secapazdepronunciarnomeuouvido,quandomedeuoabraçodedespedida.

Segureiavontadedechorareentreinoaviãoapassosrápidoscomosetivessereceiodemearrependerdadecisão.Decoleicomasensaçãodeter deixado alguma coisa importante demais para ser posta empalavras.Descobririadepois, aduraspenas,quepodemosabandonarapátria,maselamoradentrodenóspara todoo sempre.Deixá-la semperspectivadevolta é tão amargoquanto amputarummembrodo corpo.Ali, recostadonaquela poltrona do Boeing 737, eu senti quemorria um pouco demimmesmo.

Só fui recuperar o ânimo quando fizemos uma escala em Isfahan,antigacapitaldoImpériopersa.Doaltopudeadmiraracidadetidacomoajóia do Irã, com suas mesquitas de cúpulas azuis e minaretes gêmeos,

seguindo as técnicas usadas pelos sassanidas. Infelizmente não poderiadescer para rever Roya e Farhãd, nem perambular pelo bazar quecircundava a praça Khomeini, uma dasmaiores domundo. O sorvete deaçafrãoamarelado,especialidadelocal, tambémficarianavontade.Penseiem Agho Jun, em como ele teria gostado de visitar as famosas lojas quetornamaregiãoconhecida.PoisassimcomoShiraz,Isfahanbatizaumtipode tapete persa. Aquilo tudo ia passando pela minha cabeça durante asquase duas horas em que permanecemos em solo. Avisaram sobre umpequenoproblematécnico,masquandotornamosadecolar,fecheiosolhosesófuireabri-loscomavozdaaeromoçaanunciandoaaterissagem.

Nesse instantemeu coraçãodisparou.Zibãestaria àminhaesperaemTeerãparamepassarodinheiroeosdocumentosdoirmão.RecordeiafrasedeAghoJun,quedisseraantesdapartida:“Quandopuder,encontreumaboamuçulmanaecase-secomela”.Elenãoconseguiradisfarçarseudescontentamento com minha paixão por uma mazdeísta. Eu quebravaduas regras básicas da sociedade iraniana. Primeiro, me apaixonei poralguém,contrariandoocostumedoscasamentosarranjados.Pelatradição,parentes ou amigos próximos indicavam os candidatos que as famíliasdepoisselecionavam.ForaassimcomFarzaneecomNarges.Elastiveramos respectivosnoivos apresentadosporminhamãeque, coma ajudadasminhas tias, escolhera ambos entre alguns dos pretendentes potenciaisdisponíveisno“mercadoconjugal”.Nomeucaso,acabeidescobrindooquecombinaramcomospaisdeBehruzemrelaçãoàirmãdele,apesardeAghoJunnuncaterabordadoooassuntocomigo.EuhaviasidoeleitomaridodeFatyecomonoivoteriaquecontribuircomumdote,omahr,quenãopodeserreclamadodevoltasobnenhumacircunstância.Obviamente,odinheiroqueAghoJunconfiaraaAmirparaseraplicado,sumiunodiaemqueoXáfugiu do Irã com seu séqüito. Pelo menos isso fazia de mim um pobrecandidato...

Comosenãobastasserecusaramoçaqueeles julgavamidealpara

mim,euincorreranomaiordetodosospecados.Alémdenãomesubmeteràs normas vigentes no negócio nupcial, fui gostar da pessoa maisinadequada possível na face da terra. Nada teria representado piordesgraçadoqueeupreferir justoumainfiel,umaimpura.Asimples idéiade uma união mista como essa enchia a família de vergonha e desonra,salvo se ela se convertesse ao islamismo, algo impensável, que eu jamaiscogitariaempedir, tendoemvistaas convicções religiosas tão sólidasdeZibã.Assim,apesardetudo,paraAghoJunaquelafugaeraumalívio.Traziacomo contrapartida a vantagem deme separar da garota que ele jamaisaprovaria como nora. Eu seria deserdado e repudiado pelos meus. Aochegar a essa conclusão dolorosa, mas absolutamente lógica, senti umaraiva imensa do meu pai e das tradições iranianas, o que teve o efeitopositivodeespantarasaudadequejáseinsinuava.

Desembarquei junto com centenas de passageiros que lotavam osvôosnaquelefinaldeRamadã,retornandoaoslaresapósrendervisitaaosprincipais centros de peregrinação do país. Sentindo-memais seguro, eupassavadespercebidonamultidão.

NãofoifácilencontrarZibãnomeiodetantagentemas,afinal,sentiumpuxãolevenamangadacamisa.Láestavaela,maisbelaaindadoquearecordava.Não sei porque, pensei nas tulipas que gostava de cultivar nojardimparavê-lasdesabrochardeumsimplesbulbosemgraçaemumadasmaisperfeitas floresexistentes.ComZibãsucediaomesmo,masabelezadela tinha um toque inusitado e exótico, um sopro de sensualidademaisafeita à esfera dos céus do que da terra. Por isso estremeci ao vê-la tãopróximademimapontodesentirseuhálitoderosas.

-Seperguntarem,digaquesomosirmãos.–elacochichou,tomandominhamão,numgestoproibidopelasleisislâmicasentrepessoasdosexoopostosemrelaçõesdiretasdeparentesco.

Pegueiamalae caminhamosparaumtáxi,quenosdeixouemumprédiobaixo,cercadodemoradiaspopulares,nossubúrbiosdeTeerã.Ao

descermos,elaexplicouqueotioalugaraumquartoenquantotratavamdoprocessodafugadeÕrash.

- Sabe que ele tentou o suicídio? – ela perguntou com seus olhosdocesetristes.

Recordando a aflição muda de Õrash, eu acreditava mesmo queaquilo não era impossível. Se para mim a situação mostrava-sedesalentadora,penseicomotinhasidonocasodele.

-Vocênão imaginacomofoi importantesuadecisãodepartircomele. – Zibã acrescentou. – Sozinho Õrash não iria, e ficar aqui significamorrerdeumjeitooudeoutro.

Sim, eu sabia. Comigo quase ocorrera o mesmo, só que de formatruncada, pormeio de um alistamento queme conduziria àmorte certa.EstiveàbeiraderevelarmeudiálogocomBãbak,masmecaleiporreceiodesertomadoporlouco.

AoentrarmosZibãmeentregouumacarteiracomminhafotocoladasobosobrenomedafamíliadela.Poderiasignificarquaseadiferençaentrevidaemortesefôssemoschecadospelapolíciadamoralidade.

-Paratodososefeitos,somosirmãos,nãoseesqueça!.–elareiterou,aosubirmosasescadasatéoapartamento.

-Ondefoiarrumarmeuretrato?–indaguei,pasmo.-Vocêmedeuantesdepartir... – ela retrucou, girandoa chavena

fechadura.Entramosnocômodoqueserviadesalaecozinha,comumamesa,

fogãoealmofadasespalhadaspelochãocobertoporumvelhotapetegasto.Umaportadavaparaumbanheirominúsculoeoutraparaoquepareciaserumquartodecasal.Nãoexistiamarmários,asroupasficavamemdoisbaúseorestanteespalhava-seemdesordemporcimadospoucosmóveis.

-Desculpe–elaseexplicou.–Nãotivemostempodeajeitarmelhorascoisas.

Como eu não respondesse, Zibã começou a preparar chá no velho

fogãoagás.Enquantoaáguaferviaelaabriuoforno,noqualcolocouumatravessadearrozcomcarneiroqueretiraradageladeiratodaenferrujada.Ajudei a separar os talheres e os pratos sem dizer uma palavra,constrangido e ao mesmo tempo deliciado com aquela intimidadedoméstica. Parecíamos de fato dois irmãos, pensei commeus botões.Ou,melhorainda,maridoemulher...

Semquerer, relembreimeus sonhos comZibã e enrubesci. Ela leumeuspensamentos,poisfoilogodizendo.

-Nóspassaremosestanoiteaqui,omotoristasóviráamanhãcedo.Umdenósdormenasalaeooutronoquarto.

-Euficonasala.–apressei-mearesponder,soandoinábilaosmeusprópriosouvidos,paraemseguidaperguntar:

-Seutionãovoltahoje?Elaapenas sorriu comumapontademalícia.Paraencobrirminha

falta de jeito, comecei a contar tudo o que acontecera comigo durante operíodo em que ficamos sem notícias um do outro. Relatei em detalhesdesdeaminhavoltaaShirazparaencontrarminhamãemorta,otrabalhono laboratório,asandançaspelasruasdacidade,atéoeventodaqueimadosmeusdiários.Aoterminarpercebimaisclaramentecomotinhamsidosem graça aqueles últimosmeses. Pormais que enfeitasse e colorisse osepisódios, vi que eles formavam um conjunto cinzento e vazio.Experimenteipelaprimeiravez,emmuitotempo,umaforteconvicçãodanecessidaderealdafuga.

Zibã notou a mudança de ânimo que se processou em mim,aproveitandoparamostrarosmapasefalarsobreosplanosquefizeraparanósapartirdapequenaaldeiaondeeuencontrariaÕrash.

-Tenhocertezadequedestaveznadavaisairerrado.–elagarantiu,fazendo-melembraraprofeciasemelhantefeitaporAghoJun.

Terminamosdecomerelavamosalouça.Pediparatomarumbanhoe, diante do espelho, examinei meu corpo como se precisasse de uma

aprovaçãoqualquer.Nuncaforadefazerexercícios,porissoganharapesonaquelafasedepoucaocupação,mascomosempreforamagro,atéquenãomecairamal.Porsorteanaturezamedotaradeumfísicorazoável,alturaacima da média e uma musculatura flexível. Meus cabelos escurosemolduravam meu rosto e a barba voltara a crescer, formando umcontraste interessantecomobrancodosdentesquandoeusorria.Otodotambémnãoeradesagradável,eureparavacomoasmulheresmeolhavamnasruas,aindaquediscretamente.Sóqueeununcaestiveracomnenhuma,eraprecisomanter-mecastoatéodiadocasamento.“Queidiotia”,penseicomigo, para em seguida me perguntar se Õrash já havia dormido comalguém.Não conseguia tirar aquela idéia da cabeça quando voltei para asaleta,livredosuorcausadopelaexpectativadalongaviagem.

- Boa noite, aproveite para dormir. – Zibã me disse, retirando-separaoquarto.–Amanhãseráumlongodia...

Deiteisobretrêsalmofadasquejunteiparaformarumaespéciedecolchãoemeenroleinamantaqueestavaaosmeuspés.Apesardocansaço,não conseguia pregar o olho, com um turbilhão de perguntas semrespostas.AprincipaldelasdiziarespeitoaZibã.OqueseriadelasozinhanoIrã?

Nãoseiquantotempopassoudesdequeeudeitara,masjádeviasermadrugadaquandoouviavozdeZibãmechamardoquarto.

-Vocêestádormindo?-Não.–respondi,alerta.–Nãoconsigo...-Nemeu.–eladisse.Dali a pouco escutei o barulho da porta do quarto ranger e me

sentei, deixando a coberta escorregar. Pela luz difusa que entrava pelajanelasemcortinaviumamulhercaminhandonaminhadireçãoelevanteiapressado. Zibã vestia uma túnica longa e fina, que deixava entrever oscontornosdocorpo.Nãopudeevitaralembrança,nahora,deumaimagemqueviraemumarevistanaépocadoXásobreassantasdaigrejacatólica.

Era isso, Zibã parecia uma destas figuras sacras que os ocidentaisadoravamdooutroladodoplaneta.

-Vocêestácommedo?–elaindagou,próximademim.-Doquê?Daviagem?-É...–Zibãrespondeunumsopro.Nósdoissentamosnasalmofadaspertoumdooutro.Elaabraçava

os joelhos puxados até o queixo, deixando os cabelos compridosencobrirem os braços e parte do rosto. Meus olhos fixavam-se neles,impedindoqualquerraciocínio.

-Vocêestá commedoda fuga?– ela repetiu, enfatizandoaúltimapalavra.

Acusto,conseguisairdotranse.-Umpouco...–admiti, inebriadocomaquela intimidadedelicadae

rara.Amulherdosmeussonhos,quetalveznuncamaisfossevernavida,bem ali, ao alcance dos meus dedos. Fechei os olhos e deixei o instintotomaradianteira.Aprenderiaaliqueosublimeeopecadosãodoisladosdamesmamoeda.

XXIOguiaqueveiomebuscaràsseisdamanhãentregou-meumanova

carteiradeidentidade.-DehojeemdiantevocêsechamaJafareseuamigo,Kãzem.–ele

explicou,dandopartidanocarro,queengatounumsolavanco.Mahmuderaumhomemmaisvelhodoquenossomotoristadafuga

fracassada.Aparentavatermaisdecinqüentaanos,pelabarbagrisalhaquedesciaatéabarrigaproeminente.Eletinhaodomdedirigirefalarcomasmãossimultaneamente.Aprincípiofiqueiapresensivo,masdepoisrelaxeinoembalodasuaexpansividadecontagiante.

Cobrimos os 85 quilômetros até o vilarejo a noroeste na maior

animação.Elecantarolava, faziacomentáriosengraçadoseabsurdoseriade tudo.Há séculos eu nãome sentia tão leve.No entroncamento com arodoviainterestadual,tomamosumaestradadeterraabertaemmeioaospenhascos, sinuosa e estreita. Exausto, acabei mergulhando num sonoprofundoparamerefazerdanoitepassadaemclaro.Quandodeipormim,passávamosdiantedafileiradecasasdeadobebrancoqueformavamumminúsculoaglomeradoaospésdacordilheiradeBarghan.

Umventocortantesopravasobreolugarque,nopassadolongínqüo,abrigaraumtemplozoroastra.Docarropudeveralgunsmoradoresmaisvelhos conversando sentados em tapetes à beira do Senj, um rio raso epedregosodeáguasazuiseprateadasquedánomeaopovoado.Penseinofrioquedeveriafazernasnoitesgeladasdoinverno,semenergiaelétrica,apesardaexistênciadeuma importanteminadeurânioaumahoradali,conformeficariasabendoporMahmud.

-Trabalheiparaodonodela,umfrancêsqueretirouurâniodeláemparceria como governodoXá. – ele falou, satisfeito empoder retomar aconversa. –Havia um acordo nuclear com os EstadosUnidos e a França,canceladodepoisdarevolução.–concluiu,reclamandodapobrezaqueseabaterasobrearegião.

- Por isso mudei para Teerã, mas não consegui emprego... –acrescentou.–Assimeuvireimotoristaeguia...

Estacionamos então defronte um daqueles casebres feitos comargilaclaraparapegarÕrash.DaliapoucoestariadiantedoirmãodeZibã.Quaseumano sepassaradesde anossa aventura frustrada. Seráque elemudaramuito?Penseinarudezadavidaali,naqueleermo,longedetudoedetodos,semluzelétricanemtelevisão.Fiqueiimaginandoasdificuldadesque enfrentara para chegar a cogitar namortemesmo professando umareligiãoquepregavaaalegriadevivereprosperidade.

Em poucos instantes meu amigo entrava no carro. Ele mecumprimentou com um abraço de irmão e quase chorei ao recordar o

apertoquepassamosjuntoseoqueaindanosesperavapelafrente.Traziauma maleta menor que a minha, que Mahmud colocou no bagageiro doautomóvel da marca Peikan. Pelo visto, havíamos aprendido a lição,dispensandoasmochilasvistosasquenoshaviamincriminadonaestaçãorodoviária.

Conversamosquasedespreocupadosnasubidaíngreme,evitandoaestradafederalquepassavaporZanjâneTabriz,epreferindoosdesviosnomeiodascolinas.Õrashescondera-sealihaviamaisdeummês,tomaraumvôo da Romá em Yazd e permanecera em Senj com alguns parentesdistantes

- Precisa ver o tamanho da poltrona do meu Tupolev. Era maisapertadadoquenoônibus.–elecomentou,repartindocomigoospãesquetrouxera para nosso primeiro lanche no longo caminho até uma aldeiapróximaaOrumiê,ondechegaríamosànoitinha.

Após uma hora de viagem, nós dois começamos a dormir.Entorpecido pelo barulho do motor e enjoado por causa das curvas daestradaemziguezague,passeiarecordarosmomentosdanoitecomZibã.Podiasentiroperfumedoscabelossoltosquandoelaseaproximoudemimeeurecueiassustado.

-Nãodevemosfazerisso...–falei,maisporcavalheirismocanhestrodoqueporconvicção.

Elanãoseacanhara,pelocontrário.Chegoupertoecolocouminhamãodireita sobreo seioesquerdo.Omamiloenrijeceu-seao contatodosmeusdedos,eelafalou:

-Sabeoqueelesfazemcomasirmãsdostraidores?EstremeciaorelembrarmeusonhocomoSepahePasdaran,eunão

queria pensar naquilo, embora os relatos que ouvira fossem bastanteassustadores.

-Ninguémvai temachucar, euprometo. – tentavaparecer seguro,masminhavozdenunciavaaemoção.

-Nãovamospensaremcoisasruins,vamosviveropresente.-Zibã?-Oque?-Temcerteza?Emvezderesponder,elamepuxoucontrasienomomentoseguinte

euretiravaa túnicaque faziadelaumanjosemasas,daquelesqueviempequeno nas revistas ocidentais. Pude então sentir a pele macia e aomesmotempoeriçadaconformeminhabocaiadescendoaosseiosedeláàregiãoabaixodoumbigo.

Elasoltouumgemidodeprazer,queeutomeicomosinalverdeparaprosseguir,afogando-meentreaspernasquesefecharamemtornodomeupescoço. Degustei um sabor acre-doce diferente de tudo o que jáexperimentara. Daí meus lábios buscaram sua boca, e enquanto nossaslínguassetocavam, láembaixoeuiapenetrandoaquelazonaproibida,daqualfuitomandopossedevagar,quaseamedo.Elameajudouaencontrarocaminho e a princípio com dificuldade, rompi o tecido diáfano que aguardavafeitoumvéu.Semsaberdireitocomoagiremseguida,inicieiumvai-e-vem ritmado,mas com a delicadeza que a ocasião exigia. Pormaisincrível que parecesse, ainda havia emmimum resquício de lucidez queorientavameu corpo, evitando qualquermovimento brusco que pudessemachucá-la.Desúbito,oinesperado.Amorteeavidanumflash,ofugazeoeterno.ZibãemPersepólis, as tranças soltaspelovento,ovestido floridoapanhadoentreosjoelhos,vocêacreditaemDeus?Aliestavaeuemtrajesde finaseda,verdesedebrocado.NoParaísoprometido,aminhavirgemdeflorada com braceletes de prata. O Senhor dera-nos de beber dapuríssimabebida,Alásejalouvado!

-Possoficaremorrerpelonossoamor!–eudissera,antesdepartir.- Prefiro que você se alimente dele, Kurosh. – respondera, solene,

sobreaofertabobadesacrifícioromântico.Minhas lembranças foram subitamente interrompidas por um

baque.Abriosolhosnumsusto,ocarroacabavadebateremalgumacoisa.Virei e pelo vidro traseiro vi flocos branquicentos esvoaçando, enquantonossomotoristaencostavanabeiradaestrada.

-Esperemumminuto,eujávolto–esumiunolusco-fuscodocairdatarde.

Ficamos,Õrasheeu,aguardandonoveículo,semsaberoquefazernem o que falar. Por alguns segundos pensei que ele tivesse nosabandonado.O tempopassavaenadadonossoguia.Õrashentãoabriuaporta, subiunomorro e sentou-senuma rochaparaolhar apaisagemdeterraamareladasemqualquervegetação.Quandocomeçamosaacreditarquenosrestavapegarasbagagenseirembora,Mahmudvoltou.

-Agorapodemospartirsossegados,nossocaminhodesbloqueou,setivesse que acontecer alguma coisa ruim, já teria acontecido. Daqui parafrentevaidartudocerto.–elecomentou,retomandooassentoaovolante.

- O que foi aquilo? – indagouÕrash, apontando para as penugensbrancasespalhadasaoladodopneudianteiro.

-Atropelamosumcoelhoeelenãomorreu.Euestavacadavezmaisconfuso.-Trazmásortedeixarumanimalmachucado.–explicou.–Agente

precisaprocurá-loeporumfimaosofrimentodele.Mahmudabriuumsorrisolargo,avisando.-Conseguiencontrarematarobicho.Éumsinalquetudoderuim

ficouparatrás...Diante de tal argumentação, Õrash e eu respiramos aliviados. E

recordeiumincidentesemelhantenanossaprimeirafuga.Aquilotinhametraumatizado,masnossomotoristatransbordavadecontentamento.

- Batam palmas e cantem, porque não vai acontecer nada. – elegarantiu confiante, arrancando de mim de Õrash alguns acordes quelembrávamosdostemposemquenãoeraproibidoficaralegre.

-JáquevãoparaaquelasbandasdoNorte,queremouvirumaboa?–

Mahmudindagou.E,semnosdarchancederetrucar,continuou.-Perguntamaumrashtioqueeledeudepresenteparaaesposano

aniversáriodecasamentodelesnoanopassado.–Mahmudreferia-seaoshabitantes de Rasht, cidade ao norte, perto domar Cáspio, que às vezeseram substituídos pelos torqui, da Turquia, quandos se tratava de fazerpiada.Elesedeteveporalgunssegundos,paracriarumclimaeprosseguiu.

- Levei-a para Isfahan, o rashti respondeu. Que legal, parabéns! Eesseano,qualvaiseropresente?Voubuscá-la...

Õrash e eu desabamos numa daquelas gargalhadas que noschacoalham de cima abaixo até a barriga doer. A piada nem era tão boaassim, aliás, depois me pareceu bem fraquinha, mas naquele instantecumpriuopapeldacatarsedequetantonecessitávamos.

Comoestadodeespíritomaisleveecheiosdeesperançagraçasaootimismo de Mahmud, que mudou nosso astral, alcançamos Orumiê naboca da noite. Ele estacionou dentro de uma garagem, fechou o portão epediuquedescêssemos.

-Vocêsesperemaqui.Amanhãchegarãooscavalosecontornaremosolagoemdireçãoàfronteira.–explicou.

-Outra coisa. – prosseguiu, enquanto retiravanossasbagagensdoporta-malas.–Livrem-sedisto,pesamdemais.

-Mastodasnossasroupasdeinvernoestãoaí!–Õrashprotestou.–Comoenfrentaremosnofriodasmontanhas?

-Éoseguinte.–eledisse.–Vocêspõemváriascamadasdeblusas,casacos,ceroulasecalçasumasemcimadasoutras.Vistamomáximoqueconseguirem,massemdeixaratrapalharosmovimentos.

- Vamos ficar dois obesos – debochei, divertido diante daquelasoluçãomaluca.

-Melhorgordosdoquemortos.-Mahmudretorquiu.–Nãovamosquererchamaraatençãodosguardas,concordam?

Entramos numa espécie de barracão num local ermo. Lá dentro

encontramosumamesapostacomqueijodecabra,pãoeumbuledechánofogareiro.Paraespantaro frioesquentamosabebidaedepoisnossoguiamandou que colocássemos tijolos aquecidos entre as cobertas nos doiscolchõesqueestavamnochãodepedra.Aconselhoudormirmosomáximoquepudéssemos,poislogocedoeleestariadevoltaepartiríamosacavaloparaumaaventuradedezdiasnomeiodacordilheira.

Oconselhoeradesnecessário.ApósanoitenosbraçosdeZibãeajornada de automóvel, eu só pensava em fechar os olhos e cair no sono.Õrashtambémpareciacansadoenósdoisdormimospesadamenteatéodiaseguinte.

Acordamos com o sol alto. Fiquei em pé num pulo, achando quetinhamnosesquecido.Passavadaumadatardeeninguémvieranosbuscarcomoprometido.Õrashtambémlevantou,tomamosmaischáecomemosorestante que sobrara. Então abrimos as malas e começamos a vestir asroupas como Mahmud recomendara. Ao final, ficamos zombando um dooutroenquantonosmovimentávamoscomoastronautas.

- A Terra é azul, a terra é azul – dizia Õrash, imitando Gagarin, oprimeiroserhumanoairparaoespaço.

-Aindabemqueestãodebomhumor–ouvimosMahmuddizerládefora,batendonaportademadeirarústica.

O sono havia refeito nossas forças e restaurado as energias. Nemparecíamosfugitivosprestesaembarcarnumaaventuratemeráriaatravésda trilhagelada.SóqueMahmud jogouumbaldedeágua frianasnossasexpectativas.

-Houveumamudançanosplanos e teremosquepegaros cavalosemoutrolocal–explicou,paralogoacrescentar.–Vocêsvãosairdenoiteparanãolevantarsuspeitas.

Ele colocou nossas malas vazias no porta-malas e mandou queentrássemos no carro. Ficamos dando voltas pelas ruas menosmovimentadasdacidaderindodemaispiadasparalevantarnossamorale,

numdeterminadoponto,estacionamos.-Podemdescereesperem.Assimqueescurecer,daquiaduashoras,

virãobuscá-los.–Comestaspalavrasreconfortantes,despediu-sedenós.-Lembrem-se.Ocoelhofoiumsinal.Tudovaicorrerbem.Vocêsnão

têm com o que se preocupar. – ele esticou amão gorducha e, com umapiscadela,acrescentou.–Nãovãosemeteremencrencas,hein?

Ficamosalivendoocarrodesaparecernohorizonteetorcendoparaque não nos abandonassem. Apesar do esforço dele para nos transmitirsegurança e otimismo, nada impediria queMahmud tivesse embolsado odinheiro e nos enganado, deixando-nos ali nasmãos do destino. Poderiamuitobemestarrumandoàdelegaciaparanosdenunciarcomoforagidos.Embora tivesse feito de tudo para ganhar nossa simpatia, aquela idéiamalucafixou-senaminhacabeçacomobsessãoetínhamoslongashorasdeespera.Nissovimosadianteummovimentointensoeresolvemoscaminharaté lá. Era um cemitério onde realizavam vários enterros simultâneos.Haviaguardas,militaresefamíliasdespedindo-sedosseus.Sugeriquenosmisturássemos para passar incógnitos no meio de tanta gente. Comdificuldade, devido às diversas camadasde roupa, nos ajoelhamosdianteda cova de um soldado recém sepultado ainda sem a lápide. Lembrei deBehruzefizalgumasorações,naesperançadequefosseperdoadodemeuspecados que iam somando-se uns aos outros como as montanhas dacordilheira.Porvoltadasoitodanoiteretornamosaopontodeencontroeaguardamosoguia.Afomebateu,masnãoerapossívelarredaropésoborisco de perdermos o contato de uma vez por todas. Quando faltavamquinze minutos para as nove horas, escutei passos seguidos de umchamado.

- Jafar?Kãzem?–olheiaomeuredorparaversetinhaalguémporpertoquandolembreiqueaqueleseramnossosnomesfalsos.

Tivequemeconterparanãopulardealegriadiantedo rapazquesegurava um embrulho nasmãos. Pelo acento, deu para perceber que se

tratavadeumcurdocomseutrajecaracterístico,calçaslargasapertadasnotornozelo e o típico lenço xadrez envolto no topo da cabeça que tantasvezesviraretratadonoslivrosdehistória.

-Vocêsdevemestarfamintos.–elepareceudizer,estendendoparanósdoispãocomcarnedecarneiro. Senti vontade de beijar o homem que naquele momentorepresentava a concretização do nosso projeto de sobrevivência. Nãoficaríamos largados em Orumiê, nem seríamos recolhidos a uma cela deprisão.Por intermédiodele, cortaríamosasmontanhas rumoà liberdade.Era nisso que pensava quando notei que ele não trazia os cavalosprometidos, enquanto se esforçava para explicar em farsi misturandopalavrasdo seupróprio idioma,que seriapreciso cobrirumpedaçoapéatéolugarejoondeosanimaisestariamànossaespera.

–Fazmenosbarulhoenãodespertacuriosidade.–disse.OlheidesanimadoparaÕrash,quetentavacontrolaratensãodiantedaqueleimprevisto.Depoissacudiuosombros.Sabiaquenãohavianadaafazersalvoseguirnossoguia.Sónãoimaginávamosquelevaríamosquatrohorassobumatemperaturaabaixodezero.-Vocêspassarãoanoitenumvilarejoedelá,quandoescurecerdenovo,continuaremosacavaloatéa fronteira.–explicou,semprecomseulinguajaresquisitoefortesotaquecurdo.

Semesperarresposta,elesepôsemmarcha.Aospoucosasluzesdacidadeforamdiminuindoatéviraremestrelasespalhadaspelochão.Nessemomento senti um arrepio. Não dava para voltar atrás. Conforme íamosmontanha acima o frio aumentava e eu me encolhia dentro dos casacoscolocadosumsobreooutro.Mesmoassimoargeladoentrandopelonariznãodeixavaocorpointeiramenteaquecido.Ocansaçotambémnospegoumaiscedodoquesupúnhamos,masoguianosimpediadefazerpausas.

-Pararépior.Vamoscaminhandoquelogo,logochegaremoslá.Nãotenhoidéiadequantotempoandamospelanevequeiaficando

maisfofanamedidaemquesubíamos.Ospassosforamsetornandolentosepesadoscomogeloqueseformavanasoladoscalçados.Emdeterminadomomento,eunãoconseguiamaissentirospés.Oguiaiaàfrentetranqüiloe não parecia notar o frio. Ele tinha a segurança de quem fazia aqueleitineráriotodososdiaseconheciacadapalmodeondepisávamos.Eumesentei numa rocha e, com uma faca, tentei sem sucesso raspar o gelogrudadonaborracha.Acabeitrocandoasbotaspelopardetênisquetraziana sacola. Não adiantou. Dali a momentos uma fraqueza incontrolávelbambeouminhaspernas,incapazesdemesustentar.

- Faltamuito? – indaguei como fazia em criança nas viagens comAgho Jun. Em lugar de responder, ele só fez ummovimento indecifrávelcomacabeça.

-Estoucomsede.–Õrashreclamou.O guia nos deu um gole de chá quente e por uns minutos

recuperamosoânimo.Euolhavaàminhavoltaemaldistinguiaoperfildasmontanhasqueseuniamàsnuvensacinzentadas.Recordeitudooquelerasobre os golpes traiçoeiros da cordilheira e senti uma moleza fora docomum.OmesmopareceuteracontecidocomÕrash,poiselesentou-senochãoedissequenãoconseguiriamaiscontinuar.

-Faltapouco–oguiaretrucou.-Quantotempo?–euquissaber.–Sejahonestoconosco,porfavor.Ele pareceu refletir e então respondeu que tínhamos pelo menos

umahoradecaminhada.-Nãovouagüentar.–disseÕrash.-Eutambémnão.–emendei.Orapazolhouparanós.Pelaprimeiravezpareciaperdidoesoltou

umsuspiro fundoquesecondensounoargelado.Levouumadasmãosàtestacomoseraciocinasseeentãosugeriuque ficássemosnaquelepontoaguardando. Prometeu que retornaria com os cavalos o mais rápidopossível.

Denovo,nãotínhamosescolha.Eraconfiarnaspalavrasdohomeme torcer para que as honrasse. Acomodamo-nos sobre duas pedras dasquais retiramoso excessodenevee começamosumaesperaqueparecianãoterfim.Constateicomootempoérelativo.Elevoavaquandoestavaaolado de Zibã, mas esticava feito elástico na prisão e na temporada emShiraz,semtrabalhonemlazer.

A imagemdaminha terra natalme sufocou. Lembrei do abgushtekalle fumegantequemeupai comprava cedinhoparao cafédamanhã.Ocaldogrossoeesverdeadocozidocomaspartesmenosnobresdocarneirocomo cabeça, patas e entranhas sustentavaumhomempor longashoras.Senti um vazio do tamanho da imensidão que nos cercava. Mas não erahora para arrependimentos nem nostalgias. Precisavamos lutar contra ofrioquedesdenhavadasnossasroupasespessas.Osminutostranscorriamlentos como a areia de uma ampulheta entupida. A situação já seriasuficientementepavorosasemosuivosquepareciamnosrondar.Sófaltavasermosdevoradospeloslobosfamintos!

-Estou congelando... –Õrashdisse. – esse sujeitonuncamais vemnosbuscar,achomelhoragentevoltarparaacidade.

-Ficoumaluco?Sabequantashorascaminhamos?Eleapontoucomodedoasluzinhasquebrilhavamlánofundo.–Não é tão distante, se formos agora nós conseguiremos. – falou,

levantando-se.Tambémfiqueidepéeoagarreipelobraço.- Nem pense nisso. Elas parecem perto como uma miragem no

deserto.–torneiasentar-me,osimplesesforçodefalarmedeixarazonzo.–A cidade estámuito, muitomais longe do que você imagina. Vai cair nomeiodaestradaemorrercongelado.

-Nósvamosmorrerdequalquerjeito.Oguianosabandonou.-Comotemtantacerteza?-Porquevoltaria? Jáembolsouodinheiroenãotemosninguéma

quemreclamar.No breu da noite, os uivos tornaram-se mais próximos, cortando

nossodiálogo.- Ainda bem que Mahmud garantiu que tudo correria dentro do

planejado...–eudisseemtomdedeboche.-Ocoelhofoiumsinal,nãotêmcomoquesepreocupar...–lembreiemvozalta.

-Sequiser,fique...Euvoutentar...–eÕrashdenovocomeçouasemover.Eunãosabiacomodetê-lo,mastinhaacertezadeque,separtisse,morreria antesdealcançarOrumiê.Tentei concentrar-me como fazianaspartidas de xadrez. Controle das emoções e raciocínio ágil, sangue frio eequilíbrio.Você temque fazerasopçõescertas.Você temquesesuperar.Umpassoemfalsoeseureiestámorto!Fecheiosolhosinvocandoaajudade Khoda. Quando abri, observei meu amigo sumindo na virada de umatalho até desaparecer por completo do meu campo de visão. Cerrei aspálpebras esperando pela morte, apenas pedindo que ela fosse rápida eindolor.

Tiveanítida impressãodeouviravozdeBãbak. “Vocêprecisadeum facho que te ilumine”. Ao som destas palavras, uma idéia zuniu naminhacabeça.

-Vocêtemfósforos?–griteiaÕrash,naesperançadequepudessemeescutar.

-Oque?–elerespondeuláadiante.-Fósforos,qualquercoisaqueacenda...–insisti.Õrash veio voltando a passos lentos e, remexendo os bolsos, me

estendeu um isqueiro. “Um bom zoroastra traz sempre uma pequenachama consigo”, pensei em dizer, mas preferi me calar. Ele apenas meolhava de um jeito incrédulo. Eraminha última chance de convencê-lo aficar. Se não tivesse êxito, perderia meu amigo e a mim mesmo, poissozinhotampoucosobreviveria.“Bãbak,sevocêaindaestiverporaqui,porfavor,meajude”,rezeibaixinho.Ali,noespaçoinfinito.

XXIICom as mãos enrijecidas pelo frio, fui tirando devagar uma das

camadasderoupaquevestira.Emseguidaateeifogoaomontinhoformadopelacalça,blusadelãeumpardemeias.Semasluvas,nosaproximamosdafogueiraquereaqueceunossasesperanças.Quandoelaestavaprestesase apagar, foi a vezdeÕrashdar seuquinhãoeo fogo tornoua crepitar,lançandofaíscasquemorriamaotocaranevedochão.Nodesespero,nemlembramosdaciladaquecriávamosparanósmesmos,transformando-nosemiscascomaquelefocodeluznomeiodabrancura.

Animados com o resultado, fomos queimando peça por peça atéficarmos apenas com uma calça de lã e uma blusa grossa. O restante,incluindogorroseatéa sacolacomnossospoucospertencesarderamnofogo que tudo consumia com uma voracidade inacreditável. Ao cabo dealgunsminutosestávamosmaisenregeladosdoqueantes.

-Droga!–disse,quandoa fogueiraapagou-seporcompleto.–Quebelaidéiaaminha!

Com os braços em volta do corpo, na vã tentativa de manter-seaquecido,Õrashnãoreclamou.

-Relaxa,Kurosh...Nãoíamosescaparmesmo...- Porquê? – eu estava àbeiradodesespero. –Porquê temosque

acabarassim?Ele não respondeu, mas no silêncio que se fez pude ler seus

pensamentos.Comacabeçaconfusa,desandeiatremerdefrioedepavor.Os lobosuivaramcadavezmaispertoeumaraiva incontidatomoucontademim.

-Malditoscurdos!-Economizeasenergias,nãovaleapena...Meuódiofoicrescendo.

-Comopude ser tão ingênuo?–meus lábios estavamrachadosdefrio,masaindaserviamparaproferirimpropérios.

-Oscurdossãounsporcos!-Nãodigaisso–Õrashinterveio,chocadocomminhaagressividade.

-Bemfeitoparaeles.Vãopassaraeternidadecomonômadessempátria! -Deixeoscurdosparalá.–elefalou.–Eujásentinapeleoquesignificaserperseguido...Assimnoscalamos,cadaqualsubmersoempensamentoslúgubres.O tempo continuava a escoar enquanto o frio nos envolvia como umamortalha.Nãosentiamaisaspernas,nemasmãos.Ospésvirarampedrasdegelodentrodotênis.-VocêpretendiamesmoirparaoRiodeJaneiro?–Õrashperguntoucomumfiapodevoz. -Quediferençafazagora?–respondiaomesmotempoemquerecordavaaalegriadostrópicosedainexistênciadepecadodoladodeládoEquador.Oparaísoperdido,jamaisalcançado...Jáestavaquaseadormecido,quandodenovoÕrashmechamou.

-Sabedeumacoisaengraçada?-Hummm?...-Hojefaçovinteedoisanos...–Eletentavaparecerirônico,massuavozcarregavaumaindisfarçávelmelancolia.

Com amargura lembrei da ave migratória a que Bãbak mecomparou.Oalbatrozpodeultrapassarmeioséculodeidade,enquantonósnãoalcançaríamosmetadedavidadele.Seucorporobusto,decaudacurtaeasasestreitascomtrêsmetrosemeiodeenvergadura,sãoprópriasparaplanar. Dizem que passa a maior parte do tempo nos ares e dorme empleno vôo... Eu, um albatroz?! Estava mais para um cão sem dono quesequer tinha pulmões para grunhir. Não consegui dizer nada. Um torporagradável foi tomando conta do meu corpo, subindo lentamente até o

cérebro.Seaquilosignificavaumxeque-mate,entãoeleseriamuitobem-vindo. Enxadrista derrotado, preparei-me para abraçar amorte como ossoldados das frentes de batalha, como Behruz deve ter acolhido a dele,aventurando-sedecoraçãopuroepeitoabertonocampominado.Prestesadesaparecernasredobrasdoinconsciente,esboceiumaúltimafrase.

-Felizaniversário,Õrash...–emergulheinasbrumasdeumvácuoúmidocomooventredamulheramada.Zibã,minhaprincesazoroastra.

Apróximacoisaquevi foiuma luz.Nãouma luzcomumesimumcírculoamarelado.Elaseaproximoudemimcomcautela.

-Bãbak,évocê?Nenhumaresposta.-Estoumorto?Silêncio.-Cadêas72virgensprometidas?Uma gargalhada ressooupelos arredores. E a voz deBãbak se fez

presente.-Asvirgenssãoparaosmártires,seuidiota!Evocêestáaléguasde

serumherói...Foiquandoescuteiumchamadoaprincípioestranho.-Jafar!Kãzem!-Kãzem!Jafar!Avoztornou-semaisperceptívele,numsusto,lembrei-medenovo

dosnossosnomesfictícios.Aluzcomeçouatremularedentrodela,atravésde uma espécie de aura, revi o rosto do nosso guia curdo. Nenhumaimagem jamais me pareceu tão bela. Para meu alívio, a morte e Bãbakrecuaramcomoáguasdeumamarévazante.Eumedeixeicarregarparaolombodeumdoscavalosdoqualretiraramaselaparaqueocontatodiretocomocorpodoanimalajudasseameaquecer. Trotamosdevagare,daliameiahora,alcançamosumapequenaaldeiacurda,ondeumgruponosaguardavaemumcasebre.Eramhomens,

velhos na sua maioria, sentados de pernas cruzadas sobre tapetes.Compartilhavam chá preto. Deitei enquanto eles massageavam minhasmãosepéscomumóleomisturadoaalgumtipodevegetal.Fiqueipertodofogão,mantidocomestercodecavalocujocheiroenjoativo impregnavaoambiente.Do centro da roda observei que não havia umúnicomóvel nocômodo,tãorústicoquantoosrostosdosmeusbenfeitores.Elestinhamapeleeosolhosclaros,narizesgrandesecabelosruivos.Pelassuasmãoscalejadaseurenasci.Umaquenturaaconchegante,comoocolodaminhamãe,foitomandocontademim.Euqueriachorardefelicidade e gratidão. Eles debruçavam-se sobre nós sem se dar conta dequepossuíamumaauracintilantecomoaluzdosol,umaauraqueapenaseuenxergava.NessemomentoagradeciaKhodaemaldisseostiranosqueperseguiam este povo sofrido e sábio, que eu aprenderia a admirar erespeitarpelorestodavida.Enroladosemmantasfelpudaseparcialmenterecuperados,Õrasheeunossentamosparatambémtomarocháemxícarasdevidrotranslúcidocomofundoeabocadomesmodiâmetro,afinadasaomeiofeitocinturademulher. Depois de várias doses, delicadamente para não ofender nossosanfitriões,tentamospedirqueparassemdenosservir,maselesnãodavammostras de compreender e continuavam enchendo nossas xícaras. Sódepoisdescobrimos,entrerisadas,queparainterromperaqueleritualeraprecisovirá-lasdebocaparabaixosobreopires. Pormotivodesegurança,nãopoderíamosdormirdentrodacasapoisosguardasdafronteirafariamvistoriaslogocedo.Abriramumburaconofenoaoarlivre,puseramumcolchãoecobertasgrossasedisseramquedormiríamos ali. Quando estávamos para pegar no sono, trouxeram, emvasilhames de barro, arroz e frango, que comemos com as mãos.Terminamos lambendoosdedosenãomerecordode terexperimentadonada tão saboroso, queminhamãemeperdoe. Alimentados e aquecidos,Õrasheeudormimosatéatarde.

-Aondeestamos?–foiaperguntaqueouvicomumcutucãodomeuamigo. Abriosolhosebusqueivestígiosdelembranças,mastudooqueconseguiavereraaauradoscurdos.-Comopudesertãoimbecil?–pergunteidesupetão. - Sobre o que está falando? – Õrash indagou, empurrando ascobertas.-Dasminhasreclamaçõescontraestagente.–respondi.–Comofuifazerjulgamentostãoapressadoseinjustos?Õrashsoltouumsuspiroelevantou-se. -Nósestávamosàbeiradamorte,nãoconseguíamosraciocinardireito... - Mas isso não me deixa menos envergonhado... – respondi,constrangido pelas minhas imprecações na noite anterior contra aquelaboagentequesalvaranossasvidas.Meuamigoiadizerqualquercoisa,maspassosemnossadireçãoofizeram calar-se. Era nosso guia vindo nos chamar para comer queijo decabracomchápreto.Eledissequetivéramosmuitasorte.Senãofôssemosjovensesaudáveis,teríamosmorridovítimasdahipotermia. Daliemdiante,viajamossempreaoescurecerparanãosermosvistos,parandoduranteodiaparadormirem locaispré-determinados.Ogrupo foi aumentando. Na terceira noite já éramos quatro fugitivos, comtrês guias que se encarregavamdos alimentos e do chá. Comonão haviacavalosparatodos,revezávamosnasgarupase,detemposemtempos,oscurdos seguiam a pé para poupar os animais. Era surpreendente aresistênciadeles,galgandograndesaltitudescomdoishomensnodorso. Naquartanoite, quando já havíamos cobertoumbom trecho,encontramosoutrosiranianosemfugaenosjuntamosaeles.Agoraéramosquatorze manchas escuras movendo-se na palidez da cordilheira.Atravessamosumriachosubterrâneocobertodeumafinacamadadegeloe

escutamososomcristalinodaáguapassandopordebaixodele.Jáhavíamosnos acostumado à neve, ao frio intenso e a trocar o dia pela noite.Maisconfiantesedescontraídos,àsvezeschegávamosarirdealgumassituaçõesengraçadas, mas nunca conseguíamos relaxar para valer. Continuamosalertase,sobaquelatensão,qualquerruídodiferentefazia-noslembrardequepoderíamossercapturadospelaspatrulhasdafronteira. Sobacadênciadopassodosanimais,devezemquandoeucaíanumalassidãoesquisitacomoseestivessesonhandoacordado.Osilêncio,cortadoapenaspeloassoviodovento,medavaasensaçãodequenãoeraeu que estava ali. Emmomentos breves de delírio, eu enxergava cores epontos movendo-se na opacidade da neve que se fundia com o céu. Eradifícilmanteralucidezemumcenáriodetalmagnitude.Semhesitaçãonemdúvidas,oscurdoscumpriamumarotadefinida.Aopararmosnosvilarejos,encontrávamostudojáorganizado.Fazíamosatrocadoscavalosenoscasebreshumildesofereciam-nosabrigoealimento,que consistia no queijo branco tradicional, misturado com legumes eservidocompãofinoeredondo.Cadaguiapareciaexatamentecomooutro,damaneira truncadade falaro farsi àvestimentade calças largaspresascom elástico no tornozelo e ao lenço típico. Descobri que eram bastantepolitizadose,contráriosaoregimedosaiatolás,arriscavamsuasvidasnãopelosminguadostomanspagosaeles,masporacreditarnanossaânsiadeliberdade. Isso deduzi das conversas esparsas quemantivemos, pois eleseram de poucas palavras, embora sempre dispostos a dar informaçõessobrearegiãoesobreosroedoresquevíamossaindodastocasembuscadealimento.

Confessoquecomeçavaatéamedivertircomanossaaventurabemsucedida, quando despontaram dores terríveis nas costas, de tantocavalgar.Oatritoconstantecomaselamaceravaabasedacolunaedeixavaminhasnádegasemchagas.Quandoadorficavainsuportável,porsugestãodoguiaeume jogavananeveparaanestesiaro local.Deitadonogelo,no

meuíntimochegueiadesejarquemeabandonassemparadormirenuncamaisacordar.Dedia,enroladonasmantaseenfiadocomobichonomeiodo feno, eu revivia o pesadelo de ser enterrado vivo no esconderijo doslivros debaixo da cama no quarto daminha irmã. Ao acordar para outracavalgada noturna, tinha a ilusão de avistar albatrozes com suas asasrígidas e potentes, ideais para cobrir longas distâncias. Por que eu nãopodiametornarumdeleseatravessaracordilheirariscandooscéus?

Olhavaquase comraivaparaÕrash, que não se queixava e seguiafirme e ereto. Nasminhas alucinações intermitentes, eu cheguei a temerque ele fosse um centauro e não um cavaleiromontado como todos nós.Tambémachei que seríamos devorados pelos lobos esfomeados, que noscercavamemumadepressãodasmontanhasbloqueandoaspossíveisrotasde escape. Via-os mordendo as patas dos cavalos para nos fazer cair eestraçalharumporumadentadas.Natorrentedosmeuspensamentosemdesatino,osangueconspurcavaainsipidezdaneve,tingindodevermelhoas encostas do Albroz para suas feras quebrarem o jejum imposto peloinverno rigoroso.Mutilados e eviscerados como nomeu pesadelo com oSepahePasdaran,oscorposespalhavam-sepelasuperfíciealva,assumindoformas que, de longe, pareciam um tapete persa. Será que o pelotão deBehruzquevooupeloaresevocavaumdesenhosimilar?

Os lobos, de fato, uivavam noite adentro, amedrontando todos,menos os curdos, que não davam amínima para aquele som familiar. Aúnicaprovidênciaque tomavam,semalarde,eraameaçá-loscomumpauquando eles se aproximavam amenos de cemmetros. Apesar do horrorqueaalcatéiaprovocava,nutrindoaindamaisomedonaquelascondiçõesadversas,nuncafomosatacados.Nocontrolesegurodetudoedetodos,osguias jamais demonstravam qualquer espécie de fadiga, dominando commaestriaoseumeio,ondecéueterrafundiam-senohorizonteleitoso.Oterritórioturco,pelosnossoscálculos,estavaaduasoutrêsnoitesde cavalgada. Sempre que indagados sobre a distância até lá, os curdos

respondiam com um “logo ali”. E seguíamos adiante, sem saber onderealmente estava aquela linha imaginária que representava a nossaliberdade.Umanoite,finalmente,aodescermosumvale,oguiagritouqueànossafrenteestavaafronteiraIrã-Turquia.Malpodíamosacreditar.Comonum passe de mágica, todo o cansaço desapareceu. Fomos tomados poruma euforia generalizada, mas cada qual reagiu de maneira diferente ànotícia. Alguns ajoelharam-se na neve e, voltados para o leste oraram aoDeus em nome do qual foram expulsos da sua pátria pelosfundamentalistasislâmicos.Outroschoravamdefelicidade,batiampalmasecantavammelodiasdainfância.

Õrash parou perplexo, enquanto eu apenas mirava as estrelas nocéu, sem saber o que pensar nem o que fazer. No minuto seguinte fuiapanhado por uma sensação de abandono como nunca experimentara.Tomei consciência de que, em instantes, estaria deixando o solo em quehavianascido eme criado.A terradosmeus antepassados, domajestosoreino da Pérsia, dos sábios e dos visionários. Mas também a nação dosintolerantes, dos fanáticos e dos loucos como Behruz. Embora tivessesobrevivido à prisão, aosmaus tratos, ao tédio, ao SepahePasdaran e aofrio do inverno montanhês, algo me impedia de compartilhar comsinceridadeaalegriadogrupo.Porqueeusabiaque,nopercursodeumavida,àsvezesagentetemquemorrerpararenascer.Anaturezaensinaqueas folhase floressurgemapósum longo intervalodehibernação,quandotudo parece ter perdido o brilho e o frescor. Da mesma forma ali, nabrancura inóspitadoAlbroz, eu assistia aomeupróprio funeral.Naquelepontoperdidodouniverso,KuroshMajidienterravasuaalmaparaassumirapersonalidadedeJafar.

Imbuídodesseespírito,pisei,juntocomÕrash,oumelhor,Kãzem,ovilarejoturcochamadoVanparareceberpassagensdeônibusemdireçãoaIstambul, ondeentregariamnossospassaportes eosbilhetes aéreos.Não

erasegurotelefonarparacasadali,umlocalvisado justoporrepresentarumpontodechegadadefugitivosdaleiedesertores.Otrajetorodoviáriolevariamais de trinta horas e representava uma etapaperigosa. Por issoescolhemos poltronas nos fundos e permanecemos a bordo mesmo nasesparsasparadas.Pessoasentravamesaíam,sendoqueemumadasvezessubiram soldados do exército turco para verificar os documentos dospassageiros.Enroladosnosnossoscasacos,Kãzemeeufingimosdormireescapamosdocontrole.

A chegada a Istambul foi uma festa. Embriagados, meus olhospasseavamdeumladoparaooutro,incapazesdeabsorvertantanovidade.Amaior delas eram os cabelos. Longos, curtos ou cortados na altura doqueixo. Lisos, encaracolados, pretos e loiros, dançavam como as vestesdiáfanasdasvirgensprometidas.Aquiabrisasuaverevelavaumanuca,alium gesto da cabeça descobria os ombros, mais adiante, escorridos peloposcoço,realçavamas feições feitoumvestidodomaisricobrocado.Dei-mecontadequeháanosnãoviacabelosfemininoslivresdoslençosedosvéusemlocaispúblicos.Agora,naquelacidade,elesesvoaçavampelasruassemomenorpudor,emoldurandoasmulheresquepassavamindiferentesaoseupoderdeencantoesedução.

Apesardashorasgastasdentrodoônibus, emvezde irmosdiretoparaohotel,preferimosencontrarumlugarondepudéssemostomarumacerveja. Zonzo de sono, ao primeiro gole sobreveio o gostinho de umpassado remoto, anterior à revolução, quando aos dezessete anos euexperimentarapelaprimeiravezaquelamisturadecevadaeálcool.Duasbaratas tontas, viramosanoite feito criançasdeslumbradasnuma lojadebrinquedos. Como se fossepossível, ingenuamente tentávamos recuperaremhorasotempoperdidoeajuventuderoubada.

Esgotadas as últimas forças e derrubados pelo cansaço, fomosfechar a conta para tentar achar nosso contato, na verdade umintermediárioquenoslevariaàpessoaencarregadadenosajudarasairda

Turquia.Nahoradepagar,asurpresadesagradável.-Estesdólaressãofalsos-disseogarçomemturco,línguadaqual

havíamos aprendido poucas palavras numa espécie de manual desobrevivência.

Logodeinícionãocompreendemos.Entãoeleensaioueminglês.-Thisdollarsnogood.Fiz um esforço imenso para trazer recordar as lições aprendidas

duranteasaulasnostemposdoXá,masantesdearticularumafrase,Õrashindagou.

-Whatdoyoumean?Ogarçomcontinuourepetindo.-Nogood.Moneynogood...-enosmostrouumadasnotasdevinte

contraaluzquependiadoteto.–Bad,verybad...Num susto, precebi que de fato, examinada assim, parecia só um

impressomal feito, mas como tinha pouca familiaridade com o dinheironorte-americano, fiqueiemdúvida.Puxeidacintaque levavapresasobocósdacalçaumanovanotadedez,comomesmoresultado.

-Thismoneynogoodtoo.-elerepetiu,dandomostrasdeirritação.Osoutrosiranianosdogruponãotraziamconsigoanãosertomans,

pois esperavam uma remessa bancária para aquela semana. Caberia aÕrasheamimsustentartodosatéachegadadodinheirodeles.Nonossocaso,aoperaçãoeracomplicada,poisenvolviaoamigodeumparentedotiodeÕrashquetrabalhavanaalfândega.Pormeiodele,receberíamosumadeterminada quantia, além das passagens e outros papéis necessários àviagemparaoexterior.Asituaçãopareciasecomplicareaúltimacoisadeque precisávamos era uma ida à delagecia por tráfico demoeda falsa oufaltadefundosparapagarumarodadadecervejas.Ninguémacreditariananossainocênciaeseríamoscondenadosàmorte!Tantotrabalhopornada...Tínhamos sobrevivido às milícias iranianas para apodrecer numa celaimunda na suntuosa capital do Império Otomano. Uma cruel ironia pela

qualnãoesperava.As imagens da nossa prisão em flagrante já me assombravam, eu

caminhava para a forca diante do carrasco encapuzado como nos velhosfilmesdaeradoXá,quandoumajudantedegarçom,saídodetrásdobalcãonosperguntou,emfarsiperfeito,seéramosiranianos.Depoisdoscabelossoltosdasmulheres,aquelafoiamelhorvisãoquetiveemsoloturco.EleseapresentoucomoParviz,justoonomedomeuex-futurocunhado,onoivodeFarzanemortona frentedebatalhana guerra contrao Iraque.Aquiloeraumacoincidência,umsinaldequetudodariacertocomonaocasiãoemqueatropelamosocoelhonomeiodaestrada.Parvizhaviafugidodopaíshá dois anos, tão logo fora convocado. Como eu, era um desertor etrabalhava clandestinamente juntando fundos para comprar passagemparaaEuropa.

- Meu sonho é conhecer Paris. - ele confessou, com os olhosbrilhandonorostodepeleescura.TinhanascidoemumvilarejoalestedeShirazecontígüoaBam,omaiorconjuntoemadobedomundo,agoraàsmoscas por causa da revolução, que afugentara os visitantes. Ele nãoconseguia se sustentar como guia turístico e a convocação fora a gotad’água.FugiracomaroupadocorpoeagorajuntavadinheiropararealizarosonhodeestudarnaSorbonneefreqüentaraRiveGauche.

Parvizeraumrapazculto,entendiadefilosofiaeficoudiscorrendosobreSartreeoexistencialismo,aomesmotempoemquenosconfidenciouque, apesar de tudo, não passava ummísero dia sem sentir saudades daterranatal.Emborabêbadosdesono, selamoscomeleumaamizadeque,naquelaaltura, fariatodaadiferença.Tínhamosescutadoaspiorescoisassobre as prisões turcas, autênticas masmorras da IdadeMédia, e diziamquepertodelasasdonossopaíspareciamhotéiscincoestrelas.

-Acertoessacontae,quandopuderem,vocêsmepagamdevolta.Eu queria beijar a mão do nosso conterrâneo. Fomos embora

fazendotodosossalamalequesqueconhecíamos.Aexaustão, juntocoma

cervejaàqualnãoestavaacostumado,somadaaodeslumbramentodiantedoscostumesocidentalizadosde Istambul,mederrubaramdesmaiadonacamadohotel,cujoendereçohaviatrazidodeShiraz.Sófuiacordarnodiaseguinte,comÕrashmecutucandoatravésdascobertas.

-Sabequehorassão?-eleperguntou.Tentei me sentar, mas as dores das costas retornaram com

violência.Asdeznoitescavalgandopelasmontanhashaviamacabadocomminhacoluna.

-Droga!-reclamei,recordandooapertodanoiteanterior.-Vocêestásereferindoàdorouaodinheiro?-Aosdois.-respondidesanimado.- Prepare-se para o pior. Passei em revista todas nossas notas e

nenhumadelaséverdadeira.-Impossível!Entãoenganarammeupaieseutio?-eumarevoltase

misturouà saudadedecasa.Lembreidaexpressãode felicidadedeAghoJunaomedarosdólaresqueelecompraracomotrabalhosuadonoBazarenãopudereprimirumpalavrão.

-Calma.-Õrashretorquiu.-Vamosdarumjeitonisso.-Como?-Voufalarcomonossocontato.Eleligouhojecedo.-Edaí?-Contoaelesobreoproblemaeelenosemprestaalgumdinheiro.-Nãofaçaisso!-alertei.-Sesouberemqueestamosnessasituação

nos abandonam e ainda nos denunciam à polícia. - fiz uma pausa,imaginandooshorroresdeumacelaemplenaIstambul,paraconcluir.-Evocêsabecomosãoasprisõesturcas...

- Largue de bobagem. - Õrash respondeu. - Ele deve conhecer oamigodoparentedomeutioenãonosdeixarianamão.

- Tudo bem, vamos arriscar... Mesmo porque, não temosalternativa...

Lutando contra asdores e adecepção, vesti-meparaprocurarmosnosso contato. Sem ele seríamos dois náufragos boiando no oceano.Sentamos por alguns momentos diante da televisão que transmitia umasérie de programas proibidos no Irã. Eu não conseguia entender os quediziam, mas as imagens falavam por si. Permanecemos ali, seduzidos,mudando os canais que mostravam novelas, noticiário, programas deauditórioefilmesemvezdosrostosdossisudosaiatoláspregando,fazendosermões ou lendo versículos do Alcorão. Antes de conseguirmos sair doquarto,otelefonetocou.Eraapessoaquevirianosbuscarparaacertarmosospassosseguintes.

Descemosapéostrêsandaresdohotelzinho,poisoelevadorestavaquebrado. Na portaria, um homem gordo nos aguardava. Vestia-se comoumocidentalenoscumprimentounumfarsimisturadoaturco.

Entramos no carro dele que, com a mão direto na buzina, foicortando ruelas e avenidas sem respeitar semáforos nem pedestres.TrocavaolharescúmplicescomÕrash.Estávamosnossentindoemcasa.Sóque,emmeioaosminaretesdasmesquitas,cartazeseanúnciosluminososmostravammulheresdepernasdefora,cabelos,ah,cabeloslivresesoltos,alémdemuitaspalavraseminglêscomonoIrãnaépocadoXá.Noteiqueasmoçasdeixavamaspernasàmostra,algumascomsaiasacimadosjoelhos,vestiam blusas decotadas e sapatos de salto alto. Aquilo não eraCopacabana,masjádavaumaamostradoquenosaguardava...

ParteVI

OvôodoalbatrozXXIIIQuarentaminutosdepoisestacionamosnoquepareciaumshopping

center.Tomamosumelevadorluxuosoatéoterceiroandareentramosemumescritórioondeumasecretáriadevestidocoladoaocorpopediupara

aguardarmosjuntoaoutrosdoisjovensquefolhevavamrevistas.Estavamnamesmaposiçãodoquenós,mas evitarampuxar conversa.Õrash e eunão perdíamos um detalhe, registrando tudo na memória. Os odorestambémeramdiferentese,emvezdochápreto,velhoconhecido,serviamcaféquevinhamisturadoaopó.

-Vãoseacostumando - recomendounossocontato. -Aquiéassimquesefaz.

Fomos recebidosporum iranianobemvestido,de ternoegravataque, viria a saber depois, comandava o esquema de fuga. Ele conseguiapassaportesfalsificadosjácomvistoparaospaísesescolhidos.Expusemosnosso problema dos dólares, mas ele não pareceu surpreso. Tive aimpressãodequeogolpeeramaiscomumdoqueimaginava.Aofinaldisse.

- Podem escolher para onde ir. – e mostrou uma lista de paísesdispostosaacolherexiladospolíticoscomoaHolandaeaDinamarca.

– Para os Estados Unidos levaria até sete meses de espera. – elearrumouagravataecontinuou.–Alémdisso,saimaiscaro.

-Quanto?–perguntouÕrash.-Cercadedezmildólares.Meuamigosoltouumassovio.- Jáparaosdemaispaíses, por cercade seismildólares fechamos

negócio.- Eu vou para o Canadá – falei. Paramim, desde o início de tudo,

quantomais longe,melhor.OVelhoContinente ficavamuitopertoparaomeu gosto, bem ali, no outro lado do estreito de Bósforo. Bastavaatravessar uma das duas pontes que separam o lado asiático do ladoeuropeu de Istambul. Não me atrevi a mencionar o Rio de Janeiro.Copacabanaeraumaidéiaqueprecisavaamadurecerantesqueeupudesseencarar suas praias maravilhosas com excesso de boa música, lindasmulheresealegria.Alémdomais,oBrasilnãocosntavadalistadasnaçõesqueaceitavamexiladospolítcios.

Ohomempediu fotosparaosdocumentosenosdeualgumas lirasturcas, amoeda local, aténossosparentes enviaremaquantianecessáriaparaumacontaanotadaàmãonumblocodepapel.

-Procuremnãosairdohotel.–recomendou.–Ládentroeucusteiovocêsatéodinheirochegar.

De acordo com ele, a operação toda não levariamais do que trêsdias.Saímosagradecidose,aofecharmosaporta,eleavisou:

-Nãosemetamemencrencas!Enãodêemouvidosaestranhos!Aquela foi a primeira recomedação quebrada, seguida de algumas

outras. Como fomos deixados no próprio shopping pelo contato que nosdeu instruçõesprecisaspara retornaraohotel, começamosaperambularpela cidade, admirando as vitrines coloridas. No caminho, acabamosconhecendoduasirmãs,quesedispuseramanosmostrarafacejovemdeIstambul. Falávamos num inglês truncado, mas conseguíamos nosentender.Comelaspasseamos, fomosaocinemaetomamoscervejaatéaúltimaliraquehavímosrecebido.Nofinal,tivemosqueretornarapéparaohotel, onde chegamos nomeio damadrugada, rezando para não sermosparados por algum carro de polícia. Éramos ilegais ali e, para agravar,portavamoscarteirasdeidentidadefalsas.

A partir daquele dia procurarmos seguir os conselhos recebidos.AproveiteietelefoneiaAghoJun,nonúmeroseguro.Nãotinhamnotíciasnossas desde a partida e pela voz da minha irmã notei como estavampreocupados.

- Agora podem relaxar, o pior já passou, tudo vai dar certo – eurepetiaaspalavrasdomotoristaedocurdo,tentandosoarconvincente.

-Tenhajuízoenuncasearrependadoquefez.–Otomdeladisparouumalarmedentrodemim.

-Porquevocêestádizendoisso?–indagueiapavorado.–Aconteceualgumacoisaqueeudevasaber?Farzanemelhorou?Seufilhonasceu?

Nargesparoudefalar,despertandomauspressentimentos.

-Nósestamostodosótimos,Roshy.Farzanecomeçouafalardireitoequantoaomeubebê,bom,faltamtrêsmesesparavocêvirartio...

-Suavozestáesquisita...–insisti.–Oquefoi?Outrapausademorada.Gelei.-Digalogo,oqueaconteceu?AghoJunestábem?-Claroquesim!-Entãodeixaeufalarcomele,querofalarcomele!–amilharesde

quilômetrosdedistância,entreiempânico.Escuteiumzumzumzume,emseguida,otimbreinconfundíveldomeupai.

-Soueu,filho,fiquetranqüilo.-Pai...–enãoconseguimaisdizernada.- Khoda te proteja, filho, e nunca se esqueça de rezar às sextas-

feiras. – Agho Jun falou emocionado, passando o telefone de novo paraNarges.Masantesdelafalar,cortei,brusco.

-Digaoquehouve,Narges.Vouacabarsabendodeumjeitooudeoutro.–sentiumaperto,masprecisavamecertificar.–PeloamordeDeus,nãoescondanadademim.

Dooutroladodalinha,apenassilêncio.-Narges,vocêaindaestáaí?Conseguemeouvir?-Sim,Rossy,fiqueempaz.-Vouprecisardedinheiro.-Masvocêjánãotinhalevadocincomildólares?-Eramfalsos.-Comoassim?-Falsos.Nãoservemparanada...- Malditos! – ela reagiu, para logo voltar sua preocupação para o

meu bem-estar. – Como você tem se virado? Onde dorme? Como sealimenta?

- O nosso contato nos levou ao comandante da operação. Ele nosemprestoudinheiro,mas temosquepagardevolta.Sem issoagentenão

vaialugarnenhum.Elademorouumpoucopararesponder,masprocuroumeacalmar.- Vamos ver o que providências tomar. Telefone amanhã nesse

mesmohorário.-Combinado.-Entãoadeus.-Narges?-Oque?-Temmaisumacoisa.-Fala.- Você consegue avisar Zibã? O tio dela também precisa enviar

dinheiroparaÕrash.-Émesmo...–elacomentou.-Elescompraramdamesmafonte...-Poisé,passaramapernanagente...-Nãosepreocupe,ligueamanhã.Coloquei o telefone no gancho comuma sensação estranha. Tinha

certeza absoluta de que estavam escondendo alguma coisa demim,masnão sabia o quê. Quando voltei a ligar, no horário combinado, tornei ainsitirnoassunto.NargesafinalmecontouqueOmidtinhamorridoequeShahineDariushretornaramparavivercomeleseAgoJun.Eraumalongahistória. Tudo começara quando ele desconfiou do dinheiro fácil queentrava em quantias crescentes nos bolsos do padrasto. Apesar deinexperiente, não era burro. Como um bom militante da causa queabraçara,levavaasériosuamissãoreligiosaefoiinvestigaramadrassaqueambosfreqüentavamcomoalunoeprofessor.DescobriunoseiodoSepahePasdaran um esquema que envolvia corrupção, tráfico de influência eestuprodeprisioneiraspolíticasantesdeseremexecutadas.ConfrontouomaridodeShain,quenegouqualquerenvolvimento.Ameaçoudenunciá-loassim mesmo e dois dias após uma violenta dicussão, acharam-noenforcadoemumadassalasdereuniãodapoderosamilíciaextremista.

- Disseram que foi suicídio – Narges acrescentou – Mas ninguémacredita...

Engoli em seco. Por um lado, Bãbak estava vingado. Por outro,aquilonãometrazianenhumasatisfaçãooualívio.Aocontrário,deixou-meaindamaisestarrecidoanteabrutalidadedosque, juntoconosco,haviamfeitoarevoluçãoparadeporoimpériodoXáeinstituirumarepúblicajustae livre. Esta última parte do projeto, a mais importante, e que nunca seefetivou,determinaraafugadegentecomoeueÕrash.

Atordoado com aquele despercídio de uma vida na flor da idade,recebiaboanotíciadeque logoestariamdespachandodinheiro.Fizeramumaqueimadoestoquede tapetese, graçasaoprestígiodomaridodela,obtiveram um empréstimo para completar a quantia. Eu me senti mal.Estariaparasempreemdívidaparacomeles,quesesacrificavamparaqueeu pudesse realizar sonhos individualistas enquanto meus amigostombavamcomoheróis lutandopelapátriaemeuprimoeraassasinadoasanguefrio.

-Elesnãosãomártiresesimvítimas!– foiocomentáriodeÕrash,chocadocommaisaquelaimolaçãoinútil.-Issoéindecente,umverdadeirocrime! – continuou, enraivecido. – Ainda bem que conseguimos fugir detantabarbárie...

NaquelanoitetiveoutropesadelocomBehruzeOmid.Seuscorposemfrangalhosapareciamdiantedemimcobrandominhaatitudecovarde.

- Você não passa de um egoísta que só pensa no seu prazer! –acusavaum.

-Ficaaí,desperdiçandoodinheirosuadodoseupai...–diziaooutro.- Você não tem um pingo de consideração pela pátria que te

alimentou.–Behruzdiziacomodedoemristecobertodesangue,opeitoesburacadoeascostelasexpostas.

-Semprefoiaovelhanegradafamília,vocênegligenciavaaspreceslogocedo!–Omidexclamava,segurandoumacordacomolaçodaforca.

-Suamãechorapelospecadosdofilhoingrato!- Deixa minha mãe fora disso! – respondi aos berros, enquanto

sentavanacamalimpandocomamangadopijamaosuordopescoço.Eunão desconfiava que estes sobressaltos me acompanhariam pelas noitesseguintes em Istambul. Eram sempre os mesmos personagens, mas osinsultos variavam. No final, perto da data da partida para o Canadá,começaram a fazer referências às prisões turcas, avisando que eu nãoescaparia da polícia. “Eles mantém relações com o Sepahe Pasdaran”,insinuavam parame atormentar. E vinha o pessoal do esquema de fuga,tiravanossodinheiroedepoisnosentregavaàsmilíciasiranianas.

Assim,naclandestinidadeenasolidão,entrepesadelosemomentosdeeuforia,emenfadonhaspartidasdexadrezqueeusemprevencia, teveinícionossa longaesperapela liberdade.Primeiroentregamososseismildólaresparaocontatoquenostrouxeospassaportes,conformeprometido.Eleficoudenosapresentaraumfuncionáriodoalto-escalãonogovernodaTurquia, decerto o secretário da segurança, pois disse que se tivéssemosqualquerproblemaeporacaso fôssemospresos,bastavacitaronomedofigurão. Constatei daí a existência de uma ampla rede de corrupçãoenvolvendo dosmais humildes aos poderosos. Dinheiro significava tudo,destravavaaburocraciaeabriaportas.Semele,nadaerapossível.

As duas primerias semanas foram embora e nada ocorreu.Passávamos os dias trancafiados no quarto do hotel assitindo televisão.Sabíamosde cor toda aprogramação e já estávamosquasedominandooturco. O tal secretário de quem dependíamos partira em viagem denegóciosparaaFrançaeeraprecisoaguardarseuregresso.Prometeram-nosque em cincodias estaria de volta,masna realidade ele só retornoudepois de vinte. Afinal, após dois meses mofando como zumbis, quaseperdendoaesperançaecomeçandoaacharquehavíamossidoenganados,nossocontatotelefonou.

-Agoravamosplanejarasaídadevocês.

Havia várias turmas de fugitivos e tinham que definir o horárioexato do plantão de determinado agente no aeroporto. Daí a explicaçãopela demora para armar o esquema e nos encaixar na longa fila. JuntocomigoseguiriammaisdoisiranianosquevieramconoscopelacordilheiradoAlbroz.

-AssimqueoaviãopousaremMontreal,vocêtemquesedirigiraoguichêdapolíciaalfandegáriaedizer,eminglês:“Sourefugiado,queroasilopolítico”.

-Elesvãomeprender?-indaguei,temeroso.Ohomemriu.-Láédiferente, sãocivilizados...Vãodarum formulárioparavocê

preencheredepoisarrumamumatradutoraquefalafarsicorrentemente.-Comosabedisso?–perguntei.-VocêsnãosãoosúnicosiranianosqueemigramparaoCanadá...–

eleretorquiu.-Temcertezadequenãoteremosproblemas?–quismeprecaver.Eleestaloualínguanumsinaldeimpaciência.Nãopoderiaimaginar

oquantoeuestava traumatizado.Continuouexplicandoque iríamosparaum campo de refugiados com gente do Afeganistão, Vietnã, Coréia e deoutraspartesdomundo.

-Vocêsficarãomorandoaliporcercadeduassemanas.-Éumaprisão?–insisti.-MeuDeus,jádissequenão.EsqueçaoIrãetudooquepassoupor

lá.NoCanadáelesajudamaencontaremprego,aprenderoidiomaedarãoumaajudadecustoparaafaseinicial.

Comecei a desconfiar daquela história. O homem devia estarinventandomentiras.Nãopodiaserverdade.Elesiamnosdardinheiro?Euouviradireito?

-Nãoéumafortuna,masosuficienteparamorarecomer...Fiquei ainda mais perplexo. Custava a acreditar no que ele dizia.

Alémdenãobaternemtorturar,iriamnospagarparaficarmorandolá?Emtrocadequê?

- Durante um semestre vocês têm este abono. Nesse meio tempoarrumamemprego,estudam...

-Nãoacredito!–faleicomentusiasmo.–EntãooCanadádeveseroParaíso!

Õrashmelançouumolhardecumplicidadecomosedissesse:“Paraquem foi tão humilhado como nós, soa mesmo irreal receber qualquertratamento digno”. E, de fato, eu levaria alguns anos para apreender osignificadodotermo“cidadania”.

Comtudoapalavrado,inclusiveaidadeÕrashparaaInglaterra,nosconcentramosnospreparativosdaviagem.SóqueeunãomeconformavaemdeixarametrópoleondeOrienteeOcidentesemisturamdeformatãoexóticaeintrigantesemumpasseio.SeriaquaseumaofensanãoconheceroestreitodeBósforo ligandoomardeMarmara,aosul,aomarNegroaonorte. A mítica Constantinopla, centro do vasto Império Bizantino,conquistadapelosotomanosem1453,excitavaminhaimaginação.Capitaldetrêsreinados,Istambulescondiatestemunhosdasdiferentesculturasdasuahistória.Eunãoestavadispostoaperdê-lasporummedoirracionaldapolícia.Navésperadanossapartida,tomeiumadecisão.

-Quersaberdeumacoisa?-faleiaÕrash.-Vamostomarumtáxierodarpelacidade.

Saímos logo cedo com um motorista com quem conseguimos umpreço especial. Primeiro voltamos ao bar para saldar nossa dívida comParviz.Elenãoacreditouquenosveriadenovoeumsorrisolargoiluminouseurosto.

-Esperem,voucomvocês!-eentrounoautomóvelparajuntar-seanósnogiro turísticoqueelepróprio,por faltade tempoedecompanhia,tampoucotiveraoportunidadedefazer.

O que logome chamou a atenção foi que, apesar de apinhada de

genteedotráfegointenso,oEstreitodoBósforoeoCornodeOuro,comochamam a baía de Istambul, transmitem uma incrível sensação deamplitude.Oroteiroteve iníciono imperdívelPalácioTopkapi,residênciados sultões entre os séculos XV e XIX, que encerra um fabuloso tesouroimperial.AIgrejadeSantaSofiaimpressionoupelaenormecúpulainterior.Logo em frente, dentro da eleganteMesquita toda revestida de pastilhasazuis que lhe dão o nome, ajoelhei na direção de Meca e pedi proteçãodivina para a longa travessia. Embora estivesse fugindo de um regimereligioso,acreditavaqueKhodacompreenderiameusmotivos,perdoando-meeguiandomeuspassos.Õrashpermaneceunaentrada,juntodeParviz,que comentava sobre seus seis minaretes, uma raridade na arquiteturaislâmica.

Nocaminho,omotoristafoicontando,emumamisturapeculiardeturcoeinglês,queamaioriadapopulaçãovivedoladoasiáticoetrabalhanabanda européiada cidade, onde tambémestãoospontosde interesseturístico. Para transitar entre ambos, há duas pontes que ligam oscontinentes.TerminamosavisitacomumaparadanofamosoBazaresuasintricadas alamedas commais de quatro mil lojas, fazendo de Taksim omaior bairro comercial de Istambul. Solícito, o homemque nos conduziafaziaopapeldeguia.Nãoseiporque,intuíqueeleeracurdo.Eleexultoucom aminha descoberta, mas avisou que era proibido falar sua próprialínguaempúblico.

Ainda fortementemarcadopelaminha convivência comessepovonapassagemdoAlbroz,desandeiaenumeraras injustiças contra elesnaprópriaTurquia,quehaviatrucidadomaisde30mil.

-Vocêestáconfundindo.–interveioÕrash.-Foramosarmêniosqueos turcos perseguiram. Massacraram um milhão na Primeira GuerraMundial.

À menção daquelas palavras, nosso motorista deu uma freada evirou-separanós.

- Jamais mencionem o genocídio armênio aqui. Podem acabar nacadeia!

-Como?-quissaber.- É um assunto tabu. - ele enfatizou. - Vejam as maravilhas de

Istambul, aproveitem tudo, mas nunca toquem neste tema se nãopretendemserincomodados.

Sentientãoumacoisaestranha,misturadesolidariedadeerespeitopor aquelas pessoas perseguidas pelas intolerâncias, sem lembar que eumesmoeraumadelas.

Dohotel,fizaúltimaligaçãoparaminhafamíliaantesdeembarcar.Õrasheeuseguiríamosatéoaeroporto,ondeafinalnossepararíamosparaseguir rumos diferentes. Nosso contato nos havia ensinado como noscomportar lá, recomedando que usássemos terno e gravata e queraspássemos a barba. Foram dois jovens elegantes e discretos queentraram no Mercedes Benz que veio nos buscar. Com poucocongestionamentodevidoaoferiadoreligioso,levamosmenosdequarentaecincominutosparachegar.Noautomóvel, juntocomnossoguia,estavaumpiloto de avião de guerra que havia desviado seu jato de Teerã parapedir asilo na Turquia. Aquilo nos deixou aliviados e esperançosos,representava outro sinal de sorte. Como o coelho da estrada. Assim quedescemos,fomosorientadosapermaneceremumcantodosaguão.

-Nãofiquempertodenós.Nahoraindicada,quandotudoestiverok,acenamoscomacabeça.

AgoraÕrashiriaparaumladoeeuparaoutro.Despedimo-noscomumsimplesapertodemãoquandoavontadeeranosabraçarmos.Acustocontivemos as lágrimas. Havíamos compartilhado os momentos maiscríticos de nossas vidas e isso não se esquece jamais. A irmã dele nuncasaíradaminhacabeçaeeuapostava retornaraum Irãdemocráticoparavivercomelaportodoosempre.

-SevocêumdiaforparaCopacabana-Õrashdisse,afastando-sede

mim a contragosto - não deixe deme avisar. Quem sabe eu vá até lá teencontrar?

Com estas palavras,meu amigo desapareceu entre os guichês dascompanhiasaéreas.Sobreiali,postado,ruminandominhador.

De repente avistei os dois iranianos que partiriam comigo paraMontreal. Logo vieram pedir nossos passaportes. Olhei para a outraextremidade do salão e nosso contato fez um meneio como combinado.Entregamosodocumento e amesmapessoauniformizadanos fez entraremumapequenasala,reservadaaosfuncionários.

Tudoestavacorrendorápido,semmedartempoderaciocinarnemter medo. Quando tomamos nosso lugar na fila de embarque fomosorientados a rasgar os passaportes logo que anunciassem a aterrisagemparanãonospegaremcomdocumentosfalsos.

- Digam que pagaram para uma pessoa que armou tudo, nãoprecisam dar detalhes... – ele avisou, para logo acrescentar: - Assim quesobrevoarem Mirabel, o aeroporto de Montreal, corram até o banheiro,piquemospassaportesepuxemadescarga.Nãofaçamissoantesdahora,podehaverumapanequeosobriguearetornar.

Chequeionúmerodomeuassentoeacomodeiabagagemdemãosobapoltrona.Fomoscolocadospertounsdosoutros,masnãonamesmafileira. Levantamos vôo no horário previsto. Eu não tinha com quemconversar, nem conseguia dormir. Ia repassando cada instante daminhavidaemeperguntavaque futuromeaguardava.Tenteiconcentrar-menaleituradebordo,sóquemeufrancêsmaldavaparadecifrarasmanchetes.Procuravaorar,masassurasfugiamdamemóriacomoumtextodecoradoquesomequandomaisprecisamosdele.Perguntavaseopiortinhamesmopassado,sealgumasurpresadesagradávelaindameaguardavaduranteovôoouemterritóriocanadense.Nãoengoliratudooquehaviamditosobreopaís,pareciabomdemaisparaserverdade.

Olhei para fora e vi as asas iluminadas por luzinhas cortando as

nuvens escuras. Aos poucos fui relaxando e afinal adormeci. Não tivepesadelos recorrentes, mas sonhei comminha mãe e todas as mulheresimportantes da minha vida. Como nasci bem depois das minhas irmãs,crescipaparicadopor todoseemespecialporAgho Jun, satisfeitoemterum varão na família. Vi minha mãe passeando entre as nuvens e suaexpressão era apaziguadora. “Fique tranquilo,meu querido, não deixareiquenadademallheaconteça”.NargeseFarzanetambémapareceramparame desejar boa sorte. Engraçado é que elas não usavam lenços e simcabelossoltos,livrescomoosdasmoçasdeIstambul.ApenasShahinvestiaopesadochadorescuroquemaispareciaumaburka.Elameolhavacomouma máscara de tristeza infinita, disse que sofria expiando todos ospecadosdeOmid,queentregouBãbakeaindaporcimatemiapelavidadofilhomaisnovo.PorúltimoveioZibã.Estavadespidaepudesentirdenovoatexturadapeledelaqueseeriçavanapontadosmeusdedos.Suabocadehálito de rosas encontrou a minha, nossos lábios se colaram e os seios,redondoserijos,roçavammeupeito.Nósdoisnosdissolvíamoscomodoisveios d’água que se cruzam e se absorvemmutuamente. Eu não saberiadizerondemeucorpo terminavaeodelaprincipiava.Naquelacomunhãodacarneedoespíritotornamo-nosumsódesejopulsanteeativo.Aofinalela levantavaobraçoesguioenfeitadodebraceletes,afastavaascobertasdebrocadoemeofereciaumasementenapalmadamão.

XXIVAcordei com um solavanco seguido de um cutucão. Pelos pés

inchadoseascostasdoloridas,percebiquedormirahorasseguidas.-Estamosquasechegando,estamosquaselá!-eraavozdeumdos

meusconterrâneosfalandosuperexcitado.Trouxeram o café da manhã que devorei num piscar de olhos.

Estavafamintoporquepegueinosonoantesdeserviremojantar.Quandopuxei os documentos da maleta e me preparava para ir ao banheiro, a

imagemdeZibãvoltoucomtodaaforça.Elameentregavaumgrão,qualosignificado daquilo? Seria uma alusão aos brotos de Noruz, usados paratrazer boa sorte? De súbito, uma idéia bateu emmim como um soco noestômago. E se ela estivesse grávida? E se eu houvesse plantado umasementenoventredeZibãnanossaúnicanoitedeamor?Oqueseriadela,umanãomuçulmana,irmãdedesertor,esperandoofilhodeumfugitivo?

Comeceiasuar frio.Nãoqueriaquenadaderuimlheacontecesse.Minha vida particular estava prestes a se resolver, ela precisava demaisproteçãodoqueeu.“Então,sentenciaentremimeele,claramente,esalva-meeaquem,mesmonão sendocrente, está comigo”, roguei emsilêncio,apesardemimmesmo.

Naquele momento, a um sinal de um dos iranianos, levanteienfiando no bolso o envelope de plástico contendo meu passaporte eoutros documentos. No caminho encontrei a aeromoça e virei o rosto,temendoqueelaadivinhassemeuspropósitos.

-Precisadealgumacoisa, senhor?–elaperguntouem inglês, comumcarregadosotaquefrancês.

Respondiquenãocomummeneiodacabeça.Nervoso,abriaportado lavatório e entrei. Joguei água no rosto para refrescar e escovei osdentes.Meureflexonoespelhomostravaumrapazcomum,semoturbilhãode problemas,medos e esperanças que agitavameu peito. Vi apenas umsujeito comum igual a tantos outros que andam por aí. Ele não pareciafugitivo,descrente,nemtraidordapátria.Erasimplesmenteumjovemqueainda amava osBeatles, Googoosh,Dariush e osRolling Stones.Nãoquismorrer estraçalhado na guerra nem concordava com a sharia impostacomo lei. Agora ele estaria só, num país desconhecido, cercado de genteestranhaquenãofalavasualínguanemsabiadastradiçõesislâmicassobasquaisforaeducado.Oqueseriadele?

Commãos trêmulas, retirei do bolso dopaletó o envelope comospapéis. Peguei o passaporte e piquei as folhas uma a uma enquanto ia

dandodescargassucessivas.Empoucosminutos, tudotinhadesaparecidono fundo da privada que parecia umametáfora domeu destino. Sobrouapenas o cartão postal do Rio de Janeiro que resolvi manter comigo.Também guardei as fotos da minha mãe e de Zibã. Revi a figura delarecortadacontraasruínasdePasárgada,cabelossoltosaovento,ovestidofloridoapanhadoentreosjoelhoscomoumamiragemnodeserto.

Fragmentos do passado cruzaram-se diante de mim como se euassistisseaumfilme.NatelaestavamoSepahePasdaran,osmandamentosdoAlcorão,Behruzestraçalhado,Omidpendendoda forca,minha família,Õrash,Bãbak,Xeque-mate,obalcãonalojadoBazar,amesquitadeSexta-feira, aTorredoSilêncio comseus crânios, fêmures e tíbias e a auradoscurdos.Enxugueiosuordatestae,aosair,torneiaexaminaromeureflexo.Por umadas janelinhas do corredor, observei as águas domar douradaspelo sol matinal. Naquele instante, cruzando o oceano que se estendia aperderdevista, eumesenti comoumalbatroz.Experimenteiuma ligeiravertigem.Seriaissoquechamamdeliberdade?Volteiàpoltrona,aperteiocintoemeprepareiparaoqueviesse.Rezei.Emseguidafecheiosolhos,agoraacreditavaquetudodariacerto.Eraapenasum fio de esperança, fascinante e assustador na sua gama de infinitaspossibilidades.Umapequenachama.Bruxuleante,maseternacomoaquebrilha desde épocas imemoriais nos templos zoroastras. Oriente eOcidente. Presente e futuro.Novas vidas começando. Aqui e talvez lá, noventredeZibã.

Pisei em solo canadense de cabeça erguida. Agora eu tinhaconsciência de ser um novo homem. Omenino amedrontado ficara paratrás,comseuspesadelosetemores.Nãosentimedonemhesitação.Estavaamparadopelamemóriadaminhamãe,deBãbak,daminhaamada,domeupaís.Segurodemim,enfrentariaodesconhecido,alutapelasobrevivênciae a solidão. Tudo valia a pena para viver em liberdade, desenhar meudestinoeserfeliz.

Sarneveshtha,destinos...

Kurosh teve srote no Canadá na madrugada gelada. Contou aos

oficiais da alfândega como fugira pela cordilheira do Albroz e foiencaminhado a um campo de refugiados. Lá permaneceu por doismesesaté averiguarem a veracidade das suas declarações. Aceito como exiladopolíticoapósaudiênciasnaimigração,recebeupapéisdeidentidadeeajudafinanceira. Logo aprendeu inglês e arranjouum trabalhode laboratoristafotográficoenquantocomeçavaafaculdadedeFilosofiaeCiênciasPolíticas.Formado, viajou ao Rio de Janeiro para conhecer Copacabana e acabouficando por lá. Namorou algumas brasileiras bonitas, mas não se casou.Primeiro, porque Zibã permanece na sua memória e no seu coração.Depois,porquenãoseconformariaemveraprópriamulherdebiquíninapraia. Nuncamais voltou ao Irã e recebe notícias esparsas dos parentes.Nãorevelaaverdadeiraidentidade,commedodeprejudicá-los.Desdequesoube, por meio de Narges, a respeito do seu filho com Zibã, sonha emretornaràsuaterraparareencontrá-la.

***Na Inglaterra, Õrash casou-se com uma prima da colônia iraniana

mazdeístadeBirmingham,comquemtevetrêsfilhos.Tentouvoltaraoseupaís, mas foi desaconselhado pela família, pois poderia ser preso eexecutado. Apesar das dificuldades e problemas com a censura,corresponde-se com a irmã, a quem envia dinheiro sempre que tem umportadorconfiável.Comunicou-seumavezcomKurosh,masdepoisperdeuocontatoenuncamaissefalaram.

***Depois da fuga de Kurosh, Agho Jun enfrentou a acusação de

acobertar um desertor fugitivo. Temendo ter a loja do Bazar confiscada,passou-aparaogenro.Morreudecomplicaçõesdecorrentesdeumaúlcera

doisanosapósafugadofilho.Foienterradojuntocomamulhernotúmuloque já havia recebido o corpo de Omid, cujo suicídio nunca ficoucomprovado.

***Rassul ampliou os negócios, comprou outras lojas e tornou-se um

reconhecidobazari.TevedoisfilhoscomNargesque,graçasaoprestígiodomarido, mesmo depois de casada conseguiu realizar o velho sonho deconcluirafaculdadedemedicina.ContinuarammorandonaantigacasaemcujoquintalestãoenterradososossosdeXeque-Mate.Reformado,ojardimabriga novos pés de romã e seus canteiros estão sempre coloridos detulipaseamores-perfeitos.Nargesaindamantémoslivrosescondidossobo assoalho do quarto de solteira e, junto com Rassul, costuma ler osclássicosparaseusfilhos.NargesfoiaúnicaquesoubedagravidezdeZibãedascartasescondidas,masapedidodela,sórevelouosegredoaKuroshmuitotempodepois.

***

ShahinpassouavivernacasadeNarges.ComodotedocasamentoeaajudadeFarzane,investiunaproduçãodecomidacaseiracomas receitasdo livro deixado pelamãe deKurosh. Rassul arranjou para ela um viúvoricoesemfilhosqueinvestiunasuaempresadomésticaemorreuumanodepois,deixando-lheumafortunarazoável.GraçasaofimdaguerracontraoIraque,seucaçulaeentãoúnicofilho,Dariush,escapoudaconvocaçãoepassouatocarosnegóciosdamãe.

Farzanecontinuousoleitra, trabalhandoparaShahin,aopassoqueFatycasou-secomumfuncionáriodoaltoescalãodogovernoemudou-secomeleparaTeerã,masnuncaconseguiuesquecertotalmenteKurosh.

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Zibãficougrávidaerefugiou-senasmontanhasparadaràluzlonge

dosolhosdapolíciadamoralidade.Seus tiosregistraramomeninocomofilho deles para proteger a sobrinha, cujo crime era passível de puniçãosevera.Elarecusoutodosospedidosdecasamentoarranjadospelafamília,poiselesimplicavamnasuamudançaparaoutrascidades,longedacriança,fruto de um amor proibido. Começou a dar aulas nas escolas pobres dasaldeias vizinhas, e com o tempo transformou-se em líder comunitária,querida e respeitada pelos camponeses. Até hoje escreve longas cartas aKurosh,masguardaas folhasemumaarcaescondidano interiordeumaTorredoSilêncioabandonada.

FIM