Abehache4

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109 abehache - ano 3 - nº 4 - 1º semestre 2013 O funcionamento discursivo de textos literários como processo de interpelação de sujeitos aprendizes de espanhol Jorge Rodrigues de Souza Junior 1 Resumo: Discuto, à luz dos estudos discursivos sobre instrumentos linguísticos (AUROUX 1992 e DINIZ 2008), o funcionamento discursivo de duas práticas com textos literários recortadas de um livro didático de espanhol para brasileiros. Analiso os efeitos de sentidos de transparência e de evidência que nelas res- soam, ao apontar e legitimar sentidos únicos. O livro didático na aula de língua estrangeira não será tomado enquanto artefato, mas como objeto histórico que direciona dizeres e sentidos determinados sócio-historicamente, e silencia ou- tros. Há, também, a importância de se problematizar o papel que os instrumen- tos linguísticos desempenham em processos de ensino e de aprendizagem de uma língua estrangeira. Esses estabilizam, homogeneízam e silenciam dizeres e sentidos, em abordagens tão essenciais como a dos temas culturais, porta de entrada a um olhar específico e sensível ao outro estrangeiro, processo deter- minante na interpelação de sujeitos-aprendizes à memória de dizeres e senti- dos que constituem uma língua estrangeira. Palavras-chave: livro didático; Análise do Discurso; ensino de espanhol como língua estrangeira; texto literário Abstract: I discuss, through the discourse studies about linguistic instruments (AUROUX 1992 and DINIZ 2008), the discursive operation of two practices with literature texts, cut from a Spanish for Brazilians textbook. I analyze the transparency and evidence effects of sense that resonate on them, by pointing and legitimizing unique senses. The foreign language textbook will not be taken as an artifact, but as a historical object, that directs some sayings and meanings, socio-historically determined, and silences others. Also, there is the importance of discussing the role that the language instruments play in the teaching -learning process of a foreign language. These stabilize, homogenize and silence sayings and meanings, in approaches as essential as the cultural themes are, as entrance 1 Doutorando em Letras, área de Língua Espanhola, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Email: jor g er sjunior@y ahoo.c om.br / jor g er sjunior@us p.br

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Texto apresentado na Revista da abehache, nº 04

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    abehache - ano 3 - n 4 - 1 semestre 2013

    O funcionamento discursivo de textos

    literrios como processo de interpelao de

    sujeitos aprendizes de espanhol

    Jorge Rodrigues de Souza Junior1

    Resumo: Discuto, luz dos estudos discursivos sobre instrumentos lingusticos

    (AUROUX 1992 e DINIZ 2008), o funcionamento discursivo de duas prticas com

    textos literrios recortadas de um livro didtico de espanhol para brasileiros.

    Analiso os efeitos de sentidos de transparncia e de evidncia que nelas res-

    soam, ao apontar e legitimar sentidos nicos. O livro didtico na aula de lngua

    estrangeira no ser tomado enquanto artefato, mas como objeto histrico que

    direciona dizeres e sentidos determinados scio-historicamente, e silencia ou-

    tros. H, tambm, a importncia de se problematizar o papel que os instrumen-

    tos lingusticos desempenham em processos de ensino e de aprendizagem de

    uma lngua estrangeira. Esses estabilizam, homogenezam e silenciam dizeres e

    sentidos, em abordagens to essenciais como a dos temas culturais, porta de

    entrada a um olhar especfico e sensvel ao outro estrangeiro, processo deter-

    minante na interpelao de sujeitos-aprendizes memria de dizeres e senti-

    dos que constituem uma lngua estrangeira.

    Palavras-chave: livro didtico; Anlise do Discurso; ensino de espanhol como

    lngua estrangeira; texto literrio

    Abstract: I discuss, through the discourse studies about linguistic instruments

    (AUROUX 1992 and DINIZ 2008), the discursive operation of two practices with

    literature texts, cut from a Spanish for Brazilians textbook. I analyze the

    transparency and evidence effects of sense that resonate on them, by pointing

    and legitimizing unique senses. The foreign language textbook will not be taken

    as an artifact, but as a historical object, that directs some sayings and meanings,

    socio-historically determined, and silences others. Also, there is the importance

    of discussing the role that the language instruments play in the teaching -learning

    process of a foreign language. These stabilize, homogenize and silence sayings

    and meanings, in approaches as essential as the cultural themes are, as entrance

    1 Doutorando em Letras, rea de Lngua Espanhola, pela Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da USP. Email: [email protected] / [email protected]

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    to a specific and sensible look to the foreign other, which is a determinant process

    in the interpellation of the subject-learners with the saying and meaning

    memories that constitute a foreign language.

    Keywords: textbook; discourse analysis; teaching Spanish as a foreign language;

    literary text

    Introduo

    Apresento neste trabalho uma reflexo sobre produes de prticas que

    envolvem a literatura em um livro didtico (doravante LD) de espanhol para

    brasileiros, utilizados em contexto formal de aprendizagem. Esse olhar se centrou

    em duas atividades propostas para interpretao de textos literrios, especial-

    mente se estas mobilizavam e/ou interpelavam o sujeito em relao ao funcio-

    namento discursivo desses textos, analisando as condies em que se instaura

    o confronto da materialidade lingustica com o sujeito2.

    Trabalhar com o texto literrio a partir de uma perspectiva que o consi-

    dere discurso, produzido scio-historicamente, refora a importncia de que,

    em processos de interpretao de textos em sala de aula, haja prticas de ensi-

    no que abordem no somente a ordem do interdiscurso (a memria discursiva

    de um dizer), mas tambm o intradiscurso (o fio do discurso, sua materialidade

    lingustica), e o quanto so interdependentes essas instncias3.

    2 Em SOUZA JUNIOR (2010) parti de uma perspectiva discursiva da linguagem ao analisar

    materiais didticos que, naquele momento, eram distribudos pelo Ministrio da Educa-

    o e Cultura aos professores de espanhol da rede pblica. Esses materiais, pensados sob

    o enfoque comunicativo, apresentavam os temas a ser estudados baseando-se em situa-

    es comunicativas descontextualizadas. Ao analisar como era realizado o trabalho com

    textos literrios nesses LDs e ao propor o uso de antologias de dramaturgia argentina em

    prticas de ensino dessa lngua, de acordo com alguns temas abordados pelas unidades

    dos LDs analisados, conclu, a partir desse trabalho com as peas de teatro, considerados

    na pesquisa como textos literrios, que as textualidades pertencentes esfera literria

    permitem no s um trabalho de interpretao que pe em jogo sentidos e dizeres que

    remetem a uma memria da lngua estrangeira, como tambm permitem pr em anlise

    sua materialidade lingustica, alm de sua ordem sinttica, fontica e morfolgica.

    3 O nvel intradiscursivo o da linearidade do dizer, representada pela materialidade

    lingustica do discurso. Para o analista do discurso, o que, em dado momento, formula-

    do efetivamente por um enunciador. Estuda-se, na cadeia discursiva, a construo de re-

    presentaes de semelhanas e diferenas. Tendo como referncia a teoria lacaniana da

    subjetividade, pode-se dizer que essas representaes [de semelhanas e diferenas]

    correspondem predominantemente ao registro imaginrio do eu (enquanto ego) do dizer

    (SERRANI 1998: 234).

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    Postular o uso de textos literrios em aulas de lngua estrangeira traz

    questes a ser analisadas: na ocorrncia dos textos literrios nos LDs h um

    funcionamento outro do que aquele em que tal texto foi produzido, pois as

    condies de produo dos textos literrios so diferentes de suas textualizaes

    nos LDs. Conforme essa questo, a problematizao da funo-autor e de seu

    efeito-leitor (ORLANDI, 1987) nos indica esse jogo contraditrio que demanda

    vrias possibilidades de interpretao ao sujeito-aprendiz, mobilizando senti-

    dos, leituras e interpretaes em relao a lngua estrangeira. Ou, o processo

    contrrio, por atividades que impem ao sujeito-aprendiz uma determinada

    interpretao, nica e fechada, que silencia e recorta sentidos.

    A especificidade do texto literrio na aula de lngua uma materialidade

    significativa para discusso de temas culturais. Estabelec-lo em prticas de

    ensino de lngua estrangeira, nas quais o sujeito-aprendiz possa reconhecer o

    outro da lngua estrangeira, na comparao consigo mesmo, dar-lhe condi-

    es de submeter-se aos efeitos de sentidos que permeiam uma prtica

    discursiva em lngua estrangeira constituda scio-historicamente em uma de-

    terminada territorialidade, envolvendo sujeitos submetidos a uma diversidade

    de hbitos, afazeres, prticas e realidades pouco abordadas em LDs.

    Antes de considerar o trabalho realizado com os textos literrios, im-

    portante considerar o seu funcionamento discursivo. Postulo os gneros liter-

    rios como lugar de anlise e discusso do que cultura, estabelecendo-os como

    materialidade discursiva problematizao enquanto processo, ao estabelec-

    los como processos enunciativos e discursivos configurados e constitudos his-

    toricamente, pela relao dinmica estabelecida entre a forma dos textos e os

    processos histricos e as prticas sociais que participam de suas condies de

    produo.

    A problematizao da cultura e de sua abordagem, enquanto lugar de

    discusso de representaes e de identidades em processos de ensino/apren-

    dizagem de lngua estrangeira, tem chamado a ateno de linguistas e linguistas

    aplicados brasileiros h algum tempo. Trabalhos foram desenvolvidos nessa di-

    reo, como os de PERUCHI (2004), RUFINO (2003), MOITA LOPES (1996) e

    CORACINI (2003), sobre o ensino de lnguas estrangeiras como o ingls e o fran-

    cs e, especificamente de espanhol, em uma perspectiva discursiva, como os

    de CELADA (2002), SANTOS (2005) e NARDI (2007).

    O nvel interdiscursivo remete dimenso vertical, no linear, do dizer, rede complexa

    de formaes discursivas em que todo dizer (...) est inserido, em que o j-dito, o pr-

    construdo, histrico-social que fornece-impe a realidade e seu sentido o que

    fornece a matria-prima na qual o sujeito se constitui em relao a suas formaes

    discursivas preponderantes. Nesta perspectiva o locutor no a origem de seu discurso

    (SERRANI1998: 235).

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    Estudos recentes sobre o estatuto do ensino de lngua espanhola no Bra-

    sil o remetem a um paradigma que requer prticas distintas das que ocorrem

    com o ensino de outras lnguas estrangeiras; pesquisas e documentos oficiais

    sobre o estatuto do espanhol como lngua estrangeira no Brasil apontam essa

    especificidade, devido imagem de facilidade que essa lngua possui entre os

    brasileiros (BRASIL 2006 e 2010; CELADA 2002; SANTOS 2005 e SERRANI 2009);

    conforme o sujeito-aprendiz (e tambm o professor) lida com esse imaginrio,

    ao entrar em contato com o real dessa lngua estrangeira, tal fator poder cau-

    sar efeitos de sentido nesse sujeito-aprendiz que levaro seu processo de apren-

    dizagem do espanhol ao xito ou ao fracasso4.

    O carter de que goza o ensino de espanhol no Brasil requer prticas de

    ensino que abram sentidos para o sujeito-aprendiz, em contraposio s prti-

    cas formalistas e s abordagens comunicativas. H a necessidade de uma polti-

    ca da cultura relativa ao ensino de lngua, em que

    [a] cultura no [seja] unicamente aquilo de que vivemos. Ela tambm , em

    grande medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memria,

    parentesco, lugar, comunidade, satisfao emocional, prazer intelectual, um

    sentido de significado ltimo: tudo isso est mais prximo, para a maioria de

    ns, do que cartas de direitos humanos ou tratados de comrcio (EAGLETON

    2005: 184.).

    Em prticas de ensino de lngua espanhola sob a abordagem comunicati-

    va, a noo de cultura mobilizada apenas enquanto tema comunicativo (SOU-

    ZA JUNIOR 2010), trabalhado como lugar outro da lngua (sem referncia

    materialidade lingustica) cujo funcionamento discursivo est permeado de re-

    presentaes de sociedade, de sujeitos e de hbitos, apresentadas e

    reproduzidas sem submeter-se a uma reflexo terica e, portanto, sujeitas a

    uma filosofia espontnea. Esse funcionamento instaura uma naturalizao de

    tais representaes dadas como verdadeiras, que entram no processo de

    estereotipizao do outro alm de instalar uma dicotomia entre lngua e lite-

    ratura.

    Tal estrutura, presente em muitos materiais didticos, instaura um fun-

    cionamento que apaga a interculturalidade ou o jogo intercultural que poderia

    4 Colocamos aspas nesses termos por considerarmos, a partir da perspectiva da Anlise do

    Discurso, que interditado ao sujeito o pleno domnio da linguagem, um lugar de intencio-

    nalidade, impossibilitando a ele o papel de dono de seu discurso. Por essa perspectiva

    tambm justifico o fato de utilizar sujeito-aprendiz em vez de aluno, conforme ocorrn-

    cia nesse pargrafo.

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    surgir da relao de distintos materiais de diferentes discursividades e naciona-

    lidades. Outra consequncia dessa colagem no dar condies para uma

    discusso sobre o funcionamento da materialidade lingustica de distintos g-

    neros discursivos em uma mesma unidade, pois o algo em comum entre eles

    somente o tema comunicativo.

    A contextualizao desses gneros d-se atravs de quadros lexicais (

    guisa de vocabulrio), de pequena biografia do autor de um texto ou de legen-

    das abaixo das fotos. Tal textualizao realiza um apagamento das condies de

    produo desses discursos, ademais de apagar a heterogeneidade de hbitos e

    consumos de uma sociedade e dos sujeitos que a constituem, projetando-se

    um modelo de vida que restrito e que nem sempre condiz com a variedade de

    sujeitos e de estilos presentes em uma sociedade, mas cujo efeito de sentido

    nas prticas que foram analisadas realizavam uma naturalizao de tais temas

    como comuns.

    Pensar no lugar da cultura numa dimenso discursiva, ao problematizar

    a sua noo e o papel que esta desempenha nas aulas de espanhol para brasi-

    leiros, traz questes que, conforme FERREIRA (2011), ressaltam a cultura como

    um lugar de produo de sentidos, que muitas vezes so naturalizados e pas-

    sam a reforar o efeito de apagamento da historicidade de certos fatos sociais

    (p. 59). Nessa linha de reflexo, a autora prope pensar, em analogia ordem

    do discurso e ordem da histria, a ordem da cultura5, uma ancoragem que a

    estabelece como forma de resistncia s normas e preceitos reguladores de

    uma dada configurao histrica-social (p. 60).

    Nessa linha de reflexo, considerar a literatura como acesso a temas cul-

    turais estabelece a importncia de sua abordagem enquanto material discursivo

    produzido histrica e socialmente. Diante disso, apresento neste artigo uma

    reflexo sobre prticas que envolvem textos literrios em um LD de espanhol,

    com base na Anlise do Discurso, tecendo reflexes sobre a sua textualizao e

    as possibilidades de interpretao instauradas a partir da materialidade desses

    textos ou, melhor dizendo, do recorte realizado pelo LD dessas textualidades.

    Ademais dessas questes colocadas, h outras especficas, no que se re-

    fere sua textualidade. Para tal mobilizarei o conceito de funo-autor, tomada

    de ORLANDI (2005). Esse dispositivo, em funcionamento na textualizao dos

    textos literrios nos LDs, permite configurar qual perfil de leitores os autores

    desses instrumentos lingusticos levam em considerao ao realizar o trabalho

    5 ORLANDI (1996) considera que tanto o discurso quanto a lngua possuem sua ordem pr-

    pria e esta ordem se manifesta e se mostra na organizao. H uma tenso entre a ordem

    e a organizao da lngua (e, paralelamente, ordem e organizao da histria e da cultu-

    ra), sendo a organizao a esfera imaginria dos sentidos.

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    com a literatura nas prticas elaboradas; como ORLANDI (2005), pensando no

    confronto em uma forma-leitor projetada no LD e a constituio desse sujeito-

    aprendiz em leitor, em como se d o trabalho com essa contradio, investigan-

    do a produo do efeito-leitor a partir da materialidade mesma do texto em

    sua relao com a discursividade e os diferentes gestos de interpretao que a

    se do.

    Desenvolvendo a questo

    Parto de reflexes de PCHEUX (1997) e ORLANDI (1988 & 2008) sobre a

    relao texto/discurso para tecer um olhar sobre o funcionamento do texto li-

    terrio nas prticas de ensino de Lngua Espanhola para brasileiros. O texto,

    como materialidade lingustica, formulado intradiscursivamente, tambm dis-

    curso, dotado de uma memria discursiva (o interdiscurso) que o sustenta e d

    condies a determinados sentidos e no outros dando condies a certos

    discursos que so atualizados na sua formulao. Sua manifestao a possibi-

    lidade de um sentido, em detrimento de outros. A ocorrncia de um texto lite-

    rrio em um LD se d em condies de produo especficas e distintas de ou-

    tras formas de ocorrncia desse texto e em cada uma delas se formularia sob

    sentidos diferentes. Os sentidos tm sua histria e suas redes de significao,

    s quais o sujeito se filia. Conforme ORLANDI (1988,: 42):

    Ao afirmarmos que os sentidos tm sua histria, estamos enfatizando que a

    variao tem relao com os funcionamentos distintos, ou seja, com os con-

    textos de sua utilizao. E ao afirmarmos que um texto tem relao com ou-

    tros, estamos apontando para o fato de o conjunto de relaes entre os tex-

    tos mostrarem como o texto deve ser lido.

    Isso posto, importante considerar que um funcionamento recorrente

    nos materiais didticos o de apresentar um texto literrio a partir do nome de

    autor. Tal categorizao contribui no somente para o sentido de evidncia que

    o caracteriza como um texto nico, mas tambm o remete a uma memria

    discursiva que o relaciona com os demais textos que compem a obra do autor

    e tambm a uma memria discursiva relacionada a este nome de autor.

    FOUCAULT (1992) trabalha com essa questo, particularmente a relao

    do texto com o autor. As relaes de sentido que se estabelecem entre um tex-

    to e seu autor produzem efeitos que classificam e agrupam o texto ao que po-

    demos identificar como uma memria, sendo tal associao um elemento

    determinante na interpretao desse texto, o que lhe confere uma legitimidade

    e configura sua circulao.

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    O nome do autor no , pois, exatamente um nome prprio como os outros.

    [...] Um nome de autor no simplesmente um elemento em um discurso

    (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substitudo por um pro-

    nome etc.); ele exerce um certo papel em relao ao discurso: assegura uma

    funo classificatria; tal nome permite reagrupar um certo nmero de tex-

    tos, delimit-los, deles excluir alguns, op-los a outros (FOUCAULT 1992:12-

    13).

    O nome de autor determinante nas condies de produo de um tex-

    to, ao classific-lo e remet-lo a uma memria construda scio-historicamente

    (conforme o conjunto de textos desse autor) e tambm aos discursos formula-

    dos sobre sua obra na histria, delimitando o texto e opondo-o a outros do

    mesmo autor. Conjuntamente a esse funcionamento discursivo, h que se des-

    tacar o que ORLANDI denomina funo-autor (1987), esta diretamente relacio-

    nada textualizao, aos efeitos que delimitam uma leitura e uma interpreta-

    o conforme a materialidade do texto tal funo deixa marcas que determi-

    nam sua interpretao, constituindo um efeito-leitor, que confere unidade ao

    texto e o individualiza.

    A funo-autor, conforme a autora, constitui-se em um efeito que fun-

    ciona como uma funo organizadora, ao constituir unidade ao texto e confe-

    rir-lhe completude e individualizao. pela funo-autor que enunciados dis-

    persos se renem em um texto por uma iluso de unidade, delimitando-o no

    espao e no tempo como um discurso nico, remetido imaginariamente a um

    sujeito que se configura como o seu autor. A fora dessa funo organizativa se

    faz pela configurao do autor como fonte do dizer, e desse lugar de autor so

    realizadas cobranas em relao clareza, coeso e coerncia do texto.

    Historicamente, conforme o gnero em que o texto produzido, h de-

    terminaes estabilizadas sua realizao, as quais o sujeito, para ocupar um

    lugar de autoria, obrigado a seguir. As condies de produo desse texto, j

    determinadas por uma memria que configura a constituio, a formulao e a

    circulao do gnero, direcionam a funo-autor do sujeito que se coloca em

    posio de autoria.

    Correlacionado funo-autor h tambm o seu efeito-leitor, construdo

    na materialidade do texto, determinado pelas suas condies de produo e

    que configuram sua leitura e interpretao. Antecipaes imaginrias projetadas

    pela funo-autor no texto determinam e autorizam a leitura e sua interpreta-

    o, legitimando determinados leitores (ou leituras) e silenciando outras. A

    funo-autor configura o modo de ler e de interpretar, configurando o seu

    efeito-leitor. Deste modo a leitura faz-se como uma prtica discursiva, enquanto

    processo cujo funcionamento determinado pelas condies de produo do

    texto.

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    No mbito escolar a regulao e a produo de sentidos institucionali-

    zada de tal forma que essas esto centralizadas no sujeito-professor, e a leitura

    de textos, como prtica, se d conforme condies nas quais as interpretaes

    do sujeito-aprendiz passam pela regulao da instituio escola, do sujeito-pro-

    fessor, e da textualizao realizada pelo LD dos textos a interpretar. Apesar de

    que este trabalho no comporta analisar as prticas realizadas pelos professo-

    res com o texto literrio em sala de aula, recorro a Pfeiffer que, ao realizar esse

    trabalho, analisa o sujeito-aprendiz enquanto leitor no contexto escolar, na

    aprendizagem da lngua materna:

    (...) no dado ao aluno espao para que ele reflita sobre a leitura, todas as

    respostas so dadas antes que os alunos respondam. Estas respostas vm via

    fala do professor, baseada no LD que assume as vestes do discurso cientfico

    da verdade unvoca; e via LD (com os grifos das respostas que o prprio texto

    traz). E nos parcos momentos em que os alunos se posicionam sob a forma de

    comentrio, eles so ignorados pelo professor (PFEIFFER 1998: 95).

    Analisar esse funcionamento, em aulas de lngua espanhola como lngua

    estrangeira, justifica-se pelo fato de estas possurem, como um dos seus princi-

    pais apoios pedaggicos, o LD. Baseado em ORLANDI (1988) quando diz que a

    leitura ideal do professor est amarrada quilo que fornecido pelo livro did-

    tico, a preocupao com as prticas de interpretao com o texto central, e a

    prtica do professor e os sentidos mobilizados por ele merecem especial aten-

    o. Em prticas de ensino de uma lngua estrangeira, o sujeito, ao submeter-se

    sua aprendizagem, possui o referencial de sua lngua materna; tal tarefa s se

    realiza quando j se teve acesso linguagem, atravs de uma outra lngua ().

    Neste sentido o sujeito-aprendiz, ao primeiro contato com a lngua estrangeira

    a percebe, (...) ao mesmo tempo, prxima e radicalmente heterognea (REVUZ

    1998: 215), em comparao com a materna, pois, ao entrar em contato com a

    lngua estrangeira nota o quo forte o funcionamento do simblico dessa ln-

    gua (diferente do de sua lngua materna) e esse contato tambm mobiliza os

    laos que o identificam sua lngua. Para instaurar o espao da diferena entre

    as duas lnguas, extremamente importante recorrer a discursos produzidos

    na lngua estrangeira, como os textos literrios que, como qualquer texto tam-

    bm injunge interpretao, mas tambm, como gnero discursivo que , pos-

    sui um trabalho especial com a linguagem, cujo trabalho esttico e artstico

    mobilizam sentidos e dizeres sensveis interpretao de um sujeito na lngua.

    Por abordar a leitura de textos como prtica no mbito escolar, analisar

    o funcionamento discursivo dos textos literrios em LD tambm refletir sobre

    a inscrio do sujeito nas redes de significantes desses textos e em que condi-

    es isso se d.

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    abehache - ano 3 - n 4 - 1 semestre 2013

    No se pode falar do lugar do outro; no entanto, pelo mecanismo da anteci-

    pao, o sujeito-autor projeta-se imaginariamente no lugar em que o outro o

    espera com a sua escuta e, assim, guiado por esse imaginrio, constitui, na

    textualidade, um leitor virtual que lhe corresponde, como com seu duplo. Esse

    um jogo dos gestos de interpretao que se d na ou a partir da materialidade

    mesma do texto e ao qual o analista deve ser sensvel quando pensa o imagi-

    nrio que constitui o sujeito leitor virtual e o sujeito leitor efetivo com suas

    determinaes concretas.

    Como na produo do discurso h a inscrio do outro, a autora prope

    que no campo da leitura a funo-autor tem o seu duplo no efeito-leitor

    (ORLANDI 2008: 61).

    Prticas com texto literrio em LD interpretao e leitura

    Descritas as leituras das quais partimos para a apresentao deste traba-

    lho propomos uma anlise sobre o funcionamento desses textos literrios no

    LD6 que analisamos. Como a anlise sempre um movimento de descrio e

    interpretao, esta no fecha outras interpretaes possveis sobre os funcio-

    namentos dos discursos analisados. Partindo dessa premissa, a seguir fazemos

    uma reflexo sobre prticas de interpretao de dois textos literrios, de gne-

    ro potico, ambos do mesmo autor, Pablo Neruda.

    O primeiro texto em questo a textualizao no LD de um fragmento (a

    estrofe n 12) do poema de Pablo Neruda Alturas de Macchu Picchu, com espa-

    os vazios correspondentes s formas de conjugao verbal em imperativo que

    ocorrem no poema para que o aluno as complete, seguindo as indicaes

    propostas no LD do verbo e pessoa correspondente entre parntesis; no h

    exerccio de interpretao proposto como atividade complementar.

    O poema inteiro composto de doze estrofes, em que o eu lrico parte

    em direo a Macchu Picchu, relatando os sentimentos que sente ao realizar

    essa empreitada e o peso histrico de sua tragdia, a injustia da exterminao

    do lugar e a de seus habitantes. Rememora os sujeitos que ali viveram e sua

    cultura, o subjugo espanhol e a relao opressor x oprimido configurada na re-

    lao colonizador x colonizado que marcou fortemente os processos de con-

    quista e colonizao empreendidos pelos espanhis nas reas ocupadas por

    6 As duas prticas analisadas foram tomadas de BRUNO, F. C. B. & MENDOZA, M. A. H. Hacia

    el espaol. Vol. 2. 2 ed., SP: Saraiva, 2002.

  • 118

    amerndios na Amrica Latina durante sculos. Termina o poema com a estrofe

    XII dirigindo-se aos diferentes sujeitos que ali viveram e os convoca para que

    faam dele o seu porta-voz, para que ele compreenda a fora desse aconteci-

    mento e que a memria dessa exterminao no se apague.

    As condies de produo da leitura desse fragmento so reguladas pelo

    recorte realizado pelas autoras do LD. Como no h meno s demais estrofes

    que compem o poema, a extenso do texto e sua linearidade materializadas

    no corpo do livro apagam os sentidos que permeiam os demais fragmentos e

    dessa forma determinam outros sentidos, pois as condies de produo do

    texto literrio no LD so distintas daquelas em que o poema foi realizado.

    Tal gesto determina uma unidade aparente: o fragmento funcionando

    como um todo, evidncia de unidade que apaga os vestgios de sua produo:

    sua relao com os demais fragmentos do texto. A funo-autor textualizada

    nessa atividade realizada sob outro lugar, configurando-se diferentemente da

    funo-autor realizada pelo trabalho de produo do poema pelo poeta, o que

    configura o fragmento como outro texto.

    H que se considerar que, ao classificar o recorte como de autoria de

    Pablo Neruda, o nome de autor ao qual Foucault faz referncia classifica e re-

    mete o texto a uma memria (ao evocar que um texto de autoria de Neruda,

    ocorre uma classificao que o remete ao conjunto de textos escritos por esse

    autor, memria deles, aos discursos formulados sobre sua obra na histria),

    delimitando-o e opondo-o a outros, de sua autoria e de outros autores. Ao

    mesmo tempo h a funo-autor textualizada na materialidade do texto, confe-

    rindo-lhe unidade e individualizando-o, produzindo efeitos que delimitam e

    determinam a leitura e a interpretao, que configuram um determinado efei-

    to-leitor (como pode e deve ser lido tal texto).

    Ademais desse trabalho de recorte, a prtica proposta para esse texto

    produz outros sentidos que determinam o estatuto de sua materializao. O

    fragmento citado textualizado com espaos em branco em quase todos os

    versos, mas no permitido preench-los de qualquer modo tais espaos

    devem ser preenchidos com a conjugao do imperativo dos verbos que es-

    to entre parntesis. Evidncia de unidade e tambm de uma leitura e inter-

    pretao nicas, o sentido limitado pelas palavras e sua literalidade, o dizer

    como uma extenso com limites, pausas, beiradas (bordas) possveis (ORLANDI

    2008: 93).

    O segundo poema a ser analisado, tambm de Neruda, Autorretrato,

    diferentemente do anterior textualizado de forma completa. Nesse poema pri-

    meiramente o eu lrico se descreve fisicamente ao qualificar partes de seu cor-

    po numa descrio que, gradualmente, sem interrupo, passa a descrever ou-

    tros elementos, como atitudes, aes, gostos e pessoas, sempre pontuadas por

    adjetivos que os qualificam.

  • 119

    abehache - ano 3 - n 4 - 1 semestre 2013

    H elementos que no so evidentes, em uma primeira leitura, a um es-

    tudante brasileiro de espanhol, construdos semanticamente em relaes de

    significao complexas: de nvel lexical, por exemplo: yerbatero (curandeiro que

    se utiliza de ervas para tratar doenas) que, como parte do sintagma yerbatero

    de la tinta, remete o eu lrico a um poeta que cura males; nubarrones (nuvens

    grandes e negras) que, no sentido com que aparece no poema, como parte do

    sintagma afortunado de nubarrones, remete a um sujeito que no tem sorte,

    ou que acumula desgraas; ou metafrico, por exemplo, como melanclico en

    las cordilleras, sintagma que remete a uma metfora significativa, pois a me-

    lancolia, sentimento que remete falta de entusiasmo, falta de ao e inicia-

    tiva, acomete um sujeito que se encontra nas cordilheiras, sintagma que ocupa

    e representa metonimicamente as Cordilheiras dos Andes, um lugar grandioso

    e de difcil acesso, em contradio a um sujeito que se encontre melanclico.

    O poema se constri por uma srie de enumeraes separadas apenas

    por vrgula, o que as coloca em um mesmo nvel, sem que estejam configuradas

    em uma hierarquia ou em um grau que as diferencie conforme sua importn-

    cia, o que contradiz uma imagem comum de autorretrato, em que se destacam

    aspectos mais importantes relacionados somente s caractersticas fsicas e

    psicolgicas do sujeito.

    Entretanto tais sentidos, e outros possveis, pois esses que foram apon-

    tados so advindos de uma interpretao, dentre outras possveis, no so con-

    siderados na proposio de atividade que acompanha o poema em sua

    textualizao no LD. Pede-se, do sujeito-aprendiz, a realizao de seu prprio

    autorretrato, sem a contextualizao das caractersticas desse gnero, ou me-

    lhor, sem a problematizao da contradio que o estilo do poema de Neruda

    instaura ao no seguir o que comumente associado a um autorretrato. Os

    sentidos menos evidentes que ressoam na textualidade do poema, como os

    apontados acima, no so colocados interpretao, assim como alguns lxi-

    cos so apenas explicados como vocabulrio.

    Nesta linha de reflexo, entendo que as prticas propostas pelo LD em

    ambos os textos so determinantes para como esse texto ser lido e o que

    permitido ao sujeito-aprendiz enquanto leitor interpretar. No que se refere ao

    primeiro poema, assim como todo discurso injungido interpretao, o fun-

    cionamento do efeito-leitor de Alturas de Macchu Picchu, enquanto gnero li-

    terrio e circulante em esferas que o configuram como poema, ocorre median-

    te a funo-autor textualizada neste em bases menos determinadas de inter-

    pretao, conforme o funcionamento discursivo desse gnero literrio; entre-

    tanto, a interpretao do fragmento no LD pelo sujeito-aprendiz-leitor se d

    sob outro estatuto. Conforme o recorte realizado pelo LD: que sentidos esto

    permitidos para ser interpretados pelos sujeitos, ao mesmo tempo aprendizes

    e leitores? Que efeito-leitor est constitudo?

  • 120

    Se o sujeito-aprendiz convocado somente a conjugar verbos em impe-

    rativo, para completar os espaos vazios do fragmento do poema textualizado,

    no lhe dado um lugar de interpretao. Ou melhor, no lhe permitido inter-

    pretar conforme seu percurso enquanto leitor, ou outras interpretaes poss-

    veis para aquele texto seno aquela j determinada por sua textualizao, cujo

    funcionamento discursivo de um arquivo, um sentido que j est ali recorre-

    mos a uma das noes de arquivo de Pechux, uma leitura impondo ao sujei-

    to-leitor seu apagamento atrs da instituio que o emprega (PECHUX: 1997:

    57), a instituio escolar, nesse caso.

    Em relao ao segundo poema, a interpretao se instaura no sobre os

    sentidos, mas sobre a forma: a partir de sua leitura, apenas solicitada uma

    atividade de reproduo que, possivelmente, se far sob uma retextualizao

    do poema que o sujeito-aprendiz realizar a partir de como ele se v. Aqui cabe

    considerar que depender do sujeito-professor a instaurao de um espao de

    interpretao, permitindo outras leituras possveis para que, posteriormente,

    os sujeitos-aprendizes se sintam autorizados a ocupar um lugar de autoria a

    partir da leitura do poema sugerido.

    Se a interpretao se d sob essas condies, apaga-se a historicidade

    dos sentidos que permeiam tais textos: a memria interdiscursiva de seus enun-

    ciados (os versos), que sustentam o funcionamento discursivo, interditada

    sob prticas que no postulam espaos de significao ao sujeito-aprendiz.

    Sentidos so silenciados e outros so evidentes: decodificao, uso do cdigo

    lingustico, produo oral e escrita a partir de retextualizaes dos textos lite-

    rrios.

    Em ambos os textos, uma abordagem que neutraliza as suas condies

    de produo, ao direcionar os gestos de leitura por processos reguladores de-

    terminados pela textualizao do texto literrio no LD, poder no somente

    apagar uma memria histrica que constitutiva de todo processo enunciativo,

    mas, tambm, legitimar e alar como nica interpretao possvel uma mem-

    ria oficial, no sentido do que define MARIANI , na direo de neutralizar o

    heterogneo (...), naturalizando as relaes scio-histricas e tornando literais

    os sentidos (seu funcionamento ideolgico) com a manuteno de um universo

    lgico de enunciados (coesos e coerentes) (1998: 39).

    A escola, enquanto espao institucional, possui mecanismos de apaga-

    mento ou silenciamento de determinados discursos. E, ao no problematiz-

    los, o LD configura-se como um instrumento lingustico (cf. AUROUX 1992 e

    DINIZ 2008), utilizado em um espao institucional como a escola, ambos re-

    guladores de sentidos, que promovem a diviso social da leitura ao abordar

    o texto literrio enquanto arquivo (cf. GADET & PCHEUX 2004), ao deter-

    minar os gestos de interpretao do que pode e deve ser lido, e de quem

    pode faz-lo.

  • 121

    abehache - ano 3 - n 4 - 1 semestre 2013

    Este funcionamento interdita os diferentes gestos de interpretao que

    poderiam realizar-se em prticas cuja leitura se realiza na organizao (que

    imaginria) dos sentidos, com foco na organizao lexical e sinttica da lngua,

    em que efeitos de transparncia, de literalidade e de evidncia realizam o apa-

    gamento da inscrio da lngua na histria, da ordem do discurso (cf. ORLANDI

    2007).

    Consideraes finais

    extremamente importante que prticas de leitura que visam apenas

    decodificao de um texto ou produes escritas realizadas a partir de exem-

    plos tomados de textos jornalsticos e literrios (s vezes textualizados apenas

    para esse fim) no partam de um olhar que seja estereotipado ou tomado do

    senso comum em relao aos temas abordados pelos LDs. Deve-se instaurar

    outro lugar de discusso, em que esteja presente a polmica, a tenso e o con-

    flito, elementos presentes em nossa cotidianidade, o que representa um ganho

    em comparao s abordagens de temas comuns e estereotipados, pois confor-

    me MARTINEZ:

    [n]a maioria dos manuais e dos mtodos, observamos um esmagamento dos

    fatos culturais e a perptua ressurgncia dos mesmos esteretipos: a famlia

    monocelular, com dois filhos, atividades profissionais uniformes, quase nun-

    ca desemprego, doena, delinquncia... Quando que os mtodos de lngua

    estrangeira integraro a presena da morte, de suas causas, dos ritos para os

    quais ela abre espao? (2009: 92).

    A lngua, dentro do marco terico adotado, no possvel de ser separa-

    da em nveis ou estratos; assim como a literatura, prtica de linguagem cujo

    trabalho esttico e artstico mobilizam sentidos e dizeres sensveis interpre-

    tao de um sujeito na lngua. As prticas didticas que se apresentam em LDs

    elaborados no apenas no Brasil, mas tambm na Espanha, pas que domina

    comercialmente a produo de materiais didticos de espanhol como lngua

    estrangeira, realizam, quando se trata de abordar temas referentes socieda-

    de, a neutralizao e a homogeneizao de conflitos, de identidades e de sujei-

    tos sociais, que produzem uma construo equivocada e estereotipada do ou-

    tro da lngua estrangeira, e problematiz-las uma forma de discutir um ou-

    tro ensino possvel de lnguas estrangeiras.

    Considero que em prticas de aquisio e de aprendizagem de lnguas

    no haja uma dicotomia entre lngua e literatura, pois por meio dessa ltima

    podemos apresentar prticas em que no ocorram enfoques instrumentalistas

  • 122

    de lngua ou a apresentao de situaes comunicativas em que prticas didti-

    cas sirvam somente de pretexto para estudos morfossintticos ou normativos. A

    lngua palco de relaes de confronto e de resistncia, que possibilitam diver-

    sos modos de significao, legitimando certos sentidos e silenciando outros.

    Portanto, considerando as prticas com textos literrios aqui analisadas,

    essas realizam um fechamento de sentidos, legitimando somente aqueles que

    esto materializados nas atividades didticas propostas, cujo efeito de sentido

    que no se realize, para o sujeito-aprendiz, o acesso aos processos discursivos

    presentes na materialidade lingustica da lngua estrangeira estudada.

    Seguindo essa reflexo, a histria do sujeito com a sua lngua materna

    que nortear a sua maneira de abordar a lngua estrangeira (REVUZ 1998: 217).

    No processo de aquisio de uma lngua estrangeira o sujeito recorrer s posi-

    es que ocupa em relao a sua lngua materna, mas, ao primeiro contato, o

    aprendiz questionar sua relao com a sua lngua, e rever sua posio em

    relao a ela advindo da o estranhamento de si face ao outro,

    irreversivelmente afetado pela alteridade ou diferena de sua cultura perante a

    outra (GRIGOLETTO 2001: 138).

    A partir desse estranhamento, entendo que, para um sujeito, aprender

    uma lngua sempre, um pouco, tornar-se um outro (REVUZ 1998: p.227). Isto

    provocar a abertura de novos espaos de sentido, a outras significaes; pro-

    vocar um abalo em sua constituio como sujeito e, consequentemente, em

    sua rede de imaginrios.

    Para o professor, levar em considerao a identificao simblica do

    aprendiz a esse novo dizer, s memrias discursivas que permeiam os discursos

    da lngua estrangeira, permitir pr em movimento as redes de sentido s quais

    esto filiados os discursos do sujeito-aprendiz.

    KULIKOWSKI e MAIA GONZLEZ (1999) pontuam que o papel do profes-

    sor fundamental na questo das semelhanas entre o portugus e o espa-

    nhol, no processo de aprendizagem dessa lngua para o brasileiro, pois tal ques-

    to pode determinar dois problemas: um bloqueio absoluto ou a adoo de

    uma hiptese sobre a lngua, pois os professores no devem reproduzir ou re-

    forar o imaginrio de facilidade e/ou semelhana que o estatuto do ensino do

    espanhol possui no Brasil, mas tambm no devem desfazer as proximidades

    entre as duas lnguas.

    So relevantes, em prticas de aquisio e de aprendizagem de lnguas

    estrangeiras, os efeitos a que um sujeito est submetido, as mobilizaes que

    suas redes de sentidos sofrero nas redes de sentidos da lngua estrangeira e a

    inscrio desse sujeito em suas discursividades. Dar especial ateno ao papel

    da subjetividade no processo de aprendizagem de uma lngua estrangeira rom-

    per os paradigmas do ensino metalingustico e normativo (nos curso da escola

  • 123

    abehache - ano 3 - n 4 - 1 semestre 2013

    regular) e do comunicativismo (nas escolas de idioma) que hoje esto em voga.

    Cada lngua est constituda em uma memria que permear os dizeres e os

    sentidos de seus discursos.

    O papel do professor o de dar condies para que os sentidos sejam

    interpretados, sob uma prtica que mobilize o sujeito-aprendiz na memria de

    sua lngua materna e tambm da estrangeira: o sentido no estvel, histri-

    co e sustentado por uma memria que o constitui. Dar ateno ao que est

    silenciado na ocorrncia dos textos no LD (no somente os literrios, mas de

    qualquer outro funcionamento discursivo), que evidncias de sentido esto

    presentes e qual a relao de um texto com os outros presentes romper com

    uma prtica que no d condies interpretao pelo sujeito-aprendiz-leitor.

    No se nega o fato de que o LD possua um funcionamento que sirva de

    apoio para processos de ensino e aprendizagem de lnguas, assim como no se

    nega que o trabalho que os autores desse gnero discursivo levam a cabo o de

    apresentar uma didtica para o ensino de lnguas estrangeiras em ambientes

    escolares, mas sim que ele deva ser o nico instrumento para uma prtica de

    ensino, pois neles no h uma discusso ou reflexo sobre processos discursivos

    que ocorrem em toda enunciao. Tampouco, no que se refere ao trabalho com

    os textos (e em destaque os de gnero literrio), esse no se d sob formas em

    que se topicalizem os sentidos que os permeiam pois so sempre abordados

    de modo episdico ou como base para atividades de compreenso textual ou

    lexical.

    Vale destacar, novamente, que a especificidade do texto literrio na aula

    de lngua uma materialidade significativa para discusso de temas culturais.

    Creio que pela cultura que possa estabelecer o justo espao da diferena en-

    tre as lnguas portuguesa e espanhola, dando condies inscrio do sujeito-

    aprendiz no simblico da lngua espanhola. Estabelec-lo em prticas de ensi-

    no de lngua estrangeira, nas quais possa reconhecer o outro da lngua estran-

    geira, na comparao consigo mesmo, dar-lhe condies de submeter-se aos

    efeitos de sentidos que permeiam uma prtica discursiva em lngua estrangei-

    ra, constituda scio-historicamente, em uma determinada territorialidade,

    envolvendo sujeitos submetidos a uma diversidade de hbitos, afazeres, prti-

    cas e realidades pouco abordadas e diferentes do seu espao de significao na

    lngua materna.

    A promulgao da Lei federal 11.161/2005 (que estabeleceu a oferta

    obrigatria de ensino de espanhol nas escolas pblicas brasileiras) foi um acon-

    tecimento que instaurou, no ensino dessa lngua em nosso pas, a necessidade

    de elaborao de materiais que deem conta da diversidade social e cultural dos

    pases hispano-falantes e tambm das diversidades de sujeitos presentes nas

    escolas pblicas do Brasil. Para a envergadura de tal acontecimento, faz-se ur-

    gente a instaurao de novos paradigmas no ensino dessa lngua no Brasil.

  • 124

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