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“Olhares Cruzados sobre a Revolução de Abril: metrópole e retorno em Dulce

Maria Cardoso”

Isabel Cristina MateusUniversidade do Minho/ Cehum

1. Retorno: breves notas para a crónica de uma mudança anunciada

25 de Abril de 1974 é reconhecidamente para os portugueses a data mais

emblemática do século XX, como sublinharam os meios de comunicação social em

Portugal ao longo deste mês de Abril, decorridos quarenta anos, com base nos resultados

de um inquérito realizado junto da população: a histórica manhã de Abril foi a madrugada

de todas as manhãs e de todos os futuros, o dia dos tanques avançando pelo Terreiro do

Paço, dos cravos nas espingardas e nas lapelas, do povo em festa enchendo de palavras e

de flores as ruas. A Revolução de Abril foi para nós, como o haveriam de dizer para

sempre os versos de Sophia Andresen, “o dia inicial inteiro e limpo // Onde emergimos da noite e

do silêncio// E livres habit[á]mos a substância do tempo”, (2010:68). Ou ainda, na evocação à

distância de um dos seus arautos e construtores, o poeta Manuel Alegre, “um Abril comigo

Abril contigo// ainda só ardor e sem ardil// (…) Abril de vinho e sonho em nossas taças” (2014: 67). Uma

promessa de sonho e de esperança bem diferente, é certo, dessoutro Abril desencantado

que, vinte anos depois, há-de lembrar ao mesmo poeta um caranguejo em marcha:

Vinte anos depois a história escreve-se ao contrário//Abril é uma data do avesso

e os tanques//estão a voltar em marcha-atrás a Santarém. (…)Um caranguejo pôs-se a

caminhar//um caranguejo dentro de palavras.// Vinte anos depois há um erro de

calendário//alguém anda a querer virar a página//vinte anos depois a história escreve-se

ao contrário” (2014: 69).

Entre o “dia inicial” de Sophia e o caranguejo andante de Manuel Alegre não foi

apenas o tempo que passou. Muita coisa mudou no país e na sociedade portuguesa, muito

se ganhou, muito se perdeu pelo caminho. Como em todas as Revoluções. Mas Portugal é

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hoje, seguramente, um país bem diferente do país cinzento e isolado de há quarenta anos

atrás 1.

Procurarei aqui brevemente reflectir sobre um dos agentes dessa mudança

tomando como ponto de partida o romance O Retorno de Dulce Maria Cardoso,

publicado em 2011, cujo sucesso editorial veio chamar a atenção em Portugal para uma

escritora que já vinha sendo reconhecida internacionalmente e premiada pelos seus

romances anteriores.2 Poderia escolher vários romances de autores portugueses

contemporâneos sobre o 25 de Abril ou que têm o 25 de Abril como pano de fundo da

narrativa (desde O Esplendor de Portugal (1997) de António Lobo Antunes ao já

longínquo O Dia dos Prodígios (1980), em contraponto com o recentíssimo - e a vários

títulos, memorável- romance Os Memoráveis, ambos de Lídia Jorge). Escolho O Retorno

por ter como tema central, explícito no título do romance, o regresso à metrópole dos

portugueses das ex-colónias, chamando a atenção para aquele que foi um dos maiores

influxos e agentes de mudança na sociedade portuguesa pós-Revolução.

O retorno é, com efeito, um dos aspectos mais marcantes do 25 de Abril no que

concerne o processo de independência das antigas colónias, um aspecto que tem sido

apontado como único, exemplar, em todo o mundo: lembro, com Eduardo Lourenço, que

entre os imperativos da Revolução, os famosos “3 dês” (Democratizar, Desenvolver,

Descolonizar), “aquele que se impôs como prioritário foi o último”3. Refiro-me àquilo

que tem sido destacado como o sucesso da integração de mais de meio milhão de

retornados das ex-colónias na sociedade portuguesa em pouco mais de quatro meses,

sublinhando que, naturalmente, ao utilizar as palavras “exemplar” e “sucesso”, não estou

a esquecer ou minimizar os dramas pessoais e familiares desses portugueses, a amargura

que trouxeram nas malas e nos contentores de viagem, nem tão-pouco a branquear a dor 1 Em entrevista concedida ao jornal Expresso inserida na edição comemorativa dos 40 anos do 25 de Abril, António Barreto não deixa de afirmar o seguinte:

O nosso balanço de melhoramentos é enorme. A mais importante é a liberdade pura e simples. A nossa democracia falhou, a liberdade não. A segunda foi (a emancipação d)as mulheres. Em 1960, uma mulher não podia alugar um quarto, sair do país, abrir uma conta bancária. Em terceiro lugar, o Estado social. Os números são avassaladores. Nas universidades havia 24 mil estudantes, hoje há 400 mil.

Cf. “António Barreto”, entrevista de Henrique Monteiro e Joana Pereira Bastos, Expresso, 2014, p. 54.

2 Campo de Sangue foi Prémio Acontece (2001), Os Meus Sentimentos (2005), foi prémio União Europeia para a Literatura e O Chão dos Pardais (2009) foi Prémio Pen Clube de Ficção). Para além dos romances, a autora tem publicado, de forma dispersa, vários contos, reunidos em parte na antologia Até Nós (2008) e na recentemente chegada às livrarias Tudo São Histórias de Amor (2014).

3 Cf. “Da não-descolonização” (1990), texto inédito de Eduardo Lourenço (2014:255).

2

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da perda e o sentimento de desterrritorialização. Da mesma forma, não ignoro ou sequer

pretendo pôr em causa a finura de análise de Eduardo Lourenço quando afirma,

provocadoramente, não ter existido entre nós, em rigor, uma “descolonização” pela

simples razão de que, para o ensaísta, o “Império nunca existiu”:Pode chamar-se a esta derrocada do último império colonial europeu

“descolonização”, mas se esse conceito supõe a existência prévia de um projecto e de

um processus de conversão do antigo estatuto colonial para um outro, de autonomia e

independência, maduramente pensados e controlados na sua emergência, não houve

entre nós, nenhuma “descolonização” (2014: 253)4.

Limito-me aqui a sublinhar o êxodo forçado, e dolorosamente real, desse meio

milhão de portugueses retornados, com a serenidade e o distanciamento crítico que só o

tempo tornou possíveis. Procurando ancorar o meu olhar no testemunho de algumas

vozes autorizadas de vários sectores e quadrantes ideológicos que, ao longo deste mês de

Abril, na imprensa e nos meios de comunicação social portugueses, foram unânimes em

reconhecer esta singularidade positiva: entre elas, Vasco Lourenço, um dos capitães de

Abril, o historiador Fernando Rosas ou o empresário Alexandre Relvas, nascido em

Luanda, de quem colho, no jornal Público, a afirmação de que o movimento de

integração dos retornados “correu tão bem que não é suficientemente valorizado, a

sociedade portuguesa não valoriza essa capacidade enorme que teve”, como se lhe tivesse

passado despercebida.

Para Alexandre Relvas, o sucesso de integração ter-se-á ficado a dever não só ao

que classifica como a “extraordinária generosidade” da sociedade portuguesa mas

também ao papel “extraordinário” que o Estado então desempenhou, nomeadamente ao

pôr no terreno um conjunto de medidas como a ponte aérea entre Portugal e Angola, o

programa de alojamento dos retornados, a reintegração no trabalho de todos os

funcionários do Estado nas ex-colónias ou a criação de um Instituto de Apoio aos

Retornados Nacionais (IARN). O sucesso da integração dever-se-á também, diria antes

sobretudo, à “capacidade de iniciativa e de luta do conjunto de portugueses que

4 O que, de resto, não surpreende se tivermos em conta que, de acordo com Eduardo Lourenço, estamos perante “um povo colonizador e colonialista para quem o Império nunca existiu” (Idem:192). Na sua perspectiva, “essas colónias não eram do País real, mas de algumas centenas de pessoas dele que as não conheciam, delegando nos raros colonos, os únicos para quem o projecto imperial acabava por existir, o encargo de as inventar, desbravar, submeter, explorar até ao sangue (negro)”. Cf. “Requiem por um império que nunca existiu” (2014: 189).

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regressaram e que trouxeram o conhecimento e a mais-valia de serem os últimos colonos

portugueses em África” (Almeida 2014:16).

O sociólogo Rui Pena Pires, autor da única grande investigação sobre a temática

da integração, realça igualmente este aspecto positivo em declarações ao jornal Público,

ao considerar que “houve uma boa integração” dos retornados na medida em que não há

hoje na sociedade portuguesa “marcas que se percebam”, marcas visíveis de diferença em

relação a qualquer outro cidadão português. O que é, para o sociólogo, um facto notável,

na medida em que estamos a falar da maior deslocação populacional na Europa no século

XX: nem o repatriamento no pós-II Guerra Mundial, nem a descolonização britânica

atingiram um valor percentual tão elevado5.

Os retornados estão hoje em todos os sectores da sociedade portuguesa, desde o

governo às instituições, públicas ou privadas, da academia às empresas e aos meios de

comunicação social que, em alguns casos, eles próprios fundaram ou ajudaram a fundar.

A eles e ao seu espírito empreendedor, à sua largueza de vistas e abertura mental, se

devem um dos contributos mais decisivos na mudança da sociedade portuguesa, na sua

modernização e na construção de um Estado democrático. Evocar o vento de mudança

que eles significaram para o país é porventura hoje uma das melhores formas de

homenagear Abril.

2. Ao encontro das raparigas com brincos de cerejas

De retornados e de integração fala o romance de Dulce Maria Cardoso, um

romance que vem possibilitar um olhar diferente sobre a independência das antigas

colónias portuguesas e sobre o regresso forçado à metrópole dos últimos representantes

do império daquela que foi a primeira e última nação colonizadora europeia. Não sendo

5 Procurando destacar esta diferença, Rui Pena Pires nota que o Reino Unido, “que tinha um Império maior, teve também 500 mil retornados, mas a maior parte foi para os Estados Unidos, enquanto em Portugal poucos foram para o Brasil e os que foram, fazem-no com carácter transitório, para depois virem para cá”. Pena Pires acrescenta ainda que houve em Portugal a preocupação em “não repetir erros” ocorridos com a integração dos pieds-noirs em França (após a descolonização da Argélia): segundo ele, “o Comissário para os Desalojados pôs como condição ir a França ver o processo dos pieds-noirs” e os responsáveis com quem se encontrou terão aconselhado a dispersão dos retornados, assumindo que “um erro francês tinha sido a concentração em Marselha” das populações coloniais vindas da Argélia. Diferentemente ao caso francês, onde a questão das indemnizações fora uma questão central, em Portugal “não se falou nisso”. Uma atitude do Estado que o sociólogo classifica como “premeditada e inteligente, na medida em que “enquanto as pessoas estiverem direccionadas para o que perderam ficam ligadas a isso e não se identificam com o resto”. (Almeida 2014:16).

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uma temática nova6 na ficção mais recente, um dos méritos da autora foi certamente o de

conseguir dar um novo enfoque a um tema fracturante na sociedade e na cultura

portuguesas, ao fazer dos “retornados” não o cenário mas o próprio assunto e acção do

romance e colocando em primeiro plano uma temática inédita7: a dos refugiados em

hotéis (numa clara alusão ao programa de alojamento dos retornados desencadeado pelo

Estado português). Mérito também pelo tom certo encontrado: sem nostalgia ou

idealização, sem rasuras ou branqueamento emotivo, mas também sem ressentimento ou

acusação, sem estremecimento de pele, numa clara demarcação daquilo que Eduardo Pitta

chamou "literatura do eterno retorno", uma literatura nostálgica que se compraz (salvo

raras excepções8) em re-escrever a memória de “um paraíso perdido" (2011:10). Por todas

estas razões, importa dizer que O Retorno é, como destacou a revista Ler na capa da

edição de Outubro de 2011, do “primeiro grande romance sobre quem regressou de

África”.

O Retorno conta a história de Rui e da sua família que, apanhados no turbilhão

dos acontecimentos que marcam o ruir do império e a autonomia das colónias, regressam

à "metrópole" na "ponte aérea" de 75 onde se descobrem, de um momento para o outro,

sem terra, sem casa e dentro de uma pele que não é a sua. O Retorno é a narrativa dessa

perda dolorosa, do espanto adolescente perante o súbito estranhamento do mundo, mas

também do desejo indomável de edificação a partir das ruínas. Longe de ser um olhar

nostálgico sobre o passado, o romance é antes um olhar intrépido, luminoso, sobre o

futuro: mais do que um “retorno”, trata-se de um “re-começo”.

Importa dizer que O Retorno é, antes de mais, um romance de aprendizagem, de

descoberta de um mundo em mudança, construído a partir da perspectiva instável e da

voz narrativa de um adolescente, ele próprio palco de mudanças várias. Uma opção

formal relevante pelo que de inocente, de ideologicamente descomprometido ou em

construção esta voz possa implicar (ou de alegadamente light, como certa crítica mais

6 Vejam-se, entre outros, Ferraz, Carlos Vale (2007): Fala-me de África. Casa das Letras; Magalhães, Júlio (2008): Os Retornados-Um Amor Nunca se Esquece. Lisboa: A Esfera dos Livros; Trabulo, António (2009): Retornados- O Adeus a África. Lisboa: Cristo Negro ; Acácio, Manuel (2009): A Balada do Ultramar. Lisboa: Oficina do Livro e Agualusa, José Eduardo (2012): Teoria Geral do Esquecimento. Lisboa: D. Quixote/Leya.

7 Em entrevista ao programa Câmara Clara (RTP2), é a própria autora a sublinhar que a temática dos refugiados em hotéis nunca antes fora abordada na literatura portuguesa e lusófona.8 Eduardo Pitta destaca Melo, Guilherme de (1981): A Sombra dos Dias. Lisboa: Bertrand e (1965) As Raízes do Ódio. Lisboa: Arcádia (ambos publicados num tempo anterior ao boom da literatura pós-colonial), bem como Figueiredo, Isabela de (2009): Cadernos de Memórias Coloniais. Coimbra: Angelus Novus. Não há, contudo, qualquer referência a O Retorno no texto em questão.

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ligeira pretendeu), dela decorrendo em parte o registo diferente, neutro, deste romance. E

este tom maior, lucidamente maior, que perpassa O Retorno é uma das razões de o ter

escolhido para celebrar uma data que deve ser de esperança, de esperança apesar dos e

contra os tempos de chumbo.

No último dia que passa em Luanda, naquele que viria a ser o último almoço em

família antes de embarcarem no avião que os há-de trazer de “regresso” a Lisboa, Rui

detém-se nos sons e no cortante dos gestos familiares: a cesta do pão derrubada sobre a

mesa, o tilintar contido dos talheres, a mão do pai rasgando com a faca de cortar a carne a

toalha das dálias bordada pela mãe, o indizível dos gestos. Como um sensor, Rui regista

todos os sinais, a tensão suspensa no ar, os tiros lá fora, o silêncio apenas rasgado pelo

ruído da ventoinha, anunciando o roncar dos motores do avião.

Abandonar a casa é uma ferida, fechar a porta do passado, uma perda irreparável,

a viagem, uma linha de separação, a metrópole, o desconhecido. Todavia, o olhar de Rui

procura distrair a angústia na beleza sedutora de uma imagem: a imagem das raparigas

com brincos de cereja9:Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas

orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole sabem ser. As

raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda

que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as

raparigas da metrópole fazem nas fotografias (2011:7).

A imagem erotizada das raparigas com brincos de cereja que abre o romance e se

constitui em leit-motiv estruturante da narrativa é assim o pórtico de entrada no mundo

desconhecido que em breve se abrirá para Rui. As raparigas com brincos de cerejas são

indissociáveis da sua representação do Outro, no caso, da metrópole longínqua e

mitificada, um território de sedução, em certa medida utópico: uma representação

construída a partir de uma pluralidade de imagens, de narrativas familiares, do álbum de

fotografias da mãe e consolidada (ou hipertrofiada) pela iconologia da cultura de massas,

em particular, das revistas e da cultura cinematográfica europeia e ocidental. As cerejas

são, enquanto ponto focal do olhar de Rui, metáfora da alteridade, instaurando a diferença

entre um "lá" idealizado e um "aqui" real, entre "cerejas" e "pitangas", entre dois mundos

9 Retomo aqui, parcialmente, o texto “Brincos de cerejas e pitangas: retornados e representação do Outro em O Retorno de Dulce Maria Cardoso. In: (2014) Portugal-Brasil-África:relações históricas, literárias e cinematográficas (coord. Cristina Costa Vieira, Paulo Osório e José Henrique Manso).

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ou continentes, europeu e africano, até este dia confortavelmente distintos, incluindo esse

desconhecido continente feminino apenas entrevisto na polpa rubra dos brincos de

cerejas. As raparigas da metrópole encarnam um estereótipo de beleza e de sensualidade

que não encontra tradução no “aqui” e no “agora” em que Rui se situa: as raparigas

“daqui”, comenta, “não sabem como são as cerejas", não riem umas com as outras e,

principalmente, nota, não usam "brincos de pitangas”.

A imagem dos brincos de cerejas irá acompanhar Rui ao longo do seu processo de

aprendizagem, um percurso identitário fortemente abalado pelas convulsões provocadas

pela descolonização, desde logo pelo abandono forçado da terra que o vira nascer: “Ainda

que gostemos de nos enganar dizendo que voltamos em breve, sabemos que nunca mais

estaremos aqui. Angola acabou. A nossa Angola acabou” (2011:14).

Na mala de viagem deixada para trás na precipitação da fuga, ficarão, sem que

Rui o saiba, a crença e as certezas inabaláveis, o conforto e a segurança de um mundo de

oposições, a preto e branco, um mundo que literalmente rui com a prisão do pai pelos

soldados angolanos poucas horas antes do embarque e com o retorno do que resta da

família à metrópole.

Embora a expressão seja inadequada ou pouco rigorosa no caso de Rui (nascido

em Angola), “retornar” à metrópole significa transpor o limiar da porta de entrada num

mundo outro, de certa forma estrangeiro, significa “regressar” à casa-Europa e a

proximidade do mundo de imagens e de ícones acentuadamente europeus que habitam os

seus sonhos de adolescente; daí a diferença do seu olhar nem verdadeiramente exterior

nem interior, desterritorializado. Retornar significa entrar num mundo de desejo onde as

fotografias ganham cor, textura, cheiro, sabor. Significa entrar num mundo em que as

cerejas e os cravos se indistinguem no vermelho da revolução nas ruas, no rubro da

revolução interior: “[o] que quero agora – dirá Rui ao chegar a Lisboa - é conhecer as

raparigas da metrópole, as raparigas dos brincos de cereja. Ainda não vi nenhuma que

fosse linda como as das fotografias mas tem de haver, não as inventaram só para a

fotografia” (2011:106-107).

A visão do Outro e, sobretudo, a construção da utopia do Outro, são indissociáveis

desta representação do mundo feminino, através da qual a metrópole e a Europa se

configuram como corpo ou território de sedução. Todavia, em busca da sua própria

identidade, Rui acabará por interrogar e desconstruir, por dentro e simultaneamente de

fora, com um olhar desenraizado, equidistante, aquilo a que Eduardo Lourenço chamou a

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nossa “estrutura de hiperidentidade”10, e em particular, a imagem hipertrofiada de

Portugal, pequena-grande nação colonizadora, veiculada pelo antigo regime, ao mesmo

tempo desconstruindo a imagem épica, auto-mitificadora, da Revolução de Abril.

3. “Uma ilha no mar da revolução”

O Retorno é assim a narrativa do choque cultural vivido por Rui ao chegar à

metrópole, do desmoronar da utopia do Outro, sintetizado na única frase que constitui o

terceiro capítulo do romance: “Então a metrópole afinal é isto.”

Isto é a medida do desencanto de Rui no percurso entre o aeroporto e o Estoril, a

forma como traduz em imagens o desabar da representação hegemónica da "metrópole", o

confronto com um país improvável, pequeno, pobre, triste que a Revolução não alterou:

Não, a metrópole não pode ser como hoje a vimos. A prova de que Portugal não

é um país pequeno está no mapa que mostrava quanto o Império apanhava da Europa, um

império tão grande como daqui até à Rússia não pode ter uma metrópole com ruas onde

mal cabe um carro, não pode ter pessoas tristes e feias, nem velhos desdentados nas

janelas tão sem serventia que nem para a morte têm interesse" (2011:84).

Isto traduz igualmente a estranheza de se pisar uma terra a que não se pertence,

simultaneamente familiar e desconhecida, próxima e distante, a incredulidade perante a

contradição que o luxo do hotel torna evidente: “A metrópole tem de ser toda como este

hotel, o que vimos hoje até aqui chegar só pode ser um engano. A metrópole tem de ser

como este hotel que até no elevador tem uma banqueta forrada a veludo (2011:83). Isto é

a experiência da diferença de hospitalidade num hotel e numa sociedade em revolução

onde há hóspedes “normais” que “não podem ser incomodados” e “têm de ser tratados de

10 O Portugal de Salazar foi uma espécie de equilíbrio, precário em si, mas longamente cultivado, entre modernização exterior e ruralização espiritual, sem poder evitar que a primeira destruísse, na raiz, as condições de perpetuação da segunda. A esse processo inteiro – ou fazendo parte dele na sua face económica - agregou-se então o culto do Império que vinha dos fins do século XIX, elemento capital para repor no seu antigo estatuto de nação eminente a pequena nação europeia que era (que é) Portugal. Houve um momento em que a nova imagem de Portugal (…) com a sua dimensão imperial imaginária aparentemente restaurada, parecia justificar a ideologia cultural, inspirada no passado mais glorioso da nação, momento em que Portugal parecia miraculosamente suspenso entre o pragmatismo mais realista e o onirismo mais delirante. O processo de descolonização universal, a rebelião africana, as novas condições da evolução económica ocidental converteriam esse equilíbrio numa pura ilusão e obrigariam a uma reconsideração dessa nova imagem de Portugal, global e hipertrofiadamente positiva, perfeita antítese da imagem pessimista do século passado (Lourenço 1988: 21).

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acordo com o que pagam” e os “outros”, os “retornados”, que devem estar agradecidos

por lhes ter calhado em sorte um hotel de cinco estrelas (Id:68-69). Isto é ainda a tensão

latente entre o discurso conservador da directora do hotel para quem “os tempos

conturbados” - ou, como lhes chamará mais tarde, perante a progressiva degradação do

hotel, os “tempos funestos” (2011:237)- da Revolução justificam o original apart-heid

entre hóspedes de primeira e de segunda, e o ardor revolucionário do taxista para quem

“os tempos não são conturbados, (…) são tempos bons, nem mais um soldado para as

colónias, nem mais um caixão das colónias, camaradas” (Id:83). Isto é ainda sentir na

pele essa discriminação e perceber que, cá ou lá, continuam a ser portugueses de segunda

e que, no fim de contas, "os de cá ainda gostam menos de nós do que os pretos de lá" (Id:

219).

Ainda que Rui o não possa adivinhar à chegada ao hotel, o choque cultural e o

drama que ele e a família começam a viver passará pela palavra retornado (ou entornado,

no dizer corrosivo de alguns) que hão-de tentar colar-lhes como uma segunda pele,

passará por um “isso” sem aderência, um pro-nome, mais do que demonstrativo,

indefinido e indefinível: "Agora somos retornados. Não sabemos bem o que é ser

retornado mas nós somos isso. Nós e todos os que estão a chegar de lá" (2011:77). Da

mesma forma que passará por uma palavra misteriosa, a palavra IARN, omnipotente e

omnipresente:

Em quase todas as respostas uma palavra que nunca tínhamos ouvido, o IARN,

o IARN, o IARN. O IARN paga as viagens para a terra, o IARN põe-nos em hotéis, o

IARN paga o transporte para os hotéis, o IARN dá-nos comida, o IARN dá-nos

dinheiro, o IARN ajuda-nos, o IARN aconselha-nos, o IARN pode informar-nos. Nunca

tinha ouvido tantas vezes uma palavra, o IARN parecia mais importante e mais

generoso do que Deus (2011:77).

Afinal, a sigla correspondente ao Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais, a

palavra que melhor expressa o programa de acolhimento dos retornados então

desenvolvido pelo governo português. Mesmo se esse processo de integração não se faz

sem escolhos e sem a discriminação, mais ou menos visível, da sociedade portuguesa, dos

portugueses da metrópole. Discriminação que se torna ostensiva na recusa do direito a um

nome, a uma identidade individual fora do rótulo colectivo e pejorativo de “retornados”:

atitude que a professora de matematica tomará relativamente a Rui, desencadeando desse

modo a fúria do adolescente:

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um dos retornados que responda, a puta nunca diz os nossos nomes, um dos

retornados que responda era o que faltava (…) Custa assim tanto decorar o meu nome,

se me chamasse Kijibanganga ainda tinha desculpa, mas Rui, porra, é um nome fácil, e

mesmo que me chamasse Kijibanganga a puta tinha a obrigação de decorar (2011:141).

Sem terra, sem casa, sem nome, Rui inicia um percurso de sobrevivência, sua e da

família, que é simultaneamente um lugar de exílio mas também um percurso de

aprendizagem e afirmação identitária, de conquista do direito à cidadania. O hotel e a

experiência de desterrado serão desta forma para Rui a sua escola de vida, a sua ilha no

meio do mar da Revolução, uma terra de ninguém entre dois continentes, o seu manual de

sobrevivência. À semelhança de Robinson Crusoe, Rui aprenderá que “as coisas terríveis

estão sempre a acontecer, cá, lá, em todo o lado” (2011:261) e que é possível não gostar

“do frio da metrópole” mas gostar “da mudança de estações” (Id:165). Aprenderá que a

vida se constrói afinal no constante balanço entre perdas e ganhos, dando provas ao longo

do romance de um pragmatismo e de um optimismo que cativam o leitor: “nem todos os

dias no hotel foram maus, também tiveram coisas boas”, resumirá Rui no final do

romance, acrescentando “não po[der] evitar que umas coisas tragam outras ou façam

perder outras” (Id:267) e que, no fim de contas, “as noites da metrópole também podem

ser bonitas e cheias de estrelas” (Id:126).

A aprendizagem, em última instância, será recíproca, de Rui e da sociedade em

mudança que o acolhe, na medida em que a integração destes “retornados” veio

desassossegar o imobilismo conservador do país, provocar uma certa aculturação e

abertura de mentalidades. Os retornados foram agentes de um sobressalto positivo,

introduzindo um tempo e um ritmo que sacudiram a sonolência do país orgulhosamente

só, uma nota de cor na cinzenta gravidade nacional, uma descompostura na pose oficial

de “país engravatado todo o ano” (1982:243), para utilizar os versos do poeta Alexandre

O’Neill que tão bem o soube retratar. Um desafio patente nos mais pequenos gestos do

quotidiano, gestos simples, como beber Coca-Cola, sentar-se na relva ou usar roupa

colorida:

Quando já não consigo olhar mais para o mar (…) fico a ver o jardim do Casino

cheio de retornados (…). A maior parte das vezes não se consegue encontrar um banco

livre e é proibido sentarmo-nos na relva, na metrópole tudo o que é bom é proibido, até

a Coca-Cola, os de cá até têm razão para serem tão embirrentos. (…) O Tozé Cenoura

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(…) traz miúdas do hotel e dá-lhes ordens em quimbundo para os de cá saberem que é

retornado. Não é preciso nada disso porque basta olhar para as roupas que tem, os de cá

não mandam banga como nós e têm a pele branca como o leite ou cinzenta-esverdeada,

uma pele de cor estragada. Os de cá são gente esquisita que nos topa à légua (2011:109).

Desafio ou sobressalto igualmente patentes numa certa liberdade sexual até então

desconhecida na metrópole moralista e recatada; Gaby, uma das namoradas de Rui, há-de

saborear deliciada no beijo que este lhe dá um travo diferente, irresistível, estrangeiro:

A Gaby, uma a quem dei um beijo de língua logo no início do ano, disse-me

que gostava de estar comigo, que quando estava comigo, era como se estivesse no

estrangeiro. E como é estar no estrangeiro, perguntei, a Gaby não sabia, nunca tinha

saído da metrópole, mas não achava estranho dizer, é como se estivesse no

estrangeiro, é mesmo coisa de rapariga da metrópole (2011: 146).

Se a metrópole vai despertando da letargia, ganhando cor e ousadia, Rui e os

retornados do hotel, por seu turno, resistem a deixar-se contaminar pela “tristeza da

metrópole” que “entra em nós como o ar que respiramos”, corroendo o ânimo: “É difícil

acreditar no que quer que seja. (…) Não se consegue acreditar em nada e também não se

consegue ficar à espera para ver o que acontece” (2011:136), sobretudo numa terra onde

“não acontece nada tirando a Revolução” (Id:191). Em certa medida, a mesma tristeza

cinzenta que se esconde nos gestos da mãe e está na origem da doença que a consome

interiormente.

Rui, porém, não se deixará abater pelo fado lusíada ou pela nostalgia de alguns

retornados que gastam “horas a lembrar-se do que perderam”; ambos se saldam por um

imobilismo que não lhe agrada. Não se deixará abater tão-pouco pela desconfiança com

que são olhados pelos de cá, receosos de quem quer “roubar-lhes os empregos, além de

[lhes] destruir os hotéis, destruir a linda metrópole que nunca mais vai ser a mesma”

(2011:189). Rui quer arregaçar as mangas, “arranjar trabalho para mostrar aos

mangonheiros da metrópole de que massa os retornados são feitos, se conseguimos

construir terras como as que fomos obrigados a deixar também conseguimos mudar o

atraso de vida que a metrópole é” (Id.: 189).

Da mesma forma, Rui não se deixará abater pela desilusão ao descobrir que não há

na metrópole raparigas com brincos de cereja como as do álbum de fotografias da mãe,

que “afinal não há assim tantas raparigas bonitas na metrópole, em geral até são feias,

11

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muito mais feias do que as de lá” (2011:148). A leitura desencantada da metrópole não o

impedirá, todavia, da aproximação a uma leitura mais realista e pragmática junto de

Teresa; aos seus olhos, Teresa há-de parecer-lhe “bonita como tudo”, afinal "quase tão

bonita como as raparigas dos brincos de cereja" (2011:148).

4. O coração das cerejas: os filhos da Revolução

O pragmatismo de Rui, a sua capacidade de adaptação à “metrópole de viver”11,

manifestar-se-á de diversas formas ao longo do romance. Desde logo no modo como se

adapta à vida no hotel e, em particular, como ultrapassa a sua condição de desterrado

encontrando no quarto que partilha com a mãe e a irmã, o seu território, a sua casa: “Um

quarto pode ser uma casa e este quarto e esta varanda de onde se vê o mar é a nossa casa”

(2011:163), dirá mais tarde. Manifestar-se-á igualmente no modo como procura proteger

a família e traçar planos de futuro, mesmo se estes se revelam delirantes, como acontece

com o plano de emergência para levar a mãe e a irmã para a América, plano que passa

por “decorar inteirinho” um dicionário de inglês para aprender a língua. Ou com o

picaresco plano de roubar os contentores abandonados das vítimas de Sanza Pombo,

pertencendo Rui ao piquete de vigilância criado para os proteger:

Sei que é assim que se pensa [ultraje do roubo] porque também já pensei da

mesma maneira e teria continuado se não tivesse a mãe e a minha irmã para levar

para a América. Mas tenho e isso é mais importante do que pôr-me a pensar no que

está certo ou errado, no bem e no mal, os vinte contos que trouxemos já se gastaram

e não temos mais cordões de ouro para vender (2011: 198).

A capacidade de adaptação de Rui está ainda presente na forma como encontra no

terraço do hotel o seu território privado, a sua ilha secreta, e a ele sobe como se subisse ao

cesto da gávea em busca de sinais de um futuro para além do mar da Revolução12. Um

território que ele diz conhecer “como a [sua] palma da mão”, o lugar onde gostaria de

11 Na perspectiva de Rui, há várias representações da metrópole, nem sempre coincidentes com a metrópole real: “O Gégé e o Lee não vão acreditar quando lhes disser como a metrópole é na verdade, sabem como é a metrópole dos mapas da sala de aulas, e o Gégé conhece a metrópole das férias mas nenhum deles sabe o que é a metrópole de viver” (2011: 235).

12 Cf. “Um terraço que seja seu: notas sobre O Retorno de Dulce Maria Cardoso". Mateus (2013: 190).

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deixar inscrita a marca da sua passagem “Eu estive aqui” (2011:267). E digo “passagem”

porque, ao longo do romance, Rui descobrirá na sua condição desterritorializada a

vocação nómada que o leva a alimentar o sonho de ir para a América (ou para o Brasil)

como aconteceu com tantos retornados. Uma casa é assim para Rui um lugar provisório13,

o mundo um lugar de exílio, a vida uma permanente errância:

este quarto com esta varanda de onde se vê o mar não é uma casa. Muito menos a

nossa casa. Se fosse a nossa casa devia ser bom fumar aqui um cigarro. (…) Mas

assim é diferente, assim é fumar um cigarro num sítio a que não pertenço e a que

nunca pertencerei. (…) Um quarto pode ser uma casa e este quarto com esta varanda

de onde se vê o mar é a nossa casa enquanto não vamos para a América (2011: 172-

173).

Pelo contrário, o pai de Rui, reaparecendo no final do romance quando toda a

família o julgava morto pelos angolanos, mostrar-se-á tão determinado em não falar sobre

o passado como empenhado em construir o futuro com as suas próprias mãos, em ajudar a

construir uma “nação nova” (2011:250), transformada em cais de chegada de meio

milhão de portugueses. O visionarismo de Mário, o seu sentido prático e empreendedor, a

sua crença no futuro, levá-lo-ão a tornar-se empresário na área da produção de cimento e

ajudando a construir o país novo, o país de betão que ele premonitoriamente adivinha:

O pai tinha uma única ideia, o futuro da metrópole passa pelo cimento e

quem quiser fazer parte do futuro tem de se juntar a mim e à minha fábrica de blocos

de cimento. (…) [E]u sei que esta terra não é abençoada como as de lá, eu sei que esta

terra pede-nos suor, lágrimas e sangue e em troca dá-nos um pedaço de pão duro, mas

também sei que numa coisa esta terra não é diferente de nenhuma outra, nem mesmo

das mais abençoadas, esta terra não rejeita o que lhe põem em cima, isso também sei,

e é por isso que vos digo que o futuro passa pelo que se vai pôr em cima desta terra,

casas, estradas, hospitais, escolas, (2011: 257).

Num trajecto que se desenha em relação quiasmática com o de Rui, o pai, que

inicialmente afirmara ter aprendido “no livro da vida” que “um homem pertence ao sítio

que lhe dá de comer” (2011:11), recusa a condição desterritorializada, de exílio, ao

defender que “nunca mais ninguém me tira da minha terra” (Id:243) e ao pretender

13 “The exile knows that in a secular and contingent world, homes are always provisional”, (Said, 2001:185).

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contribuir para a edificação de um país novo. Mário, será assim, como tantos outros

retornados, um dos construtores desse país novo, pós-imperial, que, de Norte a Sul,

procurou libertar-se de complexo secular de inferioridade lançando-se na ânsia de

desenvolvimento e de modernidade que marcam e condicionam, para bem e para mal, o

nosso presente. Como tantos outros retornados, entre os quais o sr. Maurício, mecânico

de profissão, que acabará por “arranjar emprego numa cidade que fica do outro lado do

rio, uma cidade que é um ninho de comunas tão grande que até o Cristo Rei lhe virou as

costas” (2011:265).

A integração de Rui na metrópole passará ainda pela amizade com Queine, o

porteiro do hotel que lhe serve de guia “indígena” no espaço hostil da cidade (uma

espécie de Sexta-Feira para o nosso Robinson Crusoe) e lhe oferecerá uma bicicleta usada

para ir para todo o lado. O porteiro Queine com quem Rui aprende que “o destino é uma

carta fechada” (Id:164) e lhe há-de abrir as portas de casa.

A integração de Rui passará sobretudo por Silvana, mulher de Queine, em cujo

corpo encontra, mesmo se provisoriamente, a reconciliação com a metrópole e com o

sonho europeu14:

a Silvana sobre mim e eu sem medo de nada, sem pensar na morte do pai

(…) nos demónios da mãe, na tristeza da minha irmã, na metrópole, a Silvana sobre

mim mais bonita do que as raparigas com os brincos de cereja, a Silvana com os

olhos quase fechados, a respiração como num susto, as pernas duras a apertarem as

minhas, o meu corpo cada vez mais dentro do dela e o corpo dela a pedir, cada vez

mais sôfrego, o meu (2011:216). [Negrito nosso]

Silvana, uma casa provisória. Silvana, a mulher que há-de transportar no ventre

um filho seu, numa espécie de nova “mestiçagem”. Uma promessa de futuro em comum. 14 À primeira vista, o regresso à Europa representado pelo fim do império colonial e a já

longínqua revolução das flores podiam passar por um momento de europeização forçada, uma desafeição em relação ao nosso imaginário clássico, épico, em suma, uma redescoberta de nós mesmos como necessariamente europeus e da Europa como nosso horizonte e vocação incontornáveis. Na medida em que o fenómeno revolução das flores foi um acontecimento europeu, uma situação que a Europa democrática e não democrática viveu com atenção e mesmo paixão, na medida em que sobretudo na ordem política punha fim, com uma suavidade toda lusitana, exemplar, lírica, ao nosso isolamento internacional, podemos falar de momento europeizante. (...) Nesse momento duplamente onírico – a Europa a sonhar com um Portugal imaginário e Portugal a viver superlativamente na Europa- pode dizer-se que a Europa oferecia à nossa imaginação um quadro de referência, de intercâmbio a nível simbólico de uma certa reciprocidade, o que raramente aconteceu na nossa história de hipereuropeus sem Europa. In: “A Europa no imaginário português” (Lourenço, 2011:111-112).

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Porque, mesmo provisória, nenhuma terra "nos pertence enquanto não lhe conhecermos o

coração”. Ou, nas palavras de Rui, “enquanto não lhe conhecermos o coração esta terra

não guardará as nossas marcas nem reconhecerá os nossos passos" (2011:151).

O percurso de Rui (para lá da afirmação da sua vocação nómada, do seu sonho de

partir para a América, da sua sua visão desencantada, descentrada da Europa), documenta

uma aprendizagem cultural e uma abertura ao pluralismo democrático15 que, porventura,

não teriam sido possíveis sem a lição de Abril. Lembrar essa dinâmica, associando-a à

festa explosiva, à energia criadora que o 25 de Abril trouxe, às realizações conseguidas

no plano do estado social e do desenvolvimento do país, parece-me uma das melhores

formas de celebrar a revolução dos cravos. À distância de quarenta anos, no momento em

que muitos dos valores de Abril parecem comprometidos no meu país, talvez a memória

deste dia e daquelas que foram as suas mais importantes conquistas, nos torne mais

exigentes e mais actuantes no exercício da cidadania. Afinal, a nossa forma hoje, de fazer

a Revolução, de manter viva a memória de Abril.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARDOSO, Dulce Maria (2011): O Retorno. Lisboa: Tinta-da-China.

ALEGRE, Manuel (2014): País de Abril (Uma Antologia). Lisboa: D. Quixote.

ALMEIDA, São José (2014): “Retornados: Uma História de Sucesso por Contar”, Jornal Público, P2, 20

Abril.

AMARAL, Bruno Vieira (2013): Guia para 50 personagens da Literatura Portuguesa. Lisboa: Guerra e

Paz.

ANDRESEN, Sophia de M. Breyner (2010): Obra Poética (org. Carlos Mendes de Sousa). Lisboa:

Caminho.

EXPRESSO, 25 de Abril: quarenta anos depois, 18 de Abril de 2014.

LER , nº 106, Outubro de 2011.

LOURENÇO, Eduardo (2014): Do Colonialismo como Nosso Impensado (org. de Margarida Calafate

Ribeiro e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva.

LOURENÇO, Eduardo (2011): A Europa Desencantada. Para uma mitologia europeia, Lisboa: Gradiva.

15 Para tal certamente contribuem quer a pluralidade de vozes que ecoam na narrativa de Rui e através das quais este se vê confrontado com diferentes representações do colonialismo e da colonialidade vividas no seio da própria família, quer as diferentes perspectivas sobre a Revolução que animam os frequentes plenários no hotel que “muitas vezes dão discussão, demoram até às tantas, alguns a noite toda, [em que] toda a gente fica alvoroçada, nas votações nem se fala, [em que] chegam a ameaçar andar à tareia, parece que estamos a ver um filme”, p. 113.

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———— (1988): “Portugal –Identidade e Imagem”. In: Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa: INCM.

MATEUS, Isabel Cristina (2014): "Brincos de cerejas e pitangas: "retornados" e representação do Outro em O Retorno de Dulce Maria Cardoso" in Cristina Costa Vieira, Paulo Osório e José Henrique Manso (Coord.), Portugal Brasil África. Relações históricas, literárias e cinematográficas, Covilhã, Universidade da Beira Interior, pp. 205-226.

———— (2013): "Um terraço que seja seu: notas sobre O Retorno de Dulce Maria Cardoso". In: Colóquio /Letras (Notas & Comentários), nº 182, pp. 200-209.

O’NEILL, Alexandre (1982): Poesias Completas 1951/1981 (prefácio de Clara Rocha). Lisboa:INCM.

PITTA, Eduardo (2010): "Memorabilia Ultramarina". In: Ípsilon/Público, 13 de Agosto.

SAID, Edward (2001): Reflections on Exile (and Other Literary and Cultural essays). London:Grantan Books.

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