Abusos de memória em K. - Relato de uma busca

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    Abusos de memria emK. - Relato de uma busca

    Abuses of memory inK. Relato de uma busca

    Rosalia Rita Evaldt PIROLLI1

    RESUMO: Cinquenta anos aps o Golpe Militar, esse perodo anti-democrtico denossa histria nacional ainda apresenta numerosas lacunas, sobretudo em relao aodestino dos desaparecidos polticos. As marcas herdadas desse perodo so aindaprofundas e incmodas e desse material que Bernardo Kucinski se vale para escreverK. - Relato de uma Busca (2011). Nesse artigo, iremos propor uma anlise desseromance com base no quadro terico sobre o novo romance histrico e nafenomenologia da memria de Ricur (2010). Dessa forma, procuraremos compreendercomo se articulam o plano da vida individual e o plano histrico e os abusos de

    memria (memria impedida, manipulada e obrigada) decorrentes dessa articulao.PALAVRAS-CHAVE: Memria, Fico histrica, Ditadura Militar.

    ABSTRACT: Fifth years after the Military Coup, this antidemocratic period still hasseveral gaps, especially regarding the disappeared political activists. The taint of thishistoric moment has been until now deep and uncomfortable and this is the BernardoKucinski's source for writing K. (2011). In this paper, we propose an analysis of thisnovel based on the theoretical model on the New Historical Novel and Ricur'sphenomenology of memory (2010). We'll seek to understand not only how the historicaland the individual level are connected but also the abuses of memory (the constraintmemory, the manipulated memory and the obliged memory) resulting from this relation.KEYWORDS: Memory, Historical fiction, Military dictatorship.

    1. Introduo

    Neste artigo, iremos propor uma anlise do livro K. Relato de uma busca

    (2011), romance de estreia de Bernardo Kucinski luz da teoria sobre o romance

    histrico. Esse modo de leitura, longe de ser simplificador, pretende verificar em que

    medida essa modalidade romanesca pode fornecer elementos de interesse para a leitura

    dessa obra. Alm disso, procuraremos compreender, a partir dos pressupostos tericos

    de Ricur (2010), a relao entre a memria, o esquecimento e a histria, que nos

    parece ser um aspecto chave desse romance.

    1 Mestranda do curso de Ps-Graduao em Letras Estudos Literrios da Universidade Federal doParan (UFPR). Bolsista CAPES. CEP: 80.060-010. Curitiba/PR, Brasil. [email protected]

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    1.1 Romance histrico e novo romance histrico

    O romance histrico, descrito por Lukcs (19372), com base no modelo

    scottiano, aquele que representa as grandes transformaes da histria comotransformaes na vida do povo. , ento, na interseco do plano existencial da vida

    individual com o plano transindividual (cf. JAMESON, 20073) que situamos esse

    subgnero romanesco. A sua matria no a figurao do fato histrico em si, mas as

    suas repercusses na vida de um determinado grupo social. Weinhardt (2011a, p. 32)

    refora que essa influncia do acontecimento no modo de vida individual e social deve

    ser claramente perceptvel na instncia narrativa. Porm, desde a publicao do ensaio

    de Lukcs, o romance histrico passou por significativas mutaes, como as observadaspor Hutcheon (1991), Menton (1993), Jameson (2007), Anderson (2007) e Weinhardt

    (2011b).

    Menton, em seu livro La nueva novela histrica de la Amrica latina: 1979-

    1992, percebe a convivncia do romance histrico tradicional, com este que ele

    denomina de nueva novela histrica. Na NNH, as relaes com a temporalidade so

    reelaboradas criticamente, o que conduz, consequentemente, modificao da noo de

    totalidade da histria oficial. Hutcheon, em seu Potica do ps-modernismo (1991),

    apresenta a metafico historiogrfica que, apesar de filiada ao romance histrico

    lukcsiano, possui elementos que extrapolam esse parentesco. Essa produo

    problematizaria a delicada relao entre a histria, a fico e a constituio de suas

    respectivas escritas, colocando em cena a crise da historicidade e abrindo espao para

    vozes marginais, ex-cntricas. Menton e Hutcheon, porm, discordam em relao

    importncia do recuo temporal entre o fato narrado e o ato narrativo. Se para Menton

    (1993, p.32), o romance histrico aquele em que a ao se passa predominantemente

    no passado, em um tempo no vivido pelo autor, Hutcheon no traa nenhuma

    delimitao entre a temporalidade da narrativa e a da escrita.

    Mais recentemente, Jameson (2007), ao olhar para a produo literria de

    meados do sculo XX, prefere marcar a ruptura do modelo lukcsiano de romance

    2 O ensaio O romance histrico foi publicado originalmente em 1937. O livro ganhou traduobrasileira apenas em 2011, pela editora Boitempo.

    3 Jameson (2007) empresta de Tempo e Narrativa, de Ricoeur, as noes dos planos ontolgicos existencial e histrico para rever a temporalidade no romance histrico.

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    histrico. Anderson (2007, p. 217), em resposta, aponta as continuidades desse

    subgnero e, sobretudo, as suas felizes mutaes. As regras prescritas pelo filsofo

    hngaro so, portanto, ignoradas e invertidas e o romance histrico reinventado,exibindo modificaes tais como a mistura livre de tempos, a combinao ou

    entrelaamento dos tempos passado e presente, a presena do autor dentro da narrativa e

    a adoo de figuras histrias ilustres como personagens principais.

    De qualquer modo, seja identificando uma continuidade entre o romance

    histrico tradicional e o novo romance histrico ou inscrevendo essa produo mais

    contempornea diretamente no fenmeno da ps-modernidade, essa forma romanesca

    ainda se revela bastante produtiva. A partir daqui, voltaremos rapidamente nosso olharpara como essa produo tem se realizado no Brasil, na virada do sculo XX para o XXI

    e para a resposta crtica a essa fico.

    Carneiro (2005, p. 32) percebe como trao marcante da prosa nacional a

    convivncia pacfica dos mais diversos estilos, dentre os quais ele inclui o romance

    histrico, que ganha o adjetivo novo, sem que ele esteja necessariamente vinculado

    NNH de Menton. Resende (2008) tambm aponta a multiplicidade, o convvio no-

    excludente de um universo heterogneo de criaes, como elemento importante desse

    momento literrio. Porm, para essa crtica, o romance histrico percebido como uma

    manifestao menos forte do que a produo que encena o fenmeno da presentificao

    nas narrativas, sobretudo relacionado violncia urbana. Weinhardt (2011a),

    pesquisadora que acompanha o movimento desse subgnero romanesco no Brasil,

    ressalta no somente a prolificidade dessa produo literria atual, como tambm o

    hibridismo, a porosidade entre as diferentes modalidades, o que acarreta na

    multiplicao dos modos possveis de leitura de uma mesma obra.

    Sem perder de vista essas consideraes, passamos a algumas questes

    fundamentais da fenomenologia da memria de Ricur, que nos fornecer conceitos

    para compreender as relaes entre a memria, o esquecimento e a histria e que

    tambm sero pertinentes leitura de K. - Relato de uma busca luz do romance

    histrico.

    1.2 Relaes entre a memria e o esquecimento

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    Ricur (2010) prope que a memria, com seu carter mltiplo e fragmentrio,

    o fio condutor da experincia temporal humana. Por sua ambio veritativa, a

    memria aproxima-se da histria, sendo no apenas a sua matriz, mas tambm umcanal de reapropriao do passado histrico (Id.,2003, p.2). Porm, o pensador francs

    percebe os problemas e as consequncias dessa relao. A memria exercida

    suscetvel a usos e abusos, sendo que esses ltimos esto vinculados majoritariamente a

    eventos traumatizantes como a Shoah4 e os regimes autoritrios. Dentre os abusos, os

    conceitos que nos interessaro so os de memria impedida, de memria manipulada e

    de memria obrigada.

    A memria impedida ou ferida, compreendida a partir do trabalho de Freud(Recordar, repetir e elaborar, de 1914 e Luto e melancolia, de 1915), apresenta uma

    perda efetiva ou simblica que pode se localizar tanto na memria pessoal, representada

    pela morte de um ente querido, quanto na memria coletiva, provocada pela violncia

    da histria no sentido da libertao e da justia (RICUR, 2005, p. 1). Essas perdas

    podem, inclusive, se sobrepor, acontecer simultaneamente nos nveis individual e

    coletivo. O exerccio da memria, pelo bom uso dessas feridas, enfrenta dois

    obstculos: os esquecimentos o primeiro, lento e inexorvel e que se d pelo

    apagamento dos rastros no nosso crebro; o segundo, ativo e dissimulado, ocultado pela

    vontade de no querer saber e a compulso da repetio. Ricur alerta para os perigos

    da memria ferida e seus impedimentos. Enquanto o esquecimento pode atrapalhar a

    reapropriao do passado histrico, a repetio impede o verdadeiro trabalho de

    memria, aquele que no est em busca de fatos, mas de compreenso. Em favor do

    exerccio de memria, temos o trabalho de luto, indispensvel, desenvolvendo-se a

    partir da expresso aflitiva at a reconciliao com aquilo que foi perdido, efetivando

    uma memria pacificada, feliz.

    A memria manipulada, assim como a sua relao com o esquecimento, se d

    nas relaes de poder e situa-se no cruzamento entre a problemtica da memria e da

    identidade, tanto coletiva quanto pessoal (RICUR, 2010, p. 94). A manipulao da

    memria e do esquecimento intermediada, em vrios nveis, pelo fenmeno

    4 Termo utilizado por Ricur e considerado mais adequado para designar o que conhecemos como oholocausto judeu.

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    ideolgico. A memria poderia, portanto, ser incorporada constituio da identidade

    de um grupo atravs da sua funo narrativa, sendo que essa permite tanto a

    rememorao, quanto o esquecimento. Ela pode ser colocada, tambm pela narrativa, servio de alguma ideologia e ser, portanto, vinculada histria autorizada, oficial,

    celebrada publicamente.

    A memria obrigada, representada pelo dever de memria, tambm apresenta

    bons usos e abusos. Como bom uso, compreende-se como um dever de fazer justia s

    vtimas, relacionando-o ao conceito de dvida, que inseparvel da ideia de herana.

    Esse dever no se limita a conservar os rastros materiais, escritos ou de outra natureza,

    dos fatos terminados, mas acomoda principalmente o sentimento de dever a outros, ecoroa o trabalho de memria. Sua funo a exortao continuidade da narrativa,

    opondo-se ao esquecimento e repetio nostlgica. O abuso da memria obrigada se

    d por conta de seu carter imperativo, imposto de fora para dentro, associando o

    trabalho de memria e obrigao, elemento que no est presente nos trabalhos de

    memria e de luto.

    Como j vimos brevemente, trabalharemos o conceito de esquecimento

    relacionado aos de memria ferida, manipulada e obrigada. em relao a esse ltimo

    tipo de memria, que Ricur (2010, p. 459) inclui a anistia, uma forma institucional e,

    sobretudo, poltica de esquecimento, sob o signo do abuso. A anistia, aproximada da

    amnsia, poderia impedir a compreenso do passado e a elaborao do perdo. O

    apagamento dos crimes cometidos e anistiados, relegando a memria da perda a um

    lugar subterrneo, dificultaria a sua problematizao e reelaborao e, por

    consequncia, sua redeno.

    Ao lado desses conceitos, Ricur estabelece a distino entre memria

    enquanto visada, capacidade e efetuao e lembranas enquanto coisa visada. Em

    relao a essas ltimas, mltiplas e de graus variveis, o filsofo francs as organiza

    em tipologias. Tomando de emprstimo de Bergson, h o par memria-hbito e

    memria-lembrana. Ambas pressupem a experincia adquirida, porm diferenciam-se

    pela relao que guardam com o tempo. Para a memria-hbito, a aquisio incorporada

    ao presente no traz marcada necessariamente a relao com o passado, enquanto que

    para a memria-lembrana, marca-se a profundidade temporal da experincia inicial.

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    Essa lembrana no pode ser afetada pelo tempo sem ser alterada e ela quem nos

    permite a voltar a subir a encosta de nossa vida passada para nela buscar determinada

    imagem (RICUR, 2010, p. 44). Em uma imagem, portanto, pode residir umalembrana, mas o contrrio no necessariamente verdadeiro.

    Ricur tambm diferencia recordao instantnea e recordao laboriosa. A

    primeira, instantnea, apresenta-se como o grau zero de busca e apoia-se na recordao

    mecnica, no automatismo; a segunda, laboriosa, pressupe uma reconstituio

    inteligente, aparentada do esforo de inteleco e traz consigo a marca do obstculo, do

    incmodo.

    Sero importantes para o nosso trabalho, juntamente com os conceitosapresentados na primeira seo, os dois pares de lembranas: de um lado, a memria-

    hbito e a memria-lembrana e, de outro lado, a recordao-instantnea e a recordao-

    laboriosa.

    2. Anlise de uma busca

    2.1 Entrada

    O romance de Bernardo Kucinski, como o seu subttulo sugere (Relato de

    uma busca), segue os passos de K. em busca de sua filha, uma professora de Qumica

    na Universidade de So Paulo, que foi sequestrada pelo aparelho repressivo do regime

    militar, na dcada de 70, e est desaparecida desde ento. Alm da perspectiva de K.

    enquanto pai, temos o ponto de vista de outras personagens, que lidam com as

    circunstncias desse momento histrico especfico de maneiras e em papis bastante

    distintos.

    Em um segundo nvel da narrativa, temos as lembranas de K., fazendo parte

    de uma memria impedida, de sua vida e priso na Polnia, antes da invaso nazista.

    Paralelamente, temos a memria da prpria Shoah, igualmente ferida, nas lembranas

    de K. e nas de sua mulher, j falecida.

    Porm, antes de adentrarmos no romance, iremos explorar alguns elementos

    paratextuais interessantes, tais como as epgrafes do livro e de dois captulos

    especficos a dedicatria e a advertncia ao leitor.

    Genette, em Paratexts: thresholds of interpretation (1997), afirma que o

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    paratexto funciona como um limite, uma zona intermediria entre o texto literrio e o

    mundo, um espao de transao servio da recepo do texto. No caso de K. - Relato

    de uma busca, obra inspirada por material histrico muito prximo do autor K. eraMajer Kucinski, escritor e crtico literrio da lngua idiche, imigrante da Polnia pr-

    nazista e pai de Bernardo Kucinski e A. era Ana Rosa Kucinski Silva, a filha

    desaparecida e irm do autor o paratexto tem a importante funo de prenunciar o

    carter ficcional do livro.

    As duas epgrafes, excertos de Grande Serto: Veredas(1956), de Guimares

    Rosa e de Terra sonmbula (1992), de Mia Couto, oferecem uma preciosa chave de

    leitura, duplamente situada: de um lado, um universo literrio cannico, de lnguaportuguesa e, de outro, um conjunto de relatos de incertezas (Conto ao senhor o que

    sei e o senhor no sabe; mas quero contar o que no sei se sei), de luz e de

    apagamentos histricos (Acendo a histria, me apago a mim. No fim destes escritos,

    serei de novo uma sombra sem voz). Dessa forma, a questo da memria e do

    esquecimento j est presente no romance antes mesmo de seu incio.

    As outras duas epgrafes internas ao livro, presentes nos captulos A abertura

    e No Barro Branco, ambas de poetas judeus (H. N. Bialik e Moises Ibn Ezra), alm da

    funo de reafirmar a importncia da literatura judaica para a personagem K. e para a

    sua experincia no mundo, marcam tambm dois momentos de certezas, escassos na

    narrativa: as mortes da filha e do pai.

    Alm das epgrafes, temos a seguinte dedicatria: s amigas, que a perderam:

    De repente, um universo de afetos se desfez. Conservando a funo de tributo,

    apontada por Genette (1997), a dedicatria j nos adianta o tom do romance, de perda e

    de dissoluo. A busca, mencionada pelo subttulo, mostra-se, de antemo, infrutfera, e

    o leitor j antev que no existe a possibilidade de reconciliao, de encontro daquilo

    que foi perdido. A escrita do romance, embora j bastante distanciada temporalmente

    dos fatos narrados, ainda se relaciona ao trabalho do luto, lidando com a ausncia dos

    indivduos e das lembranas, com os abusos de memria, com as lacunas deixadas por

    essa busca, ferida efetiva na memria individual e ferida simblica na memria coletiva.

    Finalmente, a advertncia ao leitor (Caro leitor: Tudo neste livro inveno,

    mas quase tudo aconteceu) assinada pelo autor apresenta explicitamente essa relao

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    entre o fato e a fico. Sabemos, portanto, que estamos diante de um objeto esttico e

    que, apesar da veracidade de grande parte das informaes, da existncia efetiva de

    diversas personagens que aparecero na narrativa, a leitura deve ser efetuada pela chavedo ficcional.

    2.2 As memrias

    O romance de Kucinski conta com 29 captulos, sendo a grande maioria deles

    curtos ou curtssimos entre 2 e 5 pginas. Em trs dos captulos mais longos, temos

    subdivises em partes. Alguns temas j aparecem logo nos ttulos: a ausncia (As

    cartas destinatria inexistente, Sorvedouro de pessoas), a literatura (Livros eexpropriao; O abandono da literatura), a memria (Os primeiros culos; Um

    inventrio de memrias). Algumas instituies e personagens tambm j figuram

    nos ttulos: os delatores (Os informantes, Dois informes), os militares (O livro da

    vida militar), a universidade (A reunio da Congregao), os militantes (A queda do

    ponto; Mensagem ao companheiro Klemente).

    O livro emula estruturalmente o carter fragmentrio e mltiplo da memria

    apontado por Ricur. Essa fragmentao tambm se presta relao com a crise da

    historicidade, com a modificao da noo de totalidade da histria oficial. Teremos

    acesso, sim, aos fatos e aos seus relatos, mas em pequenas partes nem sempre

    concorrentes. A organizao formal do romance, portanto, ao particionar a narrativa, j

    nos adianta o tratamento que ser dado memria e histria.

    Alm da pulverizao dos captulos, temos a alternncia entre narradores de 1

    e de 3 pessoa. Nos nove captulos que possuem narrador em 1 pessoa, esses so

    narradores-testemunhas, personagens que participam das aes. Nesses captulos, temos

    a narrativa do ponto de vista das seguintes personagens: narrador-autor, que abre e fecha

    o romance; policiais sequestradores servio de um chefe; o delegado Srgio Fleury,

    o chefe; o pai do genro de K.; a amante do delegado. Em outros dois captulos tambm

    temos um narrador em 1 pessoa, porm so captulos atpicos, epistolares: uma carta

    escrita pela filha de K. e endereada a uma amiga e outra escrita pelo marido,

    endereada a um tal companheiro Klemente, tambm militante. Em ambas, j

    perceptvel o medo do casal e uma intuio de que a guerrilha no terminar conforme o

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    planejado e que, no apenas a represso do governo, mas tambm a rigidez das

    organizaes militantes contribuiro para os terrveis acontecimentos.

    Nos captulos narrados em 3 pessoa, o narrador acompanha diversos pontos devista fazendo uso, frequentemente, do discurso indireto livre. A maioria desses captulos

    acompanha a busca de K., porm temos alguns que so organizados a partir do genro de

    K.; de um cachorro, um militante delator; de um ex-general cassado pelo regime e de

    uma moa, que trabalhara na Casa da Morte, em Petroplis, onde ocorreram vrios

    casos de tortura, e que teria presenciado a morte da filha de K. Nesses captulos, a

    predominncia da perspectiva das personagens distancia o narrador. H, porm, algumas

    excees. Em alguns momentos, temos claramente a interferncia do narrador que selocaliza em uma instncia temporal distinta e tem informaes que no eram acessveis

    no momento narrado.

    K. passou a se perguntar o que os teria aproximado. Gostaram-seatravs da poltica, ou primeiro se apaixonaram, e depois uniram-setambm na luta clandestina? () Um dilema moral: deveria odi-lo,por ter arrastado sua filha a uma morte estpida, ou honr-lo, por terenriquecido sua vida? () Essas perguntas ficaro para sempre sem

    respostas. Nem se saber, com preciso, mesmo dcadas depois, comoforam sequestrados e mortos. (KUCINSKI, 2014, p. 43).

    Porm, de todas as perspectivas, temos personagens que foram afetadas, que

    tiveram o curso de suas vidas alterados pelo momento histrico. Trabalhando com a

    memria pessoal de cada uma dessas personagens, Kucinski nos lembra o paradoxo em

    relao memria apontado por Ricur, pois no h

    [] nada de mais pessoal, de ntimo e mais secreto do que a memria,mas que as memrias de uns e de outros, entre parentes, vizinhos,estrangeiros, refugiados e tambm adversrios e inimigos estoincrivelmente enredadas umas nas outras ao ponto de, s vezes, j nose distinguir nas nossas narrativas o que de cada um: as feridas damemria so, simultaneamente, solitrias e partilhadas. (RICUR,2005, p.1)

    A busca de K. para saber o paradeiro de sua filha, para tentar reconfigurar,

    pacientemente, as lacunas deixadas pelo seu desaparecimento, para destruir a muralha

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    de segredo impenetrvel (KUCINSKI, 2014, p. 61) que foi erigida em torno de seu

    desaparecimento, tambm a busca pela memria dos eventos que aconteceram durante

    o regime militar. O resgate dessa memria que at ento estava sob o signo do abuso,ferida e manipulada, o seu reconhecimento, efetivaria a busca da verdade e permitiria,

    finalmente, o incio real do trabalho de luto. Para tanto, alm dos relatos presentes nos

    numerosos captulos e que implicam os agentes, os pacientes, as vtimas desse momento

    temos tambm alguns rastros documentais que podem permitir que o leitor, em uma

    espcie de simulacro ao trabalho do historiador, apreenda os fatos por outros pontos de

    vista. Dentre esses rastros, temos uma variedade - documentos escritos (cartas,

    relatrios de delao, pacto nupcial, livros), fotografias, marcos (lpides, placas de rua) que se relacionaro com os diversos abusos e a tentativa de trabalho de memria

    emulada pelo romance.

    A memria ferida

    O carteiro nunca saber que a destinatria no existe; que foisequestrada, torturada e assassinada pela ditadura militar. [] O nomeno envelope selado e carimbado como a atestar autenticidade, ser o

    registro tipogrfico no de um lapso ou falha do computador, e sim deum mal de Alzheimer nacional. Sim, a permanncia do seu nome norol dos vivos ser, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivono rol dos mortos. (KUCINSKI, 2014, p. 9)

    K., o pai que busca a filha, ao lado de outros familiares tambm presentes no

    romance, a representao da perda efetiva, de uma ferida que se instalar na memria.

    Alm da filha, duas irms de K. tambm foram mortas. K. nunca revelou a seus filhos

    a perda de suas irms na Polnia, assim como sua mulher evitava falar da famlia inteira

    no Holocausto. (KUCINSKI, 2014, p. 166). Essas perdas subterrneas, alm de

    revelarem outros aspectos feridos da sua memria, evocaro a compulso da repetio

    da memria impedida.

    Tomado completamente pelo sentimento de culpa, que perpassa todo o

    romance sob a perspectiva de K., a memria impedida se d em dois nveis: pela

    ausncia efetiva de lembranas de alguns acontecimentos importantes da vida da filha e

    pelo esquecimento voluntrio de lembranas relativas ao seu passado na Polnia.

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    Quando aquela moa se aproximou na reunio dos familiares dosdesaparecidos e se apresentou, eu sou a cunhada da sua filha, K.

    percebeu a vastido da outra vida, oculta, da filha. Ela at se casarasem ele saber. [] (Id. Ibid., p. 42)

    Lembrou-se subitamente de outra escadaria em outros tempos, emVarsvia, igualmente em mrmore e tambm no estilo neoclssico,que ele galgara aos saltos, ainda jovem e valente, para indagar oparadeiro de sua irm Guita, presa num comcio do partido queajudara a fundar, o Linke Poalei Tzion. Alarmou-o a emergncia dalembrana, que julgava soterrada sob os escombros da memria. (Id.Ibid., p. 36)

    A busca por informaes a respeito da filha pode ser comparada ao trabalho de

    memria feito pela recordao laboriosa, que pode ter o auxlio de rastros tais como

    fotografias e testemunhos. Essa busca externa pela memria aparentada ao esforo e

    existe como trabalho de inteleco consciente e se confronta com lacunas, com

    obstculos, que so representados pelos becos sem sada das incontveis pistas falsas,

    das informaes incorretas divulgada pelo governo e seus informantes. Aqui, a ausncia

    de lembranas fere a memria, impede que se conhea o que efetivamente aconteceu.Por outro lado, emergem, pela recordao instantnea, outras lembranas do passado de

    K., que nos revelam a sua militncia e as suas perdas na Polnia. Essas lembranas

    espontneas que surpreendem a personagem e que eram julgadas esquecidas, nos

    mostram um segundo abuso de memria, o da compulso. Em face a situaes

    semelhantes, parece existir um padro de repetio, tanto para K. que busca primeiro

    sua irm e depois a sua filha, quanto para a histria, que nos traz em perodos

    protagonizados por governos autoritrios, a represso de vozes e manifestaescontrrias ideologia imposta.

    Outra relao importante no romance entre memria-hbito e memria-

    lembrana. A memria-lembrana, como j vimos, surge sobretudo nos momentos em

    que K. recorda-se de seu passado de militncia. A insurgncia dessas recordaes

    desperta algumas memrias-hbito de K., tambm julgadas esquecidas.

    Sem perceber, K. retomava hbitos adormecidos da juventude

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    conspiratria na Polnia. (Id. Ibid.,p. 18)

    K. passou a contabilizar a durao da ausncia da filha, outro preceito

    dos tempos da juventude. (Id. Ibid., p. 19)

    Assim, a busca de K., representando a recordao laboriosa, traz consigo no

    somente a recordao instantnea de uma outra memria ferida, que havia sido

    soterrada no passado, mas tambm a memria-hbito relacionada a ela.

    Ora, tanto a Shoah, quanto o regime militar, representam feridas na memria

    individual e coletiva - abertas at hoje. A personagem K., presa entre o esquecimento e a

    repetio morre antes de efetuar realmente dois trabalhos importantes, o de memria e

    o de luto. Nesse sentido, o romance, ao reapresentar a busca de K., pode ser um passo

    em direo a realizao desses dois trabalhos, em prol da justa memria, da

    (re)constituio da identidade coletiva, da qual, segundo Le Goff (1990, p. 475), a

    memria elemento formador essencial.

    A memria manipulada

    A memria, onde cresce a histria, que por sua vez a alimenta, procura

    salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalharde forma a que a memria coletiva sirva para a libertao e no para aservido dos homens. (LE GOFF, 1990, p. 477)

    Como j vimos, o esquecimento ligado manipulao da memria est

    relacionado com a ideologia, nas relaes de poder. Le Goff (1990, p. 476) afirma que a

    memria, alm de uma conquista, um instrumento e um objeto de poder. Dessa forma,

    o esquecimento a curto e longo prazo uma forma de obscurecer os acontecimentos,

    impedir o trabalho de memria e, por consequncia, o trabalho de luto. Veremos que amemria obrigada, como no caso da anistia, tambm pode contribuir para esse

    enevoamento histrico.

    A personagem K., em sua busca, enfrentou efetivamente, em diversas

    situaes, a manipulao de informaes, a fim de acobertar os fatos.

    Na semana seguinte chega loja pelo correio um pacote cilndrico dePortugal endereado K. com o nome da filha como remetente,escrito mo. Contm cartazes polticos da Revoluo dos Cravos.

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    No a escrita da filha, ele logo v. [] Montaram uma farsa. Umteatro para me torturar. Esto todos mancomunados, essesinformantes. (KUCINSKI, 2014, p. 35)

    Meio-dia comea a transmisso. Nomes so ditos aos poucos emordem alfabtica. Em K. a esperana se esvai. O nome da filha, quepor essa ordem deveria estar entre os primeiros, no chega. Outros queacompanham atentos o comunicado so tomados pela perplexidade.Este est foragido, este outro nunca foi preso, este tambm estforagido. Fulano j foi libertado depois de cumprir pena. [] Em vezde vinte e duas explicaes, vinte e sete mentiras. Eis que, ao final,aparece uma referncia filha de K. Dela, diz o comunicado, assimcomo do marido e dois outros, no h nenhum registro nos rgos do

    Governo. (Ib. Idib., p. 67)

    Voc faz o seguinte, Mineirinho, telefone para um desses filhos daputa da comisso dos familiares, pode pegar qualquer um da lista queo Lima preparou. Telefona, e diz que tem umas desaparecidas queforam internadas no Juqueri, internadas como loucas. Diga que a talprofessora da Qumica uma delas []. (Ib. Idib., p. 73)

    K. sente com intensidade inslita a justeza desse preceito, a urgnciaem erguer para a filha uma lpide, ao se completar um ano da suaperda. A falta da lpide equivale a dizer que ela no existiu e isso noera verdade: ela existiu, tornou-se adulta, desenvolveu umapersonalidade, criou o seu mundo, formou-se na universidade, casou-se. (Ib. Idib., p. 79)

    Logo, a memria manipulada est presente no romance, em um nvel

    individual, sob a forma do apagamento reiterado da memria da filha de K., que, como

    afirma o narrador no primeiro captulo, no consta nem no rol dos vivos e nem na lista

    dos mortos. Em um esforo contrrio a esse apagamento, ao esquecimento, temos, noromance, diversos elementos: a biblioteca do genro de K. (Ib. Idib., p. 54), a matzeiv,

    lpide colocada sob o tmulo, e que negada pelo rabino (Ib. Idib., p. 77), as fotografias

    (Ib. Idib., p. 115), o pequeno livro in memoriam escrito por K. e cuja publicao

    negada pelo dono da grfica (Ib. Idib., p. 83), as placas de rua com os nomes dos

    militantes mortos (Ib. Idib., p. 160). Nesse ltimo caso, podemos perceber a dinmica

    entre o esquecimento e a memria e a memria individual e a coletiva, como podemos

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    perceber nos excertos abaixo.

    O loteamento ficava num fim de mundo. [] Ali um projeto de lei deum vereador de esquerda deu a cada rua o nome de um desaparecidopoltico, quarenta e sete ruas, quarenta e sete desaparecidos polticos.[] (Id. Ibid.,p. 162)

    Depois, para espanto de K., uma avenida General Mlton Tavares deSouza. Esse ele sabia muito bem quem foi: jamais esqueceria essenome. [] Foi quem criou o DOI-CODI, para onde levaram o Herzoge o mataram. [] Avenida principal. Onde j se viu uma coisa dessas?(Id. Ibid.,p. 162)

    A personagem K. percebe que as ruas que possuem os nomes de desaparecidospolticos encontram-se em um local muito distante, enquanto ele repetidamente v ruas

    e avenidas importantes batizadas com nomes de militares do regime. Aos mortos pela

    represso, apenas um espao tanto fsico, quanto na memria coletiva muito

    pequeno reservado. verdade, destina-se um espao de pouca visibilidade no fim de

    mundo. Dessa forma, a memria individual e a coletiva, relacionadas a esse momento,

    passam pelo abuso da manipulao. A essa situao, soma-se a anistia que, ao invs de

    proporcionar espao e informao para a compreenso dos eventos histricos, relega,

    pelo perdo judicirio, a sua memria (e, por consequncia, a histria) a um subsolo,

    onde permanecer enquanto estiver submetida aos abusos do impedimento, da

    manipulao, do esquecimento.

    3. Consideraes finais

    A leitura do romance K. - Relato de uma buscano momento atual uma tarefa

    literariamente complexa. Em um momento em que os arquivos da ditadura militar

    comeam a ser reabertos e estudados, em que a Comisso Nacional da Verdade criada

    para investigar os crimes de violao aos direitos humanos praticados, em que h a

    intensificao de lanamentos editoriais a respeito desse perodo, difcil de separar

    histria e fico.

    Alm disso, h, no romance de Kucinski, certas caractersticas formais que

    podem dificultar a separao dessas duas instncias. A intertextualidade um elemento

    bastante forte. Temos incorporadas no texto, diversas referncias ao universo literrio

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    a literatura idiche, Kafka, a cadela Baleia de Vidas Secas, de Graciliano Ramos mas

    tambm referncias ao mundo extraliterrio dos relatrios, informes, publicidades

    bancrias, manifestos institucionais, discursos doutrinrios, sesses de terapia, reuniesde departamento. Outro recurso bastante utilizada a heteroglosia, que nos proporciona

    o acesso perspectiva de diversos personagens, sendo bastante marcante a diferena nos

    usos da lngua.

    Ora, acrescentando a essas duas caractersticas, a superposio de tempo

    passado e presente, organizada em trs nveis temporais distintivos (o presente do

    narrador, o presente e o passado de K.) e a criao de personagens a partir de figuras

    histricas centrais e ex-cntricas, temos algumas caractersticas da produo ficcionalrecente, organizada no subgnero do novo romance histrico, do final do sculo XX e

    incio do XXI, elencadas por Hutcheon (1991), Weinhardt (2011a, p. 48) e por Menton

    (1993).

    Alm dessa concorrncia formal, consideramos que a leitura desse livro

    enriquecedora luz do romance histrico. Alm de poder ser lido sob a perspectiva de

    um pai que procura uma filha desaparecida e que intenta recuperar a sua memria

    apagada reiteradamente, K. - Relato de uma busca pode ser compreendido como mais

    um elemento na compulso de repetio referente memria ferida do regime militar,

    porm fazendo parte de um esforo de recordao na tentativa de reelaborar os traumas

    de concluir o trabalho de luto. Sabe-se que as perdas no foram somente individuais,

    mas foram, sobretudo, coletivas: a perda da democracia, dos direitos polticos, da

    liberdade de expresso, do direito informao, do direito memria. Logo, a busca

    que se menciona no ttulo no apenas a de K., o pai, mas tambm de K., o autor e a de

    uma nao que precisa exumar o passado e se reapropriar da histria, em prol da justa

    memria, para a reconstruo da identidade coletiva.

    Referncias

    ANDERSON, P. Trajetos de uma forma literria. Novos Estudos. So Paulo, n. 77,

    2007, p. 205-220.

    CARNEIRO, F. No pas do presente: Fico brasileira no incio do sculo XXI. Rio

    de Janeiro: Rocco Digital, 2005, 338 p.

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