A TUTELA INIBITÓRIA CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA ... · ameaça de lesão ao meio...

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MARTA CAROLINA FAHEL LÔBO A TUTELA INIBITÓRIA CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE RECIFE 2002

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  • MARTA CAROLINA FAHEL LÔBO

    A TUTELA INIBITÓRIA CONTRA A ADMINISTRAÇÃO

    PÚBLICA NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

    RECIFE

    2002

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE

    CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

    CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

    MESTRADO EM DIREITO

    MARTA CAROLINA FAHEL LÔBO

    A TUTELA INIBITÓRIA CONTRA A ADMINISTRAÇÃO

    PÚBLICA NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

    Dissertação de mestrado apresentada ao curso de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, realizada sob a orientação do Professor Dr. Andreas Joachim Krell, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre.

    RECIFE

    2002

  • Dedico,

    À Deus, pela força durante minha caminhada;

    Aos meus pais, Paulo e Inês, sempre amigos, companheiros,

    dedicados e presentes;

    À irmã amiga Paula Carine, pelo apoio e carinho ao longo

    deste trabalho;

    À minha avó Antonieta, pelo cuidado e amor;

    Aos meus tios Artur e Iara, pela paciência, receptividade e

    apoio constante.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço ao Prof. Dr. Andreas Joachim Krell pela atenção, orientação e

    enriquecimento que deu a este trabalho, com suas críticas e sugestões.

    Desejo também registrar aqui, meus agradecimentos:

    – À Universidade Católica do Salvador através do Magnífico Reitor Prof. José Carlos

    Almeida da Silva, pela oportunidade singular de oferecer à Bahia mais um curso de

    pós-graduação, em particular na área do Direito;

    – À Universidade Federal de Pernambuco pela sensibilidade de junto à Universidade

    Católica do Salvador em estabelecer convênio, que possibilitou a concretização deste

    Mestrado Interinstitucional;

    – À Pró-Reitora para Assuntos Acadêmicos Prof. Liliana Mercuri de Almeida e à Pró-

    Reitora para Assuntos Comunitários Prof. Maria Julieta Mandarino Firpo Fontes,

    ambas da Universidade Católica do Salvador pela dedicação e competência;

    – Ao Prof. Dr. Francisco Ivo Dantas Cavalcanti, Coordenador do Curso de Mestrado em

    Direito Público da Universidade Católica do Salvador, pelo convívio, dedicação e

    competência;

    – À Prof.ª Dr.ª Marita Palmeira e à Prof.ª Dr.ª Ana Luísa Celino Coutinho, presentes e

    receptivas ao longo desses dois anos;

    – Ao corpo docente representado pelos Professores Doutores: Eduardo Ramalho

    Rabenhorst, Francisco Ivo Dantas Cavalcanti, Francisco de Queiroz Bezerra

    Cavalcanti, João Maurício Leitão Adeodato, José Luciano Gois de Oliveira, Maurício

    Rands Coelho Barros e Nelson Nogueira Saldanha, os quais contribuíram de forma

    significativa no meu aprendizado e aprofundamento jurídico;

    – Ao pessoal de apoio da secretaria do Centro de Pesquisa e Extensão da Universidade

    Católica do Salvador (CEPEX/UCSAL);

    – Finalmente, àqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que este trabalho se

    concretizasse.

  • 8

    ABREVIATURAS

    Art. Artigo

    Arts. Artigos

    CDC Código de Defesa do Consumidor

    CPC Código de Processo Civil

    CF Constituição Federal

    EIA Estudos de Impacto Ambiental

    Inc. Inciso

    Incs. Incisos

    ONU Organização das Nações Unidas

    RIMA Relatório de Impacto Ambiental

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    RESUMO

    Pretende-se, com este trabalho, realizar um estudo

    sobre a tutela inibitória como meio adequado e eficaz para proteger

    judicialmente o meio ambiente contra o ato ilícito ou a ameaça dele,

    quando praticado pela Administração Pública. Para tanto, partiu-se dos

    ensinamentos sobre princípios e regras, da imperatividade das normas

    constitucionais e dos princípios da prevenção e da precaução dentro do

    ordenamento jurídico vigente e da nova atuação do Estado diante do

    meio ambiente como direito difuso. Posteriormente, demonstra-se a

    necessidade do controle judicial dos atos administrativos para que o

    interesse público seja alcançado. A tutela inibitória proporciona uma

    proteção preventiva, como demanda o meio ambiente. Verifica-se a

    aplicação desta tutela como meio hábil a exigir o estudo de impacto

    ambiental e o cabimento da tutela inibitória positiva ou negativa contra a

    Administração Pública. São sugeridas saídas possíveis, no que tange à

    previsão orçamentária, para que as decisões judiciais tornem-se

    exeqüíveis contra a Administração Pública. É também evidente que o

    princípio da separação dos poderes preserva-se intangível frente à

    atuação do Judiciário. Ao final, constata-se que a tutela inibitória é

    totalmente aplicável, porém fatores de cunho político, cultural e

    econômico são verdadeiros entraves à consecução desse instituto

    processual.

  • 10

    ABSTRACT

    The intention, with this paper, is carrying out study

    about the inhibitory tutelage, as an adequate and efficient means to

    protect the environment, judicially, against any illicit act or its threat,

    whenever it is practiced by Public Administration. For this reason, one

    has started from the teaching about principles and rules, the imperative

    character of constitutional norms and prevention principles, as well as

    from the caution taken within the existing juridical regulation, and the

    State’s actuation in face of environment as a diffuse right. Further on, the

    need for judicial control of administrative acts has been demonstrated, as

    to reach that the public interest. The inhibitory tutelage grants a

    preventive protection, as it is required by the environment. The

    application of this tutelage has been verified, as a quick means which

    could demand surveying the environmental impact, as well as the

    pertinence of undertaking either positive or negative inhibitory tutelage,

    against Public Administration. Possible issues have been recommended,

    regarding budget preview, as to make the judicial decisions against

    Public Administration performable. It has also become evident that the

    Power separation principle remains untouchable, abreast of the Judiciary

    Power’s actuation. Finally, there has been evidenced that inhibitory

    tutelage is totally applicable, but some factors, bearing a political,

    cultural and economic character may become true obstacles to the

    performance of this processual institution.

  • 11

    INTRODUÇÃO

    Na atualidade, a defesa dos direitos difusos e coletivos tornou-se

    imprescindível, principalmente, quando se analisa sob a ótica ambiental. A proteção a estes

    direitos se delineou de modo considerável com a Constituição Federal de 1988, trazendo,

    inclusive, uma nova feição à atuação dos Poderes Executivo e Judiciário, além de exigir a

    participação da coletividade para a proteção e preservação do meio ambiente.

    Pensar-se na tutela de interesses ou direitos difusos e coletivos de forma

    preventiva é, ainda hoje, uma dificuldade para a Administração Pública e para o próprio

    Judiciário, pois há institutos clássicos que necessitam de uma aplicação compatível com a

    essência dos direitos de terceira geração. A sociedade se habituou com uma postura

    individualista e modificá-la é tarefa paulatina, mas que ainda se encontra em processo

    incipiente.

    A Constituição Federal garante competência ao Poder Executivo— que

    será aqui restrito à atuação da Administração Pública em sentido estrito, entendida como

    referente aos entes federados e seus órgãos diretos— para atuar na execução das normas

    ambientais, devendo estar adstrito às determinações legais. O interesse público é fim único

    da Administração Pública, desta forma, tem a obrigação de compatibilizar interesses

    ambientais e administrativos conflitantes, com a observação de princípios e regras

    informadores dos mesmos.

    Em relação ao Poder Judiciário, não será afastado de sua apreciação

    qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito. O objetivo é resguardar a integridade do

    interesse ou do direito vulnerado. Com a incorporação do meio ambiente e de outros

    direitos ou interesses difusos na Carta Magna, o Judiciário teve seu papel alargado,

    deixando de apreciar causas essencialmente individualistas, para também exercer como

    função típica a preservação e proteção ao meio ambiente.

    Este tem natureza preventiva, devendo ser protegido temporalmente,

    mediante tutela jurisdicional diferenciada. Pretende-se demonstrar que o meio ambiente

    está em constante vulneração, sujeitando-se à probabilidade do ilícito. Entretanto, o ato

    ilícito não se confunde com o dano, que é conseqüência eventual daquele, podendo haver

    uma coincidência cronológica entre ambos.

  • 12

    Para atender a necessidade de se proteger o meio ambiente contra a

    continuação, a repetição e ameaça de ilícito, é que se sugere o uso da tutela inibitória,

    como instituto processual que melhor resguarda este direito. A tutela inibitória antecipa-se

    no tempo contra os atos ilícitos oriundos da Administração Pública, que se sujeitarão à

    apreciação do Judiciário.

    Assim, sustenta-se que deve existir uma interpretação conjunta entre

    princípios e regras, que regem tanto a Administração Pública como o meio ambiente, para

    se atingir o equacionamento entre este e o desenvolvimento. A aplicação das referidas

    normas deve atender a uma metodização interpretativa, com fim de manter a coesão do

    texto constitucional.

    Os princípios da prevenção e da precaução serão determinantes na

    interpretação, aplicação e evolução da legislação ambiental, sendo peças fundamentais para

    a demonstração da probabilidade do ilícito na tutela inibitória. Esta visa eliminar qualquer

    ameaça de lesão ao meio ambiente, antecipando-se ao ilícito, conseqüentemente ao próprio

    dano.

    Essa tutela preventiva exige uma sensibilidade do magistrado na sua

    aplicação, principalmente, quando em referência ao direito ambiental. Requer-se um

    processo rápido e efetivo que garanta ao administrado o seu direito, independentemente, da

    sentença final. Deve-se utilizar a tutela inibitória em caráter antecipatório, porque os fatos

    que originam o ilícito e repercutem sobre o meio ambiente, em regra, precisam de uma

    decisão imediata, sob pena de advir o dano.

    A tutela inibitória é instituto eficaz e adequado na proteção e preservação do

    meio ambiente. Contudo, encontra barreiras na visão clássica sobre princípios da

    Administração Pública, que hodiernamente necessitam ser interpretados à luz dos direitos

    difusos e coletivos; mas, aqui, o interesse é o meio ambiente. A questão polêmica é que a

    Administração Pública,tem se aproveitado da margem de discricionariedade para se omitir

    na execução dos comandos legais.

    Argüi-se que a intervenção do Poder Judiciário, na análise da

    discricionariedade, seria uma invasão ao princípio da separação dos poderes e que a

    sentença ou decisão interlocutória— sendo esta a tutela antecipada— contra Administração

    Pública, colidiria com o princípio da previsão orçamentária. Diante disto, tem-se repensado

    na postura do Judiciário no controle dos atos administrativos, principalmente frente aos

  • 13

    conceitos jurídicos indeterminados, que não podem ficar exclusivamente no âmbito da

    apreciação administrativa, quando o assunto é o meio ambiente. No exercício de sua

    função, ficará demonstrado que o controle judicial exercido sobre os atos administrativos,

    não viola nem o princípio da separação dos poderes, nem o princípio da reserva

    orçamentária.

    No que se refere à concessão da tutela inibitória contra a Administração

    Pública, o argumento contrário diz que o Poder Judiciário não pode, mediante ordem,

    obrigar a Administração Pública a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, pois ante aos seus

    princípios, estaria havendo uma invasão de competência em um outro Poder.

    Observa-se, ainda, as decisões emanadas do Judiciário que quando ordenam

    à Administração Pública a cumprir obrigação de fazer ou não fazer, não são concretizadas

    sob a égide de que não haveria disponibilidade orçamentária prevista e autorizada pelo

    Legislativo; mas, há possíveis soluções.

    Esses argumentos contra o não cabimento da tutela inibitória não

    convencem, pois pode-se dizer, na mesma proporção, que a Administração Pública está

    também a descumprir ordem judicial e a violar o princípio da separação dos poderes.

    Assim, é viável o uso da tutela inibitória contra a Administração Pública, sendo instituto

    processual, que, se efetivamente aplicado, evitará inúmeros problemas enfrentados pelo

    meio ambiente, pois atuará preventivamente contra o ilícito.

    A presente dissertação justifica-se por ser a tutela inibitória assunto em

    evidência. Para tanto, é necessário contextualizar a referida tutela diante do direito

    ambiental e da Administração Pública, protetora e degradadora, com o propósito de

    demonstrar que ela é cabível para proteger o meio ambiente, principalmente, na sua forma

    genuína, em que se protege o direito antes mesmo que o ilícito ocorra, ou seja , ameaçado o

    meio ambiente por ato ilícito, caberá a tutela inibitória.

    Esta visa impedir a prática, a continuação e a repetição do ilícito. A

    aplicabilidade deste instituto nas decisões proferidas pelo Judiciário, inclusive

    antecipadamente, é a demonstração de um processo civil eficaz e adequado, que atende à

    urgência de um direito que não se quer ver atingido pelo ilícito.

    Tem-se a tutela inibitória negativa e positiva, que diante da Administração

    Pública possui difícil aplicação. Imaginar o Poder Público sendo obrigado a não— tutela

    inibitória negativa— praticar, continuar ou repetir determinado ato ilícito por decisão do

  • 14

    Judiciário, é mais fácil do que imaginá-lo obrigado a uma conduta positiva, onde diante de

    sua postura omissiva, por exemplo, é coagido a fazer, sob pena de multa, sendo necessário

    o estudo do princípio da separação dos poderes e o da reserva orçamentária. O estudo da

    tutela inibitória mostra-se, assim, de precípua importância na defesa dos direitos difusos e

    coletivos contra atos omissivos ou ineficientemente prestados pela Administração Pública.

    Utilizou-se na pesquisa metodológica a técnica bibliográfica, onde serão

    expostas opiniões doutrinárias, realizando contraposições de entendimentos. Obras, artigos

    científicos e referências à legislações foram coletados e selecionados para fundamentar

    com especificidade e cientificidade as colocações.

    O presente trabalho se dividirá em cinco capítulos. O capítulo primeiro

    analisa a colisão de princípios, considerando que a absolutez de um princípio é apenas

    prima facie. São abordados os princípios da prevenção e da precaução, como princípios

    informadores das normas ambientais. Contudo, a metodização interpretativa das normas

    ambientais e administrativistas devem procurar se conjugar de forma harmônica,

    objetivando atender o interesse público. Ao final, mostra-se o papel desempenhado pelo

    Estado na proteção e preservação do meio ambiente, sendo este considerado um direito ou

    interesse perante o ordenamento pátrio.

    O capítulo segundo trata dos princípios constitucionais da Administração

    Pública, que diante da ampliação do conteúdo da expressão interesse público, pela

    emergência constitucional dos diretos difusos e coletivos, devem ser interpretados em

    comutação com as causas ambientais. A Administração Pública é figura híbrida, pois ao

    mesmo tempo que é defensora e protetora do meio ambiente, configura-se grande

    degradadora, seja pela omissão nos seus deveres legalmente determinados, seja pela

    prestação ineficiente de seus serviços. A atuação descomprometida da Administração

    Pública expõe o meio ambiente a situação de risco, o que oportuniza o controle pelo Poder

    Judiciário.

    No capítulo terceiro, será discutido, primeiramente, a diferença entre dano e

    ilícito, mostrando-se que o dano não é elemento configurador deste, sendo conseqüência,

    que pode advir ou não do ato ilícito. Mostra-se que a tutela inibitória possui natureza

    preventiva diante do ilícito, procurando impedir a prática, a continuação ou repetição do

    mesmo. Esta tutela encontra sua fundamentação legal no princípio da inafastabilidade do

    controle judicial, sendo que a probabilidade do ilícito, será demonstrado mediante

    emprego dos princípios da precaução e da prevenção. Verifica-se que esse tipo de tutela

  • 15

    demanda uma emergência da ordem judicial, impondo uma ordem de fazer ou de não fazer

    sob pena de multa, o que necessita, em regra, de concessão antecipada, pois a lesão a que

    se expõe o meio ambiente, não pode esperar pela delonga processual.

    Demonstra-se, no capítulo quarto, a utilização da tutela inibitória no

    controle do licenciamento de atividades potencialmente causadoras de significativa

    degradação ambiental. Do exemplo do estudo de impacto ambiental, verifica-se que é

    importante o uso desta tutela contra a Administração Pública, para preservar o meio

    ambiente contra abusos escudados na legalidade. Deve a Administração Pública submeter-

    se à decisão do Poder Judiciário, sendo obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa,

    pois este está no exercício de suas funções. Não é pertinente se cogitar nem a violação do

    princípio da separação dos poderes, nem da reserva orçamentária.

    Fica claro, no capítulo quinto, a viabilidade aplicativa da tutela inibitória

    contra atos ilícitos administrativos que ameacem, continuem ou reincidam sobre o meio

    ambiente. O controle do Poder Judiciário em relação à atuação da Administração Pública,

    não pode ser entendida como violação de um poder sobre o outro. Isto deriva das novas

    atribuições cabíveis a cada um dos integrantes do Poder Público, que possuem igualmente

    o dever de proteger e preservar o meio ambiente. E o princípio da previsão orçamentária

    não pode constituir motivo eternizador do não cumprimento das ordens judicias, pois

    existem possíveis saídas. A impossibilidade de concretização da ordem judicial não é

    resultante da legislação processual, que proporciona mediante tutela inibitória a adequada

    proteção ao meio ambiente, mas, de fatores exógenos, os quais interferem de modo

    incisivo no cumprimento da decisão. Assim, juridicamente, diante da legislação posta, é

    viável a tutela inibitória contra atos ilícitos da Administração Pública.

  • CAPÍTULO I

    A INDISPENSABILIDADE DEMONSTRATIVA DOS PRINCÍPIOS NA

    PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE MEDIANTE ATUAÇÃO PREVENTIVA

    Sumário: 1.1 A importância dos princípios para uma visão sistêmica do ordenamento jurídico; 1.2 A imperatividade dos princípios constitucionais e a declaração do Rio-92; 1.3 O princípio da prevenção e da precaução; 1.4 O papel do Estado na proteção dos direitos difusos e coletivos frente à Constituição Federal de 1988; 1.4.1 Direito difuso e direito coletivo: diferenciação e análise do conceito difuso; 1.4.2 Direito ou interesse transindividual?.

    1.1 A importância dos princípios para uma visão sistêmica do ordenamento jurídico.

    A imprecisão técnica na utilização do termo princípio, gera seu

    esvaziamento semântico, quando "(...) fenômenos completamente diversos são explicados

    mediante o emprego de denominação equivalente (...)".1 Faz-se imperativo expor este

    assunto, pois, ao longo do trabalho serão citados princípios que se interpenetrarão

    simultaneamente diante do caso concreto, envolvendo a matéria ambiental e

    administrativa.

    Procurar-se-á, desta forma, delimitar o emprego do termo princípio, uma

    vez que será utilizado de modo contínuo, para melhor compreensão do texto.

    1Humberto Bergmann Ávila. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p.102.

  • 17

    O princípio como axioma, revela-se como proposição evidente que não

    se sujeita a demonstrações. São assertivas não debatidas e, por serem aceitas como

    verdade, a doutrina jurídica as utiliza para entendimentos que sejam por todos conhecida.2

    Analisado como postulado, ter-se-á duas modalidades: o normativo e o

    ético-político. Ganham esta particularidade, consoante o objeto condicionante do

    conhecimento.3 O postulado normativo, essencial para a atual exposição, refere-se a "(...)

    condições de possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico. Eles, também por isso,

    não oferecem argumentos substanciais para fundamentar uma decisão, mas apenas

    explicam como pode ser obtido o conhecimento do Direito."4

    Sob o prisma da norma, o termo princípio aponta sua demasiada

    importância para o direito constitucional, principalmente por se tornar instrumento na

    melhor aplicação e interpretação do Direito. Norma "é conteúdo de sentido de determinada

    prescrição normativa, em função do qual é delimitado o que um dado ordenamento jurídico

    determina, proíbe ou permite."5

    Alexy resume no conceito de norma, o princípio e a regra. Considera

    aquela como prescrições que dizem o que deve ser, expressando uma determinação, uma

    permissão ou proibição. Para diferenciar princípios e regras, critérios6 são propostos, sendo

    o mais comum o grau de generalidade, onde o índice mais elevado encontra-se nos

    princípios. Contudo, demonstra que o ponto de distinção entre eles está relacionado ao fato

    de que os princípios são mandados de otimização, que podem ser cumpridos não somente

    através das possibilidades fáticas, mas também jurídicas, o que ocasionará diferentes graus

    de concretização7. No tocante as regras, esclarece que:

    (...) são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contém determinações no âmbito fático e

    2Humberto Bergmann Ávila. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p.102. 3Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.103. 4Robert. Alexy. Juristische interpretation. In: Recht, Vernunft, Diskurs. Frankfurt am Main, 1995, S. 77 apud Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.103. 5Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.104. 6Para melhor aprofundar os critérios utilizados e as três teses explicativas, que elucidam a distinção entre princípios e regras, admitindo que não existe somente uma diferença gradual entre princípios e regras, mas também qualitativa, conferir: Robert Alexy. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 86. 7Robert Alexy. Op. cit., pp. 83-86.

  • 18

    juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma é ou bem uma regra ou um princípio.8

    A distinção entre regras e princípios se evidencia de modo inteligível na

    ocorrência de colisões de princípios e nos conflitos de regras. Esses podem ser resolvidos

    pela inclusão de cláusula de exceção, para solucionar a contradição na aplicação das regras,

    excluindo o conflito. Não havendo esta possibilidade, uma das regras deve ser declarada

    inválida e sendo retirada do ordenamento jurídico, pela impossibilidade fática e jurídica.9

    Na colisão de princípios, a dimensão de validade torna-se restrita, vai-se

    além, para uma dimensão de peso.10 Isto significa que, existindo a colisão de um princípio

    com outro, haverá uma relação de precedência de um deles, consoante as circunstâncias

    fáticas e jurídicas, o que não quer dizer que o cedente tenha sido declarado inválido ou que

    se tenha inserido cláusula de exceção.11

    Assim, diante da cessão de um princípio ao outro, nota-se que eles são

    mandados definitivos tão somente prima facie , pois dependem das possibilidades fáticas e

    jurídicas e, como já foi referido, "(...) os princípios carecem de conteúdo de determinação

    com respeito aos princípios contrapostos e às possibilidades fáticas."12 Haverá, então, uma

    mutação contextual, porque o princípio cedente poderá ocupar a posição dominante, a

    depender das circunstâncias fáticas e jurídicas.

    São analisadas pelo citado autor, três objeções ao conceito de princípio.

    A primeira refere-se à solução da colisão dos princípios pela declaração de invalidez de

    um dos princípios; a segunda restrição, à existência de princípios absolutos que falariam

    da relação de precedência e a terceira objeção, à de que o conceito de princípio é amplo,

    8Robert Alexy. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 87. Cf: " (...) son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regra o un principio." 9Robert Alexy. Op. cit., pp. 88-89. 10Sobre a dimensão de peso dos princípios, reportando-se ao autor Ronald Dworkin, verificar o texto de Edilsom Pereira de Farias. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, pp. 24-25; e o de Humberto Bergmann Ávila. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, v. 215, jan./mar. 1999, pp. 151-179. 11Robert Alexy. Op. cit., p. 89. Para saber mais sobre a lei de colisão verificar pp. 90-95. 12Robert Alexy. Op. cit., p. 99. Veja: "(...) los principios carecem de contenido de determinación con respecto a los principios contrapuestos y las posibilidades fácticas."

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    açambarcando todos os interesses.13 Refuta a declaração de invalidez de um dos princípios,

    pois, explica que a colisão de princípios ocorre dentro do ordenamento jurídico, exigindo,

    assim a natural validez dos princípios colidentes, o que não afeta o seu teorema.14

    A existência de princípios absolutos comprometeria o próprio conceito de

    princípio. A absolutez criaria uma imodificabilidade do referido princípio perante outros, o

    que não impõe limites jurídicos, mas apenas limites fáticos. Ao contrário, isto evidencia

    que há uma impressão de absoluticidade, pois a exemplo da dignidade da pessoa humana,

    trata-se de enunciado que é em parte, regra e, em parte princípio. Isto acontece porque

    haverá a realização em vários graus, ante a certeza do princípio em questão. Este precederá

    os demais, o que não quer dizer que seja absoluto, mas sim uma impressão de absoluto,

    pois depende da hipótese em apreço.15

    Alexy contesta a objeção de ser o conceito de princípio demasiadamente

    amplo, pois entende que direitos individuais e coletivos podem ser objeto de princípios, a

    exemplo das decisões oriundas do Tribunal Constitucional Federal.

    No que tange à teoria dos princípios, afirma existir um nexo entre ela e a

    máxima proporcionalidade16. Esta é formada por três máximas parciais: adequação,

    necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Os princípios como mandados de

    otimização limitam-se às possibilidades fáticas e jurídicas e incidem diretamente na

    máxima proporcionalidade e esta, naquele. A máxima parcial de proporcionalidade em

    sentido estrito é relativizada pelas possibilidades jurídicas, constituindo uma ponderação

    dos princípios válidos, porém opostos. Desta forma, a realização do princípio penderá do

    outro princípio. E as máximas parciais de adequação e necessidade referem-se às

    possibilidades fáticas.17

    Diante do exposto, mostram-se enriquecedoras as críticas realizadas por

    Ávila aos ensinamentos de Dworkin e Alexy. Para ele, a idéia de que as regras são

    13Robert Alexy. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 104. 14Robert Alexy. Op. cit., p. 105. 15Robert Alexy. Op. cit., pp. 108-109. 16Alexy explica que a máxima da proporcionalidade é também chamada de "princípio de proporcionalidade". Essa terminologia não foi utilizada pelo autor, pois não se trata de um princípio no sentido utilizado do seu texto. As máximas parciais devem ser satisfeitas ou não, sob pena de ilegalidade, devendo ser catalogadas. Ver: Robert Alexy. Op. cit., p. 112. 17Robert Alexy. Op. cit., pp. 111-113. O autor cita como exemplo a seguinte situação "si una norma de derecho fundamental con carácter de principio entra en colisión com un principio de derecho fundamental depende del principio opuesto. Para llegar a una decisión, es necesaria una ponderación en el sentido de la ley de colisión." (p. 112)

  • 20

    realizadas sob a égide do "tudo ou nada" não encontrou respaldo, quando diante de

    conceitos juridicamente indeterminados, integrantes de determinadas regras, por exemplo

    e, conseqüentemente, não podem ser implementadas. Isto adquire sentido "(...) quando

    todas as questões relacionadas à validade, ao sentido e à subsunção final dos fatos já

    estiverem superadas."18

    A regra pode ser compreendida no seu real sentido, depois de

    interpretada diante do caso concreto; daí advirá seu cumprimento. Discorda o autor com a

    distinção entre princípios e regras, com base no "tudo ou nada" em relação à aplicação das

    regras, pois necessitam de uma análise prévia de interpretação, como ocorre nos princípios,

    para verificar as conseqüências normativas de implementação. Quando isto ocorre "o grau

    de abstração anterior à interpretação" é relativizado e torna-se possível a aplicação da regra

    diante do caso concreto.19

    Princípios e regras identificam-se por estarem situados num plano

    abstrato, todavia, nos princípios, o grau de abstração é relativamente mais alto "(...) à

    norma de comportamento determinada (...)"20 e nas regras "(...) as conseqüências são de

    pronto verificáveis, ainda que devam ser concretizadas por meio do processo de

    aplicação."21 Observa-se que a tentativa em estabelecer uma diferenciação perde seu

    significado, quando se verifica que as regras dependem, para sua boa aplicação, de uma

    interpretação conjunta com os princípios a que elas se refirem.22

    Os princípios também possuem conseqüência normativa, demonstrando

    sua relevância diante do caso concreto. Este terá o poder de transfigurar um princípio em

    regra e vice-versa, pois o alto grau de abstração, oferta à interpretação, esta flexibilidade.

    Então, a dimensão de peso é atributo do fato real e das circunstâncias que o cercam, e não,

    do princípio, sendo um resultado frutificado pela valoração do aplicador da norma.23

    18Humberto Bergmann Ávila. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, v. 215, jan./mar. 1999, p.161. O grifo é do original. 19Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.161. 20Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.161. 21Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.162. 22Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.162. 23Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.162.

  • 21

    A colisão de princípios e conflito de regras merecem ponderações.

    Quando Alexy se referiu à prevalência de um princípio sobre o outro, sem a invalidação do

    princípio cedente, isto se aplica a finalidades divergentes contidas neles. Se convergentes

    ao mesmo fim, "(...) mas com a implementação dos meios diversos, aí deve-se declarar a

    prioridade de um princípio sobre outro com a conseqüente não aplicação de um deles para

    aquele caso concreto. "24

    Por isto que se deve ter uma postura cuidadosa na colisão de princípios e

    na questão da máxima proporcionalidade. Os fins intrincados no conteúdo do princípio não

    podem ser interpretados em único sentido quando colidentes, pois estabelecem

    previamente fins, mas não os meios de implementação. Diante disto, deve-se realizá-los na

    "medida necessária" e "não na máxima medida" , sendo "(...) o dever de realização

    estritamente necessário à implementação do fim instituído por outro princípio."25

    Tanto princípios como regras necessitam de interpretação para delimitar

    de modo mais específico, o seu conteúdo, seu fim. Pode-se dizer que, mesmo com a

    interpretação do princípio, este pode ser considerado prima facie em relação a outro,

    porque, neste momento, a conduta a ser seguida ainda não é específica. A concretização

    subordina-se mais à aplicação. As regras possuem sua conduta finalística mais delineada, o

    que as torna mais independente do aplicador.26

    A importância de princípios e regras é indispensável para a realização

    integrativa unitária da Constituição Federal. A colisão de princípios e conflitos de regras,

    na perspectiva apresentada, também deve ser relacionada ao tema deste trabalho. Assim,

    princípios e regras informadores do direito do ambiente e da Administração Pública, terão

    prevalência apenas prima facie.

    A idéia de prevalência absoluta de um interesse ou direito sobre outro

    não é pertinente, porque mesmo o meio ambiente, que é um interesse difuso, deve se

    sujeitar à aplicação e interpretação conjunta com o caso concreto, visto que eclodirá

    situações, as quais exigirão um caminho paralelo entre meio ambiente e desenvolvimento,

    24Humberto Bergmann Ávila. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, v. 215, jan./mar. 1999, p.163. O grifo é do original. 25Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.163. 26Humberto Bergmann Ávila. Op. cit., p.163.

  • 22

    mas o fim deve ser o interesse público, pois pode haver a "inversão das soluções"27

    entendidas anteriormente como necessárias.

    1.2 A imperatividade dos princípios constitucionais e a declaração da RIO-92.

    O processo interpretativo deve ter seu início nos princípios

    constitucionais, que são normas jurídicas que retratam a ideologia da Constituição,

    finalidades e fundamentos básicos.28 Como elementos necessários à interpretação e

    aplicação do direito, os princípios devem ser citados obrigatoriamente, afim de evitar

    emissão de valorações subjetivas pelo intérprete e aplicador, porque coibe pretensa

    discricionariedade na interpretação e aplicação da norma. Adquiriram grande relevância no

    direito constitucional, principalmente como "(...) instrumentos valiosos para uma adequada

    hermenêutica constitucional", o que transmudou a visão da Constituição como texto

    fundamental para "norma jurídica obrigatória", não existindo uma hierarquia normativa.29

    Diante do princípio da unidade da Constituição, nega-se uma hierarquia

    em sentido normativo,30 o que não obstaculariza que normas ali referidas possuam

    diferentes funções dentro da Constituição.31 Esta é um sistema de normas32 que refletem as

    aspirações e valores relevantes da sociedade. Os princípios constitucionais são a base de

    27Humberto Bergmann Ávila. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, v. 215, jan./mar. 1999, p.167. O grifo é do original. 28Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999, p.22. 29Edilsom Pereira de Farias. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p.22. Para ele inexiste hierarquia normativa, pois "(...) as normas (princípios ou regras) constitucionais independentemente de sua estrutura, possuem igual força normativa obrigatória (...). Com isso abandona-se, definitivamente, a doutrina que classificava as normas da constituição em preceptivas e programáticas e que negava, a estas últimas, caráter de força de lei." (p.22). Em posição contrária admitindo a identificação de princípios com caráter programático, Luís Roberto Barroso. Op. cit., p.150. 30Luís Roberto Barroso. Op. cit., p.147. Refere-se ao autor Moreira Neto, com o qual compartilha a possível existência de uma hierarquia axiológica (p.148- nota de rodapé). Nesse sentido: Diogo de Figueiredo Moreira Neto. A ordem econômica na Constituição de 1998. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, 1990, p.57. 31Luís Roberto Barroso. Op. cit., p. 148. O autor explica que existe uma ação imediata quando princípios incidem aplicavelmente sobre uma relação jurídica e uma função mediata que ocorre quando o princípio é utilizado como elemento de interpretação e integração da Constituição e cita Jorge Miranda. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra, Coimbra Ed., 1983. t.2, p. 199. 32Como já foi exposto, Robert Alexy entende a norma como gênero, pois no conceito estaria inserto regras e princípios, que seriam as espécies.

  • 23

    todo o sistema constitucional, é desse que o texto constitucional tomará forma e se

    solidificará, dando coesão e unidade ao texto e às normas infraconstitucionais.

    Barroso ordena os princípios constitucionais de acordo com o "grau de

    destaque no âmbito do sistema e sua conseqüente abrangência".33 Para ele, o fato dos

    princípios estarem difundidos por todo o sistema normativo, afetariam primeiramente as

    normas constitucionais, estendendo-se a posteriori sobre normas infraconstitucionais.

    Assim, os princípios "(...) variam na amplitude de sua aplicação e mesmo na sua

    influência. Dividem-se, assim, em princípios fundamentais, princípios gerais e princípios

    setoriais ou especiais."34

    Este mesmo autor explica que princípios fundamentais são os que

    constituem a organização política do Estado, a exemplo, tem-se o princípio da separação

    dos poderes (art. 2º da CF). Tais princípios têm caráter imutável no ordenamento, a fim de

    impor limites às possíveis modificações no texto constitucional. Os princípios gerais

    possuem menor abstração que os princípios fundamentais, pois trata-se geralmente da

    pormenorização e desdobramentos destes e "(...) se aproximam daqueles que identificamos

    como princípios definidores de direitos"35, pode-se citar o princípio do acesso ao Judiciário

    (art. 5º, inc. XXXV da CF) e o princípio da legalidade.

    Ainda, tem-se os princípios setoriais ou especiais que se referem a "(...)

    um específico conjunto de normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da

    Constituição."36 Apesar da incidência determinada, a amplitude de sua aplicação e

    influência são supremos, lição desses princípios está no capítulo "Da Ordem Econômica e

    Financeira", em que tem o princípio da defesa do meio ambiente (art. 170, VI da CF), no

    capítulo referente a "Da Tributação e Orçamento", tem-se o princípio da anualidade

    orçamentária.37

    A sistematização dos princípios conduz a uma interpretação

    constitucional, partindo-se do princípio de maior difusão ou generalidade sobre o tema

    33Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva ,1999, p.150. 34Luís Roberto Barroso. Op. cit., p. 150. A explicação específica de cada um dos princípios da classificação, encontra-se nas pp. 150-156. 35 Luís Roberto Barroso. Op. cit., p. 151. 36 Luís Roberto Barroso. Op. cit., p. 151. 37Luís Roberto Barroso. Op. cit., pp. 150-155. O autor elencou vários princípios atinentes a cada classificação, contudo utilizou-se os exemplos estritamente ligados ao presente trabalho.

  • 24

    para atingir o princípio específico acerca do mesmo, para que numa dimensão concreta, a

    regra reja a espécie.38 Observa-se, assim, uma metodização da interpretação constitucional.

    Denota-se que a utilização sistemática dos princípios conduz à

    formulação das bases do Estado, onde se exterioriza as características embasadoras e

    determinantes de suas instituições; à unidade da Constituição, assim, o texto

    constitucional, diante dos diversos temas nela insertos, utiliza-se da sistematização acima

    referida para dar unidade ao sistema, compatibilizando as normas; e ainda pautam o

    Executivo, o Legislativo e o Judiciário nas suas funções, direcionando e lastrando a

    interpretação e aplicação da normas constitucionais e infraconstitucionais.39

    Em 1992, quando o Brasil sediou a Conferência das Nações Unidas sobre

    Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Estado do Rio de Janeiro, conhecida como RIO-

    92, se originaram duas declarações: a Declaração do Rio e a Agenda 21.

    Interessa aqui, os princípios declarados pela Conferência, no que tange à

    sua imperatividade ou não, no ordenamento jurídico pátrio. Tecnicamente, segundo o

    direito internacional, seriam "(...) 'recomendações', sem força vinculante, o que em termos

    estritamente formais é rigorosamente exato."40 Na própria declaração, em parte

    introdutória, o documento demonstra a intenção de se trabalhar "(...) com vistas à

    conclusão de acordos internacionais (...)"41, o que evidencia o caráter diretivo dos

    princípios proclamados.

    Caracterizam-se, então, por serem diretrizes, sem força vinculante,

    mesmo para os Estados participantes da Conferência. Se assim for, cair-se-á na inocuidade.

    Pois, a mobilização de Estados para a feitura de uma Conferência das Nações Unidas, da

    qual, em dias de reuniões, se discutiram opiniões, que se consubstanciaram num

    documento, e admitir-se que os princípios ali declarados não possuem relevância jurídica

    suficiente para um compromisso ambiental real, de nada valeria o esforço despendido.

    38Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva ,1999, p.147. 39Luís Roberto Barroso. Op. cit, p. 152. 40Fábio Konder Comparato. "A declaração universal dos direitos humanos— 1948". Juízes para a democracia (publicação oficial da Associação dos Juízes para a Democracia), n.15, p.9, out./ dez. 1998 apud Álvaro Luiz Valery Mirra. Direito ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental, nº 21, p. 95. 41Declaração sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992). Disponível em:

  • 25

    O caráter não vinculante dos princípios proclamados na Declaração, leva

    ao entendimento de que os países participantes têm total interesse na concretização dos fins

    declarados, se comprometendo a efetivá-los junto a seu ordenamento jurídico. O fato de

    não serem mandatórios, não significa ausência de relevância jurídica. Mesmo não estando

    inclusos como fonte tradicional do direito internacional, não se exclui a possibilidade de

    exame, como nova fonte e nova técnica de criação de normas jurídicas de âmbito

    internacional.42

    Soares considera referida a Declaração como documento

    consubstanciador de princípios gerais do direito, pois deve-se observar a finalidade da

    normas expressas naquela, sendo assim, a "(...) prolação decorreu de uma necessidade de

    tornar claras e iniciantes da formação de um costume internacional as normas que se

    encontravam subjacentes na consciência dos Estados da atualidade, porquanto protetoras

    de valores das gerações presentes e futuras."43

    A não obrigatoriedade dos princípios declarados pela Conferência, não

    retira a influência na "evolução, na interpretação e na aplicação" em normas jurídicas

    internas dos países participantes da Conferência.44 Perante o direito internacional, se

    princípios da Declaração estiverem presentes no rol dos princípios gerais do direito, Soares

    discorda por entender que para atingir tal posição "(...) torna-se necessária a manifestação

    de outras fontes do direito, como a doutrina dos internacionalistas (e não de um ou dois

    autores) e, em especial, da jurisprudência internacional."45

    Quando um Estado adere a uma organização internacional, como o é a

    ONU, constitui-se membro e comporta-se conforme diretrizes especificadas por esta.

    Percebe-se isto, ainda mais, quando o próprio país sedia e participa ativamente na

    formulação, elaboração de documento declarativo, proclamando princípios sobre meio

    ambiente e desenvolvimento, como foi o caso do Brasil.

    É coerente, então, que o Brasil, vale frisar, ao sediar a Conferência, que

    originou uma declaração de princípios, participando de sua elaboração, deve

    necessariamente observá-los, ao menos para evolução, a interpretação e aplicação da 42Alexandre Kiss. Droit international de l'environnement. Paris: Pedone, 1989, p. 62 apud Álvaro Luiz Valery Mirra. Direito ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 6, nº 21, jan./mar. 2001, p. 95. 43 Guido Fernando Silva Soares. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001, p. 200. 44Álvaro Luiz Valery Mirra. Op. cit., p. 98. 45 Guido Fernando Silva Soares. Op. cit., p. 200.

  • 26

    legislação pátria. Sendo os princípios oriundos da Declaração sobre Meio Ambiente e

    Desenvolvimento, diretrizes exigem do Estado um comprometimento social e político, para

    que o ordenamento jurídico interno seja criado, orientado, interpretado e aplicado, segundo

    uma análise sistêmica, para que se atinja o fim colimado pela norma jurídica. Neste sentido

    Soares expõe que "(...) se são guias para a unificação dos direitos internos dos Estados,

    estão presentes nestes, e portanto, são princípios gerais de direitos, por um dos aspectos

    destes."46

    A Declaração consagrou em seu Princípio 15, o princípio da precaução,

    e o Brasil, a exemplo do que foi dito acima, o inseriu expressamente nos textos oriundos da

    Convenção47 da Diversidade Biológica e da Convenção-Quadro48 das Nações Unidas sobre

    Mudanças do Clima, cujos textos foram promulgados após a Conferência das Nações

    Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro em 1992.49

    Infere-se que o princípio da precaução é entre a legislação pátria, um

    princípio do direito do ambiente acolhido pelo ordenamento, devendo assim ser norma de

    aplicação e interpretação obrigatória.50 Em um Estado Democrático de Direito, falar da

    necessidade de observância de princípios incorporados na Constituição de um país é no

    mínimo antagônico. A Constituição Federal, em seu art. 5º, § 2º, determina que: "Os

    direitos e garantias fundamentais expressos nesta Constituição não excluem outros

    decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em

    que a República Federativa do Brasil seja parte." (grifo pessoal)

    Explícitos ou implícitos, os princípios adotados pela República

    Federativa do Brasil devem ser respeitados e nortear todo o sistema constitucional, para

    melhor aplicação e interpretação de seu texto. Mesmo estando inserto o capítulo VI que

    trata "Do Meio Ambiente" no Título VIII, denominado "Da Ordem Social", pode-se

    afirmar que o princípio do ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput da CF) é

    um direito fundamental da pessoa humana, que excede toda ordem jurídica e revela-se

    verdadeira cláusula pétrea.51

    46Guido Fernando Silva Soares. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001, p. 200. 47Promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16.03.1998. 48Promulgada pelo Decreto nº 2.652, de 01.07.1998. 49Guido Fernando Silva Soares. Op. cit., p. 191. 50Álvaro Luiz Valery Mirra. Op. cit., pp. 97-98. 51Édis Milaré. Direito do ambiente: um direito adulto. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 4, nº 15, jul./set. 1999, p. 37. Ver: Constituição Federal, art. 60, § 4º, inc. IV.

  • 27

    É clara a importância do princípio da precaução52 nos termos da

    Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento — Declaração do

    Rio de 1992 —, e sua imperatividade jurídica, que veio para reforçar o princípio da

    prevenção.53

    1.3 O princípio da prevenção e da precaução.

    O Brasil é membro da ONU, aderindo aos fins da entidade. Assim, nada

    mais natural que, ao sediar uma conferência internacional e participar ativamente na

    elaboração de diretrizes para a proteção e preservação do meio ambiente, o Estado procure

    viabilizar o respeito e aplicação dos princípios debatidos, acordados e consubstanciados

    numa declaração internacional sobre meio ambiente e desenvolvimento. Do contrário, se

    os princípios não forem utilizados como diretrizes para uma nova interpretação, evolução

    do direito, torna-se inócua a feitura de uma conferência desse porte e a mobilização de

    Estados para o debate.54

    Ao sediar a conferência internacional, o Brasil adotou a Declaração

    Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992 e, sendo membro

    integrante da ONU, resta-lhe, no mínimo, fazer com que os princípios declarados sejam de

    alguma forma respeitados. Devem servir de base para a formulação da legislação pátria,

    interpretação e aplicação, as quais exigem instrumentalização para que não haja somente a

    efetividade no âmbito abstrato, e tornem-se letra morta.

    Assim, o princípio da precaução, sendo integrante do nosso

    ordenamento jurídico e norma de caráter geral, possui imperatividade obrigatória.55 Este

    princípio quebrou uma linha de conduta política e empresarial pois, agora, mesmo diante

    da ausência de absoluta certeza científica com relação aos efeitos nocivos de determinada

    atividade ou substância ao meio ambiente, deve-se agir prevenindo. Desse modo, no caso

    de certeza quanto ao dano ao meio ambiente, age-se prevenindo, como determina o

    52Declaração do Rio, Princípio 15: "De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.". 53Álvaro Luiz Valery Mirra. Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 6, v. 21, jan./ mar. 2001, p. 93. 54Álvaro Luiz Valery Mirra. Op. cit., p. 96. 55Álvaro Luiz Valery Mirra. Op. cit., p. 98.

  • 28

    princípio da prevenção e, no caso de incerteza ou dúvida, também age-se prevenindo,

    sendo esta a inovação do princípio da precaução.56

    É importante demonstrar a divergência existente na doutrina sobre a

    utilização, ora do princípio da precaução, ora do princípio da prevenção, para que um dos

    termos não surta dúvidas, quando empregados ao longo do texto.

    Milaré faz menção a juristas que empregam a expressão princípio da

    prevenção, enquanto outros se referem ao princípio da precaução, elucidando, ainda os

    que as utilizam indistintamente, "(...) supondo ou não diferença entre elas." Sugere que o

    princípio da prevenção, ante ao seu caráter genérico, acolha o princípio da precaução, que

    possui "(...) caráter possivelmente específico."57

    A palavra prevenção vem do latim praeventio, de praevenire que

    significa "dispor antes, preparar antecipadamente, precaver"58. Analisa Milaré que

    "prevenção é um substantivo do verbo prevenir, e significa ato ou efeito de antecipar-se,

    chegar antes; induz uma conotação de generalidade, simples antecipação no tempo, é

    verdade, mas com o intuito conhecido. "59

    A proteção ao meio ambiente, como é sabido, foi vista com desdém e

    como uma utopia. Hoje, vê-se que não se trata de uma ostentação ou de uma fantasia, mas

    de uma necessidade imprescindível para as gerações presentes e futuras. É uma questão de

    vida, mais precisamente de qualidade de vida.

    As agressões ao meio ambiente, quando consumadas, demostram-se

    normalmente dificultosas e de impossível reparação, pois uma vez atingido determinado

    meio, por mais que se tente restabelecer o status quo ante, este não o será em sua origem, o

    que acarretará, em verdade, uma amenização das conseqüências. Isto gera a idéia de

    reparação incerta e em regra custosa, pois despende-se com estudos complexos, que

    envolvem os mais variados estudiosos como químicos, biólogos, geólogos, geógrafos,

    físicos, economistas, advogados, entre outros.

    Daí decorre o princípio da prevenção, que visa uma atuação preventiva

    do Estado e da coletividade para defender e preservar o meio ambiente. Quando se fala em

    56 Paulo Affonso Leme Machado. Direito ambiental brasileiro. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 55. 57Édis Milaré. Direito do ambiente: um direito adulto. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 4, nº 15, jul./set. 1999, pp. 43-44. 58De Plácido e Silva. Vocabulário jurídico. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p. 638. 59Édis Milaré. Op. cit., p.44.

  • 29

    atuação preventiva, objetiva-se, a partir de medidas concretas, proteger o meio ambiente de

    uma certeza ou dúvida científica acerca do dano.

    A atuação preventiva seria feita mediante a utilização de instrumentos,

    mecanismos postos à disposição do Estado e da coletividade de modo rotineiro e acessível,

    através de uma educação ambiental coletiva para que se atinja uma consciência, ainda hoje

    incipiente.

    A atuação prévia deve ser implantada radicalmente, mediante exercício

    eficiente do poder de polícia da Administração Pública e processo coletivo fiscalizatório.

    Sabe-se que o meio ambiente do território nacional brasileiro é demasiadamente extenso,

    logo, o risco de dano é possível, por menor que seja. Mas isso pode ser evitado se atitudes

    preventivas forem postas comumente em prática.

    Há, neste caso, a necessidade de equipe multidisciplinar, envolvendo os

    vários ramos da ciência, a fim de formar um corpo complexo e bem estruturado. Claro que

    isto envolve custos a serem previstos em orçamento público, mas a atitude preventiva de

    hoje excluirá prejuízos, pequenos ou de grandes proporções no futuro.

    Deve-se mirar o meio ambiente como uma grande empresa que insta ser

    gerenciada, administrada, fiscalizada e cuidada diariamente pelo Estado e pela

    coletividade. Assim, geólogos, físicos, químicos, biólogos, engenheiros, uma equipe

    complexa e completa, laudos técnicos, relatórios, estudos, avaliações e pesquisas, seriam

    elementos comuns numa atuação preventiva de rotina.

    Isto é prevenção, é atuação prévia, como disse Milaré: simples

    antecipação no tempo. A atuação preventiva é, em verdade um instrumento efetivador da

    política ambiental, que depende de uma educação, isto é, de uma consciência ambiental.

    Entende-se, por isto, que o princípio da prevenção engloba o princípio da

    precaução, que será aqui analisado. Aquele deve ser entendido por princípio de maior

    difusão ou generalidade sobre o tema meio ambiente, em relação ao segundo.

    Na lição de Milaré , a "precaução é substantivo do verbo precaver-se (do

    latim prae = antes e cavere = tomar cuidado), e sugere cuidados antecipados, cautela para

    que uma atitude ou ação não venha a resultar em efeitos indesejáveis." O autor ao

    comparar diferencialmente os termos, prevenção e precaução, entende que ante a

  • 30

    etimologia e a semântica das palavras, a prevenção alcança a precaução, por ser esta "(...)

    atitude ou medida antecipatória voltada preferencialmente para os casos concretos."60

    Nestes termos, segue-se o entendimento de Milaré, o qual não descarta a

    possível diferença entre o princípio da prevenção e o da precaução. Contudo, prefere aderir

    a posição de que o primeiro possui caráter genérico e difuso em relação ao segundo, que é

    possivelmente específico61. Assim, este veio robustecer o princípio da prevenção.62

    O princípio da precaução expresso no Princípio 15 da Declaração do Rio

    de 1992, dita que a ausência absoluta de certeza científica não tem o condão de adiar as

    medidas eficazes, devendo o princípio ser invocado quando da ocorrência da ameaça de

    danos sérios ou irreversíveis ao meio ambiente.

    Deduz-se que a certeza científica absoluta, era invocada a fim de habilitar

    atividades ou obras potencialmente degradadoras, o que prevalecia, pois a exigência de

    certeza para que ocorresse a proibição era fruto de uma mentalidade essencialmente

    empresarial. Com a declaração do princípio da precaução, refuta-se essa idéia, passando

    a acautelar situações de risco, onde a dúvida ou a incerteza científica conduziram à

    conclusão de um risco grave e irreversível, sendo que este deve ser invocado, in dubio pro

    ambiente. 63

    Contudo, é necessário expor na íntegra o entendimento contrário, para

    melhor análise do citado princípio. Neste sentido, Leite, com base nos ensinamentos de

    Aragão, explica:

    Comparando-se o princípio da precaução com o da atuação preventiva,

    observa-se que o segundo exige que os perigos comprovados sejam

    60Édis Milaré. Direito do ambiente: um direito adulto. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 4, nº 15, jul./set. 1999, p. 44. Coloca o autor que princípio da precaução é expresso na legislação pátria através da Conferência sobre Mudanças do Clima, acordada pelo Brasil no âmbito das Nações Unidas por ocasião da ECO 92, e ratificada pelo Congresso Nacional via Decreto Legislativo 1, de 03.02.1994, determinando em seu "Art. 3º, 3 - As partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível (...)" (p.45). O grifo é do original. 61Édis Milaré. Op. cit., p.44. 62Álvaro Luiz Valery Mirra. Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 6, v. 21, jan./ mar. 2001, p. 93. 63Édis Milaré. Direito do ambiente: um direito adulto. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 4, nº 15, jul./set. 1999, p.40.

  • 31

    eliminados. Já o princípio da precaução determina que a ação para

    eliminar possíveis impactos danosos ao ambiente seja tomada antes de um

    nexo causal ter sido estabelecido com evidência científica absoluta.64

    Data venia, como já foi acima dito, a atuação preventiva por parte do

    Estado e da coletividade prescinde de prova científica absoluta ou relativa em relação à

    certeza ou incerteza do dano. Aqui, a atuação preventiva relaciona-se com a questão da

    política ambiental, conseqüentemente uma questão de educação ambiental. O risco, por

    menor que seja, deve ser prevenido a partir de medidas fiscalizatórias rotineiras. Imagine-

    se estudos , pesquisas, sendo realizadas com periodicidade, ao surgir um pedido de licença

    ou de autorização,65 por exemplo, aqueles já indicarão previamente os riscos oriundos da

    atividade ou instalação de obra potencialmente degradadora, onde se relatará a certeza ou

    dúvida científica e a certeza ou incerteza do dano.

    A certeza científica sobre a ocorrência de dano, exclui, de plano, a

    pretensa atividade. Se relativizada pelas mudanças circunstanciais, tecnológicas, a prova

    científica relativa que induz a incerteza do dano, pode levar ao deferimento da atividade

    potencialmente degradadora; se na análise global das agravantes e atenuantes

    circunstanciais, entender-se que não haverá dano grave ou irreparável. O indeferimento

    vem justamente da análise contrária, onde as incertezas geram justificativas bastante para

    impedir que riscos graves ou de cunho irreparável, venham afetar o meio ambiente, por

    isso invoca-se o princípio da precaução. Este seria então chamado, diante do caso concreto,

    como consolidador do princípio da prevenção.

    A necessidade de não correr riscos, originou o princípio da precaução,

    pois, no dia em que se atingir uma certeza científica absoluta, tal relação aos efeitos de

    determinadas atividades potencialmente degradadoras, os danos poderão ter atingido uma

    gravidade tamanha que acarretará a irreversibilidade do dano e conseqüentemente do meio

    ambiente. Por isto, a imprescindibilidade do princípio em questão.66

    64Maria Alexandre de Souza Aragão. O princípio do poluidor-pagador: pedra angular da política comunitária do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p.89. (Studia Ivridica, 23) apud José Rubens Morato Leite. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 48. 65José Afonso da Silva. Direto ambiental constitucional. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. O autor leciona que "permissões, autorizações e licenças são formas clássicas de controle prévio, porque atuam antes do início da atividade controlada." (p. 243) 66Álvaro Luiz Valery Mirra. Princípios fundamentais do direito ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nº 2, abr./jun. 1996, p. 62 apud Álvaro Luiz Valery Mirra. Direito

  • 32

    Leite cita ainda Rehbinder, cuja opinião é que o princípio da precaução

    "(...) assegura que a poluição é combatida na sua insipiência e que os recursos naturais são

    utilizados numa base de produção sustentada."67 Conclui Leite, que o princípio da

    precaução incide anteriormente ao perigo.

    Contrariamente, Milaré, com o qual se compartilha a opinião de que, in

    verbis: "O princípio da prevenção é basilar do Direito Ambiental, concernindo à prioridade

    que se deve ser dada às medidas que evitem o nascimento de atentados ao ambiente, de

    modo a reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar a sua qualidade."68

    Chega-se, ciclicamente, à afirmativa feita no início deste item, ou seja, à

    divergência quanto ao uso do princípio da prevenção e do princípio da precaução. Os

    autores citados preconizam a necessidade de incidência direta do princípio antes do perigo

    ou do risco, contudo denomina-os de modo inverso.

    Pelos motivos aduzidos, acolhe-se o entendimento de que o princípio da

    precaução é específico, ante ao caso concreto, e o princípio da prevenção engloba-o,

    agindo antes do perigo ou do risco, oriundo de atividades potencialmente degradadoras.

    Assim, o princípio da prevenção atuará antes da consumação do dano, procurando se

    projetar antes ou concomitantemente, com mero risco. A prevenção é "(...) a melhor,

    quando não, a única solução",69 assim a reparação ambiental tem pouca valia, diante da

    ação efetivamente preventiva na proteção e preservação do meio ambiente.

    1.4 O papel do Estado na proteção dos direitos difusos e coletivos frente à Constituição

    Federal de 1988.

    O Estado teve funções e tarefas ampliadas, pois se constitui, conforme

    determinou o art. 1°, caput, da Constituição Federal, em Estado Democrático de Direito.

    Neste, a lei torna-se instrumento na consecução de transformações da sociedade,

    Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 6, v. 21, jan./ mar. 2001, p. 94. 67Eckar Rehbinder. O direito do ambiente na Alemanha. In: Amaral, Diogo Freitas do (org.). Direito do ambiente. Oeiras: INA, 1994, p.257 apud José Rubens Morato Leite. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 49. 68Édis Milaré. Direito do ambiente: um direito adulto. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 4, nº 15, jul./set. 1999, p.44. 69Édis Milaré. Op. cit., p. 44.

  • 33

    incorporando características novas ao modelo clássico preexistente,70 como a finalidade

    solidária e a efetiva igualdade.

    No modelo democrático há absorção do ideário igualitário, realmente

    efetivo, com "(...) um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento

    jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade."71 É neste contexto que

    surgem os direitos difusos e coletivos, que exigem do Estado uma atualização, modificação

    ou reestruturação de seu ordenamento jurídico.

    Assim, as transformações sociais e econômicas refletem no Estado, que

    toma para si novas funções e atividades, necessitando de uma estruturação para concretizá-

    las,72 como é o caso dos direitos de terceira geração.

    Estes possuem uma essência universalizante em relação aos indivíduos,

    vinculando-as na defesa da humanidade, baseando-se na solidariedade e com a finalidade

    conjunta de atingir desenvolvimento em equilíbrio com o meio ambiente, a defesa da paz,

    por exemplo. São direitos potencialmente construtivos e destrutivos, que imprescindem de

    uma atuação enérgica do Estado, por envolver interesses, em essência, ligados ao

    desenvolvimento e, conseqüentemente, ao poder econômico.73 Evidencia-se tal afirmativa

    na precisão de proteção ambiental que, em regra, caminha paralelamente com interesses

    empresariais, porém com objetivos antagônicos.

    Na Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, se estabeleceu

    uma parceria global, com a finalidade conciliativa de uma vida saudável e produtiva, em

    harmonia com o meio ambiente, com a cooperação dos Estados. Esta Declaração foi uma

    reafirmação da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em

    Estocolmo em 1972.

    70Para atingir o Estado Democrático de Direito, houve a passagem pelo Estado Liberal de Direito, primeiramente, e depois pelo Estado Social de Direito. No Estado Liberal, a atividade estatal era restringida em prol da necessidade do livre desenvolvimento social e econômico. As pretensões tinham essência individualista, o que é ainda percebido na própria legislação infraconstitucional vigente, a exemplo do Código de Processo Civil. A ideologia liberal permaneceu no Estado Social, com o diferencial das questões sociais, que foram reflexo da prática capitalista desenfreada. Neste a lei visou regular e equilibrar as relações sociais antes mitigadas pelo anseio de um promissor desenvolvimento industrial, e o Estado Democrático de Direito possui novos objetivos: a solidariedade e a igualdade, dando inovador delineamento ao conteúdo ideológico anterior. Nesse sentido: José Luís Bolzan de Morais. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. pp. 79-80. 71José Luís Bolzan de Morais. Op. cit., p. 80. 72José Luís Bolzan de Morais. Op.cit., p. 121. 73José Luís Bolzan de Morais. Op. cit., p.164.

  • 34

    A Constituição Federal do Brasil de 1988 trouxe, em seu contexto

    dispositivos que enfatizam o desejo do constituinte em proteger e preservar o meio

    ambiente. Assim, o Poder Público adquiriu nova função e ampliação das responsabilidades

    frente às questões ambientais.

    O art. 225, caput, firma a obrigação do Estado na defesa e preservação do

    meio ambiente por meio de seus órgãos públicos, independentemente de sua função: se

    Executivo, se Legislativo ou se Judiciário.74 Não se pode esquecer dos órgãos públicos

    ligados ao Estado, com funções essenciais à justiça, como é o caso do Ministério Público,

    Defensoria Pública e a Advocacia Geral da União. A Constituição Federal atribuiu o dever

    de preservação e proteção do meio ambiente, também, à coletividade.

    Numa análise conjunta de alguns artigos constitucionais, pode-se

    vislumbrar melhor a exigida responsabilidade do constituinte em relação ao Poder Público

    e à coletividade, numa ação coesa na defesa e preservação do meio ambiente,

    desempenhando cada um sua função.

    Veja-se a Constituição Federal, ao determinar: que a lesão ou ameaça a

    direito não poderá ser furtado da apreciação do Poder Judiciário, por lei (art. 5º, inc.

    XXXV); caberá ao cidadão, mediante ação popular, anular ato lesivo ao patrimônio

    público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (art. 5º, inc. LXXIII); que

    são bens da União as terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental, os lagos, os

    rios, ilhas fluviais (art. 20, incs. II, III, IV); que é competência comum da União, Estados,

    Distrito Federal e Municípios, proteger o meio ambiente, preservar florestas, fauna e flora,

    combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, incs. VI e VII) e fiscalizar as

    concessões de exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (art. 23, inc.

    XI); que é competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar

    sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, conservação da natureza, proteção do

    meio ambiente (art. 24, incs. VI, VIII); que são funções institucionais do Ministério

    Público promover a defesa do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos

    mediante, ação civil pública (art. 129, inc. III); que a legislação do Ministério Público não

    excluirá a de terceiros nas ações civis, consoante determinação constitucional e de lei (art.

    129, § 1º).

    74Álvaro Luiz Valery Mirra. O problema do controle judicial das omissões estatais lesivas ao meio ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 4, n° 15, jul./set. 1999, p. 63.

  • 35

    Estes são alguns exemplos, existindo outros ao longo do texto

    constitucional que mostram a imperiosidade da proteção e preservação do meio ambiente

    pela ação conjunta do Poder Público com a coletividade. Desta forma, mostra-se a

    relevância jurídica desse interesse transindividual para o Estado Democrático de Direito

    instituído pela Constituição Federal de 1998.

    É importante delimitar o âmbito de incidência da presente exposição.

    Quando o art. 225, caput, refere-se ao Poder Público, inclui aí todos os entes federativos

    das três esferas do Poder e os órgãos públicos. Mas, aqui, restringir-se-á ao responsável

    pela administração, pela gestão, pela execução de políticas públicas, ou seja, ao Poder

    Executivo, que será também designado de Administração Pública. Será alvo, então, a

    atuação executiva na administração de bem indisponível pertencente à coletividade, que é

    o meio ambiente.

    1.4.1 Direito difuso e direito coletivo: diferenciação e análise do conceito difuso.

    Diante da importância dos direitos transindividuais, mais precisamente

    dos interesses ou direitos difusos e coletivos, faz-se necessário diferenciá-los. Para tanto

    eles enquadrados no que se refere ao tema meio ambiente e no âmbito administrativista,

    conseqüentemente se torna imperioso a distinção entre eles para uma nova visão

    interpretativa e aplicativa dos princípios e regras que regem o direito administrativo.

    Os direitos difusos e coletivos se apresentam com diferentes graus de

    coletivização, seja de ordem vertical ou subjetiva, que diz respeito à titularidade, seja de

    ordem horizontal ou objetiva, que demonstra a amplitude do direito na sociedade.

    Assemelham-se, por sua característica básica, uma natureza coletiva inserida em sua

    essência.75

    Os direitos coletivos em sentido estrito são conceituados no CDC

    como: "interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os

    transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de

    pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;"76

    75Rodolfo de Camargo Mancuso. Interesses difusos e coletivos. Revista de Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Ano 87, nº 747, jan. 1998, p.70. 76Art. 81, parágrafo único, inciso II da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

  • 36

    Nos direitos coletivos, os indivíduos já possuem uma relação jurídica

    base que preexiste àquela nascida da lesão ou da ameaça de lesão a direito, não se

    confundindo a "(...) relação jurídica base preexistente com a relação jurídica originária da

    lesão ou ameaça de lesão."77

    Tais direitos não consideram o indivíduo de forma isolada, agrega-o

    como parte de comunidades menores ou grupos originários de um processo associativo.78 É

    importante esclarecer que o elemento organização não é traço determinante desses direitos,

    pois, este será notado ao se referir a "(...) grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas

    entre si por uma relação jurídica base, e não da segunda modalidade, que diz com que

    interesses ou direitos respeitantes a grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas com a

    parte contrária por uma relação jurídica base."79

    Deve-se entender que na titularidade do direito coletivo, existe uma

    delimitação subjetiva, pois estão juridicamente unidos por uma relação jurídica base

    nascida da afectio societatis.80 Assim, como no direito difuso, o objetivo do direito tem

    natureza indivisível, porém os seus titulares são determináveis. A determinabilidade da

    titularidade, que se evidenciará tanto na relação jurídica base que uneos indivíduos como

    no vínculo jurídico que liga os indivíduos à parte contrária.81

    Observa-se que o sentido de coletivo empregado pelo CDC é mais amplo

    do que expressa a doutrina, pois inclui não só os interesses ou direitos organizados, mas

    também os não organizados.82 Contrariamente, entende Mancuso, que aponta como

    elemento caracterizador a organização, pois sem esta, não haveria condições de interesses

    ou direitos de se coletivizarem. Contudo, essa organização deve ser relativizada, sob pena

    de abafar interesses ou direitos potencialmente coletivos. Exige-se, então, certa

    organização.83

    Com razão, Mancuso afirma que mesmo a não organização, precisa que

    tenha o mínimo de coesão para que identifique o interesse ou o direito como coletivo. 77Ada Pellegrini Grinover et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do ante projeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, pp. 742-743. 78Péricles Prade. Conceito de interesses difusos. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 39. 79Ada Pellegrini Grinover et al. Op. cit., p. 744. 80José Luís Bolzan de Morais. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 128. 81Ada Pellegrini Grinover et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do ante projeto. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 744. 82Ada Pellegrini Grinover et al. Op. cit., p. 744. 83Rodolfo de Camargo Mancuso. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 55-56.

  • 37

    Assim, o interesse ou direito para ser coletivo, deve possuir o mínimo de organização; que

    os grupos, categorias ou classes sejam determinados ou determináveis e que exista um

    vínculo jurídico comum a seus titulares.84

    Além destas características apontadas pelo citado autor, tem-se ainda a

    impossibilidade de fruição do interesse pela coletividade, a título particular, de forma

    excludente em relação aos outros titulares, e a indisponibilidade do direito ou interesse.85

    Contudo, vê-se tais características como decorrentes da natureza do objeto do direito ou

    interesse que é indivisível; diante disto, é natural que seja inviável a exclusão de qualquer

    titular e a disposição de interesses ou direitos coletivos. Estes refletem um sistema de

    interesses individuais, mas com ideal coletivo, que é o caracterizador.86 Essa

    despersonalização dos interesses individuais também é compartilhada com o direito

    difuso.87

    Os interesses ou direitos difusos são definidos pelo CDC, como "(...) os

    transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e

    ligadas por circunstancias de fato."88 Chega-se, agora, ao ponto de coletivização máxima,

    onde sequer é viável a determinação dos titulares. Assim, estes direitos não podem guardar

    simetria com o direito subjetivo, que se funda na titularidade, mas, na relevância social que

    possuem. A referida indeterminação deriva, massificamente, da ausência de vínculo

    jurídico entre os sujeitos. O interesse se estabelece entre uma pessoa e um bem, mediante

    relação, só, que, sendo o interesse difuso, equivale dizer, o objeto da relação é o bem da

    vida, difuso, e o sujeito é a coletividade.89

    Por se tratar de um interesse fluido, não deve ser confundido com

    conceitos que já são enquadrados especificamente, a exemplo da ordem pública.90 O

    mesmo ocorrendo com os direitos subjetivos, que se situam em sentido diametralmente

    opostos ao interesse difuso, pois aqueles possuem um titular com poder de exigir, contra

    ou em face de outrem, um bem da vida determinado. Conclui Mancuso, que é a

    "(...) relação existente entre titularidade do interesse e uma pessoa determinada que

    84Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 57. 85José Luís Bolzan de Morais. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, pp. 132-133. 86Rodolfo de Camargo Mancuso. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 51. 87José Luís Bolzan de Morais. Op. cit., pp. 132-133. 88Art. 81, parágrafo único, inciso I da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. 89Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., pp. 85-86. 90Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 87.

  • 38

    inexiste nos interesses difusos; sendo insuscetíveis de apropriação a título exclusivo, os

    interesses difusos caracterizam-se, justamente, com referir-se a uma série indeterminada de

    sujeitos."91

    A titularidade aberta92 e a indivisibilidade são características explícitas.

    Esta última significa que, a integridade do interesse gera a satisfação coletiva na mesma

    proporção que uma lesão os afeta. Decorre ainda da indivisibilidade, a inapropriabilidade

    individual exclusiva; e da titularidade indeterminada, a indisponibilidade do bem da

    vida.93

    A intensa conflituosidade interna é outra característica do interesse

    difuso, que ausente de vínculo jurídico, mostra-se fluido, largo, extenso no meio social,

    proporcionando a colisão entre massas de interesses, que possuem como "(...) causa remota

    verdadeiras escolhas políticas."94 Pode-se imaginar tal colisão, por exemplo, ao se pensar

    no interesse difuso em contraposição ao interesse público.

    A mutabilidade e a efemeridade do interesse difuso também são frutos da

    ausência de vínculo jurídico, pois se subordinam a situações contigenciais. Diante destas

    circunstâncias mutáveis, um interesse difuso pode ser transitório, daí a necessidade de ser

    imediatamente protegido, antes que a situação fática que o originou se altere.95

    Desta natureza transitória decorre a conseqüência da irreparabilidade da

    lesão, em termos substanciais, pois uma vez atingido um interesse difuso, o ordenamento

    jurídico não poderá reparar integralmente o direito, mesmo que em espécie, pois defronta-

    se com valores infungíveis, de difícil valoração, quando ocorre o ressarcimento pecuniário.

    Cita Mancuso: '(...) qual dinheiro "indenizará" o dano moral e o sofrimento físico das

    vítimas da talidomida? Qual dinheiro "indenizará" os resultados funestos da poluição de

    um rio, especialmente no que tange às populações ribeirinhas?'96

    Para Ferraz, a transitoriedade é meramente acidental no interesse difuso,

    porque pode ocorrer ou não, tendo em vista a existência de interesses difusos permanentes.

    91Rodolfo de Camargo Mancuso. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 88. 92Terminologia empregada por José Luís Bolzan de Morais. Op. cit., p. 141. O autor coloca que a ausência de vínculo jurídico entre os sujeitos, gera uma situação de sujeitos eventuais, que aponta para a desconformidade do direito subjetivo com a nova realidade. Será exposta a divergência no emprego da expressão direito subjetivo difuso no item 1.4.2. 93José Luís Bolzan de Morais. Op. cit., pp. 141-142. 94Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 92. 95Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 97. 96Rodolfo de Camargo Mancuso. Op. cit., p. 98.

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    Pergunta ele: "Quem diria, por exemplo, que a proteção a um patrimônio artístico é apenas

    transitoriamente apreciável?"97

    Em verdade, a característica da mutabilidade apresentar-se-á a depender

    do interesse difuso e