A Verdade Sobre Abelardo, Heloísa e Astrolábio (Luiz Guilherme Marques)

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1 A VERDADE SOBRE ABELARDO, HELOÍSA E ASTROLÁBIO Heloísa Abelardo Luiz Guilherme Marques

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―Este livro não tem o escopo biográfico no sentido tradicional desse tipo de obra, mas sim, muito mais, uma correção histórica, uma retificação sobre de todas as inverdades e meias verdades que se impingiu a Abelardo, Heloísa e Astrolábio e bem assim as omissões propositais de historiadores comprometidos com os interesses ....

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1 A VERDADE SOBRE ABELARDO, HELOSA E ASTROLBIO Helosa Abelardo Luiz Guilherme Marques 2 Este livro no tem o escopo biogrfico no sentido tradicional desse tipo de obra, mas sim, muito mais, uma correohistrica, uma retificao sobre de todas as inverdades e meias verdades que se impingiu a Abelardo, Helosa e Astrolbio e bem assim as omisses propositais de historiadores comprometidos com os interesses do Catolicismo tendencioso. A autor 3 NDICE Esclarecimento sobre as imagens do livro Introduo Captulo I Abelardo 1 Primeira etapa Preparao 1.1 Magistrio de Filosofia tradicional 1.1.2 Professor de Helosa 1.2 O episdio da emasculao 2 Segunda etapa Missionato 2.1 Magistrio da Filosofia da Vida Captulo II Helosa 3 Primeira etapa Preparao 3.1 Estudos em Argenteuil 3.2 Estudos sob Abelardo 4 Segunda etapa Abadessa do Paracleto 4.1 Igualdade entre os gneros 4.2 Sexologia 4.3 Filosofia da Vida Captulo III Colaborao de Pedro, o venervel Captulo IV Continuao em Astrolbio Notas Bibliografia 4 ESCLARECIMENTO SOBRE AS IMAGENS DO LIVRO Nacapaasduasfisionomiassodespectivamentede Helosa e Abelardo, muito reais, porque feitos os retratos por um artista da poca.importantequeosprezadosleitoresconheamos traos fisionmicos de Abelardo e Helosa, pois, a beleza dela, querealmentechamavaaatenopelaharmoniadostraos, poroutrolado,houveoutros,quetencionadosem desmoraliz-ladetodasasmaneiraspossveis,impingiram-lhe uma feira que ela no tinha. QuantoesttuadeHelosaeodesenhodeAbelardo, que esto no incio do livro,tambm podem ser considerados muito prximos das respectivas fisionomias. O retrato de Pedro Lombardo tambm est muito real. OltimodesenhoprocuraretratarHelosanafigurade me de Astrolbio. No tive acesso a nenhum retrato de Astrolbio. Queroressaltar,desdeoincio,quehouvemuita perseguiodaIgrejaCatlica,contraessetrionosem vidacomoparaaposteridade,querendopassaraseguinte mensagem:quemcontrariaopoderiodaIgrejaCatlica recebe o castigo de Deus.Deformamuitasvezessutil,misturandoverdadese mentiras,amaioriadoshistoriadoresebigrafoscatlicos trabalhou em funo dessa mensagem. Oprpriottulodeumdoslivrosquecompulsamos retrataessepropsito:Paixo,ViolnciaeSolido,de autoria de Zeferino Rocha. Acheiimportantefazeresteesclarecimentoantecedendoa prpria Introduo. 5 INTRODUO Transcrevo aqui o inteiro teor de um artigo que redigi e quepubliqueinaminhapginadoFacebook (https://www.facebook.com/profile.php?id=100009034896235)Preferimanter o textona ntegra a ttulo de Introduo para no quebrar sua unidade.ApesardenoterformaouniversitriaemHistria, massimemDireito,e,porforadaminhaprofissocomo juiz,queexerodesde1987,aprendiaprocuraraverdadee propag-lacusteoquecustar,sendoque,dessaforma,tendo iniciado, h cerca de um ms, uma pesquisa sobre Abelardo e Helosa,filsofosqueviveramnaFranadosculoXII, cheguei a determinadas concluses, que me julgo no dever de comunicaraosprezadoseeventuaisleitorescomprometidos com a verdade. Em primeiro lugar, quero ressaltar que acredito que sua fisionomiaverdadeiraaquemostronosdoisdesenhos acima,queforamfeitosporumgrandedesenhistadapoca, cujo nome no chegou ao nosso conhecimento.Tenhoparamimqueesseoprimeiroitemqueos historiadores,artistaseliteratosquetrataramdeAbelardoe Helosadeveriamapresentaraopblicoemgeraleno idealizarsuafisionomia,inventandotraosquenoeram deles, pois acredito que cada pessoa deva ser reconhecida por sua fisionomia verdadeira. No quero eu, por exemplo, que faam meu retrato com traos que no soos meus:feio oubelo, quero sermostrado comosouenocomoutrafisionomia,pois,nessecaso,no seria eu, mas outra pessoa qualquer. Napesquisaquerealizeidetecteidezenasdefisionomias que nenhuma semelhana tm com os nossos personagens e, o que achei pior, apresentadas emsituaes que nocoincidem comsuaverdadeirandole,poisapareciamemfranca intimidadeoucoisasemelhante,comosevivessememfuno dasexualidadeenofossemgrandesmissionriosdo Progresso da humanidade, significando desabrido desrespeito aoseunvelintelecto-moral.Hquadrosemqueaparecem 6 nus,comosefossempersonagensdehistriaspornogrficas vulgares e no dois filsofos de extrema importncia na Idade Mdia. Ofatodeteremseamadonododireitoaesses bisbilhoteiros de retrat-los como sexlatras vulgares. Noqueosexosejaumavergonha,nemquenodeva serabordado,masdaaquerertransformargentedevalor, quefalouemsexualidadecomverdadeiraseriedade,em sexlatravaiumadistnciamuitogrande,quejustamente aquela da seriedade do pesquisador, que deve ter um corajoso compromisso com a verdade. Pesquisadorescandalosoemalintencionado,amigoda fofocaedodesrespeitonodeveestaradesmoralizaras pessoasquemerecemrespeitoesertratadascomo verdadeiroscontribuidoresparaaevoluodasinstituiese da humanidade em geral. Essaconstataomeindignoumuitoeaquiexpresso minhainconformaocomamaioriaesmagadorados pesquisadores e artistas que se referem a Abelardo e Helosa. Esse, como dito, o primeiro ponto que questiono contra aimensamaioriadoshistoriadores,literatoseartistasquese referiramaAbelardoeHelosaeissonopoderiapassarem branco nesta Introduo.Tacho essamalcia de desonestidade, que pode ter como intenoodesejomaldosodefalsearfatosedadosporparte de uns ou a simples desdia de pesquisar com profundidade. Houveumpesquisadorquecometeuodesplantede afirmarqueAbelardoeraumhomemcasadoquando conheceuHelosa: esse sequer teve o cuidado de pesquisar de verdade ou, ento, sua inteno era mesmo a de desmoralizar seu biografado. Um outro que qualificou Helosa como quase que mulher da vida. Ora, isso tudo mostra como no devemos levar em conta muita gente que se arvora em pessoa sria. Emqualquerdosdoiscasosacondenaodopblico deve recair sobre eles, pois so desonestos ou inconsequentes. 7 Deminhaparte,procureiaproximar-medosreferidos personagenshistricoscomrespeitoecomaintenode retratarsuasvidas,suasideiasesuasrealizaescoma inteno de verificar a verdade, fosse qual fosse e, a partir da, exp-la aos leitores. Nestecaso,verifiqueiqueteriaderealizarum desmentido,mesmoelestendovividohhnovecentosanos atrse,assim,teriadechamardefalsriosmuitos historiadoreseartistaseoschamorealmente,poisassimo merecem. Riosdetintaforamgastosnodesfiguramentoda fisionomiafsicadessespersonagensdaHistriamundial, sem,naverdade,nenhumproveitoverdadeiroparaquem procura as fontes do conhecimento. Issodevesersabidosobreseuretato,masagoraquero falarsobreaformatambmdesonestacomoforam biografados pelos historiadores e literatos. Olivroquequasenofoicompulsadoouque,secompulsado,nofoilevadoemcontachama-seHistriadas MinhasDesgraas,queAbelardoescreveuparaconsolarum amigo. Trata-sedeumaobradehonestidadeehumildade igualadas por poucos, onde reconhece seus erros como homem deslidaformaomoral,sendoque,dentreoserros,reconheceoimensoorgulhoqueocaracterizouata emasculao,erecomendaaoseuamigopacinciaefem Deusdiantedasnaturaisinfelicidadesqueavidadetoda pessoaapresenta,muitasvezesdeformasurpreendentee inesperada. Somenteumhomemrealmentehonestocomaprpria conscincia teriaa coragem suficiente para relatar seus erros publicamente,talcomo,alis,fezSantoAgostinhosculos antes, atravs da obra que ficou conhecida como Confisses e tambmpodemosnoslembrardeumaoutraobra,estade autoriadeMohandasGandhi,emqueograndemissionrio da ndia do sculo XX relatou suas dificuldades em vivenciar,naprtica,aticaelevadaemqueacreditavaequetraou para sua vida e sua atuao. 8 Comodito,esseshistoriadoreseessesliteratos,quetrataram deAbelardoeHelosa,nolevaramemcontaoqueest relatadonaquelaobra,aquemereferiacima,deextrema importnciaticaequedeveriaserconsideradacomouma dasmaisimportantesquefoiescritaathoje.Alis,nofinal deste nosso estudo, como primeira das Notas [1], transcrevo o inteiroteordessetextodeAbelardo,parafacilitarparaos prezadosleitoresaavaliaodaenvergaduramoraldele prprio e de Helosa.Osbigrafosficaram muito na superfcie das vidas de Abelardo e Helosa, restritos aodilemaentreoamoreaideiadepecado,queaIgreja CatlicaimpunhaedaqualAbelardofoirefmdurantea vidatoda,prejudicandoseurelacionamentocomHelosaeo filho. Esse aspecto retrato na Nota 2. ANota3mostraum poucodoquefoiPedroLombardoeaNota4,emfrancs, retrataAstrolbio,quemuitosfizeramquestodetentar apagardaHistria,porser,noconceitocatlico,frutodo pecado. AbelardofalaneleprprioeemHelosa,almde algumasoutraspessoaspresentesnasuatrajetria, procurando,inclusive,deformacaridosa,digamosassim, minimizaramaldadedaquelesqueviveramemfunodo maquiavelismo,destacando-se,dentreeles,afigura lamentvel de Fulberto, o cnego que pretendia transformar a sobrinhaHelosaemamante,emvezdetrabalharpela felicidade dela, como lhe competia na qualidade de seu tio. Naverdade,napesquisasobreavidadeAbelardoe Helosa,detectei,almdosdoisidealistas,outraspessoasde grande generosidade, que foram a irm Denise, que cuidou do filhodocasal,Astrolbio,atporvoltadosseus18anos;oprprioAstrolbio,quefoiocontinuadordosseuspais; Jourdain,umgrandeapoiadordessestrspersonagens,mas, sobretudo,umhomemdeextraodinriaimportnciano contexto,quefoipedroLombardo,semoqualpraticamente nadadebomteriaacontecido,poisFulbertoteriafeito 9 abortarfacilmentetodasaquelasiniciativasdoverdadeiro idealismo. Fulbertoeraumfalsificadorderelquiase,comodito porAbelardo,umsexlatrainveterado,que,digamosa verdade, tinha direito de assim o ser, contanto que no tivesse chegadoaopontodeinfelicitaravidadetrspessoasque viveram em funo do idealismo mais elevado. Poisbem,Abelardoeraumhomemvaidosoefrioat conhecer Helosa, pela qual se apaixonou da forma mais pura possvel, pois o sexo com amor no invilece ningum, e formou comelaumaverdadeirafamlia,naqualAstrolbio,ofilho, passou a ser o continuador de ambos. Quantoasedizerfilosofia de Abelardo,porexemplo, trata-sedeumaimpropriedade,umavezque,tantono perodo de dois anos em que lidaram como professor e aluna, quanto depois, trocarammuitas opinies e um aprendeu com ooutro.Nofinaldetudo,pode-sefalar,semmedodeerrar, em filosofia de Abelardo e Helosa. Esse outro ponto que os estudiososeredatoresdeveriamretificarparaserem coerentes com a verdade.Proponhoessamodificao,porumaquestodejustia paracomHelosa,quefoiumafilsofanosentidoexatoda palavra e no mera aluna de Abelardo. Porexemplo,noDicionriodaI dadeMdia, organizadoporH.R.Loyn,editadoporJorgeZaharEditor, RiodeJaneiroRJ,1997,somenteAbelardomencionado como tal. Transcrevoaquelarefernciaparaosprezadosleitores verem a injustia que se comete contra Helosa: Abelardo,Pedro(1079-1142)Filsofoetelogo, naturaldeLePallet,pertodeNantes.Suacarreirafoi incomumentevariadaparaummestreescolstico:foi educadoemLochesouTourssobaorientaode RoscelinodeCompigne,estudouemPariscom GuilhermedeChampeauxeemLaoncomAnselmode Laon. Polemizou violentamente com todos esses mestres. Lecionou em escolas de Paris, Melun e Corbeil at 1119, quandocasousecretamentecomHelosa,sobrinhado 10 cnego Fulbert de Paris. Aps o nascimento do filho de ambos,Astrolbio,Abelardofoicastradoforapor agentesdeFulbert.Tendoprovidenciadooingressode Helosa como freira no convento de Argenteuil, Abelardo tornou-semongenovizinhomosteiroabacialdeSaint-Denis.Masnotardouemvoltaraoensinoeem1121 sofreusuaprimeiracondenaocomoherticoem Soissons. A partir de 1122, lecionou num retiro rural em Quincey, na Champagne, e desde cerca de 1127 foi abade deSaint-Gildas-de-Rhuys,nasuaBretanhanatal.Em ambososlugaresAbelardoviu-seperseguidopor dificuldades mas, enquanto abade, providenciou para que HelosainiciasseumnovoconventoemQuincey, dedicado ao Paracleto. Por volta de 1136 reapareceu nas escolas de Paris, onde teve dentre seus ouvintes J oo de Salisbury. Uma segunda e mais devastadora condenao ocorreu num Conclio realizado em Sens, em 1140, e essa foiconfirmadapelopapaI nocncioI I .Aderrotaveio apsveementesdebatesentre,deumlado,Abelardoe seusadeptos,queincluamArnaldodeBrscia,e,do outro, Bernardo, o influente abade de Claraval, e muitos bisposdaFrana.Abelardoretirou-seentoparaa abadia de Cluny, onde contou com a amizade do abade Pedro, o Venervel. Morreu no priorado de Saint-Marcel, em Chalon-sur-Sane, em (ou logo aps) 1142. Pedro, o Venervel, transferiu os restos mortais de Abelardo para o Paracleto, onde Helosa permaneceu como abadessa at falecer em 1164. Retratar Abelardo como um paladino da emancipao intelectual do domnio de monges que eram inimigos do saber, da cultura e da pesquisa, simplificar astensesqueculminaramnasduascondenaesde Abelardoporheresia.Dentreseuscrticosestavam homensdeindiscutveltalento,nosBernardode ClaravalmastambmGuilhermedeSaint-Thierrye HugodeSaint-Victor,enquantoqueAbelardo(ele prprioummongenamaiorpartedesuavida)se deliciavaemdisputasprovocantes.NaHistria Calamitatum [Histria das Minhas Desgraas], Abelardo 11 responsabilizaainvejadeseusrivaiseoseuprprio orgulho por seus fracassos. Mas conquistou o interesse e a devoo de mais de uma gerao de estudantes por ter tornado a lgica de Aristteles clara e por ter explorado com brilhantismo as funes e limitaes da linguagem. Como filsofo, Abelardo foi corretamente descrito como um no-realista. No incio de sua carreira, afastou-se da concepopredominantequeviaosuniversais(por exemplo,gnero,espcie)comocoisasexistentes(res). Distinguiu-se mais por suas penetrantes glosas a textos de Aristteles do que pela criao de uma sntese filosfica. Emteologia,Abelardoexaminoucriticamenteas tradies recebidas do pensamento cristo; sua obra Sic etNonumatentativaderesolverasaparentes contradiesexistentesnombitodoensinocristo atravs da aplicao da dialtica. Seus mtodos no eram incomunsparaapoca,massuasconclusesforam julgadasimprudentespormuitos.Seusensinamentos teolgicosrefletiramseuno-realismodialtico; apresentouaTrindadeemtermosdeatributosdivinos (poder,sabedoriaeamor)enodepessoasdivinas. Considerou o trabalho de redeno do Cristo menos como um fato objetivo (a libertao do homem do pecado ou do demnio) do que como um exemplo de ensino e sacrifcio que provoca uma resposta subjetiva ao amor divino. Na tica,Abelardoafastou-sedapreocupaocomaes paradedicar-seaoestudodaintenoedo consentimento.Suatendnciaparaainteriorizao tambmficouevidentenassubstanciaiscontribuies literrias,legislativaselitrgicasquefezparao estabelecimento do convento do Paracleto, tendo Helosa comoabadessa:asmonjaseramexortadasaestudare orar,eanosesentiremtolhidas,maisdoqueo necessrio,porobservnciasexternas.Abelardo admiravaasfigurascontemplativasquetinhamsido modelos de sabedoria e virtude, fossem eles pagos, como ScratesouPlato,CceroouSneca,profetas,como EliasouJ ooBatista,oumongescristosprimitivos, 12 comoAntnioeJ ernimo.Todoselesamarama sabedoriaetodos,portanto,comoCristo,mereceramo nome de filsofos. As avaliaes sobre o que, em termos gerais,Abelardorealizouso,inevitavelmente, complacentes ou crticas em excesso. Suas contribuies originais para a ascenso da Universidade de Paris e do movimento escolstico medieval receberam por vezes uma atenoexagerada,maseleproduziuurnaimpresso muitofortesobreosescolsticosdeseutempo,mesmo querapidamenteseusinteresseselivrostenhamsido rejeitados ou, na melhor das hipteses, podados por seus sucessores.Assuasprincipaisobrasso,nalgica, Dialectica,eoscomentriossobrealgicaaristotlica; na teologia, o j citado Sic et Non e a Theologia (tendo ambas as obras passado por sucessivas revises), a Ethica oSciteteipsum[ticaouConhece-teaTiMesmo], comentrios sobre o incio do Gnese e sobre a Epstola aos Romanos, e o Dialogus inter J udaeum, Philosophum et Christianum [Dilogo entre um J udeu, um Filsofo e umCristo].Hoje,suapopularidadedeve-se principalmente correspondncia com Helosa. As cartas podem no ter circulado antes de meados do sculo XI I I , esuaautenticidadecontestadaalgumasvezes, sobretudoporcausadadificuldadeeminterpretaras letras dos autores. Mas o seu caso de amor despertou considervel interesse no s imediato mas ao longo de toda a I dade Mdia. Abelardo foi tambm um talentoso poetaemsico.DLE.Gilson,HeloiseandAbelard (1953);D.E.Luscombe,TheSchoolofPeterAbelard (1969); Ablard en son Temps, org. por J. Jolivet (1981). Repisandooquedisselinhasatrs,as42Questesque ela lhe apresentou e que foram respondidas so um indicativo segurodoquantodialogavamatchegaraumaconclusoe podemostercertezadequeelenemsempremantinhaseus pontosdevistainiciais,poissuaparceiraerapercucientee sabia distinguir a verdade da inverdade. Parece-mequeapenasemumpontoelenoconseguiu acompanharalucidezdeHelosa,quefoiquanto 13 sexualidadenorepresentarumpecado,masserumfatoda naturezahumana,contantoquefosseexercitadacomamor verdadeiro.Issoelatentoudemonstraravidainteira,sem xito, todavia. Alis,Helosapodeserconsideradatalvezaprimeira sexloga,assimpodendoserverificadapeloteordassuas cartas. IreitranscreveressasQuestescomoNota2,devido suaimportncia,comoconfirmaodoqueestoudizendo aqui,apesardadificuldadequemuitosprezadosleitores tero, se no lerem bem o ingls. Mas o casal de filsofos no tinha condies de cuidar do filho,umavezdeviamfazerdastripascoraopara garantirem a prpria sobrevivncia em meio s perseguies e atinmerastentativasdeassassinatodequeprincipalmente AbelardofoivtimaeaqueentrouemcenaDenise,atia paternadomenino,aqualdesempenhouopapeldemeat Astrolbio tornar-se adulto.No havia outra soluo naquele contexto de perigo constante. Masospaissedesvelavamemfavordofilhoetudo fizeramparaqueelesetornasseumhomemidealista,querealmente o foi. Veja-se, por exemplo, o conselho que o pai deixou para o filho:Temmaiorcuidadoemaprenderdoqueemensinar. Aprendelongamente,ensinatardiamente,esomenteoquete parecerseguro.Quantoaescrever,nosejasdemasiado apressado.Quanto a Helosa, foi ela quem intercedeu junto a Pedro, ovenervel(PedroLombardo)paraconseguirumpostona IgrejaCatlica,oquelhegarantiuaprpriasobrevivncia nummundoondehaviapraticamenteduasopes:asarmas ou a batina. Houvehistoriadoresqueprocuraramdesvirtuara verdade,dizendoqueAbelardoeHelosaabandonaramo filho, desamparando-o, mas isso uma grande inverdade, pois desvelaram-seporele,tendoeleconvidocomamedesde quandoareencontrouaos18anos,quandoavisitouno Paracleto pela primeira vez, at a morte dela. 14 AopodeAbelardoemtornar-semongedepoisda emasculaofoiporseguiroconselhodepadresquelhe falaramdanecessidadedededicar-seaDeuseaospobres, pois, at ento, tinha vivido em funo da vaidade e dos ricos. Naverdade,poderiaterrenunciadocarreirade professordeFilosofiaevoltadoparasuaterranatal,ali vivendoemcompanhiadaesposaedofilho,masacreditava quetinhanascidoparaumamissomaisuniversal,aqual acabou desempenhando, como veremos adiante. PoderiaterfeitocomoScrates:ensinadoemmeioaos problemasfamiliares.Apodetersidoseuerro,masnofoi provenientedoorgulho,massimdeumavisodistorcida sobre sua misso de impulsionador do Progresso. Poder-se-iadizeroorgulhoocegou,masessafalha desculpvel,poisamavarealmenteaesposaeofilhoe procurouampar-los,tantoqueelaconseguiuopostode abadessa por sua interferncia direta e foi ele quem elaborou asnormasparaoinciodofuncionamentodoParacleto,que ela dirigiu at a morte, por mais de trinta anos. Oalegadovciodaluxriaeraapenasumaviso equivocada dele quanto ao sexo. Quantoaoseurecomeo,agoraembasesdeidealismo verdadeiro,vejo,nesseponto,muitasemelhanaentresua vida e a de Santo Agostinho, pois ambos deramuma guinada navidadecentoeoitentagraudepoisquecaramemsie passaramaviveroverdadeiroidealdeautoaprimoramento moral. Abelardotevedepassarpelossofrimentosdaemasculao para cair em si e tornar-se, digamos, um homem da mais alta concentrao nas virtudes crists, sobretudo a do Amor Universal. Perdeupraticamentetudo,devidosperseguiesque sofreuepassouamorarnumacasinhola,ondeministrava aulas a um nmero cada vez maior de alunos, que foram seus seguidores e propagadores da sua ideologia idealista. HomensdaIgrejaCatlicatentarammat-lopor inmerasvezesefoicondenadoduasvezespeloTribunalda Inquisiocomohertico,pois,homemfirmenassuas 15 convices,viviadeformacoerentecomseusideaise denunciavacorajosamenteasfalcatruasdosseuscolegasde batina. Quanto aHelosa, acheimuitoestranho os historiadores nada terem informado sobre sua origem familiar e seu local e data de nascimento. No possvel que nada se soubesse sobre essa importante figura histrica, que, com cerca de 16 anos, j erafamosacomointelectualemtodaaParis,capitalcultural do mundo da poca. Essa lacuna passou para a Histria e chegou aos dias de hoje.SomenteseuperversotioFulbertoaparececomo referncia de parentesco. Aindaquantoaela,deve-seesclarecerqueno concordou,deincio,emcasarnoporbirraoucoisa semelhante,masparanoprejudicaracarreiradeAbelardo nomagistriodeFilosofia,queexigiaocelibato:nicae exclusivamente por isso. Depois, aceitou a ideia do casamento para no contrari-lo, uma vez que ele exigiu que assim fosse. Posteriormente,aceitoumaisumaimposio,adedetornar-se freira para no contrari-lo igualmente e, assim, viveu uma vidadereligiosasemvocao,maisumavezsubmetendo-se aos padres machistas da poca. MasessamulherextraordinriapassouHistria verdadeira como precursora da valorizao do sexo feminino. NascartasqueescreveuaAbelardomostrasua inconformaocomospadresmachistasdapoca,que consideravamamulhercomoumaameaaparaparaa tranquilidadedohomem,oqualdeveriadedicar-se exclusivamente a Deus.ANota3consistenumestudosobreascartastrocadas entreHelosa e Abelardo. Transcrevo um textodeAna Luiza Mendes,comoqualnoconcordototalmente,masuma referncia muito boa em vrios pontos.HelosadoParclito,nateoriaenaprtica,abriu caminhoparaasmulheresdaquelapocaatrasadaeparaas geraes de mulheres do futuro. Seasmulheresatuaistmmuitosdosseusdireitos reconhecidoserespeitados,dentreosquaisafrequncias 16 universidades,devememgrandeparteaHelosade Argenteuil. OParacletoeraumaverdadeirauniversidadefeminina. Ali se ensinavam coisas avanadas para a poca. AscartasqueescreveuaAbelardomostramsua inconformao contra o machismo.Eas42indagaesqueformulouaelesobretemas teolgicosretratamseunvelculturalcomofilsofa,que,na poca, era sinnima de teloga. Otrabalhoextraordinrioquerealizounaabadiado Paracleto, pormais de 30 anos, foi apagado literalmente pela malciadaIgrejaCatlica,quepretendeuabafartodosesses feitos. Masconsegui,commuitoesforoequase milagrosamente,detectarqueoParacletoinvestiumuitonaspesquisassobreAgricultura,Msica,Filosofia,LnguaseaReligioemsentidouniversalista,apontodeHelosaser tachadacomobruxapelosbretes,quelhetinham entranhado dio. curiosoessedio,poisosbretesadotavamos conhecimentos dos antigos celtas, mas talvez tudo isso se deva aofatodeHelosaserparisiense,peloqueseacredita, enquantoqueaBretanhaaindanofaziapartedafrana: portanto, ela era uma estrangeira. Assimacontececomosverdadeirosmissionriosdo Progresso:soperseguidose,muitasvezes,mortos,como ocorreu, por exemplo, com Scrates, Jesus Cristo e vrios dos Seusseguidoresdurantemuitossculos,MohandasGandhi, Martin Luther King, John e Robert Kennedy etc. etc. Inclusive quanto ao filho Astrolbio tentaram apagar seu nomedaHistria,havendosidolevantadaahiptesedeque morreuprematuramente,sendoqueaverdadequechegou aocargodeabadedeHauterive,naSua,vivendo54anose foi um dos continuadores de Abelardo e Helosa. BrendaM.Cook,noseuestudointituladoOne Astrolabe or Two, datado de 1999, concluiu: 17 Emoutraspalavras,Astrolbiofoiumcontinuadordo seu pai e, acrescentamos, ... da sua me igualmente. Na verdade ele morreu envenenado naquela abadia. Mas,paranomeestenderdemaisnestacorreoda Histriaoficial,tenhoadizerque,severdadequeaminhafalanopassadeumcopodguadiantedaflorestaem incndiodasmentirashistricasinventadaspordiversoshistoriadores,artistaseliteratos,istojrepresentaumbom comeo,umaretificaonecessria,poisaverdadeumdia temdeaparecer,paraclarearavisodaspessoasbem intencionadas. Desmascararamentiraeasmeiasverdadesumdever que todo homem e mulher de bem tm de cumprir e isso que procurei fazer. AbelardoeHelosanoformaramumparzinho romntico,noestiloRomeueJulieta,massimescreveram, comsuavidaeseuidealismo,umaepopiaemlouvorao Progresso da humanidade. Sua vida e escritos merecem ser estudados com iseno e profundidadeenovaversoserdadaatudoisso,com honestidade,semdenegrir-lhesasmaispurasatitudesesuas falas porque contrariavam a hipocrisia e a ambio da Igreja Catlica e tambm sem mercenarismo. Eisaquiacontribuiodeumhomemdajustiapara mostrar a face real de Abelardo e Helosa. 18 CAPTULO I ABELARDO Oqueimportaparamimretratarparaosprezados leitoresasegundaetapadavidadeAbelardo,umavezque representa o cumprimento doseu misionato. Isso aconteceu a partir dos seus 40 anos de idade. AntigoconhecedordaBbliaemseusmnimosdetalhes,dedicou esses vinte e poucos anos restantes de vida a estudar e ensinarostpicosmaisavanados,aunsdeformamais explcitaeaoutrosdemaneiradiludadentrodalinha catlica. AfinaldecontasaBbliaestrefertadeinformaes esotricas. Osprezadosleitorespoderoindagaremquefontesme baseeiparafazerestetipodeafirmao,masaquientraem jogo minha experincia de homem da justia. Abelardonotinhamaiscontrasiaslimitaesdo emprego de professor profissional. QuemconheceaBbliasabequeelaumtratadode esoterismo. Aquelehomem,amadurecidopelaexperinciaepelo sofrimento,noficariaensinandocomoumpadrecomumou um professor sublordinado ao poder do clero. Abuscadaverdade,queeledilurapelanecessidadede garantir o po de cada dia, agora era sua prioridade mxima. Jesus mesmo foi um mestre do Esoterismo.Dispenso-mederelacionaraspassagensbblicasque mostramaspectosesotricosporque,seumalgumprezado leitor refratrio a essa ideia, no ser pelomeu esforo que mudar. Abelardo era livre prensador desde o comeo. Incentivava a busca da verdade. Aindamaisdeseconsiderarqueseugrandeamigo PedroLombardopesquisousobreocontatocomomundo espiritual,ouseja,avidadoschamadosmortos,escrevendo umlivroque,emportugus,teriaottuloAsMaravilhasde Deus, que referirei adiante. 19 1 PRIMEIRA ETAPA PREPARAO Suasbiografiastratamapenasdessaprimeirafase. Transcrevereiaquiumadelasparamostrarcomonosso personagem era um professor buscador da verdade: Volume 1 Nmero 1 J an-J ul/2014 18 www.revistaclareira.com.br PedroAbelardoProfessor:OEnsinodeFilosofiano Sculo XI IEdsel Pamplona DI EBE1 Resumo OartigotemporobjetivoapresentarofilsofoPedro Abelardo(1079-1142)comoprofessor,seumtodode trabalhoeaheranaquerecebeudafilosofiagrega cristianizada.Emconcomitnciacomotrabalhodo Abelardo,mostraremosdeformaintrodutriao desenvolvimento do ensino de filosofia no sculo XI I , o mundo escolar, artes liberais, a tentativa de conciliar f e razo e o ensino da dialtica. PalavrasChave:PedroAbelardo(1079-1142),Sculo XI I , Ensino de Filosofia, Dialti-ca, Artes Liberais. PeterAbelardTeacher:TheTeachingofPhilosophyin the Twelfth Century Abstract Thearticlehastoobjectivetopresentthephilosopher PeterAbelard(1079-1142)asteacher,hisworking methodandtheinheritancewhichreceivedofgreek philosophy christianized. Con-comitantly with the work of Abelard, we show of introductory form the development ofteach-ingofphilosophyinthetwelfthcentury,the scholar word, liberal arts, the attempt to conciliate faith and reason and the teaching of dialectic. Key-words:PeterAbelard(1079-1142),TwelfhCentury, Teaching of Philosophy, Dia-lectic, Liberal Arts. _________________________________________ 1 Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria-RS. 20 _______________________________ Abelardo Professor O pai de Pedro Abelardo (1079-1142) era militar, porm o filsofonose-guiuseuspassos,preferiuseguiro caminho da docncia e do estudo da dialtica. Conhecido comocavaleirodadialtica,eleproferiuemsuas calamitates:[...]renuncieicompletamentecortede Marte para ser educado no regao de minerva. E, visto que eu preferi as armas dos argumentos dialticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras armas por essas e antepus os choques das discusses aos trofus das guerras. (ABELARDO, 1973, p. 250). Abelardofoiumimportantedifusordadoutrinacrist aliadafilosofia.Comoprofessor,muitasvezesse beneficioudoestudodagramticaparasefazerbom educador. Ele se afastou do latim clssico, com o objetivo dedeixarseusescritosmaisdidticos,clarose acessveis2.Emgeral,seutrabalhoseapoiou principalmentenaautoridadede SantoAgostinho (354-430) e de Bocio (480-524), autores que remontam tanto filosofiaplatnicaquantofilosofiaaristotlica.Ele no foi considerado um professor retrico e nem mesmo era visto como se se concentrasse em produzir sermes ou glo-sas. Na verdade, Abelardo visava o ensino da lectio, isto,daleitura,docomentrioedainterpretaode textosdasautoridades,assimcomodasSagradas Escrituras. A lectio era alicerada pela quaestio, ou seja, noprocedimento decolocarumtextoemdiscusso,em problematizao,emquesto.Nombitodalectio,os sermesestariamvinculadosreflexodasSagradas Escrituras e no persuaso. O uso crtico da filosofia associadoleiturateolgicacontribuiparaumaboa compreenso da verdade frente s realidades no crists. AbelardodefendeousodasSagradasEscriturasedos escritos dos pais da igreja contra o discurso meramente retricoimpostoaosfiispormuitosreligiosos.Os escritos dos santos seriam para ele modelos inteligentes e maduros de escrita. E [...] a Escritura [...] oferece, alm 21 disso, um ensinamento completo.3(EN-GELS, 1974, p. 29). ______________________________ 2 Segundo Engels(1974), para se fazer compreendido de forma simples e didtica, Abelardo utiliza diver-sos termos gramaticais, como: mudana de grafia das palavras, das funes das preposies, uso de pa-ralelismo com rima, antteses, emprego do ablativo absoluto e do gerundivo, repeties, jogo de pala-vras, entre outros. 3 [...] lcriture [...] offre, en outre, um enseigment complet.. ______________________________________ I ntroduo Filosofia Crist Aatividadefilosficanoperodomedievalfoi compreendidaemduaseta-pasbasicamente:a desenvolvida na patrstica e a desenvolvida na escolstica. Napa-trstica,aatividadefilosficafoidesenvolvida pelosprimeiroscristosconvertidos,apartirda influnciadaescolaneoplatnicafundadaporAmnio Sacas (175-242) e por So Paulo (5-67). Segundo Spinelli (2012, p. 141): [...] os doutrinadores viram na dou-trina cristumarealpossibilidadedetransform-lanuma outra doutrina filosfica.. A filosofia servia de base para sistematizar o cristianismo e lhe conferia autoridade: Todoseles[cristos]sevaleramcopiosamenteda Filosofiagrega,nelacotejandoelementosquelhe pareciam aproveitveis. [...] Eles buscaram na Filosofia gregaosfundamentospelosquaispudessemprem prtica o preceito bblico que dizia: I luminai em vs a luz do conhecimen-to. Eles mesclavam razes filosficas com princpios religiosos. [...] Em ltima instncia, o que eles buscavamnaFilosofiaeraumbommeioquelhes facilitasseoxito.Assim,resguardadospela racionalidade filosfica, eles passaram a criar mtodos de exposioedesistematizaoteolgicadestinadosa construirumconjuntooucorpodoutrinrio(dotadode autoridade)aserviodapregaoeclesistica. (SPI NEL-LI , 2002, p.18-19). Podemoscompreenderaexpressofilosficadomundo helnico converti-do principalmente com So Paulo (5-67 d.C.). 22 Foi, pois, o helenizar, desde o seu sentido mais simples verteradoutrinaemlnguagrega,queativoua universalizaodocristianismo.Ohelenizareo universalizaralcanaram,entretanto,maiorextensoe ad-quiriramnovossignificadosporobrasobretudode Paulo, que, inclu-sive, ao invs do nome hebraico Saulo, optou pelo nome grego Paulo. (SPI NELLI , 2012, p. 132). UmtempodepoisSantoAgostinhoquedar continuidadeconsolidaodafilosofiahelnica cristianizada.ConformeSpinelli(2003,p.12):Eles[os primeiroscristos]representamaprimeiratentativade harmonizardeterminadosprincpiosdafilosofiagrega (particularmentedoepicurismo,doestoicismoedo pensamento de Plato) com a doutrina crist. O Timeu de Plato a obra mais acessvel a esses pais da I grejaesuateoriacosmolgicaatravessapraticamente todo o perodo medieval, cedendo lugar aos traba-lhos de Aristteles aps o sculo XI I I . Segundo Grgory (1987, p. 243-244): [...]oTimeu,agrandegnesefilosficaondePlato traava o plano cosmolgico, no interior do qual devia ter cabimento sua reforma mo-ral e poltica, propondo assim uma nova relao entre o sensvel e o inteligvel atravs do mito do Demiurgo e da mediao da alma do mundo. [...] ainda a mesma tradio cultural fundamentalmente pla-tnica,plenadeelementosreligiososquefoi transmitidanosomentepelosgrandesmestresdo pensamentocristo[...]mastambmportextospagos cujafortunaestconstantementeligadaaqueladoTi-meu [...].4 Outrajustificaoqueapareceparaafilosofiaestar presenteentreoscris-tosfoiadefesadatesedo involucrum que sustentava que os textos dos filsofos pa-gos escondiam realidades crists, por isso deveriam ser estudados e interpretados luz do cristianismo. Tanto os primeiroscristosquantoAbelardonosculoXI Icompactuaramfortementecomessaideia.Conforme Grgory (1987, 247-248): 23 [...] aqui, o involucrum no esconde somente verdades de ordeminteligvel,foradotempo,mastorna-setypus (imagem),profeciadereali-dadescrists.[...]quanto maisostextosdePlatoedosplatnicospa-recem apresentarumadoutrinacontrriaafcrist,maior deverseroesforodereconduzirasverba philosophorum ad fidem nostram [pala-vras dos filsofos paraanossaf],umavezqueoSanto-Esprito,que falou atravs deles sem que estivessem conscientes disso [...] a confiana de Abelardo na inspirao divina dada aos filsofos tal que ele no hesita, entre outras coisas, em ler na letra grega chi (X) que representa a estrutura daalmadomundo,aprefiguraodacruzedamorte redentora de cristo.5 AinflunciadoTimeudePlatoserefletetambmna dicotomiadoprpriosistemadomundomedieval,a saber, na busca de harmonizao entre o mundo criado (naturanaturata)eomundodocriador(natura naturans). Os cristos tinham em mente que Deus era o criadordetodasascoisasqueexistiam,portanto,seu conhecimentodetudoeradiretoeperfeito.Ohomem, enquantocriatura,apenasrefletiaaimagemdeDeus. SegundoRossatto(2004,p.28)6:Destemodo,a natureza ser vista como uma espcie de espelho no qual aimagoDei(imagemdeDeus)serefletedeforma simtrica. [...] atravs do mundo inferior, que reflexo do Criador, chega-se ao conhecimento do mundo superior. ____________________________________ 4[...]leTime,lagrandegensephilosophique o Platon traait le cadre cosmologique lintrieur duquel devait prendre place sa rforme morale et politique,proposantainsiunnouveaurapportentrelesensibleet lintelligibletraverslemytheduDmiurgeetlamdiationdelmedu monde.[]cestencorelammetraditionculturellefondamentalement platonicienne, pleine dlments religieux, qui tait transmise non seulement par les grands matres de la pense chrtienne [] mais aussi par des textes paens dont la fortune est constamment lie celle du Time []. 5[...]icilinvolucrumnecachepasseulementdesvritsdordre intelligible,horsdutemps,maisdevienttypus,prophtiederalits chrtiennes.[]pluslestextesdePlatonetdesplatonicienssemblent prsenter une doctrine contraire la foi chrtienne, plus grand devra tre 24 leffort de ramener les verba philosophorum ad fidem nostram, puisque cest leSaint-Espritlui-mmequiaparltraverseuxsansquilsensoient conscients [] la confiance dAblard dans linspiration divine donne aux philosophesesttellequilnhsitepas entre autres lire dans la lettre grecque chi qui reprsente la structure delmedumondelaprfiguration de la croix et de la mort rdemptrice du Christ. _____________________________________________ Filosofia no Sculo XI IAfilosofiadosculoXI I podeserdivididaapartirdo desenvolvimento da atividade filosfica que se concentrou antesedepoisdonascimentodasprimeiras universidades.Emseu1renascimento,oensinoda filosofiaestevepresentenasescolas,apartirdoestudo das artes liberais. No 2 renascimento, ela se desenvolveu principal-mente com o trabalho de tradues das obras de filosofiagreco-romanas,realizadaspelosrabesepelos monges da Escola de Tradutores de Toledo, tendo como principalrepresentanteseufundador,oArcebispo francsRaymonddeTolde(1125-1152).Somentena segunda metade do sculo XI I que, de fato, as obras dos filsofosgregosforamtraduzidaspelosrabeseisso possibilitou um acesso mais amplo aos temas da filosofia que ainda no tinham sido explorados, como as de cunho aristotlico e esse advento possibilitou, a partir do sculo XI I I , com o nascimento das primeiras universi-dades, um estudo mais autnomo da filosofia. Asartesliberaisamplamentedifundidasno1 renascimentodosculoXI I ,eramdivididasemtrivium (gramtica,dialticaeretrica)equadrivium(msica, arit-mtica,geometriaeastronomia).Elasforam inicialmenteorganizadasporAlcuno(735-804)no impriodeCarlosMagno(742-814)epropagadas largamentenosculoXI I .Asartesliberaiseram chamadasdeliberaisbasicamentepordoismotivos, conforme De Libera (1998, p. 319): [...] se supunha que liberavamohomemdasservidesdamatriaedas preocupaesdocotidianoouporquesupostamente tinhamsidopra-ticadasnaorigemporhomenslivres (liberi)etransmitidascomoumsegredoaseus 25 descendentes..SegundoNunes(1974,p.129),[...]as artesliberaisresumiamosco-nhecimentosprofanose serviam de base para o estudo da sagrada escritura.. Isto significaqueoscristosaindacontinuaramase apropriardafilosofia,comoemsuagesta-o.Sua sistematizao e ensinamentos visavam a organizao e a compreenso dos preceitos cristos. ______________________________________ 6 ROSSATO,N.Naturanaturans,naturanaturata:osistemadomundo medieval. In: Cincia & Ambiente. Santa Maria-RS, v. 1, n. 1, jan/jun 2004, p. 17-28. ___________________________________________________ Escolas Monsticas AsEscolasMonsticas7eramligadasgeralmente ordem de Cister e o en-sino da filosofia se desenvolveu a partirdaleituradePlato,vianeoplatnicoseSanto Agostinho. Em geral, elas se fundamentavam em outros tiposderacionalidade,dife-rentedaescolsticaquese voltavamaisaoestudodadialticaesdisputationes (ROSSATTO,2011).Naprpriaescolsticaverificamos uma certa flutuao de racionalida-des, como no prprio trabalhodePedroAbelardo,que,apesardelgico, compreendeu muitos aspectos da filosofia, principalmente a de cunho tico-teolgico, recorrendo Santo Agostinho eaoneoplatonismocomoosparticipantesdasEscolas Monsticas. UmforterepresentantedasEscolasMonsticasfoiSo Bernardo de Clair-vaux (1090-1153). A ele so atribudos oestudocontemplativoesilenciosodasSagra-das Escrituras,arestauraodaregulabenedicti(regra beneditina)dooraetlabora(oreetrabalhe)em contraposioaoensinodadialtica8,quesepromovia maisagitadonasdisputationes(disputas).Apesarda filosofiaserpagecontradizeremmuitosaspectoso estudodasSagradasEscrituras,elaaindapermanecia nessasescolascomomesmopropsitodequando adentrou nos primrdios do cristianismo. OsgramticospertenciamemgrandepartesEscolas Monsticas,comoaEscoladeChartres,fundadapor 26 Fulbert de Chartres (960-1092) e difundida no sculo XI I porBernarddeChartres(1130-1160).Osreligiosos pertencentes essa escola ti-nham por objetivo [...] tanto as categorias de pensamento quanto as categorias da ln-gua[...](DELIBERA,1998,p.313).Logo,almde conceberem o estudo da gramtica como objeto de estudo, ainda visavam adequ-la ao estudo filosfico na vertente do quadrivium. Desse modo, a gramtica aliada ao estudo filosficosecentralizavanoa-prendizadodoTimeude Plato, via traduo de Calcdeo (I V). Em se tratando do Ti meu, obra ainda estudada por muitos religiosos desde o incio do cristianismo, De Libera (1998) esclarece que a obra se manteve afinada com a cosmologia crist em con-traposiofilosofiaaristotlica:Acombinaode exegeses cristianizantes da criao demirgica no Timeu e de elementos de teoria exemplarista (de ideis) extrada dotecidodasdoxografiaspatrsticasdesembocarem uma espcie de vulgata teolgica, contra-posta filosofia peripattica. (DE LIBERA, 1998, p. 315). ________________________________ 7 As Escolas Monsticas eram conhecidas tambm como Escolas do Claustro ou ainda Escolas de Cristo. 8[...]umarecusadomagistriofilosfico,queconheceseuapogeuna violentadennciadautilizaodadialticaemteologiaconduzidapor Bernardo de Claraval contra Abelardo. (DE LIBERA, 1998, p. 313). --------------------------------------------------- As Escolas Urbanas e o Ensino da Dialtica O ensino das Escolas Urbanas9 se desenvolveu em torno daracionalidadeescolstica,combasenotrivium,a partir do estudo da lgica aristotlica, principalmen-te via tradues de Porfrio (I I I ) e Bocio (VI ). Est presente na atualidade a discusso sobre quais obras ou comentrios docorpusaristotelicumosfilsofosdesseperodotive-ram acesso. Provavelmente, tinham disponveis partes do Organon,comoasCategoriaeeaDeI nterpretatione, partes da De anima e da Metaphysica. Os intelectuais ligados a essas escolas eram, segundo De Libera(1998,p.313-314),as[...]novasclassesde clrigosdesligadosdaregradeobedincia[...].Por 27 exemplo,PedroAbelardofoiumrepresentequeno pertenceuanenhumaordemreligiosaespecfica. I ncialmente, seu trabalho se concentrou na docncia, e s depois das calamitates ele se tornou religioso. Nesseperodo,adisciplinadedialticareveloua verdadeirandoledafilosofia,mesmoquecristianizada (NUNES, 1974). Apesar da justificativa de seu estudo se voltarmuitasvezesparaateologia,comomtodode provadeargumentos,elanoperdeuseucarter autenticamente filosfico, principalmente nos debates em que havia a tentativa de conciliao entre f e razo. Um exemplodessatentativaencontramosnosprprios conclios, instaurados durante todo perodo medieval. Na busca de uni-dade entre f e razo, religiosos acabavam se desentendo. As autoridades da Igreja consideravam a necessidade de conciliar os diversos pontos de vistas em conclios ofi-ciais. De acordo com Spinelli (2012, p. 143-144):Comoru,Abelardotambmfezpartedesses conclios por duas vezes em sua vida. Na primeira vez, em 1121,elefoicondenadonoConcliodeSoissoneum poucoantesdesuamorte,em1140,foicondenado novamente,pormnoConcliodeSens.Osmotivos estavamtodosligadosaoseumtododialtico10de ensino considera-do subversivo, ao modo como concebia aTrindade,aomodocomoconcebiaaf,pelomodo como defendia o livre arbtrio ante a graa divina, acerca desuaconcepodepecado,etc.Sempretemasem discordnciacomosdogmaspr-estabelecidospela tradio. ___________________________________ 9 As Escolas Urbanas eram conhecidas tambm como Escolas Capitulares ou Episcopais e Escolas das Catedrais. Foi,istocerto,emrazodabuscaporunidadequevertentesdocristi-anismo acabaram se digladiando entre si, e de cujo desentendimento surtiu a necessidade,inerenteaumpoderestabelecido(oreligiosoa-gregadoao imperial),darequisiodoConclio.Postodesentendimen-tos,erapreciso reconciliar,isto,levar,nonecessariamente,osindivduos(ou doutrinadores) a se entenderem, e sim as lideranas a repensarem (e, por suposto, decretarem) uma unidade. ____________________________________ 28 A Dialtica entre os Gregos Entre os gregos antigos, a dialtica se constituiu em uma tcnica:[...]umahabilidadeouaptidoinerenteao raciocnioeaodiscurso[...](SPINELLI , 2006, p. 151), em que o modo de pensar no era linear, mas dualista: o pensarporoposio11.Suamanifestaomaisantiga remonta a Xenfanes, Parmnides, Herclito e Zeno. O conhecimento formado pela dialtica nasce do conflito de opinies, convictas de verdade: [...] de um modo geral os indivduosestosempreprontosadarsuasopiniesa respeitodetudo, massem pensar,ouseja, fazemoseu discurso como se as palavras nele contidas fossem por si s portadoras de verdade [...] (SPINELLI, 2006,p. 148-149). Nosdilogosplatnicos,adialticasemanifestou[...] noprocedimentosocrticodeperguntareresponder. (ABBAGNANO,2000,p.269).ApartirdeScrates,a dialtica se sistematiza [...] num mtodo de investigao racional dialgica, agregando-lhe um novo significado: o deumapolidadiscussoadois.(SPINELLI,2006,p. 160). A maiutica de Scrates proporcionava o embate de opinies aceitas na comunidade (ndoxa), mas que visava a busca de umaverdade, de um conhecimento queno decorresse da opinio12. _____________________________________ 10[...]deumlado,osortodoxosdaDialtica,paraosquaisaverdades podia ser alcanada pela razo, qual atribuam a tarefa fundamental de esclarecerconceitos,eporissodefendiamanecessidadedeserecorrer sempre Dialtica; de outro, os opositores da Dialtica, para os quais ela era obradodemnio,acinciadasrazesnecessrias,ebemporisso,uma espcie de outra religio que se opunha verda-deira religio. (SPINELLI, 2013, p. 143). 11Exclui-sedessaregraestudosvoltadosparaagramticaeparaa matemtica,poisessasdisciplinas,segundoSPINELLI(2006,p.144)[...] deveriam primeiramente ser aprendidas, antes de ser discutidas. ____________________________________________ Em Aristteles, a dialtica se enunciava nos silogismos, nasdiscusseslgi-co-argumentativas.Osestoicos sistematizaram a dialtica de Aristteles e foi por essa via que os medievais, de fato, a conheceram. (ABBAGNANO, 29 2000).Noperodomedi-eval,elasemanifestacomo instrumento racional de validao dos problemas tanto os decunhofilosficoquantoosdecunhoteolgico.Em geral, a dialtica escolstica foi considerada fechada, pois todo trabalho de oposio se deu na busca de combater as heresiaseapenasumaposioacabavaprevalecendo. EmAbelardo,adialticaseapli-cavadeformamais equilibrada, no dilogo entre as autoridades submetidos anlise racional. (SPI NELLI , 2013). Leite J unior (2001, p. 43) afirma que: Oestudodadialtica,nosistemaeducativomedieval, adquiriuplenodestaquefrentesdemaisreasde pesquisa. Tornou-se um domnio do saber que assegurava aohomem,deummodoracional,apossibi-lidadede discernir o discurso verdadeiro do falso. [...] A dialtica era empregada para uma anlise racional de problemas, inclusive os do mbito da teologia. No perodo medieval, a dialtica era tida como parte da lgica ou mesmo da retrica. Seu emprego significativo se deu no sculo XI Icom Abelardo. Pela via dia-ltica, ele encaminhou,porexemplo,umasoluoquestodos universais.Oproble-mafoiconsideradodesuma importncia, pois se originou praticamente nove sculos antes de Abelardo e durante todo o tempo o problema se manteveemdisputaporummelhorencaminhamento. Podemos compreender o problema a partir das questes deixadassemsoluoporPorfrionaobraI sagoge13 acercadoestatutoontolgicodegneroseespcies.As questesdePorfrioremontamcompreensode universaldoUmemsidePlato,refutadopor Aristteles:Aproblemticaoriginriaremonta AcademiadePlatoe,posteriormente,discussoque Aristteles promoveu, no inte-rior do Liceu, a respeito do UmemsidePlatoou,maisexatamente,tese pitagrico platnica que atribua existncia separada aos universais. (SPINELLI, 2013, p. 170). _______________________________________ 30 12 Conforme Spinelli (2006, p. 175): [...] a argumentao raramente partia do zero, e sim de opinies de algum modo disponveis (admitidas) tanto na comunidade acadmica (entre os da elite filosfica) como na praa (entre os sofistas). 13 A obra de I sagoge de Porfrio foi escrita de forma a iniciar os alunos no estudodascategoriasdeAristteles.Asquestesintroduzidaseno respondidas acerca do estatutoontolgicodosUniversaisso:Quantoao queconcerneaosGnerosesEspcies,oproblemadesaberseso realidadessubsistentesemsimesmas,ouapenassimplesconcepesdo esprito;Admitindoseremrealidadessubstanciais,sesocorpreasou incorpreas;Estoseparadasousesubsistentesapenasnascoisas sensveis; (PORFRIO, 1965, p. 19-20). _________________________________________ Abelardo,apartirdeumvisconceptualista,refutoua tradio realista que afirmava a existncia douniversal nacoisa(res)eatradionominalistaqueafirmavaa existncia do universal na palavra (uox). Ele deslocou o problemadosuniversaisdombitoontolgicoepassou sua anlise para o mbito lgico-semntico, afirmando a existnciadouniversalnaspalavras,pormno enquanto uox, mas enquanto sermo, palavras institudas porconvenohumana,porinstituiodoshomens (hominium institutio), para significar as coisas existentes. A soluo de Abelardo acerca dos universais remonta ao problema da Trindade. Abelardo concebeu as pessoas da Trindadeseparadamenteefoicondenadopor sabelianismo.ATrindadefoiadmitidacomounae consubstancialnoConcliodeNicia(325)e,desde ento,essaconceposetornouumdogmaentreos cristos. Abelardo negou a existncia real dos universais e o atribuiu existncia dos mesmos nas palavras como resultado de um processo intelectivo, pois o que temos em realidadeapenasoindivduo.Eletambmexcluiua ideiadeessncia,concebidaentreosrealis-tascomoa unidade consubstancial da Trindade. A utilizao da dialtica em Abelardo se estendeu tambm para as questes tico-teolgicas como mtodo de anlise deproblemas.ConformeDeLibera(1998,p.321):ele [Abelardo]defineumanovaformadetica,cristpelo contedo,dialticapelomtodo[...].Utilizou-seda dialticacomometodologia,comoobjetivode[...] 31 alcanar,pormeiodeargumentaesfavorveise discordantes,oconsenso(consensus),oumelhor,o provvel (probabititer). (SPINELLI, 2013, p. 161). Concluso Pejorativamente,osrenascentistasemodernos batizaramoperodome-dievaldeidadedastrevas. Essa viso constitui-se, segundo Zilles (1996), superficial emope,poisanossabaseeducacionaldevemuitoaos medievais.Abbagnano(1977)consideraarrogncia afirmarquenoseproduziuconhecimentoefetivona idade mdia ou que no se teve uma atividade filosfica considervel.Verificamosemintelectu-aiscomo Abelardoalibertaodarazocomoinstrumento humano que edificou a maneira de pensar de toda uma geraoqueestavaporvir.Amodernidadeocidental certamente devedora da atividade filosfica desenvolvida na idade mdia, assim como dos debates instaurados por Abelardo e seus posteriores e da estruturao de ensino da filosofia no sculo XI I . A filosofia desenvolvida nesse perodo, em conjunto com astransformaesculturais,possibilitouaascensode um novo tipo de homem, o intelectual. Conforme Queiroz (1999,p.12),Pelaprimeiraveznahistriaocidental, surgeafiguradeumerudito/homemdereligio.O eruditoemquestodesignavaosquefaziamdopensar sua profisso. Como exemplo de intelectual, Abelardo foi reconhecidocomoprofessoreintelectualdoseutempo. ConformeQueiroz,elefoi(1999,p.14):[...]aprimeira grandefiguradeintelectualmoderno,noslimitesda modernidadedosculoXI I :Abe-lardofoioprimeiro professor.. Verificamoscomoaatividadeherdadadosprimeiros cristo recebida no sculo XI Ie apresentamos como a atividadefilosficaestevepresentenasescolasmo-nsticas e nas escolas urbanas. Apesar de no existir uma nica racionalidade entre essas escolas, a dialtica se fez importante para um filosofar autntico. Desde o perodo patrsticoatosculoXI I observamosoesforodos 32 filsofoscristoemlegitimaraatividadefilosficaa partir da conciliao entre a f e a razo. A filosofia, em umpri-meiromomento,tomadacomoinstrumento,faz com que os problemas de cunho teol-gico possam ter um verdadeirorespaldo.Emumsegundomomento,a filosofia encon-tra sua autonomia e autenticidade. A f se aliceravanarazoparaquefossemelhoraceitae compreendida. Referncias Bibliogrficas ABBAGNANO, N. 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Mas,voltandoafirmaodequedurantemuitosanos ensinouaFilosofiatradicionalverdadeira:tratava-sede uma,digamos,preparao,poisacreditamosnona fatalidade,masnaexistnciadeumprojetodeDeuspara cada ser humano, o qual tem seu livre arbtrio e segue ou no esse plano. Pedro Abelardo seguiu o plano divino. 1.1.2 PROFESSOR DE HELOSA 35 ComoprofessordeHelosa,durantedoisanos,muito ensinouemuitoaprendeu:talvezmaioameio,poisnenhum dos seus alunos o questionava tanto quanto ela. Aquestodasexualidade,porexemplo,nuncafoium ponto pacfico entre ele e ela, sendo que ela tinha total razo e ele estava preso aos padres da poca. Foi um perodo muito rico aquele. Quemseatmleituradas42Questeseparanaquilo fica pensando que ele era o mestre eterno e ela a aluna eterna, no que se equivoca redondamente. Nemsemprequemperguntasabemenosdoqueaquele que responde, ou no? 1.2 O EPISDIO DA EMASCULAO Essa foi a estrada de Damasco de Pedro Abelardo. 36 Apartirdalieleencontroucadavezmaissuaprpria individualidademaisprofunda,ouseja,aqueleesprito inquieto,queprocuravaaverdadeeaqueriadifundir custasse o que custasse. Aliterminoudedesabrochar,emtodasuapujana, Pedro Abelardo. Comoserhumano,nofoiumaperda,masseu antoencontro. 2 SEGUNDA ETAPA MISSIONATO Jestoufalandodessasegundaetapadesdeocomeo, mas fiz isso de propsito, pois esse o objetivo deste livro, ao 37 ladodavalorizaodaatuaodeHelosa,nessaparceria notvel dentro dos arraiais da Filosofia. Faleidoassuntoemitemanterioredesnecessrio repeti-lo mais vezes. 2.1 MAGISTRIO DA FILOSOFIA DA VIDA 38 Se,nasrespostass42Questes,vemosumAbelardo atreladoaospadrescatlicos,gradativamente,podemoster certeza, ele foi abandonando o igrejismo. SeucontatopermanentecomPedroLombardo,com quemconviveunosltimostemposdevida,facilitoua observaodavidapostmortem,sobreoqueoamigo escreveu um livro, como eu disse anteriormente. Noficaramnasuperfciequantoaessetemaeoutros correlatos aqueles intelectos inquietos e honestos na busca da verdade. Tenhoparamimquedeixouescritos,masqueforam consumidos pelos homens da Inquisio. Assimacontecia,poiselenocompactuavacomosseus opositores. PodemoschamaraquelesconhecimentosdeFilosofiada Vida, em contraposio engessada Filosofia tradicional. CAPTULO II HELOSA Apesar de no ter sido valorizada como devia, em certos aspectos suplantou Abelardo, como veremos adiante. 39 Sobresuafiliaooshistoriadoresmencionamapenasa materna,tendosidosuameHersndia,conformeconstade ROCHA(1996:220),oqualtambminformaque,aos dezenoveanos,elaeraconhecidaemtodaaFranaporsua cultura literria. (pp. 220-221) Todavia,oquemeimportaressaltar,queconcludas suas cartas e das 42 perguntas que formulou a Abelardo, sua intelignciaeramuitomaisvoltadaparaaprtica, direcionadaparaosmultifacetadosngulosdavida, principalmentereferentesfeminilidade,quenuncatinham sido abordados at ento pelaFilosofia. AFilosofiadaqueletemposerestringiapraticamente TeologiaCatlica,embasada,principalmente,emPlatoe Aristteles,doissolteiresconflituados,quenoestiveram alturadoseumestreScrates,estesimquefoiumgrande mestre,porqueconcluatudoemfunodavidacotidiana, como marido, pai de cinco filhos e cidado. AlgumpoderestranharestaabordagemacercadessesdoismonstrossagradosdaFilosofiaocidental,masestou dizendo o que penso, ou seja, que a Filosofia deve ser prtica, real,baseadanavidacotidiana,naquiloqueocorrecomas pessoasenoestarmosdivagandosobreabstraesmuitas vezes inteis. PorissoentendoqueScratesfoiumgrandefilsofoe estava muito acima de Plato e Aristteles.Quemtiveroportunidadedelermeuslivrosintitulados Reflexes de Montaigne para a Vida Diria, volumes I, II e III, certificar-se- de que no estou falando sem base. Ossofrimentosdavida,queHelosavivencioudesdea maistenrainfncia,prepararam-naparacompreender melhor a vida dela prpria e das outras pessoas. Se teve contato com o estudo dos grandes tericos,o que realmente aconteceu, todavia,no se empolgou com eles,mas atlhestinhacertodesdm,e,comrazo,poisagrande maioriadelescometeuverdadeirasgafesfilosficascom muitas das suas teses distantes da realidade da vida. 40 Sealgumtiveracuriosidadedelerastesesdesses tericos ficar espantado com tantas inutilidades e, para dizer a verdade, com tantos disparates. 41 3 PRIMEIRA ETAPA PREPARAO At mais ou menos 20 anos de idade podemos considerar suapreparaoparaotrabalhoquedesempenharia,sobretudo, no Paracleto. MasaverdadequeHelosaeraumaparanormalque sempreintrigouquemaconhecesse,tantoqueROCHA (1996:240-244),nalinhadagrandeantipatiaquedemonstra contraHelosa(e,alis,tambmcontraAbelardoeofilho Astrolbio),aofalarnaestadiadelanaBretanha,quando aguardavaonascimentodofilho,afirmaqueeratidacomo feiticeirapelopovodaregiodoPallete,inclusive, transcreveumacanoquesediztersidocompostaporela, em que confessa ser feiticeira. Ora,issotudotemumladocmico,paranosedizer maldoso. Agoraatacandodefrenteaparcialidademaldosado referidoautor,atdefeiaelerotulouHelosa,distorcendoas palavrasdeAbelardo,pois,naverdade,afilsofaeratida geralmente como uma mulher de notvel beleza! 42 3.1 ESTUDOS EM ARGENTEUIL No convento de Argenteuil, Helosa mais divergiu do que concordoucomasorientaesacadmicas,apontodeincompatibilizar-se com as professoras mais ortodoxas. Quem asalvoudeperseguiesmaisgravesfoiamadresuperiora, que,sescondidas,lhedavarazonosquestionamentose detectou-lhe a falta de vocao para a carreira eclesistica. 43 3.2 ESTUDOS SOB ABELARDO EstudarcomoprofessorPedroAbelardo,estequeera maisde20anosmaisvelhoqueela,edementeabertaem relao a muitos dos estagnantes padres da poca, foi-lhe de extremautilidade,poisganhouconfianasuficientepara continuarquestionandoostatusquoprincipalmente relacionado com a feminilidade. A cresceu sua autoconfiana eacertezadequedeveriaseguirsuaintuio,quelhe indicavaomelhorcaminhonasoluodassituaesqueiam surgindo. Essesestudosduraramapenasdoisanos,masvaleram por mais de vinte. 44 4 SEGUNDA ETAPA ABADESSA DO PARACLETO OParacletotornou-seumcentrodeirradiaocultural e,sobretudo,devalorizaodamulher,oqueacabou desperando a inveja de muitos e terminou por ser desativado. AAbadiadoParacleto(tambmAbbayeduParacletu, Latim:Paraclitus)ouConventodoParclito,foium convento perto do rio Ardusson, entre Ferreux-Quincey e Saint-Aubin,noDepartamentodeAube,fundadopor Pedro Abelardo. Foifundadaentre1122-1123porPedroAbelardouma ermida com a oratria, que pouco depois foi consagrado comonomedeParacleto(umnomebblicoparao EspritoSanto).LogoAbelardoseestabeleceualicom seus alunos, e eles querendo obter informaes e aulas do famoso professor de teologia. Depoisde1128,quandoAbelardofoieleitoabadedo mosteirodeSaint-Gildas-de-Rhuys,eledeixouo Parclito.QuandooAbadeSugerdeSaint-Denis expulsouasmonjasbeneditinasem1129,asmonjas beneditinasdeArgenteuilcomsuaprioresa,Helosa, Abelardo deu-lhes a propriedade do Paracleto. Abelardo lheescreveuhinos,sermeseregrasreligiosasparao novo convento e permaneceu associado como conselheiro espiritual para Helosa. Helosa se tornou abadessa do Parclito e passou o resto de sua vida l. Ela e Abelardo foram enterrados juntos l apartirde1142(quandoAbelardofoienterrado,em seguida, Helosa quando ela morreu em 1164) at 1792, quandoseusrestosmortaisforamtransferidosparaa igreja de Nogent-sur-Seine, que fica nas proximidades. 45 NapocadaRevoluoFrancesa,oconventofoi dissolvido. O edifcio do convento foi vendido pelo Estado em14deNovembrode1792equasecompletamente removido at 1794. Hoje,nolocaldoantigoconventohumamanso chamada"Maisonabbatiale";noentanto,umnovo edifcio do sculo XI X. Do antigo mosteiro existe apenas a cripta, onde Helosa e Abelardo foram enterrados. O lugar decorado com um obelisco,eaoladodeleumacapela,ummemorial recente. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Abadia_do_Paracleto) 46 4.1 IGUALDADE ENTRE OS GNEROS NaIdadeMdia,apesardealgunsautoresfalaremnos direitos das mulheres de forma muito generosa e, na verdade, meiohipcrita,tratavam-nascomomercadoriasparafinsde satisfao da sexualidade masculina e mo de obra barata ou quaseisso.Emresumo,ningumprecisaaprofundara pesquisadotema,bastandovercomoavidadasmulheres hoje para termos uma noo do que foi naquele tempo. Helosa,questionadoradesdequepassouaseentender porgente,nuncaaceitouadesigualdadeeprocurouapoiar sempreasmulheresportodasasformaspossveis,tanto terica quanto praticamente. Suaabadia,querecebiaparaacarreiraeclesistica, apenasmulheres,eraumcentroavanadodevalorizaodo gnero feminino. Alisepraticavaoquehojetemonomedeautoajuda como forma de valorizao das mulheres. Foipraticamenteaprimeiraaconcedersmulheres conhecimentos acadmicos que atualmente classificaramos de universitrios, no Paracleto, que, se no teve o qualificativo de Universidade, o foi de fato. Essaoportunidadedadasmulheresrepresentouuma importantealavancaparaaconsecuodatoalmejada igualdadeentreosgneros,queathojeseprocuraetenta realizar. 47 4.2 SEXOLOGIA AIgrejaCatlicareprimiaasexualidadeexternae hipocritamente, enquanto que, na realidade, um dos caminhos mais frequentados para a ascenso na carreira eclesistica era justamenteserviraosinteressessexuaisdosmaisgraduados. A hipocrisia vigorava, portanto, pois havia um discurso tico, mas uma prtica escusa. Para os leigos pregava-se a absteno do sexo ou apenas com a finalidade de procriao. Asmulhereseramconsideradascomocontinuadorasda histria de Eva, de causadoras da desgraa masculina. Helosaensinavaqueosexonaturalepodiaser praticado sem nenhuma afronta s Leis Divinas quando existe amor verdadeiro entre os parceiros. A reproduo noprecisava ser a motivao nicapara essa prtica, pois o prazer faz parte da vida e da felicidade. Notransformouessasliesemtextosorganizadossob a forma de tratado filosfico. Esprito eminentemente prtico evivenciandooidealdoanonimato,escreveuomnimo possvel e ensinou verbalmenteepelo exemplo omximo que pde. Sabiaquetodoensinamentosfixadopeloaprendiz quando se dispe realmente a assimilar e viver as lies, e que muitasvezespuraperdadetempoeesforoinstituirum sistemadecarteruniversal,modatradicionaldamaioria dosfilsofos,queelaboracomplicadossistemastericosa priori,masirreaiseinconsistentes,verdadeirosleitosde Procusto. Os ensinos sistematizados, na verdade, tm sua utilidade, maselapreferiabasear-senasocorrnciasdodiaadia.E acredito que, se tivesse deixado mais escritos do que deixou, a prpriaIgrejaCatlicaosteriadestrudo,porquea consideravahertica.Somentenosofreumaisrepreslias,porque tinha um aliado importante que era Pedro Lombardo. 48 Helosacontrariava,comsuaformadepensareatuar,osmembrosreacionriosdaIgrejaCatlica,oque representava um srio risco prpria vida.Masenfrentouasoposiesemorreupraticamente isolada,apoiadaporpoucos,dentreosquaisseufilho Astrolbio,que,apartirdecertoponto,utilizavaemfavor delaoprestgiodoseupostodeabadeemHauterive,na vizinha Sua. Quemtempadrinhonomorrepago:esseditado sempre valeu. 49 4.3 FILOSOFIA DA VIDA SuaFilosofiaconsistianoemteorizaes,baseadasem estudosdefilsofosconflituadoscomoPlato,Aristtelese outros,massimnavivnciadodiaadia,principalmenteno contato com os problemas familiares. Helosaeracasadadefato,apesardodramadetodos conhecido,tinhaumfilhoeparentespeloladodomaridoe sabia enxergar tudo pelo ngulo da realidade. AestolastrodasuaformadeentenderaFilosofia, que,paraela,poderiaserdefinidacomooconjuntode reflexesquedevemlevarfelicidade,ouseja,aobemestar interior e exterior, quer dizer, no relacionamento com o meio onde se vive e a paz da conscincia. Notinhaapreocupaoderegistraremlivrosesses dados,poisimportava-lheviverepassaradianteessaforma de pensar sem a preocupao em sistematizar modelos. Alis,assimtambmfizeramefazemosgrandes mestres, como Scrates, Gandhi, Jesus, Osho, Sathya sai Baba eoutrostantos,quevivemeservemdeexemplo,masno organizamsuaformadepensarmodaaristototlica, platnica etc. Alis,semquererradicalizar,quem vive no escreve e quem escreve no vive: era um dos seus lemas. Pode parecer uma ilogicidade, mas quem tem como foco davidaescrever,regrageral,aindaestdominadopela vaidadedaevidncia,e,porisso,norealizaaautoreforma moral, enquanto que quem est focado na auto reforma moral no se preocupa em ganhar evidncia. 50 CAPTULO III COLABORAO DE PEDRO, O VENERVEL [3] PedroLombardofoideextremaimportnciacomo colaborador de Abelardo e Helosa.Quantoaelepodemosdizeroseguinte:seulivroAs MaravilhasdeDeustratavainclusivedasobrevivnciada alma e seu contato com os chamados vivos. Essescontatoseramrealizadosporumacorrentede sacerdotes catlicos, dentre os quais Abelardo e Helosa e que existeathoje,inclusivenoVaticano,secretamente,como todo mundo sabe. Atravsdessescontatosmuitasrevelaeseramfeitase serviamderefernciaparagrandesepequenasquestes, inclusive no Paracleto, sendo Helosa uma das mdiuns desses fenmenos. 51 CAPTULO IV CONTINUAO EM ASTROLBIO [4] Ele no foi um mero filho doseu pai e filho da sua me, comocostumaaconteceremrelaoaosdescendentesde celebridadesemtodosostempos,masfoiocontinuadordas ideias e das obras de ambos, chegando a ser qualificado,pela historiadora Brenda Cook, como um segundo Abelardo. 52 NOTAS [1]PedroAbelardoAHistriadasMinhas Calamidades (Carta Autobiogrfica) Carta de Abelardo para a consolao de um amigos vezes, os exemplos mais que as palavras excitam ou acalmamossentimentoshumanos.Assim,apsalguma consolaoproporcionadapelaconversacomo interlocutorpresente,resolviescreveraoamigoausente umacartadeconsolaoquegiraemtornodas experinciasdasminhascalamidades,afimdeque reconheas que as tuas, em comparao das minhas, so nulasoumdicasprovaese,dessemodo,assuportes com mais tolerncia.O lugar do seu nascimentoSouoriundodeumlugarejosituadonaentradada pequena Bretanha, afastado creio que oito milhas a oeste da cidade de Nantes e que se chama propriamente de Le Pallet. Tal como a natureza de minha terra ou de minha famlia, eu me distingui tanto pela vivacidade do esprito epelotalentocomopelafacilidadeparaoestudodas letras. Meu pai foi um pouco versado nas letras antes de haver cingido o cinturo de soldado e mais tarde abraou com tanto amor as letras que se disps a fazer com que nelasfosseminstrudos,antesdosexercciosmilitares, quaisquerfilhosquetivesse.E,semdvida,assimfoi feito. Por isso, tratou com tanto mais cuidado da minha formao quanto mais me dedicava o seu afeto, uma vez que era o seu filho primognito. Eu, na verdade, quanto mais longe e mais facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardentemente a elas me apeguei, e fui seduzidoporumtograndeamorporelasque, abandonando aos meus irmos a pompa da glria militar junto com a herana e a prerrogativa dos primognitos, renuncieicompletamentecortedeMarteparaser educado no regao de Minerva. E, visto que eu preferi as armas dos argumentos dialticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras armas por essas e antepus 53 oschoquesdasdiscussesaostrofusdasguerras.Por isso,perambulandopelasdiversasprovnciasatravar debates,ondequerqueouvissedizerqueflorescesseo estudo dessa arte, tornei-me um mulo dos peripatticos.A perseguio de seu mestre Guilherme contra eleFinalmentechegueiaParis,ondeessadisciplina conseguirafloresceraomximo,juntoaGuilherme,a saber,odeChampeaux, meupreceptor,reputadoento comooprincipalexpoentenessemagistrio,tantopela fama como de fato. Com ele me demorei algum tempo; de incio fui bem aceito, mas logo depois eu lhe pareci muito incmodoquandotenteirefutaralgumasdassuas opinieseacometicontraeleaargumentar frequentemente, sendo que, por vezes, eu parecia levar a melhor nas discusses. Por certo, aqueles mesmos entre os nossos condiscpulos que eram considerados como os principais sofriam com indignao tanto mais quanto eu era tido como o ltimo pelo tempo da idade e do estudo. Dacomearamasminhascalamidadesquecontinuam at agora, e quanto mais longe se estendia a minha fama mais se inflamava a inveja dos outros contra mim.Porfim,aconteceuque,presumindodomeuengenho acima das foras da idade, eu aspirava direo de uma escola sendo ainda um adolescente, e imaginava o lugar emquerealizaria esseplano, asaber, naentofamosa cidade de Melun, que era sede real. Meu j mencionado mestrepressentiuisso,tendoenvidadoesforospara afastar para bem longe de si a minha escola. Maquinou ocultamente com todos os meios de que disps para, antes queeumeafastassedasuaescola,prejudicara preparaodaminhaemearrebatarolugarprevisto. Mas como entre as pessoas influentes da terra eu contava alicomalgunspartidrios,confiadonoseuauxlio conseguiquantodesejava,sendoqueainveja manifestada por ele angariou para mim a aprovao de muitas pessoas.Noentanto,emconsequnciadessemeutirocniona escola, o meu nome comeou a difundir-se de tal modo na 54 artedadialtica,quenoapenasafamadosmeus condiscpulos,comotambmadoprpriomestre, reduzidapoucoapouco,acabouporseextinguir.Da resultouque,presumindoeuprpriocadavezmaisde mimmesmo,transferisseomaisdepressapossvela minhaescolaparaCorbeil,maisprximadacidadede Paris,paraquedacertamenteaminhaindiscrio promovesseassaltosmaisfrequentesdediscusso.No havia,porm,transcorridomuitotempoquando,por causa do ardor descomedido pelos estudos, e atingido pela doena, fui obrigado a retornar terra natal; afastado da Franadurantealgunsanos,euaindaeraprocurado mais ansiosamente por aqueles que o estudo da dialtica espicaava.Decorridos, entretanto, alguns poucos anos, quando eu j estava curado havia muito tempo da minha enfermidade, aquele meu preceptor Guilherme, arquidicono de Paris, tendo trocado o seu antigo estado de vida, entrou para a OrdemdosClrigosRegularescomainteno,como diziam, de, quantomaisreligioso elefosseconsiderado, conseguirserpromovidoaumgraumaiselevadoda dignidadeeclesistica,comodefatologoaconteceu, quandofoifeitobispodeChlons.Todavia,o revestimento desse seu novo estado de vida no o retirou da cidade de Paris ou do costumeiro estudo da filosofia, mas no prprio mosteiro no qual se refugiara, por causa davidareligiosa,imediatamentefezfuncionaruma escola pblica, segundo o costume estabelecido. Ento eu retornei para junto dele a fim de estudar retrica com ele. Almdeoutrastentativasdasnossasdiscusses,euo constrangipormeiodeclarssimasprovasracionaisa modificar, ou melhor, a destruir a sua antiga sentena a respeito dos universais. Na verdade, ele era da opinio, a respeito da comunidade dos universais, de que a mesma coisaexistia essenciale, aomesmotempo, inteiramente em cada um dos seus indivduos, dos quais, por certo, no haverianenhumadiversidadenaessnciaanosera variedadenamultiplicidadedosacidentes.Entoele 55 corrigiu de tal modo essa sua sentena que, em seguida, afirmavaqueamesmacoisaexistenoessencialmente mas indiferentemente. E visto que neste mesmo assunto a respeito dos universais sempre foi esta a principal questo entre os dialticos, e to importante que tambm Porfrio, na sua I sagoge, ao escrever sobre os universais, no se aventurava a resolv-la mas declarava: "Com efeito, um assuntomuitodifcil",quandoGuilhermecorrigiu,ou melhor, quando, coagido, abandonou essa sentena, suas aulascaramemtamanhaneglignciaquemal incluiriam outras questes de dialtica, como se o resumo inteirodessaarteconsistissenasentenasobreos universais. Em consequncia disso, o meu ensino recebeu tanta fora e autoridade que aqueles que anteriormente aderiam com mais veemncia quele nosso mestre, e que molestavamaomximoomeuensino,acorreramem revoadasminhasaulas,eaquelemesmoquehavia sucedido ao meu mestre naescola-catedral de Paris me ofereceu o seu lugar, a fim de que a mesmo, junto com os outros, ele se inscrevesse entre os meus alunos, onde antes florescera aquele que fora o seu e o meu mestre. No entanto, no fcil exprimir como, poucos dias depois de eu a reger a cadeira de dialtica, meu mestre comeou a consumir-sedeinveja,ecomquesofrimentose atormentava, de tal modo que, no sustentando por muito tempooardor damisriaqueo dominara, empreendeu astutamente conseguir a minha remoo. Mas como no tinha motivo para agir contra mim abertamente, resolveu privardaescola,sobaacusaodecrimesdetestveis, aquele que me cedera o seu lugar de professor e que foi substitudo na sua funo por outro que fora outrora meu rival.Ento eu voltei a Melun e a estabeleci a minha escola comoantes,equantomaisclaramenteasuainvejame perseguia tanto mais autoridade ele me proporcionava, de acordo com o dito do poeta: "A inveja acomete o que maisalto;osventossopramcomviolnciacontraos cumes mais elevados". 56 No muito tempo depois, porm, como ele percebesse que quase todas as pessoas sensatas tinham muitas dvidas a respeitodoseuespritoreligioso,ecomeassema murmurar severamente quanto sua converso pois, naverdade,eledemodoalgumhaviaabandonadoa cidade,transferiu-sejuntocomacomunidadedos irmos e com a escola para certa vila afastada da cidade. I mediatamente voltei de Melun a Paris com a esperana dequeelemedeixariadoravanteempaz.Noentanto, como observei, ele fizera o meu lugar ser ocupado por um meu rival. Por isso, fui estabelecer o meu acampamento daescolaforadacidade,namontanhadeSanta Genoveva,comoseeuquisesseassediaraqueleque ocupara o meu lugar. Quando meu mestre soube disso, imediatamente,ecomimpudncia,retornoucidade, tornando a trazer os alunos de que ento dispunha e a comunidadedeirmosparaoseuprimitivomosteiro, comoquemviesselibertardomeucercooseusoldado que ali deixara. Mas, ao pretender ajud-lo, prejudicou-o gravemente.Comefeito,anteseleaindatinhauns discpulos quaisquer, principalmente por causa das suas liessobreagramticadePrisciano,naqualse acreditavaqueelegozavademuitocrdito.Todavia, depoisqueomestrevoltou,eleperdeuabsolutamente todos os alunos e, desse modo, foi obrigado a desistir do seucargoescolar.Nosepassoumuitotempoqueele prprio,desesperandodoravantedaglriamundana, tambm se convertesse vida monstica. Mas depois da volta do meu mestre para a cidade, a prpria realidade h muito tempo j te fez ciente dos conflitos e discusses que meus alunos mantiveram tanto com ele como com os seus discpulos, e dos xitos que a fortuna nos proporcionou nessescombates,oumelhor,amimmesmo.Parafalar comedida-mente citarei com audcia aquele dito de Ajax:"Seprocurassaberoresultadodestaluta,eunofui vencido por ele."Se eu silenciasse sobre isso, os prprios fatos clamariam e haviam de contar o desfecho. 57 Masenquantosepassavamessascoisas,minhame carssima,Lcia,obrigou-meavoltarterranatal. Na verdade, depois da entrada de meu pai Berengario para a vida monstica, ela se dispunha a fazer o mesmo. Depois queissoserealizou,retorneiFrana,principalmente paraestudaradoutrinasagrada,quandoomeuj mencionado Mestre Guilherme se destacava como bispo deChlons.Nesseensino,entretanto,oseuMestre Anselmo de Laon desfrutava ento da mxima autoridade por lecionar havia muitos anos.Abelardo vem ter com Mestre Anselmo em LaonEnto fui ter com esse velho que conquistara um grande nome mais pela sua longa prtica do que pelo engenho oupelamemria.Sealgumvinhabatersuaporta, incerto,paraconsult-losobrealgumaquesto,voltava maisincerto.Naverdade,pareciaadmirvelaosolhos dosseusouvintesmaseranuloaosolhosdosquelhe faziamperguntas.Tinhaumaelocuoadmirvel,mas eravaziodecontedo,ocodepensamento.Quando acendia o fogo, enchia a sua casa de fumaa mas no a iluminava.Suarvorepareciatodavistosanasua folhagemaosqueaolhavamdelonge,masrevelava-se infrutfera aos que a observavam de perto e com cuidado. Noentanto,quandoeumeaproximeidelaparalhe recolher o fruto, percebi que se tratava daquela figueira queoSenhoramaldioououdaquelecarvalhoaoqual Lucano comparou Pompeu, ao dizer:"Eleva-se, sombra de um grande nome,Como um carvalho altivo no campo fecundo, etc."Estando,pois,dissoconvencido,nomedeixeificar ociososuasombrapormuitotempo;poucoapouco, todavia, como eu comparecesse cada vez mais raramente ssuasaulas,algunsdentreosseusdiscpulosmais destacados tomaram isso como ofensa grave, como se eu estivesseadesprezartograndemestre.Porisso, provocando-o,tambm,contramimsecretamente, tornaram-me odioso a ele com as suas prfidas sugestes. Aconteceu que, certo dia, depois de algumas conferncias 58 sobreasSentenas,nsestudantesgracejssemosuns com os outros. Vai da que um deles me perguntou com inteno sorrateira, a mim que ainda no estudara seno livrosdefilosofia,oqueeuachavadasliessobreos livrossagrados.Respondique,decerto,oestudodessas obraseramuitosalutar,poisatravsdasualeitura chega-se a conhecer o modo de salvar a alma, mas que eu muitomeadmiravadequeparaaquelesqueso instrudosnobastassem,paraentenderasexposies dosSantosPadres,osseusprpriosescritosouos comentrios,detalmodoquenoprecisassem evidentementedeoutroensino.Muitosdospresentes caram no riso e perguntaram se eu poderia fazer isso e se ousariaempreendertamanhatarefa.Retruqueique estavaprontoparamesubmeterprovaseeleso quisessem.Ento,agritareariraindamais, exclamaram:"Porcertoquensaprovamos.Vamos procurareentregar-teocomentriodealgumpasso pouco conhecido da Escritura, e assim comprovaremos o que prometeste". Todos concordaram, ento, na escolha de uma profecia muito obscura de Ezequiel. A, tomando ocomentrio,convidei-oslogoparaminhaaulanodia seguinte. Houve alguns que, contra a minha vontade, me davam conselhos, dizendo que eu no devia me apressar a cumpriroprometido,masque,comoeuaindaera inexperiente, devia velar por muito tempo a esquadrinhar eaconfirmaraminhaexposio.I ndignado,porm, respondi que no era do meu costume avanar por meio da prtica, mas sim por meio do engenho, e acrescentei queouelesnoadiariamocomparecimentominha aulaconformeaminhadecisooueudesistiria completamentedetudo.Semdvida,poucaspessoas estiveram presentes minha aula, j que parecia ridculo atodosqueeu,quaseabsolutamenteinexperientena cincia sagrada, dela viesse a tratar to apressadamente. Entretanto, minha aula encantou de tal modo a todos os queaelacompareceramqueelesaexaltaramcom extraordinrioselogiosemecompeliramafazer 59 comentriosdeacordocomoteordaminhaexposio. Logoqueouviramisso,aquelesquenoestiveram presentes comearam, porfia, a concorrer segunda e terceiraaula,etodossepuseramigualmentemuito solcitosacopiaroscomentrios,queeucomearaa fazer desde o seu incio no primeiro dia.Anselmo comea a perseguir AbelardoEmconsequnciadisso,essevelhosenhor,abaladopor violentainvejaejestimuladoentocontramimpelas instigaesdealguns,comolembreiacima,comeoua perseguir-me pelas minhas aulas sobre a cincia sagrada, nomenosdoqueanteriormenteofizerameuMestre Guilhermepelasdefilosofia.Estavamentonaescola dessevelhosenhordoisestudantes,quepareciam destacar-seacimadosoutros,AlbericodeRheimse LotulfodeLombardia,quequantomaispresumiamda prpriaexcelnciatantomaisseexasperavamcontra mim.Assim,movidoprincipalmentepelassugestes desses dois, como algum tempo depois se advertiu, aquele velhoperturbadoproibiu-mearrogantementede continuar a exercer o papel de comentador que eu havia comeado no lugar em que ele ensinava, aduzindo, como justificativa,porsereuaindadesprovidodeinstruo nessa rea de estudos, que eu talvez viesse a escrever algo de errado naquela obra, e que tal erro lhe seria imputado. Quando essa notcia chegou aos ouvidos dos estudantes, eles ficaram tocados por profunda indignao diante de to clara aleivosia dita pela inveja, tal como a ningum jamaisacontecera.Equantomaisclarafoiadesfeita, tanto mais se converteu em motivo de honra para mim e, dessemodo,perseguindo-me,elemetornoumais glorioso.Abelardo finalmente triunfou em ParisAssim, depois de alguns dias, voltei a Paris e desfrutei por algunsanostranquilamentedaescolaque, haviamuito tempo, me fora destinada e oferecida e da qual eu havia sidoexpulso.A,logonoinciodocurso,trateide terminar aqueles comentrios de Ezequiel que comeara 60 emLaon.E,naverdade,essasaulasforamtobem recebidas pelos estudantes, que j admitiam que eu no tinhamenosencantonacinciasagrada doqueaquele que eles j haviam apreciado na filosfica. E, por causa do interesse despertado pelos meus dois cursos, o nmero dealunosdaescolamultiplicou-sedemodo extraordinrio, e no te pde passar despercebido, devido fama, quanto lucro financeiro e quanta glria eles me proporcionaram.Mas,porquantoaprosperidadesemprefazincharos tolos,eorepousomundanodebilitaovigordaalmae facilmente o enfraquece por meio dos atrativos carnais, quandoeujmeconsideravacomoonicofilsofo eminente e no temia mais nenhuma outra inquietao, comeceiaafrouxarasrdeasspaixes,euqueantes viveranamaiorcontinncia.Equantomaiseume adiantava na filosofia e na cincia sagrada, mais eu me afastavadosfilsofosedossantospelavidaimpura. certo que os filsofos, e nem se fale dos santos, isto , dos queatendemsexortaesdaSagradaEscritura, destacaram-sedemodoextraordinriopelobrilhoda castidade.Quando,pois,euestavacompletamente atormentado pela soberba e pela luxria, a graa divina proporcionou-me, ainda que eu no o quisesse, o remdio para essas duas doenas, primeiro da luxria, e depois, dasoberba;daluxria,privando-medosmeioscomos quaisaelameentregava;masdasoberbaquese originava em mim principalmente da cincia das letras, conforme aquela palavra do Apstolo: "A cincia incha" humilhando-me,aoqueimaremaquelelivrodeque principalmenteeumegloriava.Queroqueconheas agoraahistriadessasduascurasdemodomais verdadeiropelanarraodosprpriosfatosdoque atravs dos boatos e na mesma ordem em que ocorreram. Uma vez que sempre detestei a sujeira das meretrizes, e comoadedicaoaoestudoeatividadeescolarme mantinha retrado do contato e do convvio com mulheres nobres,ecomoeunomerelacionavamuitocomas 61 mulheresdecondiocomum,amsorteacariciando-me, como se diz, descobriu uma ocasio mais conveniente paramederrubardopncarodaglria,oumelhor,a piedadedivinareivindicavaparasiumhomem humilhadoemvezdemuitosoberboeesquecidodas graas recebidas.ComooamorporHelosalevouAbelardoquedaque lhe feriu o corpo e a almaHavianacidadedePariscertamocinhachamada Helosa, sobrinha de um cnego chamado Fulberto, que quantomaisaamavatantomaiscuidadosamente procuravaqueelaseadiantasseemtodaacinciadas letras, tanto quanto possvel. Pelo rosto ela no fazia m figura,maseraaprimeirapelariquezadosseus conhecimentos.Defato,quantomaisestavantagemda cincialiterriararaentreasmulherestantomais serviaderecomendaomocinhaeatornara famosssima em todo o reino. Ponderadas ento todas as coisas que costumam cativar os amantes, pensei em uni-laamimpeloamormuitocmodoeacrediteipoder conseguir isso de modo muito fcil. Por certo que eu era, ento,pessoadegrandenomeemedestacavapelo encanto da juventude e da aparncia de tal modo que eu notemiaserrepelidoporqualquermulherqueeu dignassefavorecercommeuamor.Acrediteiqueessa mocinhacederiadiantedemimtantomaisfacilmente quanto eu sabia que ela possua e amava a cincia das letras.Emboransestivssemosseparados,erapossvel quenostomssemospresentesumaooutropor intermdiodecartas,assimcomoescrevercommais audcia aquelas coisas que geralmente no se dizem de viva voz e, desse modo, estaramos sempre em agradveis colquios.Ora, todo inflamado de amor por essa mocinha, procurei aocasiopelaqualelasemetornassefamiliarpelo convviodomsticoecotidianoeassimaarrastassea cedermaisfacilmente. Paraqueissoacontecesse, tratei com o mencionado tio da moa, por intermdio de alguns 62 dos seus amigos, para que ele me recebesse em sua casa, queficavaprximadaminhaescola,porumpreo qualquerqueeleestipulasse,alegandonaverdadeo pretexto de que o cuidado da minha casa prejudicava os meus estudos e que a excessiva despesa me onerava. Ele eramuitoavarentoemuitopreocupadocomqueasua sobrinhaprogredissesempremaisnosseusestudos literrios.Pormeiodessasduasfraquezasobtive facilmenteoseuconsentimentoeconseguioque desejava, uma vez que ele, de fato, era todo ambio de dinheiroeacreditavaqueasuasobrinhaaproveitaria algumacoisadomeuensino.Rogando-meporcausa disso com muita insistncia, acedeu aos meus votos muito alm do que eu ousaria esperar e concorreu para o amor, confiando-ainteiramenteminhaorientaoparaque todas as vezes que me sobrasse algum tempo, depois de voltardaescola,tantodediacomodenoite,eume consagrasse a ensin-la. Se eu percebesse, porm, que ela fosse negligente, ento que eu a castigasse severamente. Nessamatriafiqueiimensamenteadmiradocoma sua grande ingenuidade, o que no me espantou menos que seeleconfiasseumatenraovelhaaumlobofaminto. Quando ele a entregou a mim, no apenas para ensin-la mas,tambm,paracastig-laseveramente,queoutra coisa fazia do que dar passo livre absolutamente aos meus votos e oferecer ocasio, ainda que no quisssemos, para que eu dobrasse mais facilmente com ameaas e golpes aquelaqueeunopudessevencercomcarcias?Mas haviaduascoisasqueprincipalmentelhedesviavama ateno de qualquer suspeita vergonhosa, a saber, o amor da sobrinha e a fama passada da minha continncia.Que mais direi? Primeiro ns nos juntamos numa casa e depois no esprito. Assim, com a desculpa do ensino, ns nosentregvamosinteiramenteaoamor,eoestudoda lionosproporcionavaassecretasintimidadesqueo amordesejava.Enquantooslivrosficavamabertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito dalio, ehaviamaisbeijosdoquesentenas;minhas 63 mos transportavam-se mais vezes aos seios do que para oslivrosemaisfrequentementeoamorserefletianos olhos do que a lio os dirigia para o texto. E para que no despertssemos suspeitas, o amor de vez em quando vibravaalguns golpes,noaclera, noo dio, mas o encantamento; golpes que ultrapassavam a suavidade de todos os blsamos. Em suma, que direi? Nenhum grau do amor foi omitido por ns dois apaixonados, e tudo o que o amorpdeimaginardeinslitofoiacrescentadoe, quantomenostnhamosexperinciadessasalegrias, tanto mais ardentemente nelas nos demorvamos e tanto menos nos cansvamos disso.E quanto mais essa volpia me dominava, tanto menos eu podiaconsagrar-mefilosofiaeocupar-medaescola. Paramimeramuitoaborrecidoirescolaounela permanecer, como era, igualmente, muito difcil para eu ficaremp,enquantodedicavaasvigliasnoturnasao amoreashorasdiurnasaoestudo.Asaulas,ento, tinham em mim um expositor negligente e indiferente, de talmodoqueeujnadaproferiaservindo-medo engenho,masrepetiatudomecanicamente,ejno passava de um repetidor dos meus primeiros achados e, se fosse possvel ainda achar algo, seriam versos de amor e no os segredos da filosofia. A maior parte desses versos, como tu prprio o sabes, ainda so repetidos e cantados em vrias regies, principalmente por aqueles aos quais encantasemelhantevida.Nofcilimaginarquanta tristeza,quegemidoselamentosforamosdosmeus alunos, quando perceberam a preocupao, ou melhor, a perturbao do meu esprito por causa disso.Com efeito, fato to patente no poderia enganar seno a poucos ou a ningum, creio, a no ser quele para cuja vergonhaissoconcorriaprincipalmente,asaber,o prpriotiodamocinha.Devezemquando,sealguns boquejavamalgosobreisso,elenoopodiaacreditar, tanto, como lembrei acima, pelo excessivo afeto por sua sobrinha,como,tambm,pelaconhecidacastidadeda minha vida anterior. De fato, no suspeitamos facilmente 64 da desonra daqueles que muito amamos nem pode existir andoadeumavergonhosasuspeitanumaprofunda afeio.DaescreverSoJ ernimoemsuacartaa Sabiniano:"Nscostumamosserosltimosasaberdosmalesde nossacasa,eosvciosdenossosfilhoseesposas permanecemignorados,enquantoosvizinhosos proclamam."Masoquesevemasaberporltimo,emtodoocaso, sempre se acaba por saber, e no fcil esconder de uma pessoa aquilo que todos j conhecem. Depois de passados vrios meses, foi o que aconteceu conosco.Oh! Que dor imensa a do tio ao tomar conhecimento de tudoisso!Quantador,tambm,naseparaodos prpriosamantes!Comofiqueiconfundidoe envergonhado!Comomeconsumidearrependimento pelaafliodamocinha!Quegemidosdetristezaa sacudiramdiantedaminhavergonha!Nenhumdens dois se queixava do que acontecera a si mesmo e sim ao outro;nenhumdenschoravaosprpriosinfortnios, massimosdooutro.Entretanto,essaseparaodos corpos tornou-se o maior fator de unio das nossas almas e, por se lhe negar satisfao, mais ainda se inflamava o nossoamor,eaimpressodavergonhapassada despojou-nos mais ainda do pudor, e tanto menos ela se fazia sentir quanto mais a ao nos parecia ainda mais conveniente.Aconteceuconoscooqueaficopotica narra de Marte e de Vnus, ao serem surpreendidos. No muitotempodepois,amocinhaverificouqueestava grvida, e logo me escreveu a respeito disso com a maior alegria, querendo saber o que eu prprio resolvia sobre o que devia ser feito. Assim, certa noite, enquanto o seu tio estavaausente,conformecombinramos,euatireis escondidas da casa do tio e a conduzi sem demora para a minhaterranatal, ondeficouaviverjuntocomminha irmatquandodeuluzumfilhoquesechamou Astrolbio. 65 Otiodela,nessenterim,apsasuafuga,quaseficou louco, e ningum poderia avaliar, exceto se passasse pela mesmaexperincia,quantoelegemeudedorequanta vergonha sentiu. I gnorava, porm, o que faria comigo e que armadilhas me aprontaria. Se me matasse ou se me mutilasse,temiaespecialmentequeasuacarssima sobrinha viesse a sofrer as consequncias disso em minha terra natal. No podia de modo nenhum apoderar-se de mimeconservar-mepresoemalgumapartecontraa minhavontade,principalmenteporeumeacharmuito vigilante quanto a isso, de tal modo que, se ele o pudesse fazerouseoousasse,eunoteriadvidaematac-lo mais depressa.Enfim,bastantecompadecidodasuaexcessiva inquietao e do engano que o amor lhe infligira como a maiortraio,eacusando-meseveramenteamim prprio,fuiprocurarohomem,suplicando-lhee prometendo-lhe qualquer reparao por tudo isso e que eleprpriodecidiriaqualdeviaser.Eulheafirmei, igualmente, que tal fato no surpreenderia a quem quer que tivesse experimentado a fora do amor, e que ele se lembrassedequantasdesgraasjhaviamexistidonas quaisasmulheresatiraramosmaioreshomenslogo desde o incio da hu