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QUAL PREFACIO

ANTÔNIO HOUAISS

DIFÍCIL A TAREFA DE ANTECEDER O ESTUDO, que O leitor vai ter o privilégio de admirar, de algo que mereça ser antes lido. Mas não me descarto do dever de tentar escrever êsse algo, temeroso embora da minha palidez; é que me sinto espiri­tualmente engajado, por motivos para mim inarredáveis: Hélcio me pediu que lhe lesse o ensaio em primeira mão e animou-se com a idéia de vê-lo estampado, já então por su­gestão de Celso Cunha, em Ibérida (revista de filologia ro­mânica que co-dirijo com o sugestor, eu apagadamente); au­torizou-me a transitar dessa idéia para a da sua publicação direta em livro e permitiu-me coadjuvasse, no que de meu alcance fôsse, para a realização dessa nova idéia. Uma de suas grandes alegrias de autor lhe proporcionei quando, sem sua consulta ou aquiescência, dei a ler o ensaio a Carlos Drummond de Andrade e quando, devolvido, pude dizer a Hélcio que o poeta, na sua feroz modéstia ostensiva (que não lhe elide o sêco orgulho itabirano), me confessara que se aprendera a ver melhor nos seus processos criadores (não empregou palavras tais, por certo), concordando comigo em que o trabalho de Hélcio era o que dentre melhor se escre­vera sôbre a sua obra. Quando a José Olympio se abriu para dar acolhida ao livro, comprometi-me-com a prévia aceita­ção comovida de Hélcio-com Daniel Pereira em fazer êste como que prefácio, cujas idéias essenciais, em duas das suas três partes principais, foram expostas a Hélcio e por êle re­cebidas como boas e dignas de precederem o seu estudo­embora, gentil, as achas3e que "honrariam" o seu escrito.

A proposição exordial é a seguinte: estamos ante a mais aprofundada e articulada pesquisa que sôbre a natureza e

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função da rima e apoios fonéticos conexos já se fêz em língua portuguêsa; êsse mérito original é acrescido do fato de que tal pesquisa é feita sôbre a obra de "um dos artistas mais conscientes de sua arte e um dos mais estudiosos dela, entre nós ou em qualquer parte ou época", no dizer de Hélcio mesmo, que não se exime--lúcido sempre em suas atitudes judicatórias-em agregar, sôbre o poeta, ser êle "o mais re­presentativo, ·o mais alto poeta brasileiro"; ademais, porém não só, a pesquisa é de notável valor prático e teórico, abo­nando, sob o primeiro aspecto, o quanto de penetração gnoseo­lógica se ganha com um aparato teórico assenhoreado e, sob o segundo aspecto, confirmando de como a aplicação prática dêsse aparato enriquece, quando percuciente, necessària­mente a própria visão armada teórica-mostrando o todo, em suma, que o processo cognitivo é efetivamente dialético, é práxis, isto é, vida viva intervivida e interativa entre fazer e conhecer. Em verdade, Hélcio Martins, da teoria para a prática e desta para a teoria, refaz o processo do poeta mes­mo: êste, no plano da criação artística, vai do fazer para o conhecer para coroar o seu fazer; o crítico, no plano da pe­netração cognitiva, vai da aparelhagem transmitida social­mente do conhecer para a aventura pessoal do descobrimento do fazer, permitindo-nos socialmente, isto é, colegiadamente, induzir formas mais altas de conhecer, já implícitas ou poten­cializadas nesse fazer cuja riqueza nova sua intuição crítica suspeitava e viu confirmada ao cabo da pesquisa.

Essa proposição exordial encerra, por conseguinte, um trí­plice compromisso meu para com o meu tema aqui e agora: (1) dizer quem é que ousou a pesquisa e a consumou com tão rara mestria, (2) dizer quem é que antes realizou a obra que tamanho interêsse suscitou no crítico-o que equivaleria a falar do poeta e de sua obra-, e (3), por fim, dizer em que o resultado dessa pesquisa aponta novos horizontes para a pesquisa mesma, melhor ainda, para a compreensão teórica mesma que temos do fenômeno da rima, não apenas em língua portuguêsa, sugerindo-nos hipóteses de trabalho para o apro­fundamento da visão teórica do fenômeno dentro da teoria geral da estrutura fônica do poético vazado em sistema lin-

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güístico, com o que se poderá, também, enriquecer o aparato teórico com que reindagar a realização poética do próprio poeta de base, no caso, Carlos Drummond de Andrade, e os do seu tempo, e os anteriores, e mesmo os posteriores.

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Falemos, pois, um pouco de Hélcio. Nascido no Rio de Janeiro a 10 de janeiro de 1929, filho de

Pedro Cândido Martins e Maria da Conceição Andrade Mar­tins, Hélcio de Andrade Martins fêz os primeiros estudos secundários no colégio Pedro II, de 1940 a 1943, e os segundos no colégio Juruena, de 1945 a 1947, ambos na sua cidade natal. Cedo revelou seus pendores humanísticos e críticos, entrando em 1948 para o curso de Letras Românicas da Faculdade Nacional de Filosofia, da então Universidade do Brasil, que concluiu com o costumado brilho em 1951. Foram-lhe, aí, entre outros, professôres Alceu Amoroso Lima, Thiers Mar­tins Moreira, Roberto Alvim Correia, José Carlos Lisboa e Celso Ferreira da Cunha, a êste se ligando por estreitas afi­nidades, além de conviver com o Professor José Carlos Lisboa, em quem encontrou sempre fundos parentescos de sensibili­dade. Em 1954, doutorou-se com distinção em Letras pela mesma faculdade e em 1957 alcançou a melhor qualificação em concurso de habilitação à livre-docência de Literatura Hispano-Americana na mesma faculdade.

Desde cedo, porém, o magistério marcou-lhe a vida. Antes da licenciatura, já lecionava na sua faculdade como auxiliar de ensino do Professor José Carlos Lisboa, catedrático de Língua e Literatura Espanholas (1950-1951); em 1952 e 1953, lecionou, contratado, Literatura Espanhola na Faculdade de Filosofia e Letras da Paraíba, e de 1954 a 1957 foi auxiliar de ensino de Português de Celso Cunha, catedrático da disciplina na Faculdade Nacional de Filosofia, atividade a que retornou pelo ano de 1961. Em 1962 integrou o Departamento de Letras da Universidade de Brasília, encarregando-se, como professor associado, dos cursos de Teoria Literária, até agôsto de 1964, quando, compreendendo não poder continuar com sua atuação

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ante o nôvo quadro estrutural da universidade, aceitou con­vite para ser professor associado de Espanhol e Português na Universidade do Estado da Flórida, em Gainesville, Estados Unidos da América. Em dezembro de 1965, Hélcio Martins retornou em definitivo para o Brasil, seriamente doente, vindo a falecer a 9 de fevereiro de 1966, aos 37 anos de idade.

Meu convívio com Hélcio data de longe, para tão curta vida. Teria menos de vinte anos o maduro estudioso que conheci, a quem me ligou entranhada amizade, dessas que são pontilhadas de poucas presenças e grandes ausências, mas que, nos reencontros, são como se foram de convívio diuturno, bastando dois passes de verbo para reencetar uma conversa que certo nos enriquecia o espírito a ambos. Na sua última e final estada entre nós, quando me passou os seus múltiplos planos de trabalho em revista e quando êste estudo foi, par­ticularmente, objeto de tão sincero desvêlo de admiração meu, certa noite em casa, Hélcio, à hora em que os conviviais partiam, sentiu-se muito mal, resignando-se a pernoitar onde estava. Minha mulher e eu tomamos os cuidados cabíveis-a natureza do seu mal e a precaridade de sua vida já não eram ignoradas dos seus amigos. Manhãzinha de uma noite po­voada de pressentimentos, dirigi-me ao seu-meu quarto: olhos mansos abertos, esperava-me havia por certo muito, mas tí­mida e pudicamente empenhado em não criar-me embaraços "mais" e dissabores (dizia-me êle); a pergunta minha, sorriu, afirmando que tudo passara e que não era nada. Sua bondade queria que os amigos não sofressem. Poucos dias depois mor­reria, tendo, êle também, tido uns dias de visita da saúde. Recordo-me ao ensejo de uma conversa sôbre Maria Luísa da Costa-a cuja memória Hélcio oferece êste livro-, sôbre a perda que significou para a filologia brasileira o desapare­cimento dessa esplêndida criaturinha, cheia de um saber e de uma vontade de saber exemplares. O louvor vinha de quem, também desaparecido agora, o merece sem limites.

Fora do âmbito estritamente universitário, Hélcio teve que pagar o tributo da multiplicação de atividades para a sua so­brevivência de intelectual como intelectual. Atuou no Diário de Notícias e, sobretudo, na Tribuna da Imprensa, onde du-

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rante alguns anos assinou coluna de recensão literária e lhe dirigiu o suplemento literário, na época (1959-1961) um dos melhores entre nós. Concomitantemente ia prestando serviços de vária natureza, conexa sempre com seus pendores cultu­rais, aos diretores do Departamento do Ensino Secundário, Departamento do Ensino Superior, Instituto Nacional do Li­vro, Biblioteca Nacional, Casa de Rui Barbosa, do Ministério da Educação e Cultura, vindo a ser um dos membros ilustres da Comissão Machado de Assis, quando lhe coube a prepara­ção do texto crítico de Esaú e Jacó, ainda inédito, em que pôs, segundo o sei de integrantes daquela comissão, a costuma­da excelência do seu saber.

Dentre os estudos críticos que publicou, lembre-se o Pedro Salinas (ensaio sôbre sua poesia amorosa), que lhe foi a tese de doutoramento (1954), depois incluída na série de "Os Cadernos de Cultura", n: 99, 1956, do Serviço de Documenta­ção do Ministério da Educação e Cultura. Sua tese de con­curso, Afã de Originalidade na Poesia de Julio Herrera y Reissig, foi publicada na Revista do Livro, do Instituto Na­cional do Livro (n.0 12, 1958), de que se fêz separata, sendo contribuição de alto nível exegético na bibliografia sôbre o grande poeta uruguaio.

Um balanceamento provisório dos seus escritos, inéditos ou éditos apenas em fôlhas efêmeras, permite grupá-los em (1) uma bio (?)bibliografia crítica de Carlos Drummond de Andrade, cujos originais ainda, que eu saiba, não estão loca­lizados e de que o presente ensaio constituiria um dos capí­tulos; (2) um estudo sôbre aspectos do romance e do conto machadiano, em que o emprêgo da litote seria a chave para a penetração antimaniqueísta da visão judicatória do autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas, figura de retórica em que provàvelmente se esconde um dos mais palpitantes torneios da criação e da cosmovisão machadianas em que o aparente linear e cartesiano sobrecapeia uma dialética do mentado e do expresso parelha da de Carlos Drummond de Andrade na mestria com que ambos, de permeio quase meio século, enfrentaram a modernidade espiritual e a exprimiram nos seus dêles respectivos tempos; (3) uns estudinhos sôbre

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criação teatral brasileira, em que sobrelevam o sôbre O Pa­gador de Promessas, de Dias Gomes, e uns sôbre Ariano Suassuna; ( 4) monografias menos extensas sôbre o realismo em Vidas Sêcas, de Graciliano Ramos, e o pseudopicaresco em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado; (5) uma biobibliografia crítica do grande filólogo hispano-portenho Amado Alonso, de alta importância metodológica; (6) alguns conceitos sôbre literatura comparada, sobretudo no âmbito ibérico e/ou occitânico e francês; (7) uma bibliografia crítica da literatura brasileira nos séculos XIX e XX, preparada para a Universidade da Flórida, como complemento e suplemento da obra congênere de Otto Maria Carpeaux, para fins didá­ticos superiores; (8) comunicações, pareceres, relatórios e pronunciamentos escritos, para congressos literários, mor­mente um na Paraíba e o da Faculdade de Letras de Assis, São Paulo; (9) enfim, mas certamente não só, artigos assina­dos em revistas e jornais. Grande parte dêsses materiais se conserva e é sonho que o signatário partilha e dois amigos de Hélcio alimentam-Ivan Junqueira e Cláudio Bueno Rocha­reunir tudo para algum dia, que não esteja longe, lograr-lhes publicação em forma de livro, que seguramente merecem.

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Não falemos, entretanto, do poeta e da obra-de Carlos Drummond de Andrade e sua poesia (e prosa, quase sempre poesia). Seria bis in idem, já que neste livro essa é a missão de Hélcio. Não falemos, falando, entretanto, por amor de Hélcio Martins (visto que o meu pelo poeta vem de longe, manifestado em ensainho que Hélcio julgou dever citado no corpo do seu trabalho).

Ao eleger a obra de Carlos Drummond de Andrade para objeto de sua análise, Hélcio Martins deve ter sido sujeito a uma (pelo menos) dupla influência, quiçá não ambas cons­cientes nêle: uma, a da sua identificação, vale dizer, admira­ção e amor pela obra na sua qualidade de leitor e de leitor aparelhado, outra, a de que, aparentemente, essa obra não encerrasse aquêles requisitos formais que se poderiam esperar

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de estruturas poéticas fortemente atadas, havendo na contra­dição entre o aparente e o real um dos segredos da sabedoria drummondiana ao lidar com palavras. A segunda influência -uma suspeita negativa que cumpria perquirir-tê-lo-ia le­vado a procurar o elemento estruturador que (ademais de outro, mais ou menos conspícuo) fôsse o responsável pelas peças poéticas drummondianas, as quais, já de início ao seu ver, eram estruturas poéticas fortemente atadas.

O elemento estruturador conspícuo já o demonstrara Mário de Andrade de forma algo consensual depois dêle em diante -o caráter altamente e heterodoxamente rítmico da poesia de Carlos Drummond de Andrade. ~sse ritmo, porém, Hélcio Martins deve tê-lo sentido algo despistado na obra, como se o poeta requintasse em dominá-lo continuamente para quase continuamente variá-lo e desordená-lo, a fim de obter inusi­tados efeitos de surprêsa, com suas novas ordenações ou es­truturações. Após o presente estudo de Hélcio Martins, sôbre o que êle chama rima em Carlos Drummond de Andrade, já é possível, como hipótese de trabalho, extrapolar uma das suas principais conclusões sôbre a estruturação rímica para a estruturação rítmica: Carlos Drummond de Andrade pro­gride no domínio artístico do ritmo continuamente, tornan­do-se mestre e senhor dos seus jogos que, porém, usa em função de valôres mais importantes de sua poética, a saber, dos valôres significados, ou, se quisermos ser tentativamente mais explícitos, dos valôres de sua mentação que traduzam estados de extrema singularidade pessoal na vivência de seu próprio fluxo mental verbalizado. Como com as rupturas de esquemas rímicos, com as correspondências quase-incorres­pendências, as correspondências fora de esquemas prévios ou mesmo fora dos esboços de esquemas internos, sempre para o fim de entranhar o elemento rímico com o plano ou nível significado, assim também parece proceder o poeta para com o elemento rítmico. Destarte, ao elemento conspícuo-o ritmo -agregar-se-ia, por conseguinte, algo mais, algos mais mes­mos. Em um passado já distante o signatário tentou ver os elementos a mais no como então chamou (e continuo a fa­zê-lo) apoios fonéticos-aliterações, assonâncias, cognatismos

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expressos por correspondências fônicas, falsos cognatismos, ecos, homeotelêutons, anáforas, paralelismos. Mas o que eu teria esboçado em 1948, Hélcio Martins, com extrema justiça e justo rigor, achou objeto demasiado extenso. E com extrema acuidade se confinou, dentre todos os apoios fonéticos, à rima, para caracterizar o segundo elemento das estruturas poéticas significantes de Carlos Drummond de Andrade-"segundo" que cabe aí só porque foi estudado depois do "primeiro". Do jôgo combinatório do ritmo e rima (ou rima e ritmo) nas­ceriam as estruturas poéticas significantes, que se enlaçariam com as estruturas poéticas significadas de forma-diz Hélcio Martins-sempre "utilitária", isto é, o significante sempre a serviço da expressão, isto é ainda, do significado realizado no plano da mentação verbalizada individual do poeta, para aquém (ou além) da mera comunicação. A rima, entretanto, revela-se, na pesquisa motivada de Hélcio Martins, transfi­guradamente rica na elaboração de Carlos Drummond de Andrade, tão rica que, nas ilações e conexões dessa rima, ela se estende para além e para aquém da rima mesma, contami­nando-se (e contaminando) de todos os apoios fonéticos ou­tros suspeitáveis e insuspeitáveis. Enquanto, de certo modo involuntário, eu procurava o elemento estruturador signifi­cante de Carlos Drummond de Andrade nas repetições (pala­vra algo vaga, porque demasiado abarcante) ou nas anáforas (no que eu iria bem, se prosseguisse-pólo oposto do ensaio de Hélcio Martins, vale dizer, "rima inicial" do vocábulo, mas via de regra não fundamental ou base de estruturação, porque não coincidente ou não marcante do ritmo), Hélcio Martins buscou-o na rima, elemento que post factum viu visceral­mente entrosado com o ritmo, já para caracterizarem-se, já para marcarem-se, já (pois estamos em Carlos Drummond de Andrade) para descaracterizarem-se e desmarcarem-se.

Dissociando-se; no plano sistemático, dos únicos grandes es­tudos rímicos em língua portuguêsa-os de João da Silva Correia, publicados, reunidos, em 1930 em Lisboa-, Hélcio Martins confessa não ter seguido, de caso pensado, na pes­quisa, uma hipótese de trabalho sistemática: todo o acervo teórico que havia acumulado nas suas leituras e vivências de

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poetas e de teoristas pôs êle a serviço de sua vivência da obra de Carlos Drummond de Andrade, daí levantando, por vêzes em vaivém de aprofundamento crescente e cumulativo, a exposição que se vai ler.

A lição que ao cabo nos lega Hélcio Martins é a de que Carlos Drummond de Andrade (em quem se edificaria a mais alta voz poética brasileira) seguiria a como que caminhada seguinte: (1) a observância quase passiva das formas fixas de uso das rimas (o pré-Carlos abjurado, importante, para o caso, pois explica em parte o Carlos), (2) passa para a re­jeição integral da rima como imposição de significante for­malizado-rejeição que, de certo modo, jamais abandonará-, (3) para reincorporar lenta e gradativamente todos os apoios fonéticos, de forma que êstes jamais venham a ser forma fixa significante a que se tenha de moldar a estrutura signi­ficada, mas de forma a que se possa ter em mente, idealmente, uma epimorfose cuja violentação pelo significado é o meio mesmo de valorizar o significado naquelas partes em que êste encerra os momentos de verdade do poeta. A estrutura significada é assim o objetivo primeiro e final do poeta, que viola sempre assim não apenas as formas fixas tradicionais, mas até mesmo as epimorfoses de sua instauração ideal, salvo nas ocorrências de ironia, humor, crítica ou autocrítica, quan­do a observância do fixo ou do idealmente fixo é o recurso formal por excelência.

Nessa evolução uma coisa importa ressaltar: a linguagem poética de Carlos Drummond de Andrade como um todo não dispensou os apoios fonéticos, que, existentes potencialmente no sistema lingüístico (como meras formas sem substância), foram por êle revividos e repraticados num processo que, grosso modo, repetiria-para usarmos de uma analogia cabível enquanto analogia-no plano ontogenético o plano filogené­tico; Carlos Drummond de Andrade, porém, não chega pes­soalmente ao têrmo final do processo, seja, sua formalização mecanicista: esta, talvez, a grande lição lúcida de sua poética, no caso, o signo ilustre de sua plena consciência de poeta, a quem cabe com legitimidade a judicação de Hélcio Martins de o mais importante poeta brasileiro de todos os tempos.

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Repugna-me introduzir aqui um elemento aparentemente polêmico: mas a postura drummondiana em face dos elemen­tos estruturais significantes é, de certo modo, a outra ver­tente do seu uso pelos exploradores e pesquisadores dos ele­mentos estruturais poéticos significantes (em forma de poe­mas ou pseudopoemas)-quero dizer, entre nós, os concretis­tas, os neoconcretistas e os praxistas.

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Falemos, ou procuremos falar, dos novos horizontes aber­tos prospectivamente pelo estudo de Hélcio Martins, além da obra de Carlos Drummond de Andrade, isto é, do enrique­cimento teórico potencial dos nossos conhecimentos do fenô­meno particular da rima e seu universo em conseqüência da penetração prática e objetiva da mesma na sua realidade numa obra.

Sob o mero aspecto classificatório e definitório é mais ou menos patente que, após a monografia de Hélcio Martins, falar em rima nos moldes, já não direi tradicionais, mas ad­mitidos mesmo em tratamento científico da matéria, isto é, num plano de máxima generalização e máxima particulari­zação, será caduco; doutro lado, uma crítica classificatória não está excluída do material vàlidamente manipulado e descoberto por Hélcio Martins em Carlos Drummond de An­drade (e existente, por certo, em outros poetas, ainda que com outra densidade, freqüência e modalidade de função, para não falarm_os do seu domínio artístico e estético consciente), já que é possível que algumas franjas da "rima" não entrem a rigor no campo da "nova" rima, generalizado e enriquecido embora. ~sse aspecto problemático originado da pesquisa, ainda que relevante, parece ser em si pouco fecundo. Valerá, certo, para aguçar o instrumental teórico e a visão armada do leitor e do crítico-mas talvez fique aí ou pouco mais . . O problema gnoseológico e metodológico implícito nas po­

tencialidades dessa pesquisa foi aflorado por Hélcio Martins mesmo-, por vêzes como mera indagação do alcance teórico do que fazia à medida em que sua exposição se desdobrava

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e duas vêzes sob a invocação de René W ellek. Por trás dessas duas invocações estaria a de saber como a estrutura fônica de um poema é uma estrutura fônico-poética significante (sobreposta, digamos, e enlaçada ou entrosada a uma estru­tura poética significada) integrada num sistema fônico-poé­tico significante (com seu correlato sistema poético signifi­cado), sendo ambos os tipos de estrutura e de sistema relati­vamente autônomos e conexos com estruturas e sistemas lin­güísticos significantes com cujos materiais aquêles se cons­troem. Formulado assim (e se bem formulado) , o problema põe em dúvida grande parte do valor dos estudos teóricos feitos sôbre a realidade significante poética (e possivelmente do significado poético, pela fatal conexão entre as duas faces da mesma realidade). A função da originalidade mesma, mesmo enriquecida das noções da teoria da informação, passa a ser algo secundário, pois é visível que o mesmo tipo de indagação cabe para com a originalidade-a saber, porque é ela buscada por quem ou o que informa, comunica e/ou exprime e para que.

Nessa altura, seria cabível adotar o método da extrapola­ção analógica, só válido enquanto hipótese de trabalho: assim como se tem um repertório fonemático dentro de cujas limi­tações se erguem as estruturas fonológicas (e, corresponden­temente, poder-se-ia falar de repertório fonético e de estru­turas fonéticas) dentro de um sistema lingüístico (inclusive na diacronia ou, se se quiser, na sucessividade de repertórios, estruturas e sistemas), assim também perguntar-se-ia se não existe um repertório fônico-poético, estruturas fônico-poéti­cas e sistema (s) fônico-poético (s).

Na deriva ainda válida do pensamento saussuriano, se as estruturas fônico-lingüísticas são originalmente arbitrárias, isto é, socialmente arbitrárias (não havendo uma relação in­terna necessária entre significante e significado), essa ver­dade se torna, a partir da premissa, progressivamente con­dicionada: se a estrutura fônico-significante primeira é total­mente arbitrária (e o "primeiro", nesse caso, recua para a noite dos tempos), as subseqüentes se tornam historicamente progressivamente condicionadas, isto é, socialmente menos

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arbitrárias, havendo inclusive a possibilidade de se poder falar em "consciência lingüística" do indivíduo falante culto como se fala da "consciência musical"-para aceitarmos uma reminiscência baseada numa comparação feita por uma das mais altas cabeças pensantes do século passado. No plano da estrutura fonético-poética, porém, o significante é total­mente dependente do plano fônico-lingüístico: sua arbitra­riedade tende desde o início para zero. A hipótese resultante, racionalmente, e por conseguinte sujeita a confirmação em­pírica, é de que, se chegarmos a apreender o caráter das estruturas fônico-poéticas, estas deverão revelar-se por re­pertórios amplos dos materiais disponíveis lingüisticamente (fônicos lato sensu, isto é, fonéticos, fonológicos, intensivos, tonais, cadenciais, rítmicos, silenciais) que se organizam em classes específicas correlatas ou oponenciais sem validade contra-regrada por realidades preexistentes limitativamente. Esclareçamos, ou tentemos fazê-lo: enquanto no plano fônico­-lingüístico significante a função de um fonema se elucida no contínuo fonético-fonológico por correlação e oposição dentro de uma gama de variedades estocadas fixamente e "defini­tivamente" na mente do indivíduo falante, se chegássemos à caracterização de um sistema fônico-poético e de estruturas fônico-poéticas significantes, seus elementos estruturais apre­sentariam a característica de serem significantes ou contra uma fórmula fixa erguida historicamente (poemas de forma fixa, seqüência de versos segundo determinado ritmo pre­fixado) ou contra uma fórmula arbitrada individualmente num universo poético próprio depreensível aos poucos pelo leitor graças à sua sistematividade, ou contra o combinató­rio das duas situações (que parece ser o caso de Carlos Drummond de Andrade). Destarte, enquanto no plano fô­nico-lingüístico estrito as estruturas tendem a autolimitar­-se qualitativa e quantitativamente, no plano fõnico-poético tenderiam a ilimitar-se. Para só abonar-nos com a rima de Hélcio Martins em Carlos Drummond de Andrade, ela tende a ser qualquer fonema ou qualquer grupo de fonemas em correspondência quase qualquer, desde que estabelecido um esquema ou possibilidade de esquema ou incidência de

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esquema qualquer por conexão (sem necessidade de oposi­ção, que só existe na análise: se a conexão tal não tivesse sido estabelecida, como funcionaria esta outra, e esta outra, e esta outra?). Em Carlos Drummond de Andrade a conexão é ritmo-rima ou rima-ritmo, conexão que cria, ipso facto, a inconexão episódica de valorização a mais, pois, se a inco­nexão fôsse sistemática, inexistiria a conexão e, por conse­guinte, o enlace fônico-poético rima-ritmo ou ritmo-rima.

O estudo de Hélcio Martins aponta para problemas outros, ainda. Aponta, por exemplo, para o conceito de necessidade mesma da linguagem poética e dos chamados apoios foné­ticos-aí incluídos rima, ritmo e as categorias outras afins aqui citadas ou não.

Já nesta altura, ser-se-á levado a relembrar que Hélcio Martins esboça o problema, ao referir a suspeita de que o ritmo poético é uma expressão da pulsação cósmica, que se manifestaria por via de outros enlaces mediatos sucessivos e inumeráveis, dentro da determinação universal, em tôda a natureza natural e humano-sócio-histórico-cultural. Assim formulada a explicação da necessidade, ainda que contivesse um grão de verdade (e provàvelmente contém), não explica nada, pois enlaça, através de um ponto de interrogação infi­nito a que cumpre dar respostas, alfa a ômega, quando entre êsses dois pontos se interpõem digamos níveis estruturais e sistemáticos com suas especificidades.

Para só nos atermos ao nível lingüístico lato sensu (em que se insere o poético verbalizado), o problema teria de ser formulado diferentemente :

1) por que não há prosa ou poesia ou linguagem prosaica e poética ao início, se se levam em conta os testemunhos grafados mais remotos e as formas "primitivas" ágrafas de comunicação verbal entre povos "primitivos" hoje existen­tes?; por que, ademais, não há distinção epistemológica no início-não havendo nem ciência, nem filosofia, nem moral, nem preceptiva, nem religião, nem arte, sendo tudo uma unidade de saberes transmitidos?;

2) por que a tradição-isto é, o digno de ser remetido de uma para outra geração como matéria tal que, por sua im-

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portância para situar o grupo no universo-se faz através de estruturas fônicas fortemente atadas numa visibilíssima (é a hipótese) função de apoio mnemônico, de tal arte que todos os requintes com o significante, que a literatura (com letras, gráfica) exalta como virtudes do seu saber, parece existirem antes da literatura?;

3) por que, por fim, na medida em que o saber, incremen­tando-se paralelamente com o fazer, envereda para a com­partimentalização, a linguagem tende para dois pólos, como tendência que não se realiza mas se tenta continuamente­o pólo do poético, cada vez mais amparado nos apoios foné­ticos e cada vez mais polibológico, e o pólo do não-poético, cada vez mais desamparado dos apoios fonéticos e cada vez mais unívoco?

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A fecundidade do estudo de Hélcio Martins patenteia-se, assim, pelo que dá e pelo que sugere ou pede aos seus lei­tores.

Não nos iludamos, porém: por grande que fôsse a sua vocação, que o era, e por grande que fôsse o seu saber, que já o era, o seu estudo se torna grande porque se baseou, sem preconceitos teoréticas, na realidade da obra de um poeta que encerra, realmente, tôda a riqueza fenomenal revelada pelo analista.

Rio, janeiro de 1967.

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ABL