AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Patricia Magno – Estudos Jurídicos · Página 1 de 27 EXCELENTÍSSIMO...

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2º OFÍCIO CRIMINAL – MANAUS/AM Manaus/AM, Av. Airão, nº 671, Centro - CEP 69.025-005 – Telefone: (92) 3133-1600 Página 1 de 27 EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DA ________ VARA FEDERAL DE MANAUS DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO AMAZONAS Processo de Assistência Jurídica – PAJ nº. 2014/007-xx A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, no uso de suas atribuições constitucional (art. 134, caput, da CF 1 ), institucional (art. 1º, caput, c/ art. 3º, VII, c/c art. 4º, X, todos da LC 80/94) e legal (art. 5º, II, da Lei 7347/85), vem, pelos Defensores Públicos Federais que esta subscrevem 2 , ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA Em face da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, com representação na Av. Tefé, nº. 611, Bairro Praça 14 de Janeiro, Ed. Luís Higino de Sousa Netto, Manaus/AM, pelos fatos e fundamentos que se passa a expor. 1 Destaque-se, já de início, sem prejuízo de posterior ratificação mais clara, que a vocação da Defensoria Pública para a tutela coletiva passa(rá), agora, a ter status constitucional, eis que foi aprovada pelo Congresso Nacional uma PEC (de n. 243 na Câmara, e de n. 04 no Senado), estando, portanto, apenas a depender da promulgação que certamente já se avizinha, quando a CF será modificada pela EC de n. 79, alterando o art. 134 do texto constitucional para nele dispor o seguinte: “A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal ”. 2 Além dos Defensores que assinam esta petição ao final, registramos a imprescindível interlocução com diversos colegas de outros Estados, a exemplo de Isabel Machado (DPU/SP), Marcelo Bianchini (DPU/Cascavel), Nícolas Bortolon (DPU, Vitória), entre outros.

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DA ________ VARA FEDERAL DE MANAUS DA SEÇÃO

JUDICIÁRIA DO AMAZONAS

Processo de Assistência Jurídica – PAJ nº. 2014/007-xx

A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, no uso de suas atribuições

constitucional (art. 134, caput, da CF1), institucional (art. 1º, caput, c/ art. 3º, VII, c/c art.

4º, X, todos da LC 80/94) e legal (art. 5º, II, da Lei 7347/85), vem, pelos Defensores

Públicos Federais que esta subscrevem2, ajuizar a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA

Em face da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, com representação na

Av. Tefé, nº. 611, Bairro Praça 14 de Janeiro, Ed. Luís Higino de Sousa Netto,

Manaus/AM, pelos fatos e fundamentos que se passa a expor.

1 Destaque-se, já de início, sem prejuízo de posterior ratificação mais clara, que a vocação da Defensoria Pública para a tutela coletiva passa(rá), agora, a ter status constitucional, eis que foi aprovada pelo Congresso Nacional uma PEC (de n. 243 na Câmara, e de n. 04 no Senado), estando, portanto, apenas a depender da promulgação que certamente já se avizinha, quando a CF será modificada pela EC de n. 79, alterando o art. 134 do texto constitucional para nele dispor o seguinte: “A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal”. 2 Além dos Defensores que assinam esta petição ao final, registramos a imprescindível interlocução com diversos colegas de outros Estados, a exemplo de Isabel Machado (DPU/SP), Marcelo Bianchini (DPU/Cascavel), Nícolas Bortolon (DPU, Vitória), entre outros.

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1. A PRISÃO: PROTAGONISTA OU COADJUVANTE DA CENA PENAL?

Antes que justifiquemos, de forma objetiva em vista da sua obviedade

constitucional/institucional/legal, a legitimidade da Defensoria Pública para a tutela

coletiva, parece-nos que cabe aqui, primeiro, iniciarmos por uma reflexão tão

importante e propagada quanto solenemente desconsiderada na prática judicial

brasileira: por que insistimos, mesmo diante de diagnósticos de sua insuficiência, de

comprovação empírica das suas (drásticas) consequências, enfim, diante de um arsenal

de argumentos que conduzem à sua excepcionalidade, por que, repita-se, ainda

apostamos na prisão? Por que a prisão é a protagonista, a atriz principal, e não a

coadjuvante, da cena penal?

Não pretendemos, nessa oportunidade, fazer uma incursão mais profunda

sobre esse questionamento nem acreditamos, e que isso fique claro, que teríamos

alguma condição de viver em harmonia na sociedade atual sem nos socorrermos – em

determinados e restritos casos – ao constrangimento de retirar, por algum tempo, uma

pessoa do convívio social. FOUCAULT tem razão quando afirma, portanto, não sem

lamentar, que “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa,

quando não inútil. E entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável

solução, de que não se pode abrir mão”3.

Se por um lado admitimos que estejamos condenados a conviver com a

prática do encarceramento, por outro, inevitável assim concluir, fizemos e fazemos da

prisão o epicentro da prática penal brasileira, o principal instrumento de condução do

jogo processual4, atitude esta que traz, certamente, efeitos nefastos não apenas para a

3 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 39ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011, p. 218. 4 Sobre processo penal e teoria dos jogos, cf. ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157: “A partir da teoria dos jogos as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão

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integridade (psicológica e muita das vezes física) do acusado, mas também para o pleno

exercício do direito de defesa, duramente atingido pela dificuldade natural que o

cidadão preso enfrenta para planejar o seu comportamento processual, delinear a

estratégia probatória etc.

O fim precípuo desta ação civil pública não é eliminar o uso da prisão

cautelar, mas sim reclamar que se implemente algo para coibir o seu abuso.

Perdemos, no decorrer da história, o pudor quando falamos de prisão.

Banalizamos. Chegamos, conforme anota CARNELUTTI, a um círculo vicioso, “já que é

necessário julgar para castigar, mas também castigar para julgar”5. O ato de encarcerar

se tornou comum, um mero expediente – a mais – do sistema judiciário, um gesto que,

somos levados a pensar, deve (sempre) estar presente no funcionamento do poder

punitivo. Enganamo-nos voluntariamente e fingimos não perceber que a prisão

preventiva, adverte FERRAJOLI, “tem se convertido no sinal mais evidente da crise da

jurisdicionalidade, da tendência de administrativização do processo penal e, sobretudo, da

sua degeneração num mecanismo diretamente punitivo”6.

O abuso da prisão, isto é, o encarceramento em massa e sem limites no

Brasil, o que já passa da assombrosa cifra de mais de 500 mil presos7, inserindo o país

como o quarto colocado no ranking mundial em se tratando de população carcerária8,

contrastado com uma legislação razoavelmente garantista no tocante à necessidade de

cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra com tática de aniquilação, uma vez que os movimentos da defesa estarão vinculados à soltura”. 5 CARNELUTTI, Francesco. Jurisprudencia Consolidada (o bien de la comodidad del juzgar). In: Cuestiones sobre el Proceso Penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Librería el Foro, 1994, p. 36. 6 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Boyón Mahino, Juan Terradillos Bosoca e Rocio Cantarero Bondrés. Madrid: Trotta, 2001, p. 770. 7 Dados do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, referência 12/2012. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896}&Team=&params=itemID={2627128E-D69E-45C6-8198-CAE6815E88D0};&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26} 8 Cf. Brasil tem 4ª maior população carcerária do mundo e deficit de 200 mil vagas: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml. Acessado em 25/05/2014.

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se observar, primeiro, medidas cautelares diversas da prisão, nos leva a concluir com

ZAFFARONI que

“O estado de polícia não está morto num estado de direito

real, senão encapsulado em seu interior e na medida em que

este se debilita o perfura e pode fazê-lo estalar. O direito

penal, ao conter o poder punitivo, reforça o estado de

direito. Quanto melhor contenha o estado de direito ao de

polícia, mais perto estará do modelo ideal e vice e versa”9.

Mas o quê, afinal de contas, nos cega e nos ensurdece diante de tanta

clareza, diante de tanta urgência em se conter o encarceramento em massa, de, em

última instância, salvar vidas?

Além de não ser essa a ocasião oportuna para tamanha incursão por

caminhos que talvez passassem pela criminologia, sociologia e até pela psicanálise, não

nos sentimos confortáveis para oferecer uma resposta correta, definitiva. Todavia,

arriscamo-nos pelo menos a ver uma conexão com a ideia de que direitos e garantias

fundamentais, quando assegurados na seara penal, são vistos como singelos benefícios

individuais, regalias que se distanciam de um sistema penal que deve(ria) promover tão

somente a observância irrestrita da lei e da ordem. Contrapõem-se, assim, segundo o –

incentivado e propagado – imaginário coletivo, o cidadão acusado, detentor de um

direito individual a não ser tratado como objeto no processo, com a sociedade, vítima da

criminalidade e portadora, então, de um direito coletivo à segurança, à paz.

9 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura Básica del Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009, p. 30-31. No mesmo sentido, KARAM: “Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando o Estado policial sobrevivente em seu interior, não sendo instituídos espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias, vai sendo afastada sua universalidade, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários se torne sempre mais tênue” (KARAM, Maria Lúcia. O Direito à Defesa e a Paridade de Armas. In PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 anos da Constitucional da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 398-399).

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Tal discurso, que vai encontrar certa correspondência na doutrina

contratualista de ROUSSEAU, acaba por gerar na sociedade um clima constante de

“guerra contra o crime”, não sendo de se espantar, hoje, a costumeira criação de varas

judiciais de “combate” a determinado tipo de criminalidade. Quando o próprio Poder

Judiciário, que deveria ser o maior garantidor dos direitos fundamentais, assume a

condição de combatente, já não temos, infelizmente, para onde correr. Resta-nos insistir

e, mais ainda, resistir, lutar contra tudo isso que aí está. A lição da criminóloga VERA

ANDRADE pode auxiliar na compreensão deste fenômeno:

“O paradigma punitivo da segurança ‘da’ ordem (e ‘contra’ a

criminalidade) em detrimento da segurança dos direitos

culminou, desta forma, por polarizar a sociedade entre

potenciais infratores e potenciais vítimas, replicando nesta

polarização a desigualdade, a luta de classes e as assimetrias

de gênero, raça e outras. Esse modelo, que pode com razão

ser denominado por paradigma bélico, tem a sustentá-lo

uma estrutura social, uma engenharia e uma cultura

punitivas. Trata-se esta última instância do plano simbólico

da reprodução punitiva, na qual se inserem discursos e

práticas legais, doutrinas, político-criminais, gestionais

etc”10.

Sobre essa perigosa tendência de polarizar e situar, de um lado, a

sociedade, e de outro, o acusado, que culmina por sedimentar a ideia de um Direito Penal

e de um Processo Penal do inimigo (alguém a ser combatido, eliminado), WEBER

MARTINS BATISTA já afirmava que “Não é tão-só por amor ao indivíduo que se protege

sua liberdade, mas porque esta garantia interessa sobretudo à coletividade, é um dos

10 ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (des)ilusão. Florianópolis: Revan, 2012, p. 364 – grifei.

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alicerces, e dos mais importantes, sobre que está organizada a sociedade no Estado

liberal”11.

Parece ser um lugar comum, mas não custa repetir que viver num Estado

Democrático e de Direito tem o seu preço. Cedemos, inevitavelmente, parcela de nossa

liberdade para não vivermos num regime ditatorial, de exceção. Isso não significa,

porém, que a segurança seja um bem menor, mas apenas que ela não deve se sobrepor ao

ideal de liberdade. HUNGRIA resume bem esse cenário ao afirmar que se não é possível

a felicidade dos homens num regime de excessiva liberdade, muito menos seria num

regime de escravidão, e conclui dizendo, com o que estamos de acordo, que “Pior do que

a lei da jungle é a lei da senzala; pior que a livre eclosão dos instintos é o entrave

sistemático à expansão das tendências e vocações”12.

Em cada palavra, parágrafo e linha deste pleito estará, como pano de fundo,

o desejo de contribuir para um sistema penal mais humanizado, mais livre de

preconceitos, de estigmas e, também, da burocracia13, que, silenciosamente, coisifica

seres humanos e robotiza o funcionamento da Justiça Criminal.

11 BATISTA, Weber Martins. Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 71. No mesmo sentido, KARAM: “As garantias que protegem a liberdade diante do violento, danoso e doloroso poder punitivo não são apenas garantias do indivíduo que, em um determinado momento, está sendo acusado de um crime. Não são garantias destinadas a proteger apenas a sua liberdade. São garantias de todos os indivíduos. São garantias que visam proteger o direito fundamental de todos os indivíduos à liberdade” (KARAM, Maria Lúcia. O Direito à Defesa e a Paridade de Armas. In PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 anos da Constitucional da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 400). 12 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, volume I, tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 34, nota de rodapé n. 7. 13 Interessante registrar, aqui, que “Éramos mais felizes quando supúnhamos que um sistema de justiça criminal injusto e arbitrário era privilégio de regimes autoritários. Pior que um sistema de justiça criminal manipulado pelo arbítrio de um tirano é aquele que já não é injusto por vontade ou capricho de um único homem, mas injusto por iniquidade sistemática, anônima, autista, de um sistema que insiste em girar em torno de si mesmo, mais preocupado com o caos burocrático em que está mergulhado do que com os dramas dos homens e mulheres envolvidos nas demandas, compondo um terrível quadro de metalinguagem institucional” (Editorial – O esforço de Sísífo e a audiência de custódia. IBCCrim – Boletim n. 252, novembro/2013).

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2. DEFENSORIA PÚBLICA, LEGITIMIDADE PARA A TUTELA COLETIVA E PAPEL DA

INSTITUIÇÃO NA PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ERA DO GRANDE

ENCARCERAMENTO

A Defensoria Pública não é apenas (mais) uma instituição legitimada para

a tutela coletiva, mas, sim, o refúgio para a grande maioria dos grupos marginalizados,

criminalizados e excluídos do processo de emancipação social no país, o último suspiro

de esperança para quem, na feliz expressão do Min. CELSO DE MELLO, “tem direito a ter

direitos”, uma prerrogativa básica, prossegue ele, “que se qualifica como fator de

viabilização dos demais direitos e liberdades – Direito essencial que assiste a qualquer

pessoa, especialmente àquelas que nada têm e de que tudo necessitam”14.

Não será exagero, portanto, afirmar que, antes de legitimada, a

Defensoria também é, sobretudo, uma senão a instituição mais vocacionada para a

tutela coletiva.

A tutela coletiva, de tão importante que é para a Defensoria Pública,

assume no seu regramento jurídico diversas acepções, sendo uma (i) incumbência da

instituição – art. 1º, caput, (i) uma função institucional – art. 4º, VII, VIII, X e XI, e

também, (iii) uma característica da sua estrutura organizacional – art. 15-A, caput; todos

da Lei Complementar n. 80/94. No tocante à previsão normativa na principal legislação

de regência do microssistema de tutela coletiva brasileira, a omissão foi sanada com o

advento da Lei 11448/2007, que fez incluir no art. 5º, II, da Lei 7347/85, a Defensoria

Pública como legitimada para “propor a ação principal e a ação cautelar”. Sobre o tema,

eis a lição de CÂMARA:

“Há, porém, um outro público-alvo para a Defensoria

Pública: as coletividades. É que estas nem sempre estão

organizadas (em associações de classe ou sindicatos, por

14 Voto na condição de Relator na ADI 2903, Plenário, DJe 19/09/2008.

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exemplo) e, com isso, tornam-se hipossuficientes na busca

da tutela jurisdicional referente a interesses ou direitos

transindividuais. Era preciso, então, reconhecer a

legitimidade ativa da Defensoria Pública para a defesa de

tais interesses. Negar tal legitimidade implicaria contrariar

a ideia de que incumbe ao Estado (e a Defensoria Pública é,

evidentemente, órgão do Estado) assegurar ampla e efetiva

tutela jurisdicional a todos. Decorre, pois, essa legitimidade

diretamente do disposto no art. 5º, XXV, da Constituição da

República”15.

A legitimidade da Defensoria para a tutela coletiva alçou recentemente,

ainda, como já anunciado na primeira nota de rodapé, o status de norma constitucional,

eis que foi aprovada pelo Congresso Nacional uma PEC (de n. 243 na Câmara, e de n. 04

no Senado), estando, portanto, apenas a depender da promulgação que certamente já se

avizinha, quando a CF será modificada pela EC de n. 79, alterando o art. 134 do texto

constitucional para nele dispor o seguinte: “A Defensoria Pública é instituição

permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e

instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a

promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos

direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do

inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal”.

Já passa da hora, portanto, de se enterrar o debate corporativista16,

de se adquirir, finalmente, maturidade para compreender que o (pleno) acesso à

justiça requer mais parceria e menos desgaste entre as instituições, que as

coletividades demandam uma rede de atores articulados em sua defesa, e não uma

15 CÂMARA, Alexandre Freitas. Legitimidade da Defensoria Pública para Ajuizar Ação Civil Pública: um possível primeiro pequeno passo em direção a uma grande reforma. In. A Defensoria Pública e os Processos Coletivos – Comemorando a Lei Federal 11.448/2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 46-47. 16 Com a promulgação da EC de n. 79, entendemos que perderá o objeto a ADI 3943, ajuizada pelo CONAMP – Associação Nacional dos membros do Ministério Público, que discute justamente a constitucionalidade da atuação da Defensoria Pública no âmbito da tutela coletiva.

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disputa de espaço, de atenção. Infelizmente, a violação dos direitos

transindividuais é tão frequente que se tem trabalho de sobra para todos.

Surge neste cenário, portanto, de violação constante de direitos de grupos

vulneráveis, a necessidade, segundo o magistério de BOAVENTURA DE SOUZA

SANTOS, “de a Defensoria Pública, cada vez mais, desprender-se de um modelo

marcadamente individualista de atuação”17, e isso, acrescentamos, não em proveito do

prestígio da própria instituição, mas sim em benefício daqueles que justificam a

existência da Defensoria: os hipossuficientes – seja econômica, jurídica ou

organizacionalmente.

Prosseguindo, no tocante à identificação do grupo

vulnerável/hipossuficiente que legitima a atuação da Defensoria na presente tutela

coletiva, sequer é preciso dizer muito, e isso por duas razões: primeiro, porque a

acentuada maioria dos presos, no Brasil e no mundo, vêm das camadas mais pobres da

sociedade; e, segundo, ainda que assim não fosse, que eventualmente o sucesso desta

pretensão beneficiasse algum cidadão que foge do padrão da Defensoria (como, de fato,

beneficiará), dever-se-ia lembrar que, no processo penal, vige também a denominada

hipossuficiência jurídica, a exigir o oferecimento do acesso à justiça, portanto, (também)

àquele com condições financeiras de contratar advogado, desde que permaneça inerte18.

Em sentido semelhante, a lição de GRINOVER:

“Assim, mesmo que se queira enquadrar as funções da

Defensoria Pública no campo da defesa dos necessitados e

dos que comprovarem insuficiência de recursos, os

conceitos indeterminados da Constituição autorizam o

entendimento – aderente à ideia generosa do amplo acesso

17 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça, Revista de Processo, São Paulo, n. 37, jan-mar. 1985, p. 150. 18 Nesse caso, advirta-se, haveria de se incidir, ao final do processo, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios em proveito do Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pública e destinado à capacitação profissional de seus membros e servidores (art. 4º, XXI, da LC 80/94).

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à justiça ‐ de que compete à instituição a defesa dos

necessitados do ponto de vista organizacional, abrangendo

portanto os componentes de grupos, categorias ou classes

de pessoas na tutela de seus interesses ou direitos difusos,

coletivos e individuais homogêneos”19.

Sendo assim, a Defensoria, pertencendo ao denominado por RAMOS de

“arco público do sistema de justiça”20 criado pela Constituição de 1988, isto é,

Magistratura, Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública, desponta como

instituição claramente legitimada para questionar judicialmente o que, conforme se verá

adiante, classificamos como uma gravíssima violação a uma norma prevista pelo Pacto

de São José da Costa Rica (e também no Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos), a qual, se observada, poderia contribuir diretamente para a redução do

encarceramento em massa no Brasil.

Pois bem. Esclarecida a legitimidade da Defensoria, avançamos para

abordar, brevemente, o papel da instituição na promoção (e também na efetivação) dos

direitos humanos, expressão que aparece, na LC 80/94, (i) ora como incumbência – art.

1º, caput, (ii) ora como objetivo – art. 3º-A, III, e (iii) ora como função institucional – art.

4º, III e VI, o que demonstra, também aqui, a vocação da Defensoria e, por que não dizer,

a ideologia da instituição voltada para, historicamente, atuar no front da batalha pelo

respeito aos direitos humanos.

Tal reconhecimento, destacamos, foi objeto, recentemente, de duas

Resoluções editadas pela Organização dos Estados Americanos (OEA), quais sejam, (i) a

de n. 2656/2011, intitulada “Garantias de acesso à justiça: o papel dos defensores públicos

oficiais”, por meio da qual se enfatizou a importância da Defensoria na defesa dos

direitos fundamentais dos indivíduos, assim como se recomendou aos países-membros

19 GRINOVER, Ada Pellegrini. Parecer solicitado pela ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos, para subsidiar defesa na ADI 3942, p. 14. Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/4820/Documento10.pdf. 20 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 450.

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que considerem a possibilidade de criar a Defensoria Pública Oficial (o denominado

“modelo brasileiro”) em seus ordenamentos jurídicos; e também (ii) a de n. 2714/2012,

que ressaltou a necessidade dos Estados americanos em assegurar o acesso à justiça e

garantirem independência e autonomia funcional à Defensoria Pública.

Ainda sobre esse ponto, e encontrando um link para efetivamente

tratarmos do problema que ensejou a propositura desta ação civil pública (a prisão),

destacamos que a ONU – Organização das Nações Unidas já apontou a falta de

Defensores Públicos entre as principais causas da superpopulação carcerária no Brasil,

conforme noticiado a partir de conclusão preliminar do Grupo de Trabalho sobre

Detenção Arbitrária das Nações Unidas, quando de sua vinda ao nosso país em

março/201321.

Intuitivo concluir, portanto, que a Defensoria Pública talvez seja a

instituição que mais de perto acompanha o problema prisional no Brasil, seja por

estar – sempre – na trincheira (visitando presídios, atendendo a assistidos presos

etc.), seja, também, por ter no seu DNA o gene da liberdade, que lhe dá vida o

bastante para não transitar indiferente ao que acontece intramuros.

Da mesma forma que existem vítimas deste grande encarceramento

colocado em marcha, talvez, a partir da década de 90 do século passado (notadamente

pela instauração de uma nova política-criminal advinda com a Lei dos Crimes

Hediondos), há, também, certamente os culpados. Vale citar, aqui, a contundente

advertência de CARVALHO:

“A responsabilidade pela densificação do punitivismo e pela

criação do imenso contingente de pessoas presas é dos

atores que dão vida diariamente ao sistema punitivo. A

21 Cf. ONU aponta a falta de defensores públicos entre as causas da superpopulação carcerária no Brasil: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/27389-onu-aponta-a-falta-de-defensores-publicos-entre-as-causas-da-superpopulacao-carceraria-no-brasil.

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responsabilidade da imposição gótica de sofrimento em

nosso sistema carcerário é da própria estrutura punitiva e

dos seus discursos relegitimantes, que promovem e

fomentam sua utilidade como mecanismo imprescindível de

controle social. A composição desses ingredientes

possibilita aos sistemas de punição alta capacidade de

reinvenção, fazendo com que a imposição superlativa de

sofrimento seja constante, independente da criação de

espaços de liberdade”22.

A partir de agora, então, se adentra efetivamente no objeto desta tutela

coletiva, cobrando do Poder Judiciário apenas a concretização de um direito previsto em

Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o Brasil – voluntariamente – aderiu.

3. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: PREVISÃO NORMATIVA, CONCEITO, VANTAGENS E

IMPLEMENTAÇÃO NO BRASIL

Relutamos ao novo como se o velho sempre nos bastasse, mas nos

consideramos pós-modernos, atuais. Perdemos, frequentemente, a oportunidade de nos

anteciparmos a eventos desastrosos, a consequências que futuramente nos

envergonharão diante de nós mesmos, mas nos consideramos uma sociedade precavida,

segura em determinada medida. A verdade, porém, é que só aprendemos com o trauma,

que optamos por juntar pedaços de vida ao invés de simplesmente preservá-las

(infelizmente, acontecimentos recentes em Pedrinhas/Maranhão, impedem que tal

figura seja apenas uma metáfora).

Para ficarmos com apenas um exemplo, que ilustra bem esse cenário de

dependermos, sempre, de uma alteração legislativa para perceber o tom constitucional

de determinada garantia, basta lembrarmos que foi preciso, em 2003, especificar no 22 CARVALHO, Salo de. Substitutivos Penais na era do Grande Encarceramento. In: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos II, p. 166. Acessível em: http://www.academia.edu/2758949/Substitutivos_Penais_na_Era_do_Grande_Encarceramento

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CPP, através da Lei 10792, que o interrogatório judicial deve ser feito com a presença da

defesa técnica. Ou seja, a Constituição, que garante o contraditório, a ampla defesa e o

devido processo legal, não bastava; precisávamos desenhar no CPP.

Tal expediente se repete com a audiência de custódia, uma ilustre

desconhecida não apenas da prática judicial brasileira, mas também, lamentavelmente,

de grande parcela da doutrina.

Falemos, inicialmente, de sua previsão normativa. Dispõe o art. 7º, 5, da

Convenção Americana de Direitos Humanos (também denominado de Pacto de São José

da Costa Rica), que “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora,

à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais

(...)”. No mesmo sentido, assegura o art. 9º, 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos, que “Qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infração penal deverá

ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a

exercer funções (...)”.

O Brasil aderiu à Convenção Americana em 1992, tendo-a

promulgada, aqui, pelo Decreto n. 678, em 6 de novembro daquele ano.

Igualmente, nosso país, após ter aderido aos termos do Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Políticos (PIDCP) naquele mesmo ano, o promulgou pelo Decreto

n. 592. Passados, então, mais de vinte anos da incorporação ao ordenamento

jurídico interno do teor dos citados diplomas internacionais de direitos humanos,

por que a relutância em cumpri-los?

Não há nenhuma dificuldade em se identificar o que significa e quais são

os propósitos da audiência de custódia. Trata-se simplesmente de assegurar uma

aproximação entre julgador e investigado, mediada pelo contraditório que é garantido

com a presença do Ministério Público e da defesa, fazendo-se da ocasião o ambiente

propício para, primeiro, evitar e eventualmente fazer cessar atos de tortura ou maus

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tratos provocados no investigado, e, segundo, promover-se um espaço democrático de

discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão.

Vê-se, portanto, que o expediente, conforme anota WEIS, “aumenta o

poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e defensores de exigir que os demais elos

do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência”23.

O que se verifica, hoje, é que um encontro entre o investigado com os demais atores da

cena penal (juiz, MP e defesa) acaba sendo realizado, notadamente após a Lei

11719/2008, que transferiu o interrogatório para o último ato da instrução (art. 400,

caput, do CPP), somente ao final do processo, em muitos casos, então, após meses ou

quiçá anos da sua prisão. É nesse sentido que LOPES JR. afirma que “o juiz não tem

contato com o cidadão preso e, se decretar a prisão preventiva, somente irá ouvi-lo no

interrogatório muitos meses (às vezes anos) depois, pois agora o interrogatório é o último

ato do procedimento”24.

As vantagens da audiência de custódia são várias, a começar pela mais

básica e de natureza formal: adaptar o processo penal brasileiro à Convenção Americana

de Direitos Humanos25. Dela prosseguimos, já, para a mais efetiva e de natureza

material: promover um controle imediato da legalidade, necessidade e adequação da

prisão, sem prejuízo, é claro, como já dissemos, de se apurar ou fazer cessar a prática de

tortura ou maus tratos no investigado26. Tal controle, afirmam BOTELHO e

23 WEIS, Carlos. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justiça Criminal. Edição 05, ano 03/2013. Acessível em: http://www.iddd.org.br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf 24 LOPES JR., Aury. Imediata apresentação do preso em flagrante ao juiz: uma necessidade imposta pela evolução civilizatória do Processo Penal. Informativo Rede Justiça Criminal. Edção 05, ano 03/2013. Acessível em: http://www.iddd.org.br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf 25 Cf., sobre esse ponto, CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 e a necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à convenção americana de direitos do homem. In: IBCCrim, Boletim n. 254 – Janeiro/2014. 26 Nesse sentido, já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos que a audiência de custódia representa “um meio de controle idôneo para evitar as capturas arbitrárias e ilegais. O controle judicial imediato é uma medida tendente a evitar a arbitrariedade ou ilegalidade das detenções, tomando em conta que num Estado de Direito corresponde ao julgador garantir os direitos do detido, autorizar a adoção de medidas cautelares ou de coerção quando seja estritamente necessário e procurar, em geral, que se trate o não culpado de maneira coerente com a presunção de inocência” (Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24/06/2005 – tradução livre).

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FINGERMANN, com os quais estamos de pleno acordo, representaria, sem dúvida, “uma

força eficiente de combater a superlotação carcerária que assola o país, sem perder de

vista que a odiosa política de encarceramento em massa atinge com muito mais força a

camada mais pobre e marginalizada da população brasileira”27.

Valemo-nos aqui, ainda, para melhor ilustrar o quanto a audiência de

custódia poderia revolucionar a prática penal brasileira, das dez razões enumeradas no

Informativo Rede Justiça Criminal, produzido por organizações de notável atuação na

defesa de direitos humanos: Associação pela Reforma Prisional (ARP), Conectas Direitos

Humanos, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Defensores de

Direitos Humanos (DDH), Instituto Sou da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania

(ITTC), Justiça Global e Pastoral Carcerária Nacional. Vejamo-las:

“1. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto

de San Jose da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992,

dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida,

sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade

autorizada pela lei a exercer funções judiciais” (art. 7º);

2. A apresentação da pessoa presa em juízo no prazo de 24

horas é a maneira mais célere de garantir que a prisão ilegal

será imediatamente relaxada e que ninguém será levado à

prisão ou nela mantido se a lei admitir a liberdade

(garantias constitucionais previstas no art. 5º, LXV e LXVI,

respectivamente);

3. A audiência de custódia servirá para que o juiz i) analise a

legalidade e necessidade da prisão e ii) verifique eventuais

maus tratos ao preso havidos até ali, podendo determinar a

imediata apuração de qualquer abuso que venha a tomar

conhecimento. No que diz respeito ao controle da legalidade

da prisão, poderá o juiz no momento da audiência de

27 BOTELHO, Augusto de Arruda; FINGERMANN, Isadora. Audiência de Custódia: uma necessária e premente inovação legislativa. Disponível em: http://www.iddd.org.br/Noticias.aspx?Id=578

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custódia: i) relaxar a prisão em flagrante ilegal; ii) decretar a

prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à

prisão; iii) manter solta a pessoa suspeita da prática de

determinado delito, se verificar ausentes os pressupostos de

cautelaridade previstos no artigo 312 do CPP;

4. A previsão da ordem dos atos nesta audiência (Ministério

Público requer a medida cautelar que entender adequada e

necessária, a Defesa contra-argumenta e o Juiz decide) é a

expressão do princípio constitucional do contraditório (art.

5º, LV, CF), com a garantia inerente de que a defesa deve

sempre manifestar-se depois da acusação;

5. O depoimento prestado nessa audiência deve ser autuado

em apartado para que não seja manuseado no curso da

instrução criminal e com isso não contamine a prova a ser

produzida e discutida no futuro, garantindo, portanto, que

seu conteúdo não seja utilizado em prejuízo do acusado em

futura ação penal;

6. A autuação em apartado do depoimento e a proibição de

que se inquira o preso sobre pontos atinentes ao mérito da

imputação evitam que os avanços da Lei nº 11.719/2008 –

que alterou a ordem dos atos no processo penal, garantindo

que o interrogatório do acusado seja o último ato da

instrução criminal, em conformidade com o princípio do

contraditório (art. 5º, LV, CF) –, se esvaiam com a adoção da

audiência de custódia;

7. A obrigatoriedade para que dessa audiência participe o

representante do Ministério Público e o advogado/defensor

público é a garantia de que a lei não contrarie a garantia

constitucional de assistência de um advogado (art. 5º, LXIII),

bem como o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV);

8. A audiência de custódia representa para o Estado um

instrumento eficiente e ágil para a obtenção e verificação de

informações precisas sobre os procedimentos policiais,

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evitando que maus tratos e práticas de extorsões continuem

a ocorrer impunemente;

9. O controle imediato da legalidade, necessidade e

adequação de medida extrema que é a prisão cautelar será

uma forma eficiente de combater a superlotação carcerária,

sempre tendo em conta que a excessiva política de

encarceramento em massa atinge com muito mais força a

camada mais pobre e marginalizada da população

brasileira;

10. A apresentação imediata da pessoa presa ao juiz é o

meio de garantir que um cidadão passe o menor tempo

possível preso desnecessariamente, ainda que não possua

advogado constituído, circunstância que caracteriza a maior

parcela da população prisional”28.

Identificada a previsão normativa, apresentado um conceito e esmiuçadas

as – muitas – vantagens da audiência de custódia, resta abordarmos a sua

implementação no processo penal brasileiro, preocupação que já chegou, advirta-se, ao

Supremo Tribunal Federal, tendo o Min. GILMAR MENDES, em caso emblemático de

abuso da prisão cautelar, provocado o colegiado a refletir se não deveriam “começar a

exigir, talvez, aquilo que está já na Convenção Interamericana de Direitos Humanos: a

observância da apresentação do preso ao juiz”29.

Pois bem. A obviedade da implementação da audiência de custódia na

nossa prática judicial dispensa que avancemos em demasia para explicá-la, porquanto o

referido direito decorre de expressa previsão contida em diplomas internacionais de

28 INFORMATIVO REDE JUSTIÇA CRIMINAL, Edição 05, ano 03, 2013. Disponível em: http://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/rjc-boletim05-aud-custodia-2013.pdf 29 Voto no HC 119095, 2ª Turma, DJe 08/04/2014. No mesmo sentido, manifestou-se o Min. quando entrevistado pelo CONJUR, defendendo a necessidade “de que haja, pelo menos onde isso for possível, a apresentação imediata do preso ao juiz, como forma de evitar o abuso das prisões provisórias. Isso está na Convenção Interamericana de Direitos Humanos e é uma prática comum em vários modelos constitucionais”. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2013-jul-07/entrevista-gilmar-mendes-ministro-supremo-tribunal-federal

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direitos humanos, os quais o Brasil voluntariamente aderiu (referimo-nos, como já

detalhado, ao PIDCP e à CADH). Assim, ademais, quando o art. 5º, § 1º, da CF, estabelece

que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação

imediata”, tal comando certamente abriga, conforme a lição de RAMOS, “os direitos

previstos nos tratados de direitos humanos”30, e isso porque foi a própria CF, no mesmo

artigo, porém, no § 2º, que se adiantou para prever que “Os direitos e garantias expressos

nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

De qualquer forma, a fim de se evitar futuras interpretações que dificultem

a efetivação da audiência de custódia no Brasil, rebatemos, nos tópicos seguintes, dois

supostos problemas que adiariam a implementação daquela, e, depois, concluímos pela

análise da insuficiência normativa do art. 306, § 1º, do CPP, assim como avançamos, ao

final, para precisar o que se deve entender pela expressão “sem demora”.

3.1. A IMPLEMENTAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA DEPENDE DE

REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA INTERNA?

A resposta só pode ser negativa, pois, do contrário, a adesão dos países a

Tratados Internacionais de Direitos Humanos seria um expediente meramente

protocolar, político no sentido negativo da palavra. Os Estados-membros (seja do

Sistema Interamericano, de onde provém o PSJCR, seja do Sistema Global, que abriga o

PIDCP – ambos prevendo o direito à audiência de custódia), muito embora não estejam

obrigados, em regra31, a legislar sobre determinado tema, não se desincumbem, pelo

simples fato de omissão legislativa, de observarem e cumprirem os preceitos dos

Tratados a que – voluntariamente – aderiram.

30 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos, p. 398. 31 Uma exceção: no Caso Maria da Penha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Brasil editasse uma lei que punisse adequadamente a violência doméstica contra a mulher, de onde adveio, portanto, a Lei 11340/2006.

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Fazemos o oportuno registro, nessa ocasião, de que tramita no Senado o

importante Projeto de Lei n. 554/201132, de autoria do Senador Antônio Carlos

Valadares, Projeto que recebeu, depois, um texto substitutivo do Senador João

Capiberibe, o qual já foi aprovado por unanimidade pelas Comissões de Direitos

Humanos e Assuntos Econômicos do Senado Federal, aguardando, agora, desde

29/01/2014, relatório do Senador Humberto Costa, relator na matéria na Comissão de

Constituição e Justiça do SF. Dispõe esse PL o seguinte:

“Art. 306.

§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão

em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para

ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e

para que se verifique se estão sendo respeitados seus

direitos fundamentais, devendo a autoridade policial tomar

as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar

eventual violação.

§ 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o

Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda

necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida

cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e,

após manifestação da defesa técnica, decidirá

fundamentadamente, nos termos do art. 310.

§ 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será

registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada

como meio de prova contra o depoente e versará,

exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão;

a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus tratos; e

os direitos assegurados ao preso e ao acusado.

§ 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser

acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de

32 Para análise da tramitação, cf. http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=102115

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culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela

autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do

condutor e os nomes das testemunhas.

§ 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença

de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de

Defensor Público, e na do membro do Ministério Público,

que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no

parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à

decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código”.

Trata-se, indiscutivelmente, de um PL com potencial para revolucionar o

sistema de justiça criminal brasileiro, que regula, de forma técnica e precisa, a audiência

de custódia no ordenamento jurídico interno. Todavia, enquanto permanecer a omissão

legislativa, a Convenção Americana de Direitos Humanos e também o PIDCP devem ser

cumpridos, ainda que o Poder Judiciário deva exercer certa criatividade na consolidação

prática do instituto, o que, diga-se de passagem, não representa nenhuma novidade para

a jurisdição constitucional no Brasil, acostumada, notadamente nos últimos anos, a

suprir e complementar as lacunas deixadas pelo legislador.

3.2. RAZÕES DE NATUREZA ESTRUTURAL E LIMITAÇÕES DE RECURSOS PODEM

INVIABILIZAR A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL?

Permitindo-nos novamente sermos breves, a resposta também é negativa.

O Estado que se mobiliza para prender, para arquitetar mega operações, enfim, para

exercer o poder punitivo e manobrar a persecução penal, deve, também, se mobilizar

para garantir direitos humanos, a exemplo da audiência de custódia. Não há que se falar,

aqui, numa suposta “reserva do possível”, que o Estado não conseguiria apresentar o

preso sem demora à presença do juiz etc., e isso por uma razão singela: os Tratados de

Direitos Humanos que preveem a audiência de custódia não fazem concessões, mas

simplesmente estabelecem essa obrigação.

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3.3. A INSUFICIÊNCIA DO ART. 306, § 1º, do CPP, E O QUE SE DEVE ENTENDER POR

“SEM DEMORA”

O art. 306, § 1º, do CPP, dispõe que “Em até 24 (vinte e quatro) horas após a

realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante

e, caso o autuado não informe o nome do seu advogado, cópia integral para a Defensoria

Pública”. Perceba-se, então, que o ordenamento jurídico interno determina o

traslado do papel (APF) ao juiz, violando gravemente a CADH e o PIDCP, que

asseguram a condução da pessoa presa.

Assimilando perfeitamente essa insuficiência normativa, a Corte

Interamericana de Direitos Humanos assim já se manifestou:

“Em primeiro lugar, os termos da garantia estabelecida no

artigo 7.5 da Convenção são claros quanto a que a pessoa

detida deve ser levada sem demora ante um juiz ou

autoridade judicial competente, conforme os princípios de

controle judicial e imediação processual. Isso é essencial

para a proteção do direito à liberdade pessoal e para

outorgar proteção a outros direitos, como à vida e à

integridade pessoal. O simples conhecimento por parte do

juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa

garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e

apresentar sua declaração ante o juiz ou autoridade

competente”33.

Logo, conclui-se que o CPP está em desconformidade com os Tratados

Internacionais de Direitos Humanos, não resistindo, portanto, a um controle de

convencionalidade, de modo que a sua insuficiência normativa, ainda à espera da

33 Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24/06/2005 – tradução livre e destaque não constante no original.

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aprovação do PLS 554/2011, não pode impedir nem inviabilizar o gozo do direito à

audiência de custódia.

Por fim, no tocante à expressão “sem demora” prevista tanto na CADH

quanto no PIDCP, propõe-se que seja ela compreendida em no máximo vinte e quatro

horas após a prisão, reservando-se excepcionalidades casuísticas para no máximo

quarenta e oito horas, sempre partindo-se do termo inicial da prisão em flagrante. Não

se trata de critério arbitrariamente ou aleatoriamente escolhido, mas sim, primeiro, de

interpretação lógica e proporcional do tempo já previsto no art. 306, § 1º, do CPP, e

também no PLS 554/2011, e, segundo, de conclusão obtida a partir de precedentes da

Corte IDH, que, por exemplo, já responsabilizou o México por ter conduzido um cidadão

preso à presença do juiz somente cinco dias após a prisão, assentando, na oportunidade,

que a expressão “sem demora” prevista na CADH foi claramente violada34, e também de

orientação da Comissão IDH, que já qualificou como “excessivamente dilatado” o prazo

de sete dias para a apresentação do preso ante o juiz35.

4. O EFEITO NACIONAL DO PROVIMENTO

O art. 16 da Lei 7347/85, com redação dada pela Lei 9494/97, limitou a

competência do juiz de primeira instância para julgamento das ações civis públicas,

estabelecendo que "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da

competência territorial do órgão prolator (...)". O art. 2º-A da última Lei citada prescreve

que “A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade

associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os

substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da

competência territorial do órgão prolator”.

34 Cf. Corte IDH. Caso Cabrera y Montiel Flores Vs. México, sentença de 26/11/2010. 35 Cf. Informe sobre Cuba, 1983, citado por NORES, José I. Cafferata Nores. Proceso Penal y derechos humanos. Buenos Aires: Del Puerto, 2000, p. 196.

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No entanto, a limitação territorial aos limites subjetivos da coisa julgada

não pode ser aplicada às ações coletivas. Ao restringir a abrangência dos efeitos da

sentença de procedência proferida em ação civil pública aos limites da competência

territorial do órgão prolator, a Lei 9494/97 confundiu os limites subjetivos da coisa

julgada erga omnes com os da jurisdição e da competência, que nada tem a ver com o

tema.

A interpretação literal – e equivocada – do dispositivo aludido significa

que, se diversos atos iguais ou semelhantes, que produzem idênticos efeitos, são

praticados em vários Estados ou Municípios, a competência deve ser dos vários juízes,

cada um competente em relação aos atos praticados e danos sofridos na sua comarca

(Justiça Estadual) ou subseção judiciária (Justiça Federal). Assim, não poderia ser

admitido que ocorra a extensão da competência de qualquer juiz, para que a sua

sentença proferida erga omnes alcance os réus em todo o território nacional.

Dessa forma, a decisão do juiz na ação civil coletiva ficaria restrita aos

limites territoriais de sua competência, não podendo abranger todo o território

nacional/estadual ou outro, não integrante de sua jurisdição. Todavia, a norma aludida

não pode assim ser interpretada.

Neste sentido cabe transcrever as elucidações de Leonel Ricardo Barros:

“A necessidade de reconhecimento de maior extensão aos

efeitos da sentença coletiva é consequência da

indivisibilidade dos interesses tutelados (material ou

processual [no caso específico dos direito individuais]),

tornando impossível cindir os efeitos da decisão judicial,

pois a lesão a um interessado implica lesão a todo, e o

proveito a um a todos beneficia. É a indivisibilidade do

objeto que determina a extensão dos efeitos do julgado a

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quem não foi “parte” no sentido processual, mas figura

como titular dos interesses em conflito”36.

Neste sentido, já decidiram o TRF da 4ª Região37 e também o Superior

Tribunal de Justiça38. Entendimento contrário desvirtuaria o principal fim da tutela

coletiva, qual seja, o de beneficiar grupos, que não precisam, necessariamente, estarem

todos em determinado local do território do país. Além disso, a não concessão do efeito

nacional do provimento implicaria, ainda, em gravíssima ofensa ao princípio da

igualdade, pois teríamos, nessa hipótese, duas classes de cidadãos: aqueles que residem

no local onde a demanda foi ajuizada e, portanto, beneficiados com eventual êxito do

pedido, e aqueles de outras localidades, sem acesso ao provimento judicial.

Ademais, a União, que aqui ocupa o polo passivo da demanda, é a mesma

União presente nos demais Estados da federação.

A Justiça Federal do Estado do Amazonas tem, aqui, uma chance

singular de nacionalizar um provimento que fará cessar mais de vinte anos de

descumprimento da CADH e do PIDCP, uma oportunidade, talvez, para mostrar

que a região Norte não abriga somente um dos piores IDH’s do país ou a cifra mais

elevada de presos provisórios, mas que é um celeiro, também, de profissionais

dispostos a promover e efetivar direitos humanos.

5. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA

Os requisitos exigidos pelo art. 273 do CPC permeiam toda a exposição

feita. A prova é, sem dúvida, inequívoca: uma grave violação de direitos humanos e um

desrespeito a Tratados Internacionais que o Brasil aderiu. A alegação, idem, no todo

verossimilhante. O fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação se afigura

36 LEONEL, Ricardo Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 259. 37 Cf. AG 2006.04.00.026331-1/SC, Rel. Min. Ricardo Teixeira do Valle Pereira, DJU 01/11/2006. 38 Cf. REsp 1243887, Corte Especial, rel. min. Luis Felipe Salomão, DJe 12/12/2011.

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como inerente à circunstância de estarmos falando, aqui, de prisão, liberdade e direitos

humanos. Em sendo assim, preenchidos os requisitos, espera-se seja concedida a

antecipação da tutela.

6. PEDIDOS:

Diante do exposto, requer-se:

I – O recebimento desta inicial, reconhecendo-se desde

já a abrangência nacional do provimento;

II – A intimação pessoal da Defensoria Pública da

União, de todos os atos processuais e prazos

processuais em dobro, nos termos do art. 44, I, da LC

80/94;

III – A antecipação dos efeitos da tutela, com fulcro

no art. 273 do CPC, para que se determine o imediato

cumprimento da CADH (art. 7º, 5) e do PIDC (9º, 3),

obrigando-se a União a viabilizar a realização da

audiência de custódia para todos os presos em

flagrante, com a condução, no prazo máximo de 24

(vinte e quatro) horas, do preso à presença do juiz, com

prévia intimação para o Ministério Público e para a

defesa;

IV – A aplicação de multa diária para o caso de

descumprimento do item anterior, em valor a ser

fixado por Vossa Excelência, considerando-se, na

dosagem, um quantum que desestimule a violação;

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V – A citação da União para, querendo, apresentar

contestação no prazo legal, sob pena de revelia;

VI – A intimação do Ministério Público Federal, nos

termos do art. 5º, § 1º, da LACP);

VII – A procedência, ao final, do pedido, a fim de que

se determine o imediato cumprimento da CADH (art.

7º, 5) e do PIDC (9º, 3), obrigando-se a União a

viabilizar a realização da audiência de custódia para

todos os presos em flagrante, com a condução, no

prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, do preso à

presença do juiz, com prévia intimação para o

Ministério Público e para a defesa;

VIII – Que seja apreciado o pleito em conformidade

com as normas legais e constitucionais, mas também

internacionais de direitos humanos, assegurando-

se, desta forma, prequestionamento para eventual

acesso aos Tribunais Superiores ou Internacionais de

Direitos Humanos.

Dá-se à causa o valor simbólico de R$ 1.000,00.

Manaus, 27 de maio de 2014.

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CAIO CEZAR DE FIGUEIREDO PAIVA DEFENSOR PÚBLICO FEDERAL

AUGUSTO QUEIROZ DE PAULA DEFENSOR PÚBLICO FEDERAL

EDILSON SANTANA GONÇALVES FILHO DEFENSOR PÚBLICO FEDERAL