ABORTO LEGAL: AS DIFICULDADES DAS VÍTIMAS DE …
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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
CURSO DE DIREITO
ANNA CAROLINA FARIA DE SOUZA NATIANE SASKIA VIEIRA SILVA
ABORTO LEGAL: AS DIFICULDADES DAS VÍTIMAS DE ESTUPRO
PARA REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO ABORTIVO
Contagem
2021
ANNA CAROLINA FARIA DE SOUZA
NATIANE SASKIA VIERA SILVA
ABORTO LEGAL: AS DIFICULDADES DAS VÍTIMAS DE ESTUPRO PARA REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO ABORTIVO
Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito apresentado ao Centro Universitário UNA como requisito para obtenção do título de Bacharelado em Direito.
Professora Orientadora: Adriana Cortopassi.
Contagem 2021
RESUMO
O presente artigo se propõe a analisar as permissões legais instituídas pelo Código
Penal referente à realização do aborto no Brasil. Abordará o conceito de aborto no
âmbito jurídico e jurisprudencial, enfatizando a noção sobre o aborto legal. O artigo
tem como objetivo central, analisar as dificuldades que as vítimas de estupro,
enfrentam ao tentar realizar o procedimento abortivo, não punível em Lei, no Sistema
Público de Saúde - SUS. Irá analisar a Portaria de nº 2.282/2020 do Ministério da
Saúde, discorrendo sobre as principais mudanças ocorridas, após a vigência desta.
Ponderará sobre a necessidade de uma Lei regulamentadora, a fim de, uniformizar e
desburocratizar o procedimento de aborto legal no SUS.
Palavras-Chave: Aborto Legal. Vítimas de Estupro. Procedimento Abortivo. Lei
Regulamentadora.
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1. INTRODUÇÃO
A discussão acerca do aborto no Brasil ainda é bastante polêmica, sendo de
grande relevância discorrer acerca do tema e em quais casos são permitidos a
realização do procedimento abortivo. A legislação brasileira é pautada em um sistema
protecionista de direitos e garantias fundamentais, entre eles o direito à vida, inclusive
penalizando a prática do aborto.
Primeiramente, o presente artigo se propõe a analisar as permissões legais,
referentes à realização do aborto no Brasil, objetivando abordar prática do
procedimento abortivo previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal.
Nesta linha, estuda-se o aborto sentimental, que consiste na possibilidade de
interrupção da gravidez, através de procedimento médico, quando a gestação é
resultante de estupro.
Discorrerá ainda acerca do entendimento jurisprudencial sobre o tema em
questão, e em quais casos, existe a necessidade de autorização judicial, para que a
gestante consiga realizar o procedimento abortivo no Sistema Único de Saúde - SUS.
Esta pesquisa irá descrever o conceito do chamado “aborto legal”, quais os
métodos e procedimentos necessários para atender as mulheres que pretendem
realizar o procedimento abortivo.
Além disso, serão pontuadas as principais dificuldades que as vítimas de
estupro encontram, para exercerem o direito previsto na legislação penal e esclarecer
do ponto de vista do Código de Ética Médica, o porquê médicos podem se negar a
realizar o procedimento abortivo.
Em seguida, se pontuará as principais mudanças ocasionadas pela Portaria
de nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde, que regulamenta o procedimento de
justificação e autorização na realização do procedimento abortivo, dentro dos casos
previstos na legislação.
Nesse sentindo, abordaram-se os aspectos positivos e negativos, após a
vigência da referida Portaria, bem como os impactos causados para as vítimas de
estupro que desejam realizar o aborto no Sistema Único de Saúde.
Por fim, pondera-se à necessidade de criação de uma lei regulamentadora por
parte do legislativo, de modo a padronizar a realização do procedimento abortivo
realizado no Sistema Único de Saúde Brasileiro, bem como as imposições de medidas
para resguardar a imediata aplicabilidade nos casos de aborto permitidos em lei.
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2. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ABORTO
No Brasil, vive-se em um Estado Democrático de Direito, sob a égide de
princípios e garantias individuais, cuja principal finalidade é proteger os direitos
fundamentais, inerentes a todos os indivíduos.
A Constituição Federal de 1988 elenca todos os direitos essenciais a uma vida
humana digna, disposto principalmente no art. 5°, caput, sendo um dos basilares o
direito à vida, constituindo-se cláusula pétrea, prevendo:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…). (BRASIL. 1988)
Ademais, no ordenamento jurídico brasileiro a proteção ao direito à vida, não
se perfez somente a partir do nascimento, mas, há preocupação em resguardar os
direitos do nascituro, que segundo os ensinamentos de Silvio de Salvo Venosa (2013),
pode ser descrito como:
O nascituro é um ente já concebido que se distingue daquele que não foi ainda concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo de uma prole eventual; isso faz pensar na noção de direito eventual, isto é, um direito em mera situação de potencialidade para o que nem ainda foi concebido. (VENOSA, Silvio Salvo. Direito Civil: parte geral, volume I. 13ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 142)
Conclui-se, que o nascituro é aquele indivíduo já concebido, entretanto, não
nascido, no qual, conforme previsão do artigo 2º do Código Civil, ao dispor que: “A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro”, já resguarda e garante direitos ao
nascituro.
Diante desse sistema protecionista, a discussão sobre a temática do aborto
gera grande polêmica em nossa sociedade, causando controvérsia entre defensores
e opositores sobre a descriminalização da prática do aborto no país. Nesse sentido a
doutrinadora Maria Helena Diniz (2014), conclui que:
Hodiernamente, em pleno século XXI, encontramo-nos diante de duas orientações diversas: a que propugna a descriminalização total ou parcial do aborto e a que pretende mantê-lo como crime, com punição mais ou menos severa, havendo forte tendência de atenuar a pena para a mulher que o pratica, ou que com ele consente, agravando-a, contudo, para os abortadores. [...]. Temos poucas legislações que permitem o aborto livremente consentido e procurado pela gestante, pois a maior parte acolhe sua “descriminalização” parcial, tornando-o “legal” apenas em determinadas circunstâncias previstas normativamente. (DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 62)
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Nota-se que de um lado, defende-se a aplicação dos princípios da dignidade
da pessoa humana, a autonomia sobre próprio corpo e os direitos sexuais e
reprodutivos da mulher que é sujeito de direito, sendo o aborto uma questão de saúde
pública, no qual deve ser descriminalizado.
No outro, pautados na inviolabilidade do direito à vida, com os do direito do
nascituro, no qual a realização do procedimento abortivo em quaisquer circunstâncias
é inaceitável, visto que, fere preceitos constitucionais.
Nesse sentido, a legislação Penal Brasileira criminaliza a prática do aborto em
seus artigos 124 aos 127 do Decreto-Lei 2.848/40, de modo a proteger o direito à vida,
porém, existem exceções legais previstas no artigo 128 do mesmo código, em que
não se pune a realização do procedimento abortivo, sendo eles quando inexistente
outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez for resultante de estupro,
e o permitido pela jurisprudência quando se trata de fetos anencéfalos.
O foco central deste artigo é abordar a permissões legais, para realização do
aborto, nos casos em que gravides decorrer do crime de estupro, e quais as principais
dificuldades e impedimentos que essas mulheres encontram ao tentar realizar o
procedimento no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), bem como os respaldos
legais que as gestantes possuem, para que efetiva aplicação do dispositivo legal,
previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal.
2.1 Conceito de aborto sobre aspecto do Código Penal Brasileiro
O Código Penal de 1940 criminaliza a prática do aborto, contudo, não
conceitua o que seria o considerado aborto, sendo está definição realizada pela
doutrina. Segundo ensinamentos de Fernando Capez (2014), ao abordar o tema
discorre que:
Considera-se aborto a interrupção da gravidez com a consequente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina. Não faz parte do conceito de aborto, a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno, em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses), ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer desde o início da concepção até o início do parto. (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 112)
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Assim sendo, conclui-se que o aborto pode ser caracterizado como à
interrupção voluntária e intencional da gravidez, independentemente da idade
gestacional, bastando para sua caracterização à morte da vida intrauterina.
Ademais, a Legislação Penal Brasileira, com o objetivo de proteger a vida
humana, desde o momento de sua concepção, condena a prática do aborto induzido,
na parte especial, no Capítulo I, dos Crimes contra a vida, nos termos dos artigos 124
aos 127, in verbis:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte. (BRASIL. 1940)
O direito penal ao criminalizar o aborto, objetiva proteger o bem jurídico da
vida humana em formação, no qual o sujeito ativo pode ser a gestante (crime próprio),
ou quaisquer pessoas (crime comum), tratando-se de crime doloso, não admitindo a
conduta culposa, que se consuma com a morte do feto ou embrião, buscando
incriminar a conduta de “provocar aborto”, de forma a atentar contra a vida do ser em
formação.
Além disso, segundo o doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2019), existem
as seguintes formas de se interromper a gestação:
São formas de cessar a existência fetal: aborto natural: é a interrupção da gravidez oriunda de causas patológicas, que ocorre de maneira espontânea (não há crime); aborto acidental: é a cessação da gravidez por conta de causas exteriores e traumáticas, como quedas e choques (não há crime); aborto criminoso: é a interrupção forçada e voluntária da gravidez, provocando a morte do feto; aborto permitido ou legal: é a cessação da gestação, com a morte do feto, admitida por lei. (NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial, volume 2. 4ª edição. São Paulo: Forense, 2019, p. 190)
Portanto, o aborto pode acontecer de forma espontânea (quando há uma
interrupção da gravidez naturalmente ou acidentalmente) ou induzida (quando há a
interrupção da gravidez de intencionalmente).
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Apesar de o aborto ser criminalizado no Brasil, existe no ordenamento jurídico
brasileiro, duas hipóteses de excludente de ilicitude com relação à prática de
realização do procedimento abortivo, não podendo a gestante ou médico que realiza
o procedimento, serem penalizados, conforme previsão do artigo 128 do Código Penal
que dispõe:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL. 1940)
Segundo o artigo supramencionado, e conforme entendimento doutrinário, as
duas situações em que é permitida a realização do procedimento abortivo no Brasil,
seria quando se refere ao aborto terapêutico (art. 128, inc. I) ou necessário, que
consiste na interrupção da gravidez realizada pelo médico quando a gestante estiver
correndo risco de vida, ou o aborto sentimental (art. 128, II), que versa sobre a
possibilidade abortiva, quando a gestação é resultante de um crime de estupro.
Por fim, o Código Penal não confere limite de tempo para que mulher que
esteja correndo risco de vida, ou para seja vítima de estupro, opte por interromper a
gravidez. Cabe destacar que, nos casos de estupro, segundo se conclui da Portaria
de nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde não é necessário apresentar boletim de
ocorrência, nem a submissão a perícia ou autorização judicial, para realização do
procedimento abortivo.
2.2 O entendimento da Jurisprudência Brasileira sobre o aborto
Assim como qualquer direito no ordenamento jurídico brasileiro, o direito à
vida não é absoluto, existindo exceções legais tipificadas nas variadas normas
existentes no Brasil, como, por exemplo, a prática do aborto previsto no artigo 128 do
Código Penal.
Ademais, vale destacar que a legislação acerca do aborto, foi promulgada em
1940, desde então com os avanços científicos e o surgimento de novas situações
aptas a ensejar a prática da realização do aborto, cabe Supremo Tribunal Federal
(STF), mediante as evidências científicas e nas perspectivas de proteção à saúde da
mulher, julgar e pacificar jurisprudências que permitam a realização do aborto, diante
novas situações fáticas.
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Nesse sentido, através da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) n° 54 do ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal pacífico
entendimento de que pode haver a antecipação terapêutica do parto em casos de
fetos anencefálicos, sem que ocorra a tipificação do crime de aborto, fundamentando
a decisão no princípio da dignidade humana, a fim de evitar sofrimento a gestante,
visto que, o feto anencéfalo não tem possibilidade de sobreviver.
Conforme discorre Cléber Masson a anencefalia pode ser definida como a
malformação rara do tubo neural, que acontece entre o décimo sexto e a vigésimo
sexto dia de gestação, caracterizando-se pela ausência total ou parcial do encéfalo e
da calota craniana, derivado de uma deformidade de fechamento do tubo neural
durante a formação embrionária. (MASSON, Cléber. Direito Penal esquematizado:
parte especial, volume 2. 9ª. Ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016,
p. 101)
Ademais, através da análise do Habeas Corpus, de número 124.306 do ano
de 2016, com o voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso que alcançou a maioria
da Corte, decidiu que:
(...)a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. (...) a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. (BRASIL. STF. Minis. Barroso, HC 124.306/RJ. 2016, p. 13-27).
A Suprema Corte por maioria decidiu que a tipificação penal do crime de
aborto, deve ser interpretada conforme a Constituição Federal, excluindo do seu
âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre,
garantindo os direitos fundamentais da mulher. Cabe destacar que, na análise do
Habeas Corpus 124.306/2016, reconheceu a prática do fato, contudo, negou-se o seu
caráter criminoso.
Por fim, ainda será analisada pelo Supremo Tribunal Federal a
descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, através da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, relatado pela Ministra Rosa Weber,
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que tem o objetivo de discutir a relativização dos artigos 124 e 126 do Código Penal,
frente à recepção da Constituição Federal.
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3. DO DIREITO AO ABORTO LEGAL
3.1 Do início da vida para fins de proteção legal
Inicialmente, antes de adentrar no conceito do chamado “aborto legal”,
imperioso destacar que para fins de proteção legal, vigoram no âmbito jurídico
brasileiro, duas principais correntes que divergem sobre o marco inicial da vida
humana, sendo estas a teoria concepcionista e a teoria da nidação.
A jurista Maria Helena de Diniz (2014), defende que a vida se tem início com
a concepção, tendo em vista que o Código Civil de 2002, resguarda os direitos do
nascituro, assim, está teoria seria que melhor se adequa a legislação civilista vigente,
vejamos:
A fetologia e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida se inicia no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, dentro ou fora do útero. A partir daí tudo é transformação morfológico temporal, que passará pelo nascimento e alcançará a morte, sem que haja qualquer alteração do código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível e, com isso, cada ser humano único. (DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 50)
Contudo, para o ilustre jurista Rogério Greco (2009), apesar da vida se iniciar
com a fecundação, para fins proteção legal, a vida somente se faz relevante após
nidação:
A vida tem início a partir da concepção ou fecundação, isto é, desde o momento em que o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozoide masculino. Contudo, para fins de proteção por intermédio da lei penal, a vida só terá relevância após a nidação, que diz respeito à implantação do óvulo já fecundado no útero materno, o que ocorre 14 dias após a fecundação. Assim, enquanto não houver nidação não haverá possibilidade de proteção a ser realizada por meio da lei penal. Temos a nidação como termo inicial para a proteção da vida, por intermédio do tipo penal do aborto. Portanto, uma vez implantado o ovo no útero materno, qualquer comportamento dirigido finalisticamente no sentido de interromper a gravidez, pelo menos à primeira vista, será considerado aborto (consumado ou tentado). Se a vida, para fins de proteção pelo tipo penal que prevê o delito de aborto, tem início a partir da nidação, o termo ad quem para esta específica proteção se encerra com o início do parto. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II. 6ª edição. Revista, ampliada e atualizada. Niterói: Impetus, 2009, p. 240)
Assim sendo, em suma para teoria concepcionista a proteção jurídica ao
direito a vida inicia-se a partir do momento em que ocorre a fecundação do óvulo pelo
espermatozoide, tornando o embrião um ser humano e indivíduo sujeito de direito que
são resguardados pelo ordenamento jurídico.
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Já para a teoria da nidação a vida somente tem início quando o óvulo
fecundado se fixa na parede do útero, momento no qual o embrião passará a
desenvolver-se.
Por fim, enfatiza-se que a doutrina majoritária adota a teoria da nidação, no
qual a vida começa a partir da nidação, período no qual o embrião pode ser
considerado pessoa humana, detentora de direitos tutelados por lei e protegidos pela
legislação penal brasileira.
3.2 Do aborto legal
O artigo 128 do Código Penal, prevê a admissibilidade de realização do aborto
praticado por médico em casos excepcionais, no qual a prática do procedimento
abortivo nessas circunstâncias não seria considerada crime, visto que, a legislação
afasta a ilicitude da conduta.
Desse modo, nos casos em que não existe outro meio para salvar a vida da
gestante (aborto necessário), ou nos casos em que a gravidez resulta de estupro,
sendo o procedimento abortivo consentido pela gestante, ou por seu representante
legal, quando incapaz (chamado pela doutrina de aborto sentimental ou humanitário),
haverá exclusão de culpabilidade.
Segundo ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt (2011), para excluir a
culpabilidade na conduta do aborto é necessário:
O aborto necessário exige dois requisitos, simultâneos: a) perigo da vida da gestante; b) inexistência de outro meio para salvá-la. O requisito básico e fundamental é o iminente perigo a vida da gestante, sendo insuficiente o perigo a saúde, ainda que muito grave. O aborto, ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime (...) (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial, volume 11. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 168)
Nesse sentido Guilherme de Souza Nucci (2019), dispõe sobre o aborto
terapêutico do seguinte modo:
Trata-se de uma hipótese específica de estado de necessidade. Entre os dois bens que estão em conflito (vida da gestante e vida do feto ou embrião), o direito fez clara opção pela vida da mãe. Prescinde-se do consentimento da gestante nesse caso (art. 128, I, CP). (NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial, volume 2. 4ª edição. São Paulo: Forense, 2019, p.194)
Portanto, o aborto necessário é o procedimento de interrupção da gravidez,
com objetivo de salvar a vida da gestante, caso o médico entenda ser o único meio
para o mesmo, sendo dispensável autorização judicial ou consentimento da gestante,
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posto que, conforme conceituado pela doutrina trata-se de estado de necessidade
especial, no qual prevalece o direito à vida da gestante.
No que diz respeito ao chamado aborto sentimental ou humanitário, objeto
principal desta pesquisa, trata-se da hipótese em que mulheres vítimas do crime de
estupro, optam por interrompe a gestação, sendo admissível a realização do
procedimento abortivo por força do artigo 128, inciso II, do Código Penal.
Luiz Regis Prado (2011), ao dissertar sobre o tema dispõe que:
No aborto sentimental ou humanitário o mal causado é maior do que aquele que se pretende evitar. De conformidade com a teoria diferenciadora em matéria de estado de necessidade – que faz distinção entre os bens em confronto -, há a exclusão da culpabilidade da conduta pela inexigibilidade de conduta diversa. O fundamento da indicação ética reside no conflito de interesses que se origina entre a vida do feto e a liberdade da mãe, especialmente as cargas emotivas, morais e sociais que derivam da gravidez e da maternidade, de modo que não lhe é exigível outro comportamento (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte especial, volume 2. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 129)
Ademais, Guilherme de Souza Nucci (2014), em Manual de Direito, assevera
que:
Em nome da dignidade da pessoa humana, no caso a da mulher que foi violentada, o direito permite que pereça a vida do feto ou embrião. São dois valores fundamentais, mas é mais indicado preservar aquele já existente (art. 128, II, CP) (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 10ª edição. Revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 525)
Além disso, Fernando Capez (2014), em seus ensinamentos afirmar:
Trata-se do aborto realizado pelos médicos nos casos em que a gravidez decorreu de um crime de estupro. O Estado não pode obrigar a mulher a gerar um filho que é fruto de um coito vagínico violento, dados os danos maiores, em especial psicológicos, que isso lhe pode acarretar. (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II. 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 126)
Rogério Greco citando os ensinamentos do memorável Nélson Hungria dispõe
“(...)nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar a maternidade odiosa,
que dê a vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da
violência sofrida” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II.
6ª edição. Revista, ampliada e atualizada. Niterói: Impetus, 2009, p. 253, apud,
HUNGRIA, 1977, p. 304).
Diante disso, conclui-se que a excludente de ilicitude prevista no art. 128,
inciso II do Código Penal, objetiva resguarda a integridade psicológica e a dignidade
da mulher violentada, prevalecendo os direitos e garantias fundamentais desta em
face do direito do embrião ou do feto.
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Insta salientar que para não ocorrer a configuração do crime, o procedimento
abortivo deve ser praticado pelo médico, bem como deve haver o consentimento da
gestante ou de seu representante legal quando incapaz, não sendo exigida, conforme
se extrai da leitura do artigo em comento, qualquer tipo de autorização judicial ou
registro de boletim de ocorrência, sendo o procedimento abortivo regulamentado pelo
Ministério da Saúde através de portarias, que visam padronizar o atendimento médico
para vítimas de estupro que desejam fazer realizar o aborto.
3.3 Mudanças ocasionadas pela Portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde editou a Portaria n° 2.282, de 27 de agosto de 2020,
dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da
Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),
no qual o objetivo é padronizar o atendimento a gestantes que desejam realizar o
procedimento abortivo nos hospitais públicos. Assim sendo, dispõe a portaria:
Considerando que o Ministério da Saúde deve disciplinar as medidas assecuratórias da licitude do procedimento de interrupção da gravidez nos casos previstos em lei quando realizados no âmbito do SUS; Considerando que o Código Penal Brasileiro estabelece como requisitos para o aborto humanitário ou sentimental, previsto no inciso II do art. 128, que ele seja praticado por médico e com o consentimento da mulher; Considerando as alterações promovidas pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, no art. 213 e a inclusão do art. 217-A no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), que tipificam, respectivamente, os crimes de estupro e estupro de vulnerável; Considerando a Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que altera o artigo 225 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável; Considerando a necessidade de se garantir aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento de interrupção da gravidez segurança jurídica efetiva para a realização do aludido procedimento nos casos previstos em lei; e Considerando o Ofício nº 3475125/2020-DPU MG/05OFR MG, que solicita revogação da Norma Técnica "Prevenção e tratamento de agravos resultantes da violência sexual contra mulher e adolescentes" e da Portaria nº 1.508 GM/MS, de 1º de setembro de 2005, resolve (...) (BRASIL. Ministério da Saúde, 2020)
Posto isso, o Ministério da Saúde, ao padronizar os procedimentos para
atender as vítimas de estupro que desejam realizar o aborto, visou assegurar o direito
das gestantes que buscam as unidades públicas de saúde para interromper a
gravidez, bem como, garantir segurança jurídica aos profissionais que participaram da
prática do procedimento aborto.
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Dessa maneira, o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção
da Gravidez é composto por quatro fases, sendo a primeira em síntese composta pelo
relato circunstanciado dos fatos realizado pela vítima, já a segunda pela intervenção
médica que deverá emitir um parecer técnico, após realização de alguns exames
clínicos na gestante, elaborando um Termo de Aprovação de Procedimento de
Interrupção da Gravidez.
O procedimento na terceira se dá com a assinatura da gestante ou de seu
representante legal ao Termo de Responsabilidade, no qual estará descrito uma
advertência expressa sobre penalidades legais, caso a mulher não tenha sido vítima
do crime de estupro.
Por fim, a quarta fase que encerra com o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido na qual será repassada a gestante todas as informações pertinentes
acerca do procedimento (art. 2° ao 6° da Portaria n° 2.282).
Diante da instituição das referidas normas a desembargadora federal
aposentada e advogada Cecília Mello (2020), pondera sobre a edição da Portaria n°
2.282 do Ministério da Saúde discorrendo que:
Essa portaria regulamenta o procedimento de autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS, revogando expressamente a regulamentação anterior. Trata, assim, do procedimento de aborto legal, cujas hipóteses estão expressamente previstas no art. 128 do Código Penal: quando a gravidez significar risco à vida da gestante, porque a lei optou pela preservação da vida da mãe; ou quando a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante, ou, se incapaz, do seu representante legal, porque não pode o Estado pretender obrigar a mulher a manter uma gestação oriunda de um crime, diante da envergadura dos danos que decorrem dessa violência.(MELLO, Cecília. Portaria do Ministério da Saúde sobre o aborto só tem o poder de criar constrangimento. Jornal Estadão. 08/09/2020)
A edição da Portaria n° 2.282 gerou grandes críticas de vários setores da
sociedade brasileira, no que tange as exigências legais para que o procedimento
abortivo seja realizado pelo médico no Sistema Único de Saúde, principalmente nos
artigos primeiro e oitavo (abaixo transcrito), já que os críticos argumentam que a nova
portaria tem como finalidade constranger a mulher gestante vítima de violência, ao
invés de acolhê-las a fim de garantir o exercício de direito previsto na norma penal.
Art. 1º É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro. Art. 8º Na segunda fase procedimental, descrita no art. 4º desta Portaria, a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa
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deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada. (BRASIL. Ministério da Saúde, 2020)
Nesse sentido, Cecília Mello (2020) continua afirmando que:
O Estado tem o dever de fornecer todo o auxílio necessário às mulheres que se encontrem nas condições descritas no art.128 do Código Penal. Esse dever, em um primeiro plano, decorre de disposição constitucional expressa que assegura a todos o direito fundamental à saúde, por meio de políticas sociais e econômicas implementadas pelo Estado para prover condições indispensáveis ao seu exercício, nos termos da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde. O Decreto 7.958, de 13 de março de 2013, valendo-se da Lei 8.080/90, fixou diretrizes para o atendimento humanizado às vítimas de violência sexual no âmbito da segurança pública e do SUS, priorizando o acolhimento, a observância dos princípios do respeito da dignidade da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade. (...) A obrigatoriedade de notificação compulsória à autoridade policial pelo médico, conforme consta do art.1º da Portaria 2.282, apenas reitera aquilo que já consta da legislação, em nada melhorando ou facilitando o procedimento para as vítimas de violência sexual. A segunda modificação introduzida pela Portaria 2.282, de péssimas intenções e técnica, aponta para a o dever de ser oferecida à vítima de violência sexual, que necessite se valer do procedimento de aborto legal, a “possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”. Se por um lado o texto não inova, já que assente que o exame é do paciente, então por óbvio que qualquer um pode visualizar as imagens do seu ultrassom, por outro, causa profunda indignação. A medida foi introduzida no rol de procedimentos com o nítido caráter de criar mais um constrangimento à vítima de violência sexual, desafiando-a um novo teste de resistência psicológica, com o inegável intuito de coagi-la a desistir da interrupção da gravidez. Tem contorno cruel e desumano, em total descompasso com os deveres do médico e dos princípios de acolhimento, tratamento humanizado e auxílio multidisciplinar previstos na lei. (MELLO, Cecília. Portaria do Ministério da Saúde sobre o aborto só tem o poder de criar constrangimento. Jornal Estadão. 08/09/2020)
Corroborando nesse sentido o Colégio Nacional dos Defensores Públicos
Gerais (CONDEGE), emitiu nota técnica publicada em 31 de agosto de 2020, assinada
pela defensora pública e Coordenadora da Comissão Especial de Proteção e Defesa
dos Direitos da Mulher, Rosana Leite Antunes de Barros, bem como pelo defensor
público e Coordenador da Comissão Permanente Criminal, Maurício Garcia Saporito,
no qual realizam diversas críticas à portaria em comento, chegando à seguinte
conclusão:
Diante do exposto, tem-se que a Portaria 2.282 de 27 de agosto de 2020 é inconvencional, inconstitucional e ilegal, pois não observa o respeito à autonomia, autodeterminação, intimidade, confidenciabilidade, consentimento prévio e livre, bem como fere liberdade reprodutiva e atendimento humanizado, princípios basilares do SUS, e constitui um retrocesso aos direitos humanos e da política pública de enfrentamento a violência sexual de menina, adolescentes e mulheres que no atual contexto da saúde pública brasileira ainda se sujeitam a entraves de toda ordem para o exercício de seu direito a interrupção legal de gravidez em caso de violência sexual. Por todos esses motivos, e por trazer torturas, constrangimentos e práticas degradantes para o exercício pleno do direito, concluímos pela inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade da Portaria do
16
Ministério da Saúde de nº 2282 (27 de agosto de 2020), e, consequentemente, pela sua não aplicabilidade diante da nulidade absoluta, recomendando a sua imediata revogação. (BARROS, Rosana Leite Antunes de; SAPORITO, Maurício Garcia. Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerias. Nota Técnica – CPDDM/CONDEGE. 27/08/2020, p. 18)
Ademais, percebe-se que apesar do Código Penal, não conter expressamente
quaisquer requisitos para que as vítimas do crime de estupro possam praticar o aborto,
cabe ao Ministério da Saúde através de edição de normas técnicas, padronizar a
assistência e os procedimentos adotados no Sistema Único de Saúde.
Contudo, em vez de proporcionar às gestantes, vítimas do crime de estupro,
condições mínimas que possam resguardar direitos e garantias fundamentais,
principalmente há um tratamento digno e respeitoso, a Portaria em comento acaba
por constranger, intimidar, restringir e dificultar o acesso destas ao procedimento que
é admitido por lei.
Por último, diante das inúmeras críticas de diversos setores da sociedade
brasileira, que demostraram seu repúdio com as normas instituídas pela Portaria em
questão, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de
2020, retirando as questões mais polêmicas. Contudo, a nova portaria ainda gera
discussões, visto que, os críticos apontam que persistem diversos aspectos ilegais,
que acabam por dificultar o acesso das vítimas de estupro à realização do
procedimento abortivo.
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4. PRINCIPAIS DIFICULDADES QUE AS VÍTIMAS DE ESTUPRO
ENCONTRAM PARA REALIZAR O PROCEDIMENTO DE ABORTO LEGAL
As principais dificuldades que as vítimas de estupro enfrentam na tentativa de
realizar o procedimento abortivo no Sistema Único de Saúde, segundo relatado pela
ginecologista e obstetra Sara Paiva e a psicóloga Letícia Gonçalves em entrevista ao
Jornal Estado de Minas, “Do estupro ao aborto: a difícil jornada da mulher vítima de
violência sexual em Minas” são: a falta de informação, a procura tardia ao atendimento
que inviabiliza a realização do procedimento, o preconceito e julgamento social, o
constrangimento e a coerção das vítimas afim de que desistam do procedimento.
Diante disso, faz-se necessária uma melhor preparação dos profissionais que
irão atender essas mulheres, visto que, encontram-se em uma situação de fragilidade,
e ao se deparem com a situação supracitada, optam por realizarem o procedimento
abortivo de forma clandestina.
Ao buscar atendimento nas Unidades Básicas de Saúde, a gestante, vítima
de estupro, pode se deparar com a recusa do médico para realizar o procedimento
abortivo, já que esse direito está previsto expressamente no Código de Ética Médica,
em seu Capítulo I, item VII, o qual prediz:
O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.217/2018)
Deste modo, por motivos de convicções pessoais e com a finalidade de
resguardar a integridade moral do médico, este pode recusar-se de participar de
procedimentos contrários aos ditames de sua consciência, ainda que sejam permitidos
por lei.
Ademais, cabe destacar que a instituição pública de saúde não pode se
recusar a prestar o atendimento à gestante vítima de estupro, já que o procedimento
abortivo nestes casos é admitido legalmente. Assim, somente o médico pode se nega
a realizar o aborto, salvo as ressalvas previstas no item supramencionado.
Outrossim, diante da possibilidade da recusa médica em realizar o
procedimento abortivo, o Ministério da Saúde elaborou uma Norma Técnica intitulada
de “Atenção Humanizada ao Abortamento”, onde foram descritas quais seriam as
18
situações de aborto em que o médico não poderia invocar a objeção de consciência,
sob a pena ser responsabilizado civil e criminalmente por omissão, que são:
a) Em caso de necessidade de abortamento por risco de vida para a mulher; b) Em qualquer situação de abortamento juridicamente permitido na ausência de outro(a) médico(a) que o faça e quando a mulher puder sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão do(a) médico(a); c) No atendimento de complicações derivadas de abortamento inseguro, por se tratarem de casos de urgência. (BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento. 2005, p.15)
Ressalta-se que o médico pode declarar objeção de consciência diante de
uma situação concreta de pedido de aborto, desde que não o faça por desconfiança
quanto ao estupro, a exemplo, mas, estritamente por razões de sua moral privada.
Entretanto, de acordo com a Norma Técnica supramencionada, deverá prestar todas
as informações necessárias à gestante:
É dever do(a) médico(a) informar à mulher sobre suas condições e direitos e, em caso que caiba a objeção de consciência, garantir a atenção ao abortamento por outro(a) profissional da instituição ou de outro serviço. Não se pode negar o pronto-atendimento à mulher em qualquer caso de abortamento, afastando-se, assim, situações de negligência, omissão ou postergação de conduta que violem os direitos humanos das mulheres. (BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento. 2005, p.15)
Ao discorrer sobre o assunto Mário Antônio Sanches (2012) assevera: Assim sendo, a objeção de consciência é direito da pessoa e salvaguarda princípios morais inalienáveis: o respeito à autonomia plena e consciente da pessoa e a sua liberdade. Essa valorização da objeção de consciência não pode esconder, nem se fundamentar em caprichos pessoais, subjetivismos nem intransigente obstinação. Por isso ela precisa ser temperada pela apresentação dos valores em questão, explicitação dos motivos pessoais e criativa abertura ao diálogo. Ou seja, ela não pode se dar a partir de expressões “eu acho que”, “é a minha opinião” ou “não quero saber o que os outros pensam. (SANCHES, Mário Antônio. Objeção de consciência: reflexões no contexto da bioética. Jornal. Gazeta do Povo. 18/02/2020)
Deste modo, o médico ou a equipe de saúde não podem realizar nenhum tipo
de julgamento ou juízo de valor sobre a escolha da mulher ou das narrativas desta
sobre a situação do estupro, devendo manter uma postura ética, pois, os profissionais
da saúde devem acolher e prestar um tratamento digno e respeitoso, conforme se
extrai da Norma Técnica anteriormente citada.
Insta salientar que também está previsto na presente Norma Técnica que o
médico ao alegar a objeção de consciência, tem o dever de garantir o atendimento
ao abortamento por outro profissional da instituição onde se encontra a mulher ou
encaminhá-la a outro serviço que concorde em realizar o procedimento, vejamos: “É
19
vedado descumprir legislação específica nos casos de transplante de órgãos ou
tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento” (BRASIL. Ministério da
Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento. 2005, (art. 43), p.15).
Todavia, através da pesquisa intitulada “Acesso à Informação e Aborto Legal”,
promovida pela Organização não-governamental Artigo 19, nas quais foram reunidas
informações dos hospitais cadastrados através do site do Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES), do Sistema Único de Saúde (SUS), e
diretamente ao Ministério da Saúde por intermédio da Lei de Acesso à Informação
(12.527/2011), verificou que a realidade fática do acesso a mulher ao abortamento
legal nas unidades de saúde não é condizente com os procedimentos aqui
explanados.
Por meio deste estudo, foi possível observar que dos 176 hospitais públicos
pesquisados, apenas 76 afirmaram que realizam a interrupção da gestação nos casos
previstos em lei. Portanto, é possível observar o despreparo dessas unidades de saúde
para prestar as informações fidedignas, bem como, atendimento adequado as vítimas
de estupro que optam por realizar o abortamento.
Além disso, de acordo com informações disponibilizadas pela repórter Joana
Oliveira, na reportagem "Abortos legais em hospitais referência no Brasil disparam na
pandemia e expõem drama da violência sexual", publicada no jornal El País em
30/08/2020, dos 76 hospitais cadastrados no Ministério da Saúde que oferecem o
procedimento, apenas 42 continuaram atendendo no primeiro semestre deste ano,
tendo em vista que suspenderam o serviço especificamente por conta da pandemia
do coronavírus.
Através de análise da pesquisa realizada pela Organização não-
governamental Artigo 19, pode-se observar as grandes dificuldades enfrentadas pelas
mulheres vítimas do crime de estupro, que buscam realizar o procedimento abortivo
de forma legal, devido a toda burocracia na efetivação do direito da mulher, falta de
informação e de qualificação dos profissionais das unidades de saúde, dentre outras.
Por fim, os hospitais solicitam dessas mulheres uma vasta documentação que
discorrem serem necessárias, o que torna o procedimento menos acessível,
acabando por fazer com que muitas mulheres desistam de realizar o aborto ou
recorram a realização do procedimento de forma ilegal, colocando em risco sua
integridade física e a própria vida.
20
5. DA NECESSIDADE DE UMA LEI REGULAMENTADORA PARA
PADRONIZAR O PROCEDIMENTO ABORTIVO NOS HOSPITAIS
Primeiramente, o Estado não pode ignorar o fato de que o direito penal é
absolutamente ineficaz quando da realização do aborto nos casos em comento. Por
conseguinte, a falta de atendimento nas unidades de saúde, acabam por violar os
direitos da mulher tutelados constitucionalmente.
Camille Lichotti, Luigi Mazza e Renata Buono (2020), por meio de dados
obtidos através do DataSUS do Ministério da Saúde verificaram o seguinte:
Em 2019, o SUS registrou cerca de 195 mil internações por aborto (espontâneos e por decisão judicial ou médica). Foi uma média de 535 por dia. Os abortos por motivos previstos em lei são minoria. A cada 100 internações por aborto, 99 foram de abortos espontâneos e tipos indeterminados de gravidez interrompida. Só 1 foi aborto previsto em lei. (...) As principais vítimas de procedimentos de aborto em geral são mulheres negras. De 2009 a 2018, o SUS registrou oficialmente 721 mortes de mulheres por aborto. A cada 10 que morreram, 6 eram pretas ou pardas. (Lichotti; Mazza; Buono. Os abortos diários do Brasil. Jornal Folha de São Paulo. 24/08/2020) (Grifos dos autores)
No entanto, acredita-se que número seja maior, já que se trata apenas de
subnotificações realizadas, nas quais não registram os casos de aborto praticados
clandestinamente, pois, como já exposto neste artigo, nos casos não admitidos em
lei, a prática do procedimento abortivo é considerada crime.
No Brasil, como se sabe, muitos procedimentos abortivos são realizados em
clínicas particulares ou clandestinas, dos quais não é possível precisar informações e
dados sobre números de abortos realizados, bem como as consequências
ocasionados por este. Neste sentido, na Cartilha que foi intitulada como "Aborto e
Saúde Pública - 20 Anos” (2009), o Ministério da Saúde, relatou:
O maior desafio para o cálculo da magnitude do aborto no Brasil é a dificuldade de acesso a dados fidedignos, além do alto número de mulheres que omitem ter induzido aborto em questionários com perguntas diretas. Em finais dos anos 1980, foi testada a técnica de resposta ao azar para estimar a indução do aborto em uma ampla amostra populacional de mulheres. Por meio da abordagem direta, encontrou-se a incidência de oito abortos a cada 1.000 mulheres, ao passo que, com a técnica de resposta ao azar, chegou-se a 42 a cada 1.000, ou seja, uma incidência cinco vezes Supremo. (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Aborto e Saúde pública no Brasil - 20 anos. 2009, p.16)
Além disso, na edição da referida Cartilha, mencionada anteriormente, foram
compilados 20 anos de pesquisas sobre este assunto, buscando enfatizar as questões
de saúde pública mais recorrentes no país. Embora alerta-se sobre as dificuldades da
coleta de dados sobre a realização da prática do aborto, pelas razões mencionadas
21
acima, o Ministério da Saúde conseguiu forneceu dados significativos acerca do
assunto em comento, vejamos:
Os resultados confiáveis das principais pesquisas sobre aborto no Brasil comprovam que a ilegalidade traz consequências negativas para a saúde das mulheres, pouco coíbe a prática e perpetua a desigualdade social. O risco imposto pela ilegalidade do aborto é majoritariamente vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro. O que há de sólido no debate brasileiro sobre aborto sustenta a tese de que "o aborto é uma questão de saúde pública". Enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendê-lo como uma questão de cuidados em saúde e direitos humanos, e não como um ato de infração moral de
mulheres levianas. (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Aborto e Saúde pública
no Brasil - 20 anos. 2009, p. 13)
Com isso, tem-se como preocupante os riscos e sofrimentos enfrentados por
essas mulheres, bem como os custos sociais e das despesas médicas causados pela
internação das mesmas que buscam tratamento para complicações percebidas no
pós-aborto clandestino.
Em 2015, Gilberto Palma, diretor do Hospital da Mulher em Santo André, São
Paulo, em uma entrevista ao jornal Rede Brasil Atual, na reportagem intitulada
“Legalizar o aborto evitaria mortes e traria economia ao SUS”, disse que atendeu a
cinco mulheres para realizar a interrupção legal da gravidez, bem como cerca de
setecentas mulheres que tiveram complicações pós-aborto clandestino, com isso
argumentou que se fosse legalizado ou considerado como problema de saúde pública,
o custo com esses procedimentos seria menor para o país.
Acrescentou ainda que, essas internações na maioria das vezes são
prolongadas, uma vez que as pacientes que necessitam de atendimento, ficam entre
torno de sete a dez dias internadas, para que a equipe hospitalar possa solucionar os
problemas decorrentes da realização do aborto clandestino.
Tendo em vista todo exposto, faz-se necessária uma maior atuação do poder
público para regulamentar normativamente os casos admitidos em lei ou legalizar a
prática do aborto no todo ou em determinados casos, já que se trata de uma prática
recorrente, cabendo ao Estado promover meios para solucionar o problema de saúde
pública decorrentes da prática abortiva, a fim de resguardar direitos e garantias
fundamentais das mulheres, que não têm a assistência médica e psicológica
adequada nesses casos.
Atualmente, mediante a falta de lei no ordenamento jurídico brasileiro que
padronize ou regularize os meios para que as mulheres possam exercer o direito ao
22
abortamento nos casos permitido pela legislação ou por meio de jurisprudência, faz-
se extremamente necessária a criação de uma lei para que seja regulamentado o
procedimento abortivo no país.
O procedimento em questão é regularizado através de Portarias do Ministério
da Saúde, contudo, tais portarias são normas secundárias, pois, tratam-se de
documentos que objetivam organizar o ordenamento administrativo interno, sendo
destinadas a estabelecer diretrizes, métodos e procedimentos acerca da aplicação de
leis ou regulamentos.
Corroborando nesse sentido discorre Celso Antônio Bandeira de Mello (2015):
Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que á não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. “Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 32ª edição. rev. e atual. Até a Emenda constitucional 84, de 2.12. 2014. 2015, p. 357)
Assim, é mister a criação de uma lei específica, de modo a criar normas gerais
obrigatórias a serem seguidas no caso analisado ao longo deste artigo, garantindo
que todos as unidades de saúde hajam de acordo com a previsão legal, conforme
preceitua o princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso II, “ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Outrossim, como já exposto no tópico 2.2, o posicionamento da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 124.306 de
09 de agosto de 2016, por votação da maioria, entenderam que a interrupção da
gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao crime de aborto,
reforçando o entendimento através deste julgado, tal como de outros a respeito do
tema, a necessidade de regulamentação por parte do poder legislativo de uma norma
para legalizar ou descriminalizar a prática do abortamento no país, com o objetivo de
sanar as problemáticas acerca do assunto.
Ao proferir seu voto-vista, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís
Roberto Barroso (2016), discorreu que criminalizar o aborto até o terceiro mês de
gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, entre eles: os direitos os
sexuais e reprodutivos, autonomia de vontade, integridade física e psíquica, igualdade
23
de gênero, e acaba por ocasionar a discriminação social. (BRASIL. STF. Minis.
Barroso, HC 124.306/RJ. 2018).
Ainda segundo o Ministro, conforme abaixo mencionado, sobre os impactos
causados quando da condição social da mulher, na qual a criminalização do aborto
acaba gerando um impacto desproporcional sobre as mulheres pobres, que buscam
realizar o abortamento, já que não possuem condições de procurar atendimento em
clínicas particulares e nem encontram atendimento nas unidades públicas de saúde.
(...)a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito. (BRASIL. STF. Minis. Barroso, HC 124.306/RJ. 2016, p. 20).
Por fim, enfatizou o Ministro Barroso (2016) que:
Nada obstante isso, para que não se confira uma proteção insuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais desenvolvido. De acordo com o regime adotado em diversos países (como Alemanha, Bélgica, França, Uruguai e Cidade do México), a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno33. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. (BRASIL. STF. Minis. Barroso, HC 124.306/RJ. 2016, p. 27).
Através da análise do caso supracitado, assim como, da decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal que permitiu que gestantes realizem o aborto de fetos
anencéfalo, percebe-se que a jurisprudência vem atuando no sentido de não tentar
sanar as novas situações passíveis da praticar o aborto, visando equilibrar a grande
controvérsia entre os direitos do feto e o da mulher, ambos protegidos pela legislação
brasileira.
Entretanto, segundo Glauco Salomão Leite, Marina Falcão Lisboa
Brito e Natalia Bezerra Valença (2020), as problemáticas surgidas em torno do
assunto, assim como os diversos questionamentos jurídicos sobre a legalidades das
portarias editadas pelo Ministério da Saúde, reforçam a necessidade de alteração do
24
Código Penal, a fim de evitar que a expedição destas portarias alterem a aplicabilidade
do direito ao aborto permitido na legislação.
(...) a judicialização dessa controvérsia a fez desaguar no STF, que, como se sabe, possui expressiva jurisprudência favorável a direitos e liberdades individuais de minorias, situando-se no polo oposto do governo. (...) Nesses assuntos, o STF tem exercido adequadamente sua função contra majoritária, o que não deverá causar estranheza caso os ministros venham a anular a portaria do Mistério da Saúde. Essa controvérsia aponta para a necessidade em se observar com atenção a expedição de atos regulamentares que podem provocar graves desvirtuamentos na aplicação de leis em vigor, bem como na tomada decisões administrativas, normalmente ancoradas no uso da discricionariedade, mas que têm resultado na fragilização de marcos regulatórios e políticas públicas necessários à tutela de direitos fundamentais, em particular de minorias e grupos vulneráveis. (LEITE; BRITO; VALENÇA. O direito ao aborto e a portaria do Ministério da Saúde. Revista Consultor Jurídico, 24/08/2020)
Portanto, diante de toda a fundamentação já abarcada, somente através de
uma lei que padronizasse o atendimento as mulheres gestantes vítimas de estupro
nas unidades de saúde, é que seria possível obrigar todos os hospitais a realizarem
um atendimento adequado e digno às mulheres que desejarem realizar o
abortamento, sem enfrentar toda a burocracia e inúmeras dificuldades na busca deste
procedimento.
25
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na prática as mulheres que buscam atendimento nas unidades de saúde a
fim de que seja realizado o aborto, encontram inúmeros obstáculos para efetivação
deste, apesar de ser previsto no Código Penal, que não é punível a realização do
aborto em determinados casos.
Como pode ser observado ao longo deste artigo, foram abordados diversos
entendimentos, principalmente quanto ao posicionamento da Primeira Turma do
Supremo Tribunal Federal, de nº 124.306 do ano de 2016, com o voto-vista do Ministro
Luís Roberto Barroso, que trouxe a narrativa de que o aborto não deveria ser
criminalizado, se realizado durante o primeiro trimestre da gestação.
Considerando que o aborto, nos casos previstos em lei, é um direito garantido
à mulher e, tendo como parâmetro o posicionamento do Supremo Tribunal Federal
quanto ao assunto em questão, seria interessante a utilização de tal acórdão, como
base para sancionar uma lei que viesse padronizar o procedimento do aborto legal no
Sistema Único de Saúde.
A necessidade normativa, perfaz à medida que todas as mulheres que são
vítimas do crime de estupro enfrentam diversas dificuldades para que lhes sejam
resguardados seus direitos e garantias fundamentais.
Como foi demonstrado ao longo deste artigo, é nítida a necessidade de
padronização na realização dos procedimentos abortivos admitidos em lei, pois, sem
tal regulamentação, faz com que se torne algo desajustado e inacessível às mulheres
que optam pela realização do procedimento abortivo.
Dessa forma, os hospitais não poderiam impor uma série de requisitos não
previstos em lei, que somente dificultam o acesso a prática do aborto pelas mulheres
que procuram em um momento que estão vulneráveis, pois, com a criação da lei e de
acordo com o princípio da legalidade, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Conforme a pesquisa realizada pela Organização não-governamental Artigo
19, muitos hospitais solicitam a realização de um boletim de ocorrência e diversas
outras informações, que acabam por constrangerem a vítima, como pôde ser
constatado através de leitura ao Código Penal, em momento algum é listado como
obrigatório, ou sequer necessário, a realização de um boletim de ocorrência e demais
exigências.
26
Há de se notar que no momento em que a vítima procura o hospital para
relatar o trauma e a violência ocorrida, se encontram em um momento de extremo
medo e constrangimento, devido ao abalo psicológico sofrido, necessitando apenas
de acolhimento e tratamento digno, não de um processo completamente burocrático,
intimidador, constrangedor e vexatório.
Além disso, como foi discorrido, o Ministério da Saúde através de inúmeras
portarias, algumas satisfatórias na preservação da autonomia da vontade da mulher,
outras que acabam por limitar e restringir o direito da mulher para prática o aborto,
também é necessária melhor preparação da equipe que atuará ao atendimento
dessas vítimas.
Ademais, uma vez que a gravidez decorrer do crime de estupro, crime este
que é considerado hediondo, conforme o §1º, inciso V, da Lei de Crimes Hediondos
nº 8.072/90, as suas consequências deveriam ser melhor observadas, em relação as
vítimas que já se encontram extremamente vulneráveis, necessitariam serem melhor
amparadas, pois, o crime em questão pode ocorrer com qualquer mulher de nossa
sociedade, assim, carecem ter uma maior proteção legal de seus direitos,
principalmente àqueles que envolvem seu corpo e seu estado emocional.
Por fim, como é dever do Estado promover meios de garantir os direitos
fundamentais expressos na Constituição Federal, sendo função do Poder Legislativo
regularizar as situações cotidianas da nossa sociedade através de instituição de
normas, e ao Poder Judiciário garantir a defesas destes direitos, é extremamente
importante e necessária a criação de uma lei específica para a realização do
procedimento abortivo nos casos já admitidos, para que as mulheres de fato possam
exercerem seus direitos.
27
7. REFERÊNCIAS
BARROS, Rosana Leite Antunes de e SAPORITO, Maurício Garcia. Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerias. Nota Técnica – CPDDM/CONDEGE: Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Brasília, 2020. Disponível em: <http://www.condege.org.br/publicacoes/notas-tecnicas>. Acesso em 20 de mar. 2021. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial, volume 11. 11ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011.
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