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Caractersticas de mulheres internadas por aborto em uma maternidade pblica em Recife - PE: dimenso do problema e sua relao com a prtica contraceptiva

Regina Clia Borges de Lucena

Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Sade Pblica, pelo Ncleo de Estudos em Sade Coletiva - NESC / CpqAM / FIOCRUZ / MS, sob orientao do Prof. Dr. Eduardo Freese Maia de Carvalho.

Recife, 2000

AGRADECIMENTOS

Pessoas importantes fizeram parte, de alguma forma, desta caminhada. A elas, meu agradecimento e carinho:

Meu orientador, Eduardo Freese de Carvalho, por compartilhar do processo de elaborao deste trabalho de maneira fundamental, indicando passos a serem seguidos de forma clara e concisa. Tambm por me trazer tona em meus eventuais mergulhos em dificuldades e imprecises, atravs de uma atitude de compreenso disciplinadora. Aos funcionrios da Enfermaria de Puerprio Patolgico da Maternidade Professor Antonio Moraes - Cisam, pela disponibilidade em cooperar com a pesquisa, facilitando minha insero em um servio que eu no conhecia. s mulheres participantes da pesquisa, que me emocionaram pela sensibilidade, e por dividirem conosco suas opinies e sentimentos. Ao meu filho Lauro que, em sua precoce compreenso de minha dificuldade em conciliar as situaes diversas que este trabalho nos trouxe, esteve sempre solidrio comigo. Aos meus pais, pelo apoio desde sempre, amizade e companheirismo nas lutas do nosso cotidiano, sempre compartilhado. Aos colegas de Mestrado: novas idias a serem apreendidas em conjunto, nossas diferenas quase sempre conciliveis, enfim, tudo valeu. Especialmente Mariza Arajo e Fbio Lessa, pelas sugestes oferecidas ao longo do caminho. A Telma Melo, mais que colega de Mestrado, companheira de jornada, generosa em ouvir, compreender e trocar experincias em nossas angstias, alegrias, dvidas. A Zulma Medeiros, pesquisadora do CpqAM, pessoa fundamental em minha formao profissional, mas essencialmente uma grande amiga, com quem tenho sempre contado. Agradeo pela sensibilidade em sugerir reformulaes primordiais nesta dissertao.

Ao Professor Aurlio Molina, pela colaborao importante desde o momento da aula de qualificao, com sugestes e referncias que trouxeram novas possibilidades a questes que pareciam resolvidas. A Mgine Cabral, bibliotecria do Nesc, pela contnua e cuidadosa colaborao na reviso bibliogrfica deste e de outros trabalhos. A Adriana Buarque, do Centro de Documentao do SOS-Corpo, por disponibilizar um amplo volume de material bibliogrfico, de maneira especialmente atenciosa. Ao Laboratrio Organon, pela forma imediata e elegante com que atendeu minha solicitao por material informativo sobre sexualidade e contracepo, que foi utilizado na pesquisa. Enfim, a todas as pessoas que participaram deste momento, to importante para mim. A sensao de finalizao de um ciclo vem estranhamente acompanhada pela preocupao de que h (muitos) outros a cumprir. Como o poeta escreveu: Condenado a escrever fatalmente o mesmo poema e ele no alcana perfil definitivo. Talvez nem exista. Perseguem-me quimeras. O problema no inventar. ser inventado hora aps hora e nunca ficar pronta nossa edio convincente. Carlos Drummond de Andrade, em canes de alinhavo

RELAO DE ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADAS

AGI: The Alan Guttmacher Institute BEMFAM: Sociedade Civil de Bem Estar Familiar Cisam: Centro Integrado de Sade Amaury de Medeiros DIU: Dispositivo Intra-Uterino DP: Desvio Padro Drogas EP: preparados hormonais, compostos por associao de estrgeno e progesterona em alta dosagem DST: Doena Sexualmente Transmissvel Epi-Info: sistema de informtica utilizado em microcomputadores para processamento e anlise de dados epidemiolgicos MS: Ministrio da Sade OMS: Organizao Mundial de Sade RR: Risco Relativo p: valor de significncia estatstica PAISM: Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher PNDS: Pesquisa Nacional de Demografia e Sade SUS: Sistema nico de Sade

RESUMONo presente trabalho, o aborto foi investigado a partir dos internamentos por complicaes ps-aborto em uma maternidade pblica de Recife - PE. O objetivo geral foi conhecer e avaliar caractersticas epidemiolgicas da mulheres internadas por complicaes de aborto na maternidade do Centro Integrado de Sade Amaury de Medeiros. O desenho adotado do tipo epidemiolgico observacional de corte transversal, e o estudo foi conduzido no perodo de 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000, quando foram realizadas entrevistas com questionrio estruturado, contendo questes sobre caractersticas scio-econmicas e histria reprodutiva das mulheres. O trabalho consistiu em traar o perfil das mulheres que procuraram o servio, tentando identificar a proporo de abortos induzidos e gestaes no planejadas, que so relacionados prtica de contracepo: a compreenso do papel dos mtodos anticoncepcionais e sua forma de utilizao pelas mulheres, podem ajudar visualizao do evento aborto induzido enquanto parte de uma complexa rede de determinaes, da qual a necessidade de acesso a servios contraceptivos de qualidade certamente um importante elo. Entretanto, discutir mtodos anticoncepcionais no significa, mais uma vez, culpabilizar a mulher por uma gravidez no planejada, mas sim discutir sob quais bases est constitudo o chamado planejamento familiar, tendo em vista o papel que vem sendo historicamente exercido e transformado pela mulher. Um total de 203 casos de abortos foi investigado durante o perodo de estudo. Destes, 49 (24%) corresponderam a casos de aborto induzido, na maior parte das vezes com a utilizao do misoprostol. Um total de 148 (73%) dos casos de aborto era resultante de gestao no planejada. O estado marital solteira mostrou-se um determinante importante para os dois eventos. A dificuldade em manter uma prtica contraceptiva regular, diante da limitao das opes disponveis para as mulheres, parece ser uma questo fundamental para a ocorrncia de gestaes no planejadas, que representam o fracasso das estratgias utilizadas para a regulao de fecundidade, e aponta para necessidades prementes neste sentido.Palavras-chave: Epidemiologia. Aborto; Planejamento Familiar; Mtodos Anticoncepcionais;

ABSTRACTIn this work, the abortion has been investigated from the hospitalizations as a result of the post-abortion complications in a public maternity of Recife, the capital of the state of Pernambuco in the Northeast of Brazil. The main aim was to recognize and to avaliate the epidemiologic characteristics of hospitalized women by the complications of abortions in the maternity of the Centro Integrado de Sade Amaury de Medeiros. The adopted design is the observational epidemiologic of transversal incision, and the study was developed from July 1st, 1999 to January 31st, 2000 when interviews were realized using a specific questionary about socioeconomic characteristics and reproductive history of women. The work made a profile of the women who searched for the service, trying to identify the rate of induced abortions and non-planned gestations which are related to the contraception practice: the comprehension of the role of contraception methods and its utilization by the women, may help to visualize the induced abortion as a part of a complex chain of determinations, in which the necessity of the women to have access of qualified contraceptive services is certainly an important link. However, to discuss the contraceptive methods does not mean, once again, to blame the woman for a non-planned gestation, but it does mean to discuss on which basis rests the family planning, by taking a sight of the role that has been historically performed and transformed by the woman. A total of 203 cases of abortion were investigated during the period of study. 49 (24%) cases of induced abortion using misoprostol, and 148 (73%) cases of abortion due to non-planned gestations. The marital status single has been shown as an important determinant for both events. The difficulty in keeping a regular contraceptive practice, caused by the lack of available options, seems to be a fundamental question to the occurrence of non planned gestations, which represents the failure of strategies used to regulate the fecundity and drives to urgent needs in this way.

Key Words Abortion; Family Planning; Contraceptive Methods; Epidemiology.

RELAO DE TABELAS, QUADROS E ANEXOS

TABELAS: Pgina

Tabela 1 - Distribuio dos casos segundo tipo de aborto. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 41

Tabela 2 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com faixa etria e estado marital. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 43 Tabela 3 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com nvel de escolaridade, ocupao e renda familiar. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 44 Tabela 4 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com religio e raa. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 44 Tabela 5 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com o resultado de gestaes anteriores. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 46 Tabela 6 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com a utilizao de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 47 Tabela 7 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com a utilizao de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 48 Tabela 8 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com o conhecimento de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 49 Tabela 9 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com a inteno futura de utilizao de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 49 Tabela 10 - Distribuio das mulheres segundo tipo de aborto, de acordo com diagnstico de aborto. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 50

Tabela 11 - Caractersticas das mulheres segundo categoria de gestao, de acordo com faixa etria e estado marital. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 52 Tabela 12 - Caractersticas das mulheres segundo categoria de gestao, de acordo com nvel de escolaridade, ocupao e renda familiar. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 53 Tabela 13 - Caractersticas das mulheres segundo categoria de gestao, de acordo com religio e raa. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 53 Tabela 14 - Caractersticas das mulheres segundo categoria de gestao, de acordo com resultado das gestaes anteriores. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 55

Tabela 15 - Caractersticas da mulheres segundo categoria de gestao, de acordo com a utilizao de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 56 Tabela 16 - Distribuio das mulheres estudadas segundo categoria de gestao, de acordo com mtodo contraceptivo utilizado. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 57 Tabela 17 - Distribuio das mulheres estudadas segundo categoria de gestao, de acordo com o conhecimento de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 58 Tabela 18 - Distribuio das mulheres estudadas segundo categoria de gestao, de acordo com a inteno por utilizao futura de mtodos contraceptivos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 59 Tabela 19 - Distribuio das mulheres estudadas segundo categoria de gestao, de acordo com o diagnstico de aborto. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 59 Tabela 20 - Distribuio das mulheres que tiveram aborto induzido, segundo forma de aborto. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 60 Tabela 21 - Distribuio das mulheres que tiveram aborto induzido, segundo caractersticas do processo de tomada de deciso. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 61

QUADROS:Quadro 1 - Valor estatstico das razes de frequncias dos grupos de abortos induzidos e espontneos. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 42 Quadro 2 - Valor estatstico das razes de frequncias dos grupos de gestaes planejadas e no planejadas. Cisam, 01 de julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000. 50

ANEXOS:

Anexo I - Critrios para classificao de aborto provocado, OMS, 1978 Anexo II - Instrumento de coleta de dados

SUMRIO1. INTRODUO 1.1 - Conceituaes Gerais sobre Aborto: 1.2 - Situao de Legalidade e Magnitude do Problema 1.2.1 - Uma Breve Histria do Aborto 1.2.2 - Quadro Atual da Legislao sobre Aborto 1.2.3 - A Igreja Catlica e o Pensamento sobre Aborto: sob o signo do dissenso 1.2.4 - A Questo Social, as Formas e os Nmeros do Aborto 1.3 - Questes sobre Gnero e Sade Reprodutiva 1.3.1 - Homens e Mulheres Atravs da Histria: uma relao em contnua construo 1.3.2 - Sade Reprodutiva, Mtodos Contraceptivos e a Condio Feminina 1 2 4 4 6 8 9 13 13 15

1.4 - Poltica Demogrfica, Prtica Contraceptiva e Aborto Induzido: compreendendo algumas relaes 20 1.4.1- Poltica Demogrfica e Planejamento Familiar: onde termina a escolha e comea o controle 20 1.4.2 - Declnio de Fecundidade e Prtica Contraceptiva no Brasil: dimenses e contradies 24 1.4.3 - Dinmica do Uso de Contraceptivos: dificuldades e (des)motivaes 28 2. OBJETIVOS 2.1 - Objetivo Geral 2.2 - Objetivos Especficos 3. METODOLOGIA 3.1 - Local de Estudo 3.2 - O Estudo Descritivo: possibilidades e limitaes 3.3 - Coleta de Dados 3.3.1 - Definio de Caso 3.3.2 - Entrevista 3.4 - Definio de Conceitos 3.5 - Definio Operacional de Variveis 3.5.1 - Variveis independentes: 3.5.2 - Variveis dependentes: 3.6 - Tratamento Estatstico 3.7 - Consideraes ticas 4. RESULTADOS 4.1 - Os Grupos de Abortos Espontneos x Abortos Induzidos 4.1.1 - Caractersticas Scio-econmicas 4.1.2 - Caractersticas Reprodutivas 33 33 33 34 35 36 37 37 37 38 39 39 39 42 43 45 45 45 49

4.2 - Os Grupos de Gestaes Planejadas x Gestaes No Planejadas 4.2.1 - Caractersticas Scio-econmicas 4.2.2 - Caractersticas Reprodutivas 4.3 - O Grupo de Abortos Induzidos 5. DISCUSSO 5.1 - Os Grupos Espontneos x Induzidos 5.2 - Gestaes Planejadas x No Planejadas 5.3 - O Grupo de Abortos Induzidos 5.4 - Sobre Gnero e Epidemiologia: possibilidades de anlise 6. CONCLUSES REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

54 55 58 64 67 67 72 75 78 81 84

INTRODUO

H uma discusso interminvel sobre corpos e sobre a vida. H muitas vozes, muitos conceitos em jogo, muitas falas em nome de Deus... O conflito de longa data e possivelmente infindvel. No h consenso. Por que haveria de ter? Importante saber onde ns estamos neste debate - onde esto nossas lgrimas, nossas dores comuns e desejos de vida plena. Haidi Jarshel, no artigo Variaes sobre o bem e o mal

1. INTRODUO

1.1 - Conceituaes Gerais sobre Aborto: Aborto definido como a interrupo da gravidez antes que o feto seja vivel para sobrevivncia extra-uterina, condio definida pelo tempo de gestao ou peso do feto. A Organizao Mundial de Sade (OMS) desde 1977 considera os seguintes limites: feto ou embrio de peso igual ou menor que 500 g, correspondendo a aproximadamente 20 at 22 semanas de gestao (Figo, 1977). Por este motivo, estes so os limites utilizados na maioria dos pases; esto de acordo com a definio de mortinatalidade recomendada pela OMS, e so tambm os limites estabelecidos na Classificao Internacional de Doenas. Ainda segundo a OMS (1970), do ponto de vista epidemiolgico, a grande maioria dos abortos ocorre antes da 20 semana de gestao ou 500, at mesmo 400 gramas. este limite que Viana (1990) considera: o concepto invivel possui, ao nascer, 20 semanas ou menos de vida e, ainda, peso inferior a 500 gramas. A maioria dos autores considera, de fato, at a 22a semana de gravidez (Grupo Curumin, 1995; Verardo, 1995). Alm disso, a Organizao estabelece, no plano clnico, uma distino entre abortos precoces - mortes fetais ocorridas antes da 12a semana de gestao - e abortos tardios, os que ocorrem entre a 12a e a 20a semana. De maneira adequada, o processo de interrupo de gravidez chamado de abortamento, enquanto que o termo aborto utilizado para denominar o produto eliminado pela cavidade uterina. Optamos por utilizar a palavra aborto, por ser mais usual e, portanto, de fcil apreenso. As seguintes formas clnicas de aborto so consideradas por Viana (1990): SAmeaa de aborto: sangramento uterino discreto e intermitente, acompanhado ou no de clicas abdominais, caracteriza-se como ameaa de abortamento. A avaliao da possibilidade de continuao da gravidez feita atravs de exame clnico e, principalmente, exame ultrassonogrfico. SAborto inevitvel: caracterizado pelo seguinte quadro: sangramento abundante, clicas muito intensas, colo do tero dilatado. Tambm o rompimento da membrana amnitica, surgimento de infeco intrauterina ou presena de ovo

cego1 podem ser sinais de abortamento inevitvel, quando apenas o ovo permanece no tero, mas sua expulso j est em caminho. SAborto completo: mais frequente at a 8a semana de gestao, e h expulso de todo o ovo ou, em fases mais avanadas, de feto e placenta. As clicas deixam de ocorrer e o sangramento bastante discreto. SAborto incompleto: nesta forma, somente parte do concepto foi expulso, persistindo sangramento e clicas uterinas devido aos restos ovulares retidos no tero. SAborto infectado: a infeco, classificada em diferentes graus, pode ser desde limitada ao tero, podendo propagar-se por toda regio plvica, at a infeco generalizada. Geralmente surge como consequncia de manipulao uterina no abortamento provocado em condies inadequadas. SAborto retido: nesta forma, o concepto morre, mas no h sua expulso, o que deveria acontecer em um perodo de 3 a 4 semanas. Os sintomas da gravidez diminuem paulatinamente, e ocorrem sintomas de abortamento, porm no h expulso do ovo no prazo previsto. SAborto habitual: quando ocorrem trs ou mais abortamentos consecutivos e espontneos. Os abortos podem ser classificados como espontneos, quando acontecem devido a fatores de ordem natural, e sua etiologia bastante ampla: vrias anomalias cromossmicas no espermatozide ou vulo podem gerar um ovo defeituoso, levando morte embrionria. Tambm a maior idade materna, maior nmero de gestaes e abortamentos anteriores so considerados fatores de risco. Ainda deficincias hormonais, infeces, doenas maternas, alteraes na anatomia do tero, ou a presena do Dispositivo Intra-Uterino (DIU), e algumas viroses podem ser consideradas causas de aborto espontneo (Viana, 1990). Os abortos so classificados como induzidos ou provocados, quando a expulso do feto realizada com interferncia externa. Os abortos induzidos podem ser provocados atravs de uma grande variedade de agentes qumicos ou mecnicos, que vo desde mtodos rudimentares, como a introduo de objetos no tero (agulhas de tric, galhos de rvores e outros objetos perfurantes), utilizao de chs e medicamentos abortivos, at intervenes cirrgicas que, bem

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Ovo cego ou vazio consiste na presena do saco gestacional sem o embrio, ou gravidez anembrionada. causa frequente de abortos espontneos (Viana, 1990).

monitoradas, oferecem pouco risco sade da mulher (Grupo Curumin, 1995; Verardo, 1995). Quando provocado com mtodos rudimentares ou em condies de baixa higiene, o aborto clandestino pode figurar como causa importante de morbimortalidade em mulheres. Realizado em condies de risco, este pode provocar complicaes como: infeces graves, choque hemorrgico, perfurao do tero com necessidade de remoo cirrgica e at levar a morte da paciente (Verardo, 1995). O conceito de aborto seguro se configura na situao ideal, na qual o aborto permitido em lei, e recebe o atendimento necessrio por parte dos servios de sade que, devidamente estruturados, devem oferecer tanto a assistncia psicossocial para as mulheres no momento da deciso de abortar, como a qualidade da ateno sade que devem ter no atendimento do evento em si (Rede Mundial de Mujeres por los Derechos Reprodutivos, 1993).

1.2 - Situao de Legalidade e Magnitude do Problema

1.2.1 - Uma Breve Histria do Aborto O aborto conhecido desde os tempos mais remotos da humanidade, e sua aceitao sempre variou entre as diferentes pocas e sociedades. Tanto nas sociedades primitivas, quanto entre as diversas culturas da Antiguidade, a aprovao do aborto esteve estreitamente ligada aos papis sexuais, no havendo uma posio nica. Na antiga Grcia, por exemplo, o aborto era amplamente aceito, sem grandes restries morais ou jurdicas. Em Roma, o aborto tambm era uma prtica comum, especialmente quando a natalidade estava em ascenso. A proibio surgiu quando do declnio do Imprio Romano, e o aborto provocado passa a ser considerado crime contra a segurana do Estado, o que, ainda assim, no impedia a ampla realizao impune do aborto (Frente de Mulheres Feministas, 1980; Mori, 1997). A mudana substancial de mentalidade aconteceu com o advento do Cristianismo, que condenou o aborto desde o incio, assemelhando-o ao assassinato

e, portanto, contrrio soberania de Deus sobre a vida humana e ao processo generativo (Mori, 1997). Mesmo assim, ao longo da Idade Mdia at a metade do sculo passado, o aborto continuou a ser uma prtica muito difundida, e as sanes penais contra ele variavam muito de um lugar para o outro, mesmo porque no havia consenso a respeito do incio da alma no feto (Frente de Mulheres Feministas, 1980). O aborto continua a se expandir largamente durante o sculo XIX, especialmente entre as classes populares. A lei inglesa de 1803 que punia severamente o aborto veio trazer um novo quadro para a situao anterior de contradies. A condenao era baseada na justificativa primeira de que a interveno (como qualquer interveno cirrgica) representava ameaa vida da mulher, diante das pssimas condies sanitrias da poca. Escondia-se sob esta justificativa a necessidade de ampliao da mo-de-obra barata, no incio da Industrializao. O avano da Medicina Cientfica, e as descobertas da Embriologia sobre o contnuo desenvolvimento embrionrio s vm respaldar as novas leis proibitivas que passam a vigorar na Europa e Amrica at as primeiras dcadas do sculo XX (Frente de Mulheres Feministas, 1980; Portella, 1995; Mori, 1997). A legislao sobre aborto, desde ento, vem evoluindo diferentemente nos diversos pases, de acordo com o seu grau de desenvolvimento, e segundo questes polticas e estratgicas. Na Rssia, aps a formao do bloco socialista europeu, em 1917, o Estado passa a oferecer pela primeira vez o aborto legalizado, de acordo com o novo rumo dado s polticas sociais, a includas as que tratavam da sade da mulher trabalhadora. Esta liberalizao sofreu retrocesso em 1936, diante da necessidade do Estado em produzir mo-de-obra e soldados, e os abortos passaram a ser realizados de acordo com restritas razes mdicas (Remmennick, 1991). As restries estendem-se a alguns pases da Europa Ocidental, em virtude da necessidade de recuperar a grande perda de vidas durante a Primeira Guerra Mundial. A motivao natalista tambm guiou o regime nazifascista, ento em franca ascenso, e que punia o aborto com pena de morte. Os exageros do pensamento fascista arrefeceram aps a Segunda Guerra Mundial, entretanto, as leis continuaram, de maneira geral, bastante restritivas (Frente de Mulheres Feministas, 1980).

Durante os anos 50, so os pases socialistas da Europa Oriental Central a declarar o aborto legal, se dentro do primeiro trimestre de gravidez. Impulsionados pela emergncia de um Movimento Feminista fortemente articulado e pela consolidao do Estado de Bem-Estar Social, a partir da dcada de 60 quase todos os pases desenvolvidos seguem a tendncia e promovem mudanas permissivas na legislao do aborto (Henshaw, 1987). Portanto, o grupo de pases que atualmente permite o aborto legalmente inclui, de um modo geral, pases desenvolvidos, que possuem legislao avanada em relao ao assunto (Portella, 1995; Revista Veja, 1998).

1.2.2 - Quadro Atual da Legislao sobre Aborto Atualmente, h uma grande diversidade de situaes delimitadas para a permisso legal do aborto: risco de vida para a gestante; razes eugnicas (quando o feto possui graves anomalias); gravidez resultante de estupro; ou os chamados abortos a pedido, realizados por solicitao da gestante. A legalidade de cada uma destas situaes apreciada diferentemente pela legislao dos diversos pases (The Alan Guttmacher Institute, 1999). Henshaw (1990) reuniu uma classificao entre os pases e territrios dependentes com mais de 1 milho de habitantes, segundo os critrios de realizao do aborto legal: S52 pases deste grupo, nos quais habita 25% da populao mundial correspondem categoria mais restritiva: os abortos so proibidos, exceto para salvar a vida da mulher. S42 pases, com 12% da populao mundial, admite motivos mdicos mais amplos: para prevenir uma ameaa sade geral da mulher e, s vezes, por razes genticas ou jurdicas (como estupro ou incesto). S13 pases, com 23% da populao mundial, considera razes sociais ou sociais e de sade. S25 pases, com cerca de 40% da populao mundial, enquadram-se na categoria menos restritiva, na qual o aborto entendido como um direito da mulher at um determinado momento da gestao - limite que varia entre os pases.

De acordo com o Cdigo Penal, desde 1940 o Brasil permite o aborto em caso de risco de vida para a me e de estupro. H jurisprudncia que permite a interveno em caso de anomalia fetal (Souza, 1995; Verardo, 1995). Em alguns casos, a legalizao do aborto atende a necessidades do Estado que no correspondem propriamente preocupao com a proteo sade da mulher. A China, por exemplo, utiliza o aborto como estratgia de controle populacional, desenvolvida de forma muitas vezes autoritria (Li et al., 1990; Hartmann, 1987). Na ndia, o aborto serve, contraditoriamente, como instrumento de opresso mulher: os fetos femininos, logo que identificados, so abortados, j que se considera um problema ter filhas mulheres numa cultura onde o sexo feminino desvalorizado, tratado como mercadoria de baixo valor (Rede Mundial de Mujeres por los Derechos Reprodutivos, 1993). Mesmo o processo de legalizao do aborto nos pases desenvolvidos, apesar de apresentar traos inequvocos de avanos, no tem sido linear. Aps transporem os difceis processos de reformas da legislao, estes pases vivem o contnuo embate de fluxos e refluxos da liberalizao. Alm disso, permanecem como barreiras: a real disponibilizao pelo Estado, de servios de sade que realizem o aborto; o cdigo de tica dos profissionais de sade, que permite ao mdico no realizar o aborto de acordo com sua opo moral; e a necessidade de programas contraceptivos mais amplos, que contemplem o acesso a informaes e possibilidades concretas na sade reprodutiva (Frente de Mulheres Feministas, 1980; Portella, 1995). Apesar disso, vem se mantendo a tendncia mundial de liberalizao das leis sobre o aborto. Entre os pases que tornaram suas leis menos restritivas nos ltimos anos, h motivaes das mais diversas: alguns destacam a necessidade de reduzir a morbi-mortalidade resultante de abortos ilegais; outros sustentam que deve-se garantir s mulheres de baixo poder aquisitivo igual acesso ao servio, antes s disponvel para mulheres de classe mdia e alta; outros, ainda, defendem o direito que as mulheres tm de decidir sobre a gravidez e maternidade; pesa tambm a favor do aborto, em uns poucos pases, como j mencionado, a questo do controle do crescimento demogrfico (Henshaw, 1987). A tendncia liberalizante dos ltimos anos no encontra espao para modificaes nas rgidas leis sobre aborto da Amrica Latina. Apesar das tentativas de liberalizao, dois teros dos pases permitem o aborto apenas em casos de risco

de vida para a mulher, sete pases o permitem tambm em caso de estupro ou incesto e trs pases no o permitem sob nenhuma condio (Henshaw, 1987). Apenas em Cuba o aborto permitido desde 1964, sendo considerados ilegais os abortos realizados com a finalidade de lucro, ou por pessoal no qualificado, ou, ainda, sem a permisso da mulher. Do final dos anos sessenta at final dos anos 80, as estatsticas mostram tendncia ascendente das taxas de aborto induzido em Cuba, mas com diminuio de 60% das mortes maternas relacionadas a este procedimento entre os anos 1970 e 1990 (Cabezas-Garcia et al., 1998). Barroso (1989) observa duas especificidades muito marcantes na histria dos pases latino-americanos no que diz respeito ao contexto scio-poltico no qual o aborto realizado: a condio de pobreza de grandes setores da populao e a atuao sistemtica da Igreja Catlica. Estes dois pontos marcantes merecem maior ateno.

1.2.3 - A Igreja Catlica e o Pensamento sobre Aborto: sob o signo do dissenso Em relao ao pensamento catlico sobre o aborto, importante perceber que, embora a doutrina crist tenha, de incio, condenado irrefutavelmente o aborto, esta posio no tem sido uniforme ao longo da histria da Igreja Catlica que, alis, marcada pelo signo da divergncia sobre o assunto. Na doutrina catlica, o problema central do aborto gira em torno de quando o feto pode ser considerada pessoa, ou, a partir de que momento a alma entra no corpo? O telogo Toms de Aquino defendia a tese de animao tardia do feto, segundo a qual a unio do corpo e da alma s acontece quarenta dias depois da concepo, para os homens, e oitenta dias depois, para as mulheres. Antes disso, portanto, a interrupo da gravidez no poderia ser considerada um atentado vida humana (Frente de Mulheres Feministas, 1980; Hurst, 1992; Catlicas pelo Direito de Decidir, 1997). Este pensamento converteu-se em dogma da f catlica no sculo XIV e predominou oficialmente at meados do sculo passado. Diante da adoo oficial da restrio ao aborto por vrios pases e as discusses morais da resultantes, o papa Pio IX modifica a norma oficial da Igreja, recomendando a excomunho por aborto

que, praticado sob quaisquer que sejam as circunstncias, considerado homicdio. Com isso, responde tanto exigncia de uniformidade na normativa eclesistica, como s complexas mudanas scio-polticas relacionadas natalidade (Frente de Mulheres Feministas, 1980; Portella, 1995; Catlicas pelo Direito de Decidir, 1997). A normatizao da f, porm, esteve sempre pontuada por discusses e reflexes sobre a problemtica do aborto por telogos, telogas e at mesmo membros da hierarquia catlica. A moralidade catlica passa ao largo da realidade de milhes de mulheres que adotam o aborto clandestino como soluo para uma gravidez no desejada no contexto de suas vidas, a despeito mesmo de sua f catlica (Catlicas pelo Direito de Decidir, 1997; Kissling, 1998). A postura atual da Igreja a de reafirmao da condenao do aborto e emprego de mtodos contraceptivos artificiais (Prado, 1995). Apesar de estar evidente que a maioria dos catlicos superou a percepo de sexualidade que a Igreja prope (Hurst, 1992), a participao desta nas decises polticas sobre o assunto extensa e, muitas vezes, determinante em polticas sobre planejamento familiar e aborto (Kissling, 1998).

1.2.4 - A Questo Social, as Formas e os Nmeros do Aborto A questo da situao econmica funciona no exatamente como determinante na incidncia do aborto, mas como diferencial na forma de sua realizao. Em muitos destes pases, a proibio criou uma situao de clandestinidade ambgua, onde as mulheres mais favorecidas economicamente realizam suas intervenes em clnicas especializadas e asspticas, enquanto que as mulheres pobres aventuram-se em violentos auto-abortos ou com pessoas inabilitadas. A soluo da gravidez indesejada via aborto induzido uma prtica comum a todas as classes sociais, pactuada pela incua punio da legislao vigente e omisso do Estado em relao prestao de assistncia sade da mulher, neste sentido. O relatrio do The Alan Guttmacher Institute (AGI), de 1994, analisa a situao do aborto clandestino na Amrica Latina a partir de pesquisa conjunta dos investigadores de cada pas e do AGI, de Nova Iorque, estudando pesquisas de

fecundidade e nmero de hospitalizaes por complicaes ps-aborto, alm de pesquisas junto aos profissionais de sade que lidam com os eventos nesta regio. Partindo dessas informaes, o AGI identifica diferentes grupos e fontes de aborto clandestino na Amrica Latina, tanto nos tipos de servios de aborto disposio das mulheres de acordo com sua renda familiar. De acordo com os dados apresentados, o risco de complicaes mdicas trs vezes maior para as mulheres pobres das reas urbanas e rurais, em relao s mulheres urbanas de nvel superior. A utilizao do Misoprostol (de nome comercial Cytotec) a partir de 1988, como uma alternativa a mtodos abortivos invasivos, contribuiu para uma reduo das complicaes ps-aborto e, portanto, da mortalidade materna2 no Brasil (Grupo Curumin, 1995). Ao mesmo tempo, favoreceu um aumento nas admisses hospitalares por aborto, j que, por sua baixa propriedade abortifaciente, dificilmente consegue provocar aborto completo (Wolffers et al., 1991; Coelho et al., 1993). Sendo uma medicao indicada para a preveno de lceras

gastroduodenais que tem entre seus efeitos colaterais a ao estimulante sobre a musculatura uterina, capaz de induzir o aborto, passou a ser usado pelas mulheres no Brasil a partir de 1988, em quantidade e forma empiricamente padronizadas. A proibio da comercializao do medicamento, em lugar de reprimir sua utilizao, criou um verdadeiro mercado negro, controlado pelos balconistas de farmcias e perpetuado pela facilidade e custo mais acessvel na utilizao da droga (Grupo Curumin, 1995; Portella, 1995). A preocupante associao entre a utilizao do misoprostol e ocorrncia de malformaes congnitas (Fonseca et al., 1991) vem se contrapor a estas facilidades, principalmente considerando que difcil dimensionar a proporo de mulheres que utilizam a droga mas no conseguem abortar. ainda importante a utilizao de drogas com combinao de altas dosagens de estrgeno e progestgeno (chamadas drogas EP de alta dosagem) nos pases subdesenvolvidos como mtodo abortivo. Usadas a partir dos anos 40 para o tratamento de alteraes menstruais, popularizaram-se como teste hormonal de gravidez, de acordo com o seguinte raciocnio: se a mulher estiver grvida, o

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Mortalidade Materna a medida de mortes maternas, que so aquelas ocorridas durante a gravidez, o parto ou o puerprio, por complicaes desses estados ou devidos a doenas preexistentes e agravadas por eles. A taxa ou coeficiente de Mortalidade Materna relaciona essas mortes ao nmero de nascimentos vivos atravs da seguinte expresso (Laurenti 1995): Taxa ou coef. de = no de mortes maternas em dada rea e ano x 100.000 Mort. Materna no de nascidos vivos na mesma rea e ano

sangramento no ocorrer devido ao efeito protetor da progesterona produzida pelo organismo nesta fase. A partir dos anos 60, os efeitos teratognicos destas drogas comearam a ser reconhecidos e divulgados nos crculos mdicos; Em 1981, a OMS desaconselhou seu uso como teste de gravidez. As drogas EP de alta dosagem foram, no sem resistncia por parte da indstria farmacutica, retiradas de mercado nos pases desenvolvidos ao final dos anos 70. Entretanto, continuaram a ser produzidas at final da dcada de 80, especialmente para ser exportadas aos pases subdesenvolvidos, seus grandes consumidores. Embora a forma oral das drogas EP de alta dosagem tenham sido definitivamente retiradas, formas injetveis so ainda largamente utilizadas em vrios pases como forma de provocar abortos: ndia, Filipinas, Malsia, Indonsia, Colmbia, Peru, Chile e Brasil so alguns dos pases onde o emprego inadequado de drogas EP de alta dosagem tem sido verificado (Wolffers et al., 1991). Entre abortos legais, Henshaw (1987) chega estimativa de 33 milhes de abortos por ano. Somando-se as estimativas de abortos ilegais, este nmero se elevaria a cerca de 40 a 60 milhes por ano. Portanto, a estimou-se que a taxa mundial oscila entre 37 a 55 abortos por 1000 mulheres em idade reprodutiva. O fato de a mulher viver em pases desenvolvidos ou em desenvolvimento, apesar representar diferentes abordagens na legislao sobre o assunto, no diferencia os nveis globais de aborto: 30 por 1000 e 34 por 1000, respectivamente. Levando-se em conta que na regio do Leste Europeu os nveis de aborto so significativamente mais altos, as taxas de aborto podem ser consideradas at mais elevadas nos pases em desenvolvimento: 17 por 1000 na Europa e 23 por 1000 nos pases em desenvolvimento juntos, onde a maior parte destes abortos so ilegais (The Alan Guttmacher Institute, 1999). De acordo com estimativas recentes, o AGI apresenta a estimativa de aproximadamente 20 milhes de abortos ilegais por ano no mundo, que estariam assim distribudos: metade na sia, 25% na frica, 20% na Amrica Latina e os 5% restantes, principalmente no Leste Europeu. A partir de um ajustamento nos nmeros oficiais de mulheres tratadas por complicaes ps-aborto, no ltimo ano com dados consolidados em cada pas da Amrica Latina, o AGI (1994) chegou ao impressionante nmero de 288.670 casos no Brasil em 1991. Partindo da premissa de que nem todas as mulheres que fazem

aborto induzido necessitam ou recorrem de fato hospitalizao, utilizou-se um mtodo multiplicador que reflita a probabilidade de casos adicionais ocultos a partir do nmero de internaes. O total estimado de abortos induzidos no Brasil foi de 1.443.350, numa proporo de 44 casos por 100 nascidos vivos. Fica evidente a disputa entre nascimentos e abortos, e o relatrio conclui que o aborto induzido responde pela resoluo de 31% do total de gestaes no pas. Os abortos constituem, no pas, a 5a causa de internao na rede SUS, responsveis por 9% das mortes maternas e 25% das esterilidades por causa tubria (Brasil, 1999). A limitao das estatsticas oficiais e a grande variao entre dados e estimativas existentes sobre o assunto refletem o desconhecimento da real magnitude do problema e, portanto, a dificuldade de interveno sobre suas conseqncias na sade. Obter informaes sobre nmeros de abortos uma tarefa complicada nos pases onde o aborto no permitido ou sofre restries srias em lei. Quase sempre os dados baseiam-se em estimativas construdas a partir de uma variedade de fontes, para se chegar mais prximo da realidade, ainda que certamente com muitas perdas. Embora ilcito no pas, o aborto realizado em grandes propores, na maior parte das vezes em condies inseguras, o que certamente explica a forte e constante participao desse evento como causa de mortalidade materna, j identificada por diversos autores (Souza, 1994; Laurenti, 1995). No mbito da sade pblica, h seguidas tentativas de visualizar os diversos aspectos significativos do problema, a despeito das dificuldades metodolgicas, tabus e preconceitos que permeiam o tema (Boehs et al., 1983; Martins et al., 1991; Souza, 1995; Costa et al., 1995; Silva, 1998).

1.3 - Questes sobre Gnero e Sade Reprodutiva

1.3.1 - Homens e Mulheres Atravs da Histria: uma relao em contnua construo Verardo (1995) observa com bastante lucidez a histrica apropriao do corpo feminino: regido por padres culturais que determinam uma esttica adequada ao desejo masculino; padres econmicos onde modelos de corpo e comportamento correspondem a estirpes sociais a serem demonstradas; padres morais e religiosos, que encobrem e culpabilizam o corpo da mulher, suscitador do pecado original; padres de mdia, inconstantes, alucinados, que colocam novos prottipos no mercado a intervalos de tempo cada vez menores. Studart (1990: 31) constata, nesse sentido, que dos objetos da sociedade de consumo (feitos para se deteriorar depressa), ela [a mulher] o que mais cedo entra em obsolncia. Analisando as relaes entre homens e mulheres atravs dos tempos, Muraro (1992) recupera a histria das primeiras sociedades humanas, de natureza matricntrica, onde as relaes sociais e atividades do grupo aconteciam em torno da mulher, sem que houvesse necessariamente dominao. A origem do (recente) patriarcado fonte de discusso entre diferentes teorias que tentam identific-lo. Muraro (1992) sugere a noo de transcendncia, o sentimento de superioridade do homem sobre a natureza e a mulher, nascida da descoberta do papel masculino sobre a procriao e, portanto, da possibilidade de controle da sexualidade feminina. A partir do desenvolvimento da agricultura, com novas tcnicas de fertilizao e irrigao da terra, novas formas de organizao social vo se conformando, com a substituio dos laos familiares (cls) pelas relaes de classe. Com o surgimento da propriedade privada e, portanto, da necessidade de manter os bens acumulados dentro da mesma gens3, era necessrio abolir o direito materno at ento vigente, isto , a descendncia s se contava por linha feminina, o que expressava a importncia da mulher como grande fora dos cls, com autoridade, inclusive, para destituir o marido, de acordo com a ocasio. Por isso, Engels (1979) considera a abolio do direito materno a grande derrota histrica do

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Engels (1979) explica que gens (ou cls) so um crculo fechado de parenrtes consaguneos (por linha feminina), que no podem casar-se uns com os outros; Consolidam-se atravs de instituies, de ordem social e religiosa, comuns, que os religiosa, comuns, que os distinguem de membros de outras gens da mesma tribo.

sexo feminino em todos os tempos, pois a partir da a mulher passou a ser considerada mera servidora do homem e instrumento de reproduo da famlia. E nesse contexto que a famlia monogmica vai se conformando, com o predomnio do homem, a necessidade de procriar a famlia e uma paradoxal fidelidade, que s se aplica s mulheres (sob pena de srias punies). Este tipo de organizao traz a novidade de uma famlia baseadas em condies econmicas, e no em condies naturais, bem como afirma o triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva. Para Engels, o primeiro antagonismo de classes coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opresso de classes, com a opresso do sexo feminino pelo masculino. Aquele ncleo familiar, portanto, nada mais era que a expresso celular das contradies e desigualdades de uma sociedade civilizada em desenvolvimento. Breilh (1996) identifica a privatizao mercantil da sociedade como ponto de partida para a ruptura de padres solidrios na coletividade humana, quando a propriedade privada passa a ser o principal objetivo. O processo de apropriao, que ento torna-se garantia da prpria sobrevivncia, no se d de forma equitativa: uns grupos se apropriaram mais que outros (origem das classes sociais); um gnero se apropriou mais que outro (origem do patriarcado) e algumas etnias imaginaram situar-se estrategicamente melhor que outras frente a propriedade e o poder (origem da iniquidade tnica e racismo), num movimento histrico que paulatinamente vai minando as relaes de afetividade e solidariedade humana. Segundo Muraro (1992: 83), nas sociedades agrrias, a estratificao de classes vem juntamente com a estratificao dos sexos. As identidades culturais masculina e feminina passam ento a serem enfatizadas desde a infncia, e a dominao da mulher pelo homem fortemente estabelecida: as mulheres so destinadas ao espao privado da sociedade, sua funo agora ter filhos e educlos segundo a nova ordem. Assim, ao longo da histria do patriarcado, a mulher fica destituda de possibilidades de desenvolvimento social e, embora exercendo importante papel de manuteno do espao privado, seu trabalho nunca foi reconhecido como produtivo. Mesmo quando houve sua insero no mercado de trabalho de forma mais massiva, no perodo da Revoluo Industrial, trabalhava sempre em piores condies e com

remunerao mais baixa que o homem, alm de manter a ainda atualssima dupla jornada, em casa e no trabalho. Somente a partir dos anos sessenta, um perodo de efervescentes movimentos sociais, que as relaes de dominao do homem sobre a mulher vm ser discutidas de forma mais consistente, a partir das instigantes colocaes da psicloga

necessidades de sade do grupo em questo, onde todo e qualquer contato que a mulher venha a ter com os servios de sade seja utilizado em benefcio da promoo, proteo e recuperao de sua sade (MS, 1984: 16). Na avaliao de vila (1995), o PAISM representou de fato um avano importante na mudana da condio feminina, e na transformao das representaes sociais sobre sade feminina, tendo como base uma nova viso do papel social da mulher. Uma outra importante controvrsia desencadeada pelo PAISM e discutida por Osis (1998) em seu artigo, o fato de o Programa excluir a participao do homem no processo reprodutivo, aparentemente resultando em contradio com a proposta de integralidade e universalidade do Programa. Geralmente pouco valorizada quando se trata de planejamento familiar, a participao masculina no processo reprodutivo tem, no entanto, paulatinamente se revestido de importncia cada vez mais visvel, especialmente frente discusso sobre o novo homem que vem se construindo diante das necessidades demandadas por mudanas no padro de comportamento da mulher, a partir do seu ingresso no mercado de trabalho, acesso cidadania e todas as modificaes da advindas. Luz (s.d.) identifica uma crise de representaes de masculino e feminino a partir de uma insatisfao generalizada criada pela entrada da mulher na produo e todas as novas exigncias ento produzidas que, somadas ao nus remanescente do ainda presente pacto das velhas representaes patriarcais, trouxeram uma sobrecarga de papis, sem nenhuma compensao, sobretudo no nvel pessoal, afetivo(Luz, s.d.: 84). Assim, tambm a regulao da fecundidade tornou-se, historicamente, uma responsabilidade explicitamente feminina. Tanto que a maior parte dos mtodos contraceptivos dispensa a participao do homem, dirigindo-se ao corpo e ateno femininas. Resultado disso que se criou uma enorme lacuna no que tange atitude masculina quanto s suas responsabilidades contraceptivas, difcil mesmo de ser avaliada, considerando que existem poucos dados disponveis acerca da atitude masculina quanto anticoncepo, conhecimento e uso de mtodos

anticoncepcionais (Duarte, 1998).

direito das mulheres terem controle e livre deciso sobre as questes relativas sexualidade, a includa sua sade sexual e reprodutiva.

Estudos do instituto The Alan Guttmacher (1994), partindo da anlise da reduo das taxas de fecundidade5 na Amrica Latina nos ltimos 20 anos, conclui que circunstncias econmicas, sociais e culturais tornaram disseminada a utilizao de mtodos contraceptivos, algumas vezes com o apoio do Estado. Avaliando esta prtica conceptiva como heterognea e irregular, especialistas designaram o termo necessidade no satisfeita de planejamento familiar para os diferentes obstculos tcnicos e humanos que expem a mulher ao risco de gravidez no planejada. Considere-se que, de acordo com a anlise dos mtodos contraceptivos mais empregados na regio, (...) no resta dvida que o planejamento familiar uma responsabilidade predominantemente feminina(...) (The Alan Guttmacher, 1994: 9). Verardo (1995) questiona a poltica contraceptiva do ponto de vista das mulheres, entendendo que, a despeito avanos tecnolgicos na rea de reproduo humana, a cincia ainda no ofereceu contraceptivos masculinos de forma a distribuir igualmente a responsabilidade da concepo entre homens e mulheres. Como resultado disso, cabe ainda mulher a incumbncia de experimentar as novas tecnologias reprodutivas6 que, muitas vezes, vo de encontro mesmo natureza do corpo feminino. Barros (1991) discutindo o fenmeno da medicalizao da mulher, a observa enquanto alvo privilegiado de atuao (tanto da propaganda, como vendas) da indstria farmacutica. At mesmo fenmenos fisiolgicos, como gravidez, menstruao e menopausa, so tratados como passveis de medicalizao, por frmacos dos quais se desconhece os riscos potenciais, entre eles os hormnios sexuais sintticos. Este processo bem esclarecido por Anne Ford:

O carter variado e rtmico dos padres do corpo feminino constitui uma idia um tanto alheia experincia masculina. Portanto, temos presenciado uma

normatizao masculina sendo aplicada a um sistema feminino. Dessa forma, a natureza cclica e flutuante dos corpos femininos tem sido considerada como de alguma forma demandando correo. Alteraes no humor que acompanham o ciclo menstrual (hoje designada como tenso pr-menstrual) poderiam ser visualizadas5

Taxa de Fecundidade definida como o nmero de filhos nascidos vivos no ano por cada mulher na faixa etria de 15 a 44 anos. 6 As novas tecnologias reprodutivas, de acordo com Tavares (1996: 217), so as vrias maneiras de intervir cientificamente no processo biolgico reprodutivo dos seres humanos, cujas aes so de: prevenir a concepo e o nascimento; ajudar e estimular os nascimentos; diagnosticar o desenvolvimento fetal no perodo pr-natal e para

como normais; passaram, no entanto, a ser tidas como doenas e, como tal, necessitando de controle Ford (1986) apud Barros (1991: 89).

Helman

(1996)

constata

que

a

medicina

moderna

vem

atuando

crescentemente como agente de controle social sobre a vida das mulheres, como parte de sua atuao em corrigir os vrios comportamentos sociais desviantes (loucos e doentes, por exemplo). O corpo feminino, com expresso de uma natureza imprevisvel e sem controle, precisa ser domesticado. A necessidade de constante medicalizao e/ou instrumentalizao da mulher pode ser considerada, por si s, um obstculo utilizao dos mtodos anticoncepcionais (Prado, 1995); mas isso pode ser um problema ainda mais grave nos pases subdesenvolvidos, onde so utilizados indiscriminadamente, de forma errada e sem nenhum tipo de controle do seu uso e reaes no organismo feminino (Tavares, 1996). Por exemplo, os hormnios injetveis, de uso restrito em vrios pases europeus, tm ampliado ainda mais o seu j disseminado uso no Brasil, em funo da falta de opes contraceptivas (SOS Corpo, 1991). A OMS, em reviso dos critrios para a prescrio de anticoncepcionais, faz restries aos injetveis, dada a escassez de dados epidemiolgicos sobre seus efeitos a longo prazo (PATH, 1996). A prpria histria deste tipo de medicamento est relacionada a um contexto de desenvolvimento de programas de controle de reproduo entre as mulheres dos pases subdesenvolvidos. A busca de mtodos os mais duradouros e simples possveis uniu os interesses da indstria farmacutica e dos programas de controle de natalidade (Barros, 1991). Alm disso, a progressiva pesquisa por mtodos de longa durao, que requerem menor iniciativa por parte da usuria, e diminuem tambm a necessidade de maior interao com os servios de sade de suporte, presta-se ao objetivo implcito, que o de retirar completamente o controle da mulher sobre a prpria contracepo (Hartmann, 1987). Tambm ilustrativo de como o corpo da mulher passa a ser alvo de manipulao e experimentao irracional o caso da pesquisa do Norplant7 no Brasil,

propsitos genticos. Anteriormente, essas discusses eram denominadas concepo e contracepo, tidas hoje como antigas tecnologias reprodutivas (...) 7 Implantes subcutneos de marca registrada Norplant. Em experimentao h mais de 10 anos, tm a forma mais comum de bastes de silicone, que so inseridos sob a pele, e tm em sua composio o hormnio progestgeno em alta dosagem. Tanto o implante como retirada dependem de superviso tcnica cuidadosa, por se tratar de procedimento cirrgico.

autorizada em 1984 pelo Ministrio da Sade (MS) e desenvolvida em diversos estados brasileiros pela Universidade de Campinas. A pesquisa no observou os mnimos pressupostos ticos para pesquisas com seres humanos, menos ainda pesquisas com contraceptivos, arriscando a sade de milhares de mulheres, sem mesmo inform-las sobre os possveis riscos aos quais estavam vulnerveis. A autorizao para a pesquisa foi cancelada em 1986 pelo Ministrio da Sade e, anos depois, muitas mulheres ainda sofriam as consequncias pela experincia (Dacach e Israel, 1996), j que, at a suspenso, mais de trs mil mulheres j haviam sido includas na amostra; Gestaes indesejadas durante o uso do implante e efeitos colaterais como irregularidades menstruais graves foram s algumas das consequncias da pesquisa. De acordo com Hartmann (1987), h trs grandes vieses a serem considerados na pesquisa contraceptiva contempornea: a focalizao

preponderante do sistema reprodutivo feminino, fato devido no s a que as mulheres so o alvo principal dos programas de controle da populao, mas tambm devido ao sexismo; a concentrao de recursos e esforos no desenvolvimento de formas contraceptivas sistmicas e cirrgicas, em detrimento dos mtodos de barreira, mais seguros; o terceiro vis, indissocivel do segundo, a maior preocupao em aumentar a eficcia contraceptiva, e no sua segurana: a necessidade de controlar o nmero de nascimentos fala mais alto que o cuidado com a sade da mulher. Os mtodos contraceptivos modernos, inicialmente aclamados pelo

movimento feminista como uma conquista fundamental das mulheres, liberando-as do sexo necessariamente associado reproduo, passam, ento, a representar grave ameaa sua sade, com consequncias at mesmo ignoradas pelas usurias e banalizadas pelo meio cientfico. Pacheco (1974) refere a existncia de um patriarcado cientfico e financeiro neste assunto: homens desenvolvem, produzem e vendem hormnios sintticos e dispositivos a serem usados pelas mulheres, poupando os homens de experincias neste sentido. Ao mesmo tempo em que submetem o corpo feminino a medicamentos que alteram todo o seu ciclo e fisiologia, com potenciais efeitos colaterais graves j comprovados (embolias, tromboses, cncer de mama ou de tero), possibilitam o avano de uma lucrativa indstria farmacutica.

O consenso de que no existe um mtodo ideal, significa, na verdade, reconhecer que a maioria deles possui contra-indicaes que, em alguns casos, podem ser problemas de sade, de equilbrio psquico ou emocional ou de vivncia da sexualidade. E, tendo sido desenvolvidos segundo o interesse de polticas controlistas, os mtodos modernos atendem menos quelas que o buscam, a despeito de sua crescente disseminao (Ribeiro, 1994), como bem sintetiza Carneiro (1996: 114):

Nestas ltimas dcadas (...), enquanto falas feministas lanavam apelos para que a vivncia cotidiana do erotismo dos corpos frteis fosse plena de prazer e, sem fecundao (...), a resposta contempornea cientfico-tecnolgica vinha sustentada pela estratgia primeiro-mundista do controle populacional e guiada pela viso mecanicista do corpo.

1.4 - Poltica Demogrfica, Prtica Contraceptiva e Aborto Induzido: compreendendo algumas relaes

1.4.1- Poltica Demogrfica e Planejamento Familiar: onde termina a escolha e comea o controle A delicada discusso sobre a necessidade de planejamento familiar algumas vezes posiciona-se numa linha tnue entre a possibilidade democrtica de os casais decidirem sobre o nmero de filhos desejados e o controle oficial, explcito ou no, da reproduo. Mdici e Aguiar (1984: 25) esclarecem que, na histria dos pases desenvolvidos, as taxas de crescimento populacional tendem a declinar como consequncia do desenvolvimento econmico:(...) fato decorrente, entre outras coisas, da melhoria dos padres educacionais e scio-culturais da populao e do consequente acesso aos meios e tcnicas anticonceptivas. Paralelamente, a reorganizao do aparelho produtivo, a utilizao de estruturas econmicas de maior produtividade e o aumento do grau de urbanizao detonam, conjuntamente, efeitos indiretos, embora defasados

temporalmente, na reduo das taxas de natalidade.

Por outro lado, ainda segundo os autores, nos pases subdesenvolvidos, o declnio da fecundidade ocorreu tardiamente, tanto devido a suas estruturas econmicas e de relaes de produo arcaicas, como por um processo rpido de urbanizao. Entretanto, os parciais progressos nas reas de sade e saneamento j haviam anteriormente favorecido um declnio da mortalidade8, resultando, portanto, no que o autor chama hiato temporal entre o declnio da mortalidade e da natalidade9, possivelmente o mais importante determinante pelo grande contigente populacional verificado no Terceiro Mundo. Interessante que h nestes pases uma inverso de valores no que tange questo demogrfica, e as tentativas de controle populacional basearam-se na idia de que disso decorreria o desenvolvimento econmico. Apesar da macia queda de natalidade no Brasil desde 1950, especialmente a partir de 1965, mesmo sem que se tivessem sido implementados programas oficiais de planejamento familiar, no houve por isso uma melhoria proporcional nas condies de vida da populao (Mdici e Aguiar, 1984). Almeida (1984), ao enumerar as razes de sua vigorosa posio contrria proposta de planejamento familiar, ressalta a existncia de uma associao ideolgica entre as propostas de controle de natalidade, eugenia e fascismo, dada a comunho entre estes pensamentos a partir de 1915, com a criao de sociedades eugenistas em vrias partes do mundo, que defendiam a necessidade de as raas consideradas superiores sobrepujarem as inferiores. Para isso, seria necessrio diminuir a alta taxa de natalidade entre os pobres, principal empecilho evoluo da humanidade. O autor condena ainda a execuo oficiosa do planejamento familiar no Brasil, atravs de aes dirigidas s mulheres mais desfavorecidas

economicamente, de modo irracional, sem nenhuma preocupao com uma real assistncia sade neste sentido. Mais recentemente, Oliveira (1997) percebe traos de vinculao entre aborto e racismo na poltica ambgua executada pelos pases desenvolvidos - enquanto pesquisas incessantes sobre tratamento da infertilidade evoluem entre mulheres

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Calcula-se o coeficiente de mortalidade geral dividindo-se o nmero de bitos concernentes a todas as causas, em um determinado ano, pela populao daquele ano, circunscritos a uma determinada rea, e multiplicando-se por 1 000, base referencial para a populao exposta. Em sade pblica utilizado na avaliao do estado sanitrio de determinadas reas, associado a outros indicadores (Rouquayrol, 1994). 9 Taxa Bruta de Natalidade definida como o nmero mdio de nascimentos ocorridos num ano, para cada mil habitantes.

brancas e ricas, pratica-se um controle de natalidade coercitivo nos guetos de misria e de estrangeiros. A questo do controle da natalidade enquanto uma preocupao internacional surgiu nos anos setenta, quando a ajuda econmica dos Estados Unidos Amrica Latina passou a estar condicionada a medidas de conteno da populao por parte destes pases (Mdici, 1984; Barroso, 1987; Corral, 1996). Motivaes econmicas, polticas e ideolgicas subsidiaram a presso internacional por controle populacional. Costa (1995) apresenta em seu modelo explicativo sobre os determinantes da laqueadura tubria elementos do cenrio internacional que, embora nem sempre muito explcitos, desempenharam um papel importante na poltica demogrfica do Brasil. So eles: fatores econmicos, fatores polticos, o neo-malthusianismo10, o movimento de controle populacional, o movimento eugnico e a preocupao com a migrao internacional da populao do Terceiro Mundo. Sobre os fatores econmicos, o autor apresenta a questo estratgica de que os recursos exportados pelos pases do Terceiro Mundo (alimentos e matria-prima) necessrios ao suprimento das necessidades dos pases desenvolvidos estariam ameaados pelo crescimento desenfreado da populao e. portanto, das demandas nos pases subdesenvolvidos. Alm disso, havia o temor de que um crescimento razovel da populao, acompanhado por um paralelo desenvolvimento da economia, poderia alavancar a posio destes pases no mercado internacional, dessa forma tambm ameaando a hegemonia dos pases desenvolvidos. A preocupao das autoridades brasileiras com uma possvel exploso demogrfica no pas comeou nos anos 80 e levou-as a adotar medidas antinatalistas de forma desregrada e seletiva, como a distribuio de plulas em comunidades de baixa renda e esterilizaes durante o parto sem o consentimento da gestante, um caminho repleto de contradies para eliminao da pobreza, com consequente desenvolvimento do pas (Verardo, 1985; Barroso, 1984).

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Neo-malthusianismo: corrente de idias derivadas do pensamento do Reverendo Thomas Robert Malthus (1766-1834), sobre o descompasso entre o crescimento da populao (em progresso geomtrica) e o aumento de recursos alimentares (em progresso aritmtica), e suas consequncias negativas para o desenvolvimento dos pases. Para os neo-malthusianos, o rpido crescimento populacional a causa principal dos problemas do Terceiro Mundo, como a fome, destruio ambiental, estagnao econmica e explorao desordenada dos recursos naturais. Por isso, so favorveis utilizao massiva de mtodos de controle de natalidade como soluo dos problemas destes pases (Costa, 1995).

Esse discurso incorporou-se de forma to marcante no plano privado, que as famlias brasileiras passaram a controlar o nmero de filhos como forma de readequar o oramento domstico ou simplesmente garantir a prpria sobrevivncia (Portella 1995). Sobre isso, Mdici (1987) aponta entre as causas da reduo da fecundidade no Brasil, alm do aumento vertiginoso das taxas de urbanizao e consequentes efeitos sobre a reduo do nmero de filhos (a exigncia de uma lgica diferente em relao lgica econmica das famlias rurais), as mudanas de comportamento decorrentes dessa urbanizao, com o aumento da insero da mulher no mercado de trabalho e suas dificuldades inerentes, no que diz respeito ao cuidado e manuteno da prole, pela precariedade de aparelhos sociais, como creches. Barroso (1984) faz um importante alerta quanto aos perigos da dicotomia de pensamentos vigentes no campo do planejamento familiar: falha a ideologia neoliberal, ao considerar a deciso sobre contracepo, ou sobre ter ou no filhos, fruto de motivaes individuais, onde as pessoas reduzem-se a meros consumidores que agem exclusivamente com base em preferncias pessoais ao escolher determinados servios ou produtos do planejamento familiar, distanciando-os do contexto social mais amplo que determina, em certa medida, tais escolhas. Erra tambm a literatura anticontrolista, ao subestimar a experincia individual das mulheres, e as negociaes e estratgias adotadas no campo das relaes humanas a fim de decidir sobre o nmero de filhos ou como evit-los. Atribuir toda deciso a uma corporao controlista suprema parece querer reduzir a complexidade da situao. Referindo-se especificamente ao problema da esterilizao feminina em massa, a autora considera que a maioria das mulheres decide, sim, livremente pela interveno. Adverte, porm, que no capitalismo as escolhas so tomadas sob um conjunto de condies socialmente estabelecidas, que restringem uma verdadeira liberdade de escolha. Quatro fatores so considerados crticos quando da opo por um mtodo irreversvel, a deciso de no ter mais filhos: A posio da mulher na famlia e no mercado de trabalho, com o surgimento da fora de trabalho feminina como uma sobrecarga adicional ao j pesado fardo de responsabilidades femininas: a contracepo, o lar, o cuidado com os filhos, sem uma estrutura social correspondente.

A cultura patriarcal, presente na opo por um mtodo que dispensa o conhecimento e controle do prprio corpo e sexualidade; na hostilidade dos homens pelos mtodos anticoncepcionais, quando no mostram-se completamente

indiferentes questo. A poltica de sade, situando a contracepo como uma indstria controlada por interesses econmicos que no se baseiam nas necessidades das mulheres, mas em interesses mercantis. A poltica demogrfica brasileira, marcada por contradies e ambiguidades. Se por um lado, caracterstica a omisso governamental em implementar medidas concretas, por outro o apoio oferecido a entidades estrangeiras, atuando sem nenhum controle, pontuou de forma definitiva a histria do planejamento familiar no Brasil. Rocha (1991) observa que, embora nos vinte e cinco anos de discusso sobre planejamento familiar no Brasil, o eixo central do debate tenha se concentrado na questo controlismo versus anticontrolismo, a influncia do movimento feminista nos anos 80 trouxe uma nova polarizao, em torno da questo tica referente validao ou no da autonomia individual para decises nesta matria, questo que, por sinal, tambm fundamental na discusso sobre o aborto provocado.

1.4.2 - Declnio de Fecundidade e Prtica Contraceptiva no Brasil: dimenses e contradies Em toda a Amrica Latina houve uma acentuada diminuio na taxa de fecundidade nas ltimas dcadas: de cerca de seis filhos em 1960-65 para trs por mulher em 1990-95 (The Alan Guttmacher Institute, 1994). No Brasil, um declnio espantosamente marcante da fecundidade ocorreu a partir de 1980, quando a Taxa de Fecundidade Total, que era de 4,17 filhos por mulher no perodo de 1975-80, diminue para 3,37 no perodo seguinte, de 1980-85. E, se considerarmos perodos pontuais mais espaados, o declnio, de 1960 a 1995, na taxa de 6,0 para cerca de 2,5 filhos por mulher, d uma idia da dimenso do fenmeno, que afetou praticamente todas as regies e estratos sociais (Martine, 1996). Na verdade, a reduo da fecundidade no Brasil vem acontecendo desde os anos 40, inicialmente em ritmo lento. A partir da dcada de 70, o declnio da

fertilidade se d de forma disseminada na populao, resultando em mudanas concretas na dinmica populacional (Martine, 1996). Este autor descreve quatro fatores importantes enquanto determinantes de variaes na fecundidade pelo mundo: padres maritais, contracepo, aborto induzido e no-susceptibilidade ps-parto, principalmente devido amamentao. Constata que, dentre estes fatores, o aborto induzido parece ter produzido o maior impacto no rpido declnio da fecundidade no Brasil entre o final dos anos sessenta e incio dos anos setenta, perodo inicial do processo de declnio rpido de fecundidade. O desconhecimento sobre a prevalncia do aborto no pas provavelmente leva, ainda hoje, a uma subestimao de sua importncia enquanto mtodo de regulao de fecundidade. Quanto contracepo, determinante prximo considerado de maior importncia sobre a queda de fecundidade no Brasil, o mesmo autor considera que a esterilizao, enquanto mtodo de controle de nascimentos, teve o maior impacto sobre a fecundidade pois, sendo praticada de forma disseminada, em mulheres com idades cada vez mais jovens e considerando que acaba com o ciclo reprodutivo da mulher, acabou assumindo o papel de conduo deste fenmeno, de forma silenciosa e semi-clandestina. O aumento da prevalncia da laqueadura tubria no Brasil, de 7,1% em 1975, para 49,2% em 1996, revela a magnitude deste processo (Molina, 1999). A regio do pas que apresentou a mais acentuada queda de fecundidade em termos de nmero de filhos foi a regio Nordeste. Wong (1994) sugere a hiptese de que este fenmeno tem se operado principalmente via educao, se renovando atravs de novos valores sociais difundidos pelos meios de comunicao, principalmente a televiso. Corral (1996) problematiza o fato de que, apesar de experimentar uma das mais rpidas redues nas taxas de fertilidade da histria da humanidade, o Brasil no apresentou os indicadores sociais favorveis esperados, pelo contrrio, houve no mesmo perodo um aumento nos nveis de pobreza e deteriorao nas condies ambientais, resultando em desequilbrio social. Assim, j no incio dos anos 90, Patarra chama a ateno para o fato de que no mais o crescimento populacional alvo de preocupao, mas a rpida transformao da estrutura etria, com uma populao adulta mais volumosa e

crescente proporo de idosos, criando novas demandas sociais e de sade, para as quais o pas no possue respostas adequadas. A alta prevalncia do uso de anticoncepo no Brasil constatada na mais recente Pesquisa Nacional de Demografia e Sade - PNDS-1996 (76,8% das mulheres em unio de 15-44 anos afirmam usar algum mtodo anticoncepcional) aponta para essa necessidade de regular a fecundidade. A esterilizao feminina o mtodo mais comum (40,2% das mulheres pesquisadas), enquanto que a plula, injetveis e DIU, juntos, representam uma proporo de 23% das mulheres. Costa e colaboradores (1989), estudando a prtica contraceptiva entre mulheres de baixa renda, encontrou uma alta prevalncia (67%) de mulheres fazendo uso de algum tipo de contracepo em sete favelas do municpio do Rio de Janeiro, uma constatao consideradas surpreendente pelos autores, dada a baixa oferta de planejamento familiar pelos servios pblicos. Contudo, a ainda alta proporo de mulheres em unio que no usavam mtodos (33%), bem como a demanda acentuada por esterilizao (22% das mulheres usando algum mtodo) chamam a ateno para falhas na organizao da ateno sade no que diz respeito anticoncepo, resultando em um prtica distorcida, ainda que bastante disseminada. Morris (1985), a partir da anlise de diversas pesquisas de fecundidade e planejamento familiar na Amrica Latina, revela desigualdades regionais na utilizao de mtodos contraceptivos no Brasil, numa variao que compreende desde 31% na Bahia at 71% no Rio Grande do Sul. Segundo os dados disponveis, a utilizao de mtodos contraceptivos possue relao inversa com a ocorrncia de gestaes indesejadas no Brasil, numa variao de 9 at 33%, de acordo com a regio, do total de mulheres casadas de 15 a 44 anos. Estimativas do AGI (1994) para 1990 no Brasil indicam 54% de gestaes no planejadas, sendo que 31% resultam em aborto induzido e 23% em nascimentos indesejados. O estudo conclue que a prtica abortiva uma importante opo para evitar nascimentos indesejados, considerando a grande proporo de mulheres em idade frtil muito ou totalmente desprotegidas contra o risco de uma gravidez que no desejam, alm das muitas que experimentam a falha do mtodo contraceptivo que utilizam. Morris (1985) define o perfil de mulheres com necessidade insatisfeita de anticoncepo as que no esto grvidas, ou declaram que atualmente no desejam

estar grvidas e esto utilizando algum mtodo contraceptivo ineficaz, ou no esto utilizando mtodo algum. Consequentemente, so frteis e sexualmente ativas, independente do seu estado marital. De acordo com este definio, os dados do autor mostram a porcentagem de mulheres de 15 a 44 anos em risco de gravidez no planejada com intensas variaes regionais no Brasil, oscilando de 3,2% no Rio Grande do Sul a 18,3% na Bahia. Segundo dados do MS de 1999, no Brasil, cerca de 10 milhes de mulheres esto expostas gravidez indesejada, seja por uso inadequado de mtodos anticoncepcionais ou por falta de conhecimento e/ou acesso aos mesmos (Brasil, 1999). A OMS (1978) assim considera a influncia da contracepo e aborto sobre a transio demogrfica: ainda que o aborto provocado possa inicialmente contribuir de modo importante para a diminuio na taxa de natalidade, aps algumas dcadas tende a ser superado pela contracepo. Este fenmeno se desenvolve, no entanto, na medida em que se adote a contracepo. A OMS reconhece que, nos pases onde o aborto ilegal ou sofre restries, em geral o aborto provocado um dos mtodos mais prevalentes de regulao de fecundidade. A experincia diz, no entanto, que normalmente a oferta de servios de planejamento familiar tende a diminuir o nmero de abortos provocados (Serani et al., 1981; DAvanzo et al., 1992; Gissler et al, 1996). No possvel, entretanto estabelecer relao direta entre legalizao do aborto e queda da fecundidade. Aps a legalizao do aborto nos diversos pases onde isso ocorreu, foram observadas as mais variadas situaes: ligeiro aumento da natalidade, manuteno do padro anterior, ou franca diminuio da fecundidade, levando a crer que a disponibilizao do aborto e contracepo apenas legitimam uma vontade deliberada de reduzir o nmero de nascimentos, que anterior s polticas oficiais (Frente de Mulheres Feministas, 1980).

1.4.3 - Dinmica do Uso de Contraceptivos: dificuldades e (des)motivaes Diferentes experincias no estudo da dinmica do uso de contraceptivos apontam para a sua intrnseca relao com a prevalncia de aborto induzido (Moreno, 1993). Vrios conceitos de eficcia dos mtodos contraceptivos tm sido propostos em diferentes situaes. O conceito considerado mais puro em reviso feita por Trussell e Kost, em 1987, o de efetividade dos mtodos contraceptivos, que definido como a reduo proporcional na fecundidade causada pelo uso de um mtodo. Inversamente, os termos falha do mtodo e falha do uso tm sido utilizados para denotar a concepo que ocorre enquanto um mtodo est sendo usado, respectivamente, corretamente ou incorretamente (Mishell Jr, 1989). Tietze (1971) salienta a importncia de separar a eficcia terica da eficcia no uso dos mtodos contraceptivos. Segundo este autor, a eficcia terica, tambm conhecida como eficcia biolgica ou fisiolgica, refere-se ao anti-fertilidade de um mtodo sob condies de laboratrio. Por outro lado, a eficcia no uso, ou eficcia clnica, refere-se proteo contra a gravidez indesejada obtida pelas usurias em condies reais, na vida, incluindo-se as expresses de falha humana. Mishell Jr. (1989) aponta como fator crtico entre os muitos que influenciam as taxas de falha contraceptiva a motivao. Isso d pistas para a compreenso do achado de que casais que pretendem apenas adiar uma gravidez desejada so mais propensos a falhas contraceptivas do que aqueles que pretendem evitar qualquer possibilidade de gravidez. A mesma constatao feita por Moreno (1993), num estudo baseado em dados das Pesquisas de Demografia e Sade realizadas em 15 pases da Amrica Latina, sia e frica do Norte: com exceo do Mxico e Sri Lanka, em todos os pases as taxas de falha contraceptiva so menores entre as mulheres que desejam adiar a gravidez. Em todos os pases, o risco de falha menor entre as mulheres acima de 25 anos. Tambm entre mulheres americanas, a varivel idade est correlacionada inversamente com ao risco de falha contraceptiva (Mishell Jr., 1989). Em pesquisa similar recentemente realizada no Brasil (BEMFAM, 1996), 43% das usurias de mtodos anticoncepcionais interromperam o uso durante o primeiro ano aps sua adoo. Os efeitos colaterais relativos aos mtodos hormonais e DIU aparecem como principal causa da descontinuidade, principalmente entre as usurias de injees. Para os mtodos tradicionais, o principal motivo para a

interrupo foi a falha do mtodo - um grande percentual de mulheres engravidou quando do uso destes mtodos. Outro motivo importante mencionado pelas mulheres para a interrupo do uso de mtodos foi a busca por mtodos mais eficazes, especialmente entre as usurias de mtodos tradicionais e condom. Embora, aparentemente, a maioria dos pases latino-americanos tenha adotado polticas de apoio aos servios de planejamento familiar, e o progressivo declnio das taxas de fecundidade fale a favor deste fato, h ainda intensas discrepncias no exerccio da contracepo nesta regio (The Alan Guttmacher Institute, 1994). Segundo o AGI, na Amrica Latina as mulheres dependem mais dos contraceptivos orais, da esterilizao voluntria, do DIU, ou dos mtodos tradicionais para evitar gestaes indesejadas. A esterilizao feminina, um mtodo, como se sabe, irreversvel, o mais praticado no Brasil, Chile e Repblica Dominicana. Mais ainda, evidente que grandes propores de casais no praticam qualquer tipo de planejamento familiar, ou no o praticam adequadamente, com toda sua eficcia. O fato de ter acesso a servios de planejamento familiar no resulta necessariamente em sua utilizao. Inmeras razes subjetivas esto envolvidas no complexo processo de adoo, escolha e continuidade dos mtodos

anticoncepcionais. Neste sentido, Moreno (1993) observa que, embora frequentemente aclamados como determinantes de falha contraceptiva, as variveis educao e residncia nem sempre podem explicar a forma de utilizao dos contraceptivos. Leal e Lewgoy (1998), estudando a prtica de aborto em um grupo popular na cidade de Porto Alegre, a partir de uma perspectiva antropolgica, ultrapassam as razes bvias de falha contraceptiva, resgatando a rede de relaes na qual a gravidez e/ou aborto est inserida. Para estes autores, esta uma parte fundamental da negociao entre o masculino e o feminino, mediando e viabilizando tambm relaes entre famlias e grupos de afinidade (Leal e Lewgoy, 1998: 3). Neste sentido, a gravidez desencadeia um processo de negociao dentro do contexto familiar e social, podendo resultar na formao de aliana ou reestruturao de uma unio j existente. Se essa negociao no resultar no consenso de assumir a gravidez, o aborto surge ento como alternativa de mtodo anticoncepcional, aps esgotadas as possibilidades de barganha.

Para algumas mulheres, ainda segundo os autores, a gravidez representa um evento de risco, aleatrio, que pode ou no acontecer. Da a utilizao do aborto como mtodo anticoncepcional, dadas tambm as frequentes queixas sobre os

mtodos contraceptivos clnicos: na anlise custo-benefcio realizada por estas mulheres, o aborto parece uma possibilidade mais favorvel. A desmotivao para a utilizao de mtodos contraceptivos por parte dos adolescentes faz da gravidez indesejada um problema especial nesta fase (Jimena et al., 1991; Pinto Neto et al., 1991; Gissler et al., 1996). Sobre o exerccio da sexualidade na adolescncia, Vitiello (1997) observa que o modelo mgico de pensamento, importante resqucio da infncia, leva os adolescentes a uma sensao de impunidade, segundo a qual seus atos e vivncias no tero maiores consequncias reais. Prado (1995) atribue esse pensamento mgico influncia da indstria da mdia, que veicula massivamente imagens e informaes de um sexo prazeroso, desligado do risco de gravidez. Isso levaria descrena individual de uma gravidez, principalmente na puberdade. Essas conjecturas podem ser visualizadas na experincia de Silva e Nogueira (1986) que, num estudo comparativo entre adolescentes primigrvidas e multigrvidas, revelam-se surpresos com a grande proporo de adolescentes multigrvidas encontradas em seus estudos anteriores, da sua preocupao em conhecer melhor este grupo. Em relao prtica contraceptiva, encontraram que, apesar das gravidezes anteriores, apenas 28,8% utilizava algum tipo de mtodo contraceptivo e, entre elas, apenas 27,3% tiveram uma gravidez planejada. Os autores se do conta de que apenas a experincia de uma gravidez anterior no foi suficiente para fortalecer um comportamento preventivo, concluindo que persistem intricados mecanismos que fazem infrequente a atividade sexual das adolescentes concomitante a uma adequada contracepo (Silva e Nogueira, 1986: 250). Portanto, discutir aborto pressupe refletir sobre questes que vo muito alm das razes mdicas e legais: envolve construes sociais profundas sobre maternidade e sexualidade (Cardich e Carrasco, 1993; Rede Mundial de Mujeres por los Derechos Reprodutivos, 1993; Lerer, 1989); discusses ticas em torno do fato de a mulher poder decidir sobre o prprio corpo (Oliveira, 1997; Suplicy, 1986); as tradies religiosas, mais enfticas na doutrina catlica, por um lado reforando a

sacralizao da maternidade e, por outro, participando ativamente no controle patriarcal ao corpo da mulher (Oliveira e Carneiro, 1995). Alm disso, fica sempre evidente a necessidade de perceber o evento aborto fundamentalmente como um problema de sade pblica, como causa de mortes e complicaes de sade em um grande nmero de mulheres. A dificuldade de conhecer a dimenso real do problema, e a verdadeira proporo de abortos espontneos e induzidos, tendo em vista a legislao restritiva sobre o assunto em nosso pas, impossibilita reconhecer at onde o aborto induzido vem sendo utilizado pelas mulheres enquanto mtodo contraceptivo, preenchendo possveis lacunas na oferta/disponibilizao de outros mtodos. Souza (1995), estudando fatores de risco para abortamento em uma maternidade pblica em Recife, encontrou que em quase 80% dos casos os abortos poderiam ser considerados como induzidos, de acordo com os critrios da OMS. A falta de acesso e uso de mtodos contraceptivos aparecem como fatores de risco significativos. Alm disso, a ausncia ou atitude negativa do companheiro e maior nmero de filhos vivos tambm constituram determinantes importantes. Conhecer melhor as caractersticas das mulheres que abortam diante de mltiplas impossibilidades em ter um filho num dado momento de suas vidas, pode ajudar a traar um perfil mais preciso deste grupo, que passa ao largo das estatsticas oficiais, possibilitando direcionar aes e servios de forma a atender suas necessidades reais. No presente trabalho, o aborto ser investigado a partir dos internamentos por complicaes ps-aborto em uma maternidade pblica de Recife - PE. O trabalho consiste em traar o perfil dessas complicaes e das mulheres que procuraram o servio, tentando identificar a proporo de abortos induzidos, que sero relacionados prtica de contracepo: a compreenso do papel dos mtodos anticoncepcionais, sua forma de utilizao, facilidades e dificuldades apontadas pelas mulheres, podem ajudar visualizao do evento aborto induzido enquanto parte de uma complexa rede de determinaes, da qual a necessidade de acesso a servios contraceptivos de qualidade certamente um importante elo. Cabe aqui sublinhar que discutir mtodos anticoncepcionais no significa, mais uma vez, culpabilizar a mulher por uma gravidez no planejada, mas sim discutir sob quais bases est constitudo o chamado planejamento familiar, tendo em vista o papel que vem sendo historicamente exercido e transformado pela mulher.

OBJETIVOS

Cada ser humano encontra-se num enredo especfico cultural, situao econmica, geracional, e condicionado a um papel sexual. Cada corpo, uma histria, um enredo, uma tragdia, um enlevo... Cada corpo, to solitrio em suas vivncias e to enlaado na teia social. Corpo de mulher, experincia parte lugar de reproduo, lugar de prazer, de culpabilizao, de explorao, de excesso e falta de poder! Haidi Jarshel, no artigo Variaes sobre o bem e o mal

2. OBJETIVOS

2.1 - Objetivo Geral Conhecer e avaliar caractersticas epidemiolgicas das mulheres internadas por complicaes ps-aborto, atendidas na maternidade do Centro Integrado de Sade Amaury de Medeiros (Cisam), Recife - PE.

2.2 - Objetivos Especficos Caracterizar o perfil das mulheres internadas por complicaes ps-aborto na maternidade do Cisam, em relao a caractersticas scio-econmicas, histria reprodutiva e conhecimento/uso de mtodos contraceptivos.

Identificar a proporo de abortos induzidos, verificando neste grupo fatores que influenciem/expliquem o recurso ao aborto induzido.

Categorizar os abortos como casos de gestaes planejadas ou no planejadas, analisando possveis diferenas entre os dois grupos.

METODOLOGIA

... a produo de conhecimentos acerca de um objeto assumida como um processo de sucessivas aproximaes, as quais, em cada momento, produzem um nvel de conhecimentos possveis de acordo com recursos tericos, metodolgicos e materiais disponveis. Cada conhecimento novo produzido torna possvel um novo nvel de investigao que nos permitir, por sua vez, maior aproximao com relao ao conhecimento do objeto. E assim sucessivamente, como um processo de morfognese, no qual cada estado representa um novo nvel de organizao do conhecimento e, desse modo, o crescimento da cincia. Pedro Luis Castellanos, no artigo Epidemiologia, sade pblica, situao de sade e condies de vida. Consideraes conceituais.

3. METODOLOGIA

3.1 - Local de Estudo O Centro Integrado de Sade Amaury Medeiros (Cisam) um servio pblico de sade que pertence Universidade de Pernambuco e tem como diretriz bsica de trabalho a assistncia sade da mulher, com servios de ambulatrio e maternidade. Est situado no bairro da Encruzilhada, em Recife. Por sua localizao privilegiada, facilita o acesso a mulheres provenientes principalmente das cidades de Recife e Olinda. Vale ressaltar que nossos resultados so especficos de demanda hospitalar, no permitindo generalizaes para as populaes dos municpios citados. A escolha desta instituio como unidade de anlise deve-se ainda a seu carter de ensino e pesquisa, o que certamente funciona como um facilitador para esta pesquisa, envolvendo um tema to repleto de estigmas sociais e, portanto, possivelmente de difcil abordagem em um outro tipo de instituio. Segundo os dados disponveis para 1999, a instituio realizou um total de 1.354 curetagens ps-aborto, o maior nmero de atendimentos deste tipo entre maternidades pblicas no Recife. Quando internadas por complicaes ps-aborto, as mulheres so

normalmente submetidas a curetagem uterina, interveno cirrgica destinada a remover restos placentrios ou outros retidos no tero aps um aborto, espontneo ou induzido. Posteriormente, so encaminhadas enfermaria de puerprio patolgico, onde ficam em observao por cerca de 6 horas, recebendo a

medicao necessria e realizando exames de rotina. Na prpria enfermaria, as pacientes obtm informaes sobre mtodos contraceptivos, e j podem receber o DIU, se assim decidirem. Aps receberem alta, so ainda orientadas a retornar para serem atendidas pelo Servio de Planejamento Familiar da maternidade.

3.2 - O Estudo Descritivo: possibilidades e limitaes A modalidade de estudo epidemiolgico adotada do tipo observacional de corte transversal, um desenho que produz quadros descritivos da situao de sade em um dado momento. A mais adequada definio para esse tipo de estudo, segundo Rouquayrol (1994: 169) a de estudo epidemiolgico no qual fator e efeito so observados em um mesmo momento histrico. Este tipo de estudo pode ser eficaz em formular hipteses causais, e de forma rpida e objetiva, dadas suas vantagens de possuir baixo custo de

operacionalizao e grande capacidade descritiva, podendo servir de base ao planejamento de aes em sade. Da Laurenti (Tema, 1998) sugerir a expresso epidemiologia participativa a este tipo de investigao, no sentido de no ficar limitada a observar e descrever, mas de infomar ao pblico os conhecimentos adquiridos, apontando caminhos para a preveno. Os problemas atribudos a este tipo de estudo por Rouquayrol (1994:169) so os possveis vieses de seleo, no caso de utilizao de registros institucionais, como registros hospitalares, onde fatores tnicos e sociais podem (...) ser mais importantes para definir a hospitalizao ou o tratamento do que a prpria gravidade do transtorno. Alm disso, considera-se que este tipo de estudo tem baixo poder analtico, sendo imprprio em testar hipteses causais. Sobre isso, Pereira (1995) chama a ateno para a dificuldade em estabelecer associao entre exposio e doena, j que a relao cronolgica entre os eventos pode no ser facilmente apreendida. Em um estudo transversal, a populao a ser estudada reunida em momento definido pelo pesquisador, que pode no corresponder poca de exposio ao risco, nem de diagnstico da doena. Elegemos o estudo de corte transversal como adequado a nosso objeto por ser uma boa opo para se descrever caractersticas de eventos em uma populao e, a partir disso, identificar possveis grupos de risco. Alm disso, a limitao de tempo e recursos tambm foram determinantes importantes na escolha por um mtodo de operacionalizao relativamente mais simples.

3.3 - Coleta de Dados

3.3.1 - Definio de Caso Foram selecionadas para entrevista as mulheres internadas por complicaes ps-aborto na maternidade Professor Antonio Moraes - Cisam, no perodo de 01 julho de 1999 a 31 de janeiro de 2000, durante a internao na enfermaria de puerprio patolgico, em diferentes horrios do dia, considerando idade gestacional at 22 semanas. A classificao de aborto induzido seguiu os critrios estabelecidos pela OMS, 1978 (Anexo 1), considerando apenas os que se enquadrem na categoria aborto seguramente provocado, que correspondem queles identificados a partir da declarao da mulher. Foram excludas do estudo as mulheres cuja gravidade do estado clnico impossibitasse o proceder da entrevista, como tambm as que no desejassem participar do estudo.

3.3.2 - Entrevista Procedeu-se a entrevistas com questionrio estruturado (Anexo 2), que foi pr-testado em mulheres internadas por complicaes de aborto, a fim de corrigir erros e inconsistncias nas formulao das perguntas. O questionrio foi dividido em duas sees principais, uma sobre caractersticas scio-econmicas e outra sobre histria reprodutiva, contendo questes pr-codificadas e algumas questes abertas, com a finalidade principal de estabelecer questes a respeito da prtica de aborto e contracepo, visando relacion-las ocorrncia de abortos induzidos (Albuquerque, 1999). Tambm foram coletadas algumas informaes do pronturio, como o diagnstico definitivo.

3.4 - Definio de Conceitos

Consideramos os seguintes conceitos, como esto aqui descritos: SSade reprodutiva: Estado de completo bem-estar fsico, mental e social em todas as matrias concernentes ao sistema reprodutivo, sua funes e processos. Implica em desfrutar de uma vida sexual segura, satisfatria e com capacidade de deciso sobre a procriao (Naes Unidas, 1995). SControle de natalidade: Polticas de limitao de natalidade, que so polticas governamentais de populao, visando fundamentalmente reduzir o crescimento demogrfico. Podem expressar-se ora como polticas oficiais de planejamento familiar, basicamente preocupadas com a reduo de fecundidade, com ou sem objetivos demogrficos expressos; ora como programas de carter privado, realizados, na maior parte das vezes, sem fins lucrativos, por associaes comprometidas com interesses controlistas (Rocha, 1993). SPlanejamento familiar: Programas na rea de sade reprodutiva destinados a promover o exerccio da escolha livre e informada sobre a reproduo, oferecendo informaes e meios que permitam aos casais e indivduos decidir responsavelmente sobre a capacidade de procriar (Naes Unidas, 1995). SRegulao de fecundidade: Utilizao dos recursos de contracepo e interrupo da gravidez como forma de decidir sobre o nmero de filhos, e a reproduo de maneira geral (Barroso, 1987). SGnero: Assumimos a definio de Scott (1991), baseada na interao entre dois conceitos: 1) gnero seria um elemento constitutivo das relaes sociais, baseados em diferenas percebidas entre os sexos e, 2) gnero seria a maneira pri