Achilles Delari Jr Vigotski e a Pratica Do Psicologo Em Percurso Da Psicologia Geral a Aplicada 2a...

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VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO em percurso da psicologia geral à aplicada * Achilles Delari Junior ** L. S. Vigotski (18961934): criador da teoria históricocultural * ** * Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada. Mimeo. Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão) ** Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. Email: [email protected]. “Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência do novo homem. Sem ela a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta. Entretanto, esta ciência do novo homem será também psicologia. Por isso hoje mantemos suas rédeas em nossas mãos. Não há necessidade de dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual, como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão se parece com o cachorro, animal ladrador (Ética, teorema 17, Escólio)” — Lev Vigotski (1927/1991, p. 406) *** Palavras Iniciais Tem sido muito importante no Brasil a contribuição da obra de Lev Vigotski à psicologia da educação e às práticas pedagógicas de modo geral. Assim, predominantemente, sua obra tem sido apresentada e discutida no contexto de cursos de formação de educadores, tanto quanto nas disciplinas da formação do psicólogo ligadas aos temas do desenvolvimento humano e das relações de ensinoaprendizagem formais ou não formais. Isso não é despropositado. A educação tem um lugar fundamental na proposta de Vigotski para uma “nova psicologia”. Segundo ele “a educação é a primeira palavra que [a nova psicologia] menciona” (VIGOTSKI, 1926/1991, p. 144). Isso implica mencionar a palavra “educação” numa acepção antropológica, isto é, conceber que só o ser humano é capaz de educarse, de aprender com a experiência histórica das gerações anteriores e assim constituir a sua própria vivência como ser singular. Entendese que o ato de educarmonos, na família, na escola, nas demais instituições em que se estabeleçam nossas relações com outras pessoas, seja essencial na constituição das funções psíquicas propriamente humanas, de nossa SUMÁRIO Palavras iniciais............................................................. 01 1 Princípios éticos em psicologia históricocultural ..... 03 1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ........... 04 1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...) ......... 08 1.3 O método construtivo e a psicologia (...)................. 10 2 Princípios de psicologia geral numa abordagem históricocultural................................................................... 12 2.1 Unidade psicofísica .................................................. 12 2.2 Determinação da consciência pela existência (...) ..13 2.3 Consciência: psiquismo propriamente humano ..... 17 2.4 Consciência compreendida mediante unidades ...... 20 2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica............... 25 3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa abordagem históricocultural .................................................. 30 3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática.............. 31 3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão prática ................................................................................... 32 Para continuar o diálogo .............................................. 37 Referências ................................................................... 38 *** Todas as citações para títulos que na bibliografia constarem em língua estrangeira são de minha autoria exceto Vigotski (1929/1989) e Puzirei (1989a) – cujas traduções do inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publicação ou término da redação da obra e outra para a publicação que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigotski, com fins didáticos de contextualização histórica, por se tratar da referência principal do texto.

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Achilles Delari Jr Vigotski e a Pratica Do Psicologo Em Percurso Da Psicologia Geral a Aplicada 2a Versao

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VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO em percurso da psicologia geral à aplicada*

Achilles Delari Junior**

 

  L. S. Vigotski (1896‐1934): criador da teoria histórico‐cultural    * **  

 

* Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicó‐logo:  em  percurso  da  psicologia  geral  à  aplicada.  Mimeo. Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão) ** Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐mail: [email protected]

“Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência do  novo  homem.  Sem  ela  a  perspectiva  do marxismo  e  da história da ciência  seria  incompleta. Entretanto, esta ciência do novo homem será também psicologia. Por  isso hoje man‐temos  suas  rédeas em nossas mãos. Não há necessidade de dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual, como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão se  parece  com  o  cachorro,  animal  ladrador  (Ética,  teorema 17, Escólio)” 

— Lev Vigotski (1927/1991, p. 406)***   

Palavras Iniciais  Tem  sido muito  importante no Brasil a contribui‐ção da obra de Lev Vigotski à psicologia da educa‐ção e às práticas pedagógicas de modo geral. As‐sim, predominantemente, sua obra tem sido apre‐sentada e discutida no contexto de cursos de for‐mação de  educadores,  tanto quanto nas discipli‐nas  da  formação  do  psicólogo  ligadas  aos  temas do  desenvolvimento  humano  e  das  relações  de ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso não é despropositado. A educação  tem um  lugar fundamental  na  proposta  de  Vigotski  para  uma “nova  psicologia”.  Segundo  ele  “a  educação  é  a primeira palavra que  [a nova psicologia] mencio‐na”  (VIGOTSKI,  1926/1991,  p.  144).  Isso  implica mencionar  a  palavra  “educação”  numa  acepção antropológica,  isto  é,  conceber  que  só  o  ser  hu‐mano  é  capaz  de  educar‐se,  de  aprender  com  a experiência  histórica  das  gerações  anteriores  e assim  constituir  a  sua  própria  vivência  como  ser singular. Entende‐se que o ato de educarmo‐nos, na  família, na escola, nas demais  instituições em que  se  estabeleçam  nossas  relações  com  outras pessoas,  seja  essencial  na  constituição  das  fun‐ções  psíquicas  propriamente  humanas,  de  nossa 

SUMÁRIO  

Palavras iniciais.............................................................01 1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03 1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04 1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...) .........08 1.3 O método construtivo e a psicologia (...).................10 2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐rico‐cultural...................................................................12 2.1 Unidade psicofísica..................................................12 2.2 Determinação da consciência pela existência (...)  ..13 2.3 Consciência:  psiquismo propriamente humano .....17 2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20 2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25 3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐gem histórico‐cultural ..................................................30 3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática..............31 3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐ca...................................................................................32 Para continuar o diálogo ..............................................37 Referências ...................................................................38 

*** Todas as citações para  títulos que na bibliografia consta‐rem  em  língua  estrangeira  são de minha  autoria  exceto Vi‐gotski  (1929/1989)  e  Puzirei  (1989a)  –  cujas  traduções  do inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐ção que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigots‐ki,  com  fins  didáticos  de  contextualização  histórica,  por  se tratar da referência principal do texto. 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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consciência  em  especial  e  nossa  personalidade como um todo.  Contudo,  neste  texto  pretendo  relembrar  que Vigotski não produziu exclusivamente uma psico‐logia  educacional  ou  escolar,  nem  sua  teoria  se restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e principalmente, de uma contribuição geral à psico‐logia  concreta  do  homem  (ver  VIGOTSKI,  1929/ 1989, 1929/2000). A qual pode nos permitir pen‐sar a atuação do psicólogo em diferentes contex‐tos práticos, como a promoção de saúde mental: nas  práticas  sociais  comunitárias,  nos  sistemas públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐lho,  entre  outros...  Tanto  quanto  em  qualquer situação em que se efetivem simultaneamente: (a) relações  simbolicamente mediadas  entre  as  pes‐soas,  (b)  constituição  social de  sentidos para  tais relações  e  (c)  significação  para  nossa  própria  vi‐vência  no  curso  desse  processo.  Trabalharemos aqui com a concepção de que um psicólogo orien‐tado pela abordagem histórico‐cultural, buscando compreender  o  ser  humano  na  concretude  de suas  relações  sociais,  a um  só  tempo:  situa‐o na especificidade  delas  (na  família,  no  namoro,  na escola, no  trabalho, na  vida  comunitária, na  luta por direitos civis, no  lazer, na atividade  lúdica, na criação artística, noutras  instituições, etc.); e arti‐cula  tais  contextos  específicos no  conjunto  sistê‐mico,  inter‐funcional, dinâmico e contraditório da personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐vimento histórico.  Por um  lado, o que há de geral no psiquismo hu‐mano solicita contextualização. Se  todo o ser hu‐mano  é  um  constante  tornar‐se,  aquilo  em  que nos  tornamos  demanda  situações  reais  para  a realização do nosso devir. Se todo o ser humano é um animal social, o nosso modo de sermos sociais implica relações com outras pessoas que não nos estão  pré‐determinadas  e  só  acontecem  no  pró‐prio ato, por vezes  tenso, de  se estabelecerem e de se refazerem. Se todo o ser humano é um ser simbólico, o nosso próprio modo de simbolizar as coisas, os outros e a nós mesmos está relacionado à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos sociais  criam e  recriam para  codificar  sua experi‐ência  histórica  e  dar‐lhe/impedir‐lhe  acesso  às novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a significação,  como  características  gerais  da  vida propriamente  humana  colocam‐nos,  ao  mesmo 

tempo, a necessidade de compreender o específi‐co de  sua  realização para  cada  ser humano  con‐creto. Por outro  lado, a nossa vivência mais espe‐cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐do  com  nossos  semelhantes.  Posto  que  nossa própria personalidade não tem como realizar‐se e desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐soas, senão mediante processos sociais de signifi‐cação, senão no fluxo de uma gênese histórica.  Esta, por sua vez, realiza‐se como um “tornarmo‐nos” humanos, que  só acontece em  relação  com os  dois  primeiros  critérios, mas  não  pode,  para nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite para  o  dia,  exceto  no  caso mesmo  de  a  própria humanidade  deixar  de  existir.  Sendo  assim,  a  a‐bordagem histórico‐cultural não se apresenta aqui como visão “relativista” na qual o homem poderia ser  social ou não,  simbólico ou não, histórico ou não,  dependendo  da  situação...  A  caracterização do humano como ser social, simbólico e histórico, compõe  um  conceito  pertinente  à  constituição ontológica mais  profunda  e  elevada  da  condição humana, no  interior da abordagem teórica à qual estamos  nos  referindo.  Ao  mesmo  tempo,  essa generalidade concretiza‐se em sua dialética com a especificidade da condição singular de cada socie‐dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada classe  e  grupo  sociais,  de  cada  ser  humano  em particular.  Deduz‐se  assim  que  não  se  trata  de uma abordagem que só seria aplicada a um único contexto específico de  relações sociais, seja ele a escola,  o  mundo  do  trabalho,  as  organizações comunitárias, as práticas terapêuticas e assim por diante. A psicologia histórico‐cultural busca  com‐preender o ser humano, e assim ao seu contexto caberá articular sua condição genérica e vice ver‐sa.   Partindo  desse  princípio,  dirigindo‐me,  nesse momento,  às  componentes do  grupo de  estudos orientado  em  “Teoria  histórico‐cultural  (sócio‐histórica) na prática do psicólogo”, buscarei orga‐nizar  uma  breve  introdução  à  contribuição  de Vigotski,  principal  propositor  da  teoria  histórico‐cultural1 em psicologia. Neste  texto  introdutório, 

1  Segundo Valsiner  e Van der Veer  (1996)  “teoria histórico‐cultural” é um  termo  cunhado por Vigotski e  Luria para de‐

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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para  fins  de  exposição,  abordarei:  (1)  princípios éticos  em  psicologia  histórico‐cultural;  (2)  princí‐pios de psicologia geral numa abordagem históri‐co‐cultural;  e  (3)  orientações  gerais  à  psicologia aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo “para  fins  de  exposição”,  pois  evidentemente  a ética, a teoria e a prática são aspectos simultâneos da  realidade humana na qual  se dá a  construção tanto de uma obra como a de Vigotski quanto a de nossa aprendizagem acadêmica e atuação profis‐sional. Pese‐se que nossa consciência possa, para fins de  sistematização e/ou organização,  focar‐se mais  num  aspecto  do  que  em  outro,  os  demais nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐do ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐do prático de viver e  relacionarmo‐nos engendra valores éticos. Nossos valores orientam práticas e opções  por  determinados  modos  de  teorizar  o real. Estes, por sua vez,  (re)organizam ainda nos‐sas formas de agir e viver. Agindo e vivendo reava‐liamos nossos conceitos, destituímos e/ou conso‐lidamos valores.  Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma de articular os conceitos aqui, tanto mais de modo tão  abreviado  e  introdutório,  é  uma  produção minha  com  base nas  leituras que  venho  fazendo desde o  final dos anos oitenta, articuladas às ex‐periências que tive, às vivências que nelas se cons‐tituíram  e  às  que  hoje  também me  perpassam. Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐cias humanas, não há em  teoria histórico‐cultural apenas uma leitura quanto ao significado dos clás‐sicos. Minha  orientação  geral  a  qualquer  pessoa 

nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐lhada, sobretudo, entre 1928 e 1931. Embora não comporte, portanto, toda a obra de Vigotski, serve para designá‐la como uma metonímia da parte pelo  todo. O  termo  “teoria  sócio‐histórica da atividade”  foi cunhado mais  tarde por Leontiev. No Brasil existe uma diversidade de denominações, as quais por sua vez  implicam diferenças teóricas e metodológicas na interpretação  do  autor  clássico  como:  sócio‐interacionismo, sócio‐construtivismo,  abordagem  sócio‐cultural,  abordagem sócio‐histórico‐cultural,  etc. Não  nos  cabe  entrar  no mérito das  disputas  por  qual  denominação  seria  mais  correta  ou mais  fiel à teoria do autor, pois a diversidade de  leituras  faz parte  do  processo  social  da  apropriação  de  qualquer  obra. Adotarei a denominação “histórico‐cultural” por ser a que o próprio Vigotski teria cunhado e por ser a mais usada hoje na própria Rússia. Contudo, como diz Vigotski “O mais importan‐te é o significado, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se o significado” (1924/2009, p. 41).

que me pergunte por onde seria melhor começar a  ler Vigotski, não pode deixar de ser a de que se comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas se erguem ao redor de qual seria a melhor  inter‐pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos a  partir  de  quem  os  lê, melhor  seria  avaliar  tais leitores  a partir dos primeiros. Nem  sempre  isso acontece na prática – algum grau de leitura intro‐dutória  sempre é necessário. Mas  saibamos ape‐nas  que  este  texto  é  um  posicionamento  de  um homem concreto com seus  limites e potencialida‐des, que pode e deve ser questionado em seguida, sob  o  critério  da  crítica  e  da  leitura  do  próprio clássico  a  cujo estudo nos dedicaremos. De  toda forma, as escolhas para as  leituras a  serem  reali‐zadas não são neutras, e se orientam pela visão de mundo  e  pelas  características  de  personalidade social de quem as  indica. Tais aspectos  serão ex‐plicitados ao  longo deste texto,  justamente como convite ao diálogo e à composição coletiva.   1  Princípios  éticos  em  psicologia  histórico‐cultural 

 “O método, ou  seja, o  caminho  seguido, é  visto  como um meio de cognição: mas o método é determinado em todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz”   

— Vigotski (1927/1996, p. 346)  

Quando  falo aqui de ética não me  refiro aos pa‐drões de  conduta que  se  formalizam em  códigos de ética profissional, ou se normatizam em proce‐dimentos solicitados por comitês de ética em pes‐quisa  com  seres  humanos  ou  animais.  Estes  são importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao campo  dos  princípios  e  valores mais  gerais  que permitem  inclusive  formular  tais códigos e orien‐tar as normas de comitês como esses. Valores sem os quais eles se tornam destituídos de sentido ou exercidos apenas pelo motivo de  fugir‐se à puni‐ção.  Fazer  ou  deixar  de  fazer  algo  apenas  pelo critério  de  não  ser  punido  em  caso  contrário  é próprio do que poderíamos chamar de uma “ética fraca”. Uma ética  substancial,  sobretudo, diz  res‐peito à reflexão do homem sobre os valores rela‐tivos  ao  caráter  bom  ou  ruim  de  suas  próprias ações em  termos das conseqüências que elas ve‐nham a  ter para nós e para nossos  semelhantes. Historicamente,  diferentes  doutrinas  éticas  se 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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diferenciam, ademais, em termos do que definem como  um  “bem”  a  ser  buscado  e  cuja  ausência deve  ser evitada. A ética, assim, nos diz mais de um  “bem que  se quer” do que de uma  “punição da qual  fugir”. Desse modo as éticas que  tiveram como valor e bem maior a  felicidade,  foram cha‐madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐zer  como  valor  e  bem  maior  se  denominaram “hedonistas”.  Àquelas  que  viam  na  utilidade  das ações  humanas  o  bem  e  o  valor maior,  pôde‐se chamar  de  “pragmatistas”.  E  assim  por  diante2. Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que se constitui então como seu objetivo principal, sua meta, sem a qual nenhum método pode ser defi‐nido.  1.1 Contextualização geral e critérios axiológicos3 para um humanismo crítico na abordagem históri‐co cultural.  Certamente  reduzir  cada  doutrina  ética  a  uma única  palavra  é  temerário,  tanto  quanto  cabe lembrar  que  pode  haver  duas  ou mais  doutrinas sob uma só categoria geral e portadoras de traços específicos  bem  distintos  –  dependendo,  por  e‐xemplo,  do  que  se  define  como  felicidade,  tere‐mos  diferentes  “eudemonismos”,  e  assim  por diante. Contudo, só levantamos estes exemplos de modo ilustrativo para articular o conceito de ética com o de um “bem” que se busca, que se almeja, que  se  tem  então  como  valor maior. Trabalharei aqui  com a  interpretação de que a ética da obra de  Vigotski,  pautada  em  princípios  marxistas,  e como  síntese ainda das demais  tradições  filosófi‐cas e culturais às quais este autor se filia (como o espinosismo ou a própria tradição judaica na qual foi educado4), pode  ser adjetivada  como  “huma‐nista”,  lato sensu. Não se  trata do mesmo huma‐nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de Jean‐Paul Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐

2 Para um estudo detalhado sobre a constituição histórica de diferentes doutrinas éticas, ver Vasquez (1975). 3 Por  “axiologia” entendo aqui apenas  “discurso  sistemático sobre  os  valores”,  sobre  sua  hierarquia,  sua  apreciação  e significação. O  adjetivo  “axiológico”  aqui  é  utilizado  apenas com  a  acepção de  “relativo  aos  valores éticos” e  aos  juízos que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa atividade  vital  e  de  nossa  relação  com  outras  pessoas  no interior dela. 4 Sobre a  influência do  judaísmo no pensamento de Vigotski ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008). 

pio de tomar o ser humano e a realização de suas potencialidades  como um  valor que  se não  for o principal,  também não pode deixar de  ser  consi‐derado  como  imprescindível  e  inalienável  ao  seu projeto  em  psicologia.  Sobretudo,  cabe  o  desta‐que de que, na concepção de Vigotski, as potenci‐alidades humanas só se realizam e se ampliam no âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐dade,  com os outros  sociais, não  sendo  seu  foco ético uma realização humana apartada daquela de nossos semelhantes, o outro não é  impeditivo de nossa liberdade e realização pessoal, mas uma das suas principais condições de possibilidade.  Pode‐se  interpretar  que  o  valor  da  humanidade como bem a ser preservado e cultivado, do ponto de vista da ética presente na obra de Vigotski: (a) em primeiro lugar não se traduz como humanismo ingênuo nem liberal; e (b) em segundo lugar, con‐seqüentemente, demanda,  frente a outras orien‐tações axiológicas, critérios próprios, como o  seu entendimento quanto à  superação, à cooperação e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐mino  “humanismo  ingênuo”,  lembre‐se  que  pro‐priamente  humanas  não  são  só  as  denominadas “grandes  realizações”,  expressões  maiores  de criação artística, solidariedade ou  luta pela vida e o bem  comum. Não basta algo  ser humano para ser bom. Também são humanos, ausentes noutros animais, muitos atos de crueldade, degradação da natureza  e  autodestruição  da  espécie.  Tristes  e‐xemplos  de  ganância,  expropriação,  intolerância, terrorismo,  tortura,  genocídio,  destruição  em massa,  dados  ora  pelo  capitalismo  fascista  ou liberal ora  até mesmo por  certas orientações no dito “socialismo  real”,  são,  infelizmente,  também realizações  humanas.  Karl  Marx  dissera  ser  sua frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem e  nada  do  que  é  humano  eu  considero  alheio  a mim”. Os males  da  humanidade  fazem  parte  do que  somos,  reconhecermo‐nos  como  humanos  é ver bens e males coletivos como algo de que  so‐mos  todos potencialmente capazes e, em alguma medida,  até mesmo  responsáveis. A  ética  huma‐nista  que  nos  importa  não  elevará  qualquer  ato humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐centar  critérios  diferenciadores  frente  ao  huma‐nismo ingênuo, dos quais trataremos adiante.  Outro aspecto que solicita critérios para definir de qual  humanismo  se  trata,  é  o  de  não  confundir toda  ética  que  dá  à  humanidade  valor  central, 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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com uma visão “liberal” de ser humano. O  libera‐lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐se  social ascendente  com o advento do capitalis‐mo,  coloca  o  “homem  no  centro”  (antropocen‐trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade Média,  da  “divindade  no  centro”  (teocentrismo). Mas de que  “homem”  se  tratava? Sem nos alon‐garmos, apenas  recordemos o que diferentes au‐tores críticos já vêm alertando há algum tempo. O conceito  de  homem  do  liberalismo  surgido  na Europa, com a modernidade, o advento do capita‐lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐légio  de  certo modelo masculino,  branco,  euro‐peu,  adulto,  heterossexual,  letrado,  proprietário, entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se apresentar  a  idéia  de  tal  ser  humano  constituir valor universal,  ao mesmo  tempo  se  impunha  às mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐ra  humana  um  modelo  derivado  de  interesses particulares, próprios de uma classe social restrita. Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009) é  sério  crítico do humanismo ocidental moderno hegemônico, entendendo que ele seja uma inven‐ção  social  questionável  tanto  quanto  o  próprio conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu fim  próximo.  Ademais,  o  conceito  liberal  de  ho‐mem  é,  sobretudo,  focado  na  nossa  existência individual e na noção de que nossa  liberdade é a priori para  cada um de nós,  algo que  “nasce  co‐nosco”. Trata‐se da  ideologia de que se todos so‐mos naturalmente  livres para vender nossa  força de  trabalho e para prosperar com nossos empre‐endimentos  pessoais,  o  fracasso  ou  sucesso  de cada  um  será  devido  exclusivamente  aos  seus méritos e defeitos individuais.  Se a ética humanista que se  insinua na psicologia de  Vigotski  não  se  pauta  no  critério  ingênuo  do homem  como  ser  essencialmente  bom,  nem  no liberal com foco na sua realização individual, quais critérios acrescentar para o valor dado ao humano nessa  abordagem,  se  ela  ainda  não  advoga  a “morte do homem”? Na minha  compreensão, há pelo menos três ações próprias ao ser humano às quais a abordagem histórico‐cultural não valoriza só em  tese, mas  também busca construir através de sua prática social, às quais podemos, de modo conciso, nomear  como:  (a)  superação,  (b)  coope‐ração  e  (c)  emancipação.  A  noção  de  superação em Vigotski, entendida como ato e necessidade de superarmo‐nos, de  irmos além dos nossos  limites atuais,  é  ressaltada  pelo  estudioso  russo  Andrei 

Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e os  valores  fundamentais  presentes  em  todo  o pensamento de Vigotski”  (PUZIREI, 1989b, p. 16  ‐ grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra de Vigotski nos permite identificar nela uma forte “orientação  ao  ‘supremo’  no  homem  ou,  para dizê‐lo  com  palavras  de Dostoiévski,  ao  ‘homem no homem’, à sua organização psíquica e espiritu‐al,  desde  o  ponto  de  vista  do  que  pode  ser,  em geral, o homem e dos caminhos que existem para este estado possível, dos caminhos que abre, em particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI, 1989b, p. 16  ‐ grifos na  fonte). Tal orientação da abordagem  histórico‐cultural  ao  que  “podemos ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no sentido de mais elevado, mais avançado,  implica, em  outras  palavras,  que  se  vê  o  humano  tanto como  ser  apto  a  ir  além de  seus  limites,  quanto como o que só se realiza quando se supera. Con‐tudo,  realizarmo‐nos  como  humanos,  é  algo  que pode ocorrer ou não, em  função de dadas condi‐ções  materiais,  concretas.  Uma  das  principais condições concretas para a superação humana é a cooperação entre as pessoas.  Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição como força motriz da superação humana, a tradi‐ção à qual Vigotski se filia discorda de que um ser humano  só  avance  quando  outro  é  sobrepujado ou  derrotado.  Se  aquela  visão  supõe  o  “homem como lobo do homem”, e o outro como alguém a temer ou  subjugar, esta  supõe que até para  ser‐mos  indivíduos necessitamos a presença e os cui‐dados de outras pessoas para  conosco.  Se  consi‐derarmos o simples fato da fragilidade do “filhote humano” e o  tempo que demora para poder ga‐rantir  por  conta  própria  a  sua  sobrevivência,  já teremos noção do quanto necessitamos colabora‐ção  de  alguém  para  virmos  a  ser  nós mesmos  e quanto  podemos  nos  fazer  necessários  para  al‐guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustrado na própria teoria do desenvolvimento da persona‐lidade e das  funções da  linguagem, do  signo,  se‐gundo  Vigotski.  Para  ele,  a  função  das  primeiras palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐tiva,  "expressar  emoções", mas  primordialmente indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐to da  linguagem "é, antes de tudo, um pedido de ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐te, a primeira transposição dos limites da persona‐lidade,  isto  é,  uma  colaboração..."  (VIGOTSKI, 1931/2000a, p. 338). Ainda  assim,  a necessidade 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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de  atuar  junto  a mais  alguém  para  avançar  em nossos potenciais não se restringe a aprendermos a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene, a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐ações em que a superação de nossos limites exige a presença de outrem, mais experiente, que pro‐porcione mediações  necessárias  e  a  quem  dirija‐mos  solicitações.  Se  desejo  aprender  uma  língua estrangeira, a exercer uma profissão ou a dominar alguma arte, devo  recorrer a outros. Mas não  se restringe  a  necessidade  de  cooperação  a  obter instrução  de  alguém  mais  experiente:  também cooperamos com nossos pares, aprendemos com amigos, colegas,  familiares. E ainda com as crian‐ças,  os mais  novos, menos  experientes  que  nós, seja por  sua perspicácia,  seja por  lhes  tentarmos ensinar  algo – momento  talvez em que mais de‐vemos nos superar.  Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos do  outro,  caberia  eticamente  lembrarmos  que para irmos além do que já somos, o outro também é aliado essencial. Contudo, se não somos egoístas por  natureza  (humanismo  liberal)  também  não somos  altruístas  por  natureza  (humanismo  ingê‐nuo). A  cooperação  é  condição  inevitável  para  o avanço de nossos potenciais, mas  isso não signifi‐ca que toda e qualquer relação social nos permita ir  além.  De  fato,  poderíamos  ainda  acrescentar que nem  toda cooperação, sendo para o bem de um dado grupo, necessariamente o é para o bem da humanidade. Fascistas podem cooperar visan‐do a derrota da democracia,  liberais podem coo‐perar  formando  cartéis monopolistas, dizendo‐se democratas, etc. Então, nesses casos, a superação pode  estar  sendo  vista  não  como  um  constante processo  de  todos  e  cada  um  desafiarem  seus próprios  limites  e  tornarem‐se  melhores  em  al‐gum  aspecto  de  sua  personalidade,  profissão  ou trabalho  criativo, mas  apenas  como  uma  forma obter mais benefícios pessoais ou  corporativos e prevalecer‐se sobre os demais. Pode haver então formas de cooperação em  função da restrição do potencial  de  avanço  do  outro,  e  até mesmo  em função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐zado poderia ser um exemplo dos mais comuns, e mesmo as guerras não deixam de ser algo seme‐lhante, ainda que num plano político bem distinto – o que têm de similar é a cooperação de um cole‐tivo para a destruição do inimigo como um ganho e uma meta. Desse modo, se nem toda ação con‐junta  leva a um aumento de  força que  tenha em 

conta  uma  cooperação mais  generalizada  e  uma superação mais elevada, cabe articular esses dois primeiros  critérios  para  o  humanismo  próprio  à abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e decisivo:  a  busca  da  emancipação  humana.  Em outras palavras: o valor ético da conquista e ma‐nutenção da  liberdade, no  seu  sentido mais pro‐fundo e substancial.  Dizer que o conceito de liberdade em Vigotski não é  liberal poderá confundir o  leitor, mas é preciso que  se entenda que  se  trata  justamente disso. O conceito de liberdade é uma construção da huma‐nidade  que  veio  sofrendo  várias  alterações  na história do ocidente, desde a antiga polis grega ao ideário da Revolução  Francesa  e desse  ao  sonho socialista, nunca plenamente  realizado, ou à pro‐posta  anarquista  auto‐gestionária,  também  pou‐cas  vezes  concretizada. Desse modo,  carregando origens histórico‐sociais diversas, os sentidos para a palavra “liberdade” também seguem sendo hoje os  mais  variados.  Desde  os  mais  ingênuos  aos mais críticos, dos mais  idealistas aos mais concre‐tos, dos mais demagógicos aos mais  francos, dos mais  racionalistas aos mais apaixonados. Quando digo que o conceito de Vigotski não é liberal, refi‐ro‐me ao  liberalismo como  ideologia política pró‐pria do  conceito europeu dominante desde a as‐censão  da  burguesia  como  classe  hegemônica. Sem nos alongarmos sobre esse ponto, reitera‐se o  já destacado acima: o  conceito  liberal de  liber‐dade,  tanto quando o de humanismo, é pautado fundamentalmente  numa  concepção  individualis‐ta de mundo. A qual, mais das vezes, é sustentada por um discurso naturalista, pelo qual as diferen‐ças  individuais são  fruto exclusivo da herança ge‐nético‐molecular,  e  os  méritos  das  pessoas  são tratados  como  dons,  capacidades  abstratas,  com as quais foram agraciadas independentemente de educação  social  ou  desenvolvimento  histórico. Supõe‐se, portanto, que um autor como Vigotski, cujas  bases  filosófico‐metodológicas  estão  forte‐mente articuladas com uma tradição da ontologia do ser social marxista, não teria um conceito libe‐ral de  liberdade ou de emancipação humana. Há dois  pontos  que  cabe  destacar  no  conceito  de liberdade/emancipação  em  Vigotski:  (a)  trata‐se de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma conquista que se obtém cooperando com alguém e não sozinho.  

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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Não há necessidade aqui de optarmos pela pala‐vra “liberdade” em preferência à “emancipação”, nem  o  contrário.  Contudo,  entenda‐se  que  ao falarmos em  “liberdade”  concebemos o processo de  permanentemente  obtê‐la,  e  não  como  um estado ideal que atingido faz cessar a necessidade de  buscá‐lo.  E  por  “emancipação”,  entenda‐se  o mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto “movimento”. O  bebê  humano  é  o mais  depen‐dente de todos os filhotes conhecidos, o que nas‐ce menos preparado, o que demora mais  tempo para  atingir  a  forma  adulta,  o  que  precisa mais aquisições  do  ambiente  para  justamente  poder lidar com ele. Sendo assim, é certo que não nas‐cemos  livres, nem autônomos. Portanto, todo um desenvolvimento humano é necessário para  con‐quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐to  e  de  ação,  ou mesmo  independência  afetiva. Esse curso de desenvolvimento, na concepção de Vigotski, vai  “do  social ao  individual”. A ênfase é distinta  da  de  autores  como  Freud  e  Piaget  (ver BRUNER,  2005),  para  quem  a  criança  é  um  ser individual  que  só  progressivamente  se  socializa. Na  perspectiva  da  abordagem  histórico‐cultural, nascemos  já em mundo social, e só podemos nos manter vivos  se em contato com outras pessoas. Assim,  pela  mediação  delas,  processualmente, vamos  nos  diferenciando  e  nos  “subjetivando”, tomando consciência de nossa própria existência, constituindo  nosso mundo  privado  e  assumindo um  lugar específico no mundo público no qual  já estávamos situados desde sempre.   Desse  modo,  não  há  qualquer  liberdade  a  ser constituída  que  não  passe  pela  relação  com  os outros. As  próprias  regras  que,  desde  pequenos, aprendemos  com os  adultos  e  com outras  crian‐ças, são condição de possibilidade para o alcance de maior autonomia e  liberdade de pensamento, ação e afeto, e não necessariamente  impedimen‐to.  As modalidades  de  relação  social  que  sejam impeditivas da autonomia humana não são consi‐deradas,  como  em  outras  teorias,  algo  natural  e regra  inevitável  do  desenvolvimento  psicológico, mas  formas  historicamente  constituídas  que  po‐dem  predominar  ou  não.  As  quais,  por  sua  vez, estão em constante  tensão com aquelas  relações que  proporcionam  o  avanço  para  modos  mais integrados de compor com o mundo e de obter e exercer  maior  poder  de  realização  junto  a  ele. Pensemos  apenas  no  exemplo  da  brincadeira  da 

criança, na qual para haver um  simples  jogo  são necessárias  regras, mas brincar não  só nos pode ser aprazível,  como  também permitir‐nos  ir além do que está posto de  imediato  frente aos nossos olhos,  avançando  ao  distante  no  tempo  ou  no espaço  no  ato  da  imaginação  criadora.  Por  fim poderíamos,  de  passagem,  destacar  que,  em  Vi‐gotski, o conceito de  liberdade alia‐se ao de von‐tade, o qual por sua vez se  traduz pelos atos hu‐manos  que  envolvem  uma  tomada  de  decisão, uma escolha. Diante de duas opções o ser humano necessita um ato volitivo para decidir o que have‐rá  de  obter  (realizar)  e  o  que  haverá  de  perder (deixar de realizar). Nessa decisão, na tensão que ela  envolve,  está  posta  nossa  possibilidade  de superação  com  relação  aos  determinantes  de cunho  estritamente  condicionados  pelos  estímu‐los do meio. Essas ações de escolher, por sua vez, passam por um processo de desenvolvimento ao longo  de  nossas  vidas,  que  é  o  desenvolvimento de nossa própria vontade ou “volição”.  Em  seu estudo  sobre o “domínio da própria con‐duta”,  Vigotski  (1931/2000b)  explora mais  deta‐lhadamente  esses  aspetos. Num dado momento, ele  retoma Marx  e  Engels  para  destacar  que  “o livre arbítrio (...) não significa mais do que a capa‐cidade  de  tomar  decisões  com  conhecimento  do assunto”  (apud  VIGOTSKI,  1931/2000b,  p.  300). Desse modo,  as  decisões mais  livres  não  seriam aquelas  que  tão  somente  se  toma  com  base  no impulso, no  fazer “como eu quero” ou “tudo que quero”, como dito no senso comum – pelo qual a ideologia  liberal  perpassa. Até  porque  uma  ação tão somente “por querer”, sem que se  intuam os motivos  pelos  quais  se  deseja,  pode não  ser  tão livre  quanto  se  imagine. Nota‐se  que  o  conceito de  liberdade  aliado  ao  processo  de  tomada  de consciência  crítica,  isto  é, de percepção da dinâ‐mica contraditória do  real,  lembra o conceito es‐pinosiano de emancipação, como relativa à supe‐ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐ção de paixões tristes, de receios,  idéias e afetos, que nos  imobilizem, por desconhecermos as cau‐sas  reais das  coisas. E  também por, desse modo, ignorarmos  as  nossas  próprias  possibilidades  e limitações com relação à transformação ou manu‐tenção  do mundo  que  aí  está.  Vigotski  assume, embora não explicite em quais termos, a  identifi‐cação de  seus  ideais éticos com os de Baruch de Espinosa:  “Não podemos deixar de  assinalar que nossa idéia da liberdade e o autodomínio coincide 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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com  as  idéias  que  Espinosa  desenvolveu  em  sua “Ética””  (VIGOTSKI,  1931/2000b,  p.  301).  Caberá aprofundar  as  formulações  aqui  apresentadas. Mas, articulando  indícios e arriscando nossa pró‐pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário emancipatório em Vigotski com a busca social (na então União Soviética) de desenvolver o chamado “novo  homem  socialista”.  Tal  noção  implicaria  a ampliação das  capacidades  simbólicas  e  culturais de  cada pessoa num  contexto  societário  livre da expropriação  de  uma  classe  por  outra  (ver  VI‐GOTSKI, 1930/1994).  Isto pode ser sintetizado no dito marxiano  sobre  o movimento  de  irmos  “do reino da necessidade, para o reino da  liberdade”. Algo que ainda não aconteceu na história da hu‐manidade.  1.2  Contradições  enfrentadas  pelo  psicólogo  que se orienta por um humanismo  crítico  e o  critério ontológico  da  historicidade  como  recurso  perti‐nente  Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐tiva histórico‐cultural,  tal  como  lida  aqui,  implica um movimento de negação dos valores dominan‐tes, bem poderíamos  atribuir  a  tal humanismo o adjetivo de  “crítico”. Contudo, apenas o  façamos com o cuidado de não substantivar esse adjetivo, para  não  criar  rótulos  que mais  sirvam  para  dis‐tanciar  pessoas  com metas  comuns  do  que  para aproximá‐las em projetos de  cooperação por um bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐erente por decidir qual seria o “melhor humanis‐mo”. Até porque “humanista”  já fora desde o  iní‐cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐rio  fundamental  para  a  psicologia  de  orientação histórico‐cultural.  Disse  Karl Marx  que:  “é  certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser der‐rocado pelo poder material, mas também a teoria se transforma em poder material logo que se apo‐dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das  massas  quando  argumenta  ad  hominem,  e argumenta ad hominem quando  se  torna  radical: ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem”  (apud CHA‐SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se argumenta  “ad  hominem”,  não  aqui  no  sentido vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐lificando as características pessoais do outro para assim  destituir  de  valor  o  seu  argumento  sem, 

contudo, mostrar em que tal argumento é falho – recurso muito usado por alguns advogados, jorna‐listas, políticos e pseudo‐intelectuais. Mas sim no sentido mais  profundo  de  argumentar  “junto  ao homem”,  interpelando‐o  em  sua  existência  con‐creta,  pedindo‐lhe  coerência  entre  palavras  e  vi‐vências,  falando‐lhe de coisas que  lhe digam  res‐peito pessoalmente e não apenas “em abstrato”, solicitando‐lhe  responsabilidade  e  tomada  de atitude.  Evidentemente, para virmos um dia a argumentar assim precisaremos voltar o mesmo  recurso para nós mesmos – do  contrário, na ética do discurso poderá  predominar  a  ação  estratégica  sobre  a comunicativa5,  nos  termos  de  Habermas  (1989). De  todo modo,  se no  exemplo de  Puzirei o  “ho‐mem  no  homem”  é  o  que  se  extrai  para  o mais alto, na fala de Marx é o que se retira do profun‐do,  em  suas  raízes,  ou  seja,  em  nós mesmos  – animais  simbólicos,  sociais  e  históricos.  Sendo assim,  a  realização  da  emancipação,  como  con‐quista permanente de maior  liberdade será social não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐cionar  com  outras  pessoas  para  desenvolver  sua capacidade de  escolher, decidir  voluntariamente, mas  também por algo mais. O processo social de emancipação humana não é relativo só à emanci‐pação de cada um, mas à de  todo o conjunto da sociedade,  na  construção  de  práticas  democráti‐cas de convívio e de gestão do que é de interesse público.  Sabemos,  contudo, que  em nossa  socie‐dade,  as  restrições  são  fortíssimas. Nossa  demo‐cracia é  frágil, nossas  instituições não são confiá‐veis. E a  ideologia de uma “liberdade” em termos liberais,  de  jargões  como  “cada  um  para  si”  ou “leve  vantagem  você  também”,  é  hegemônica. Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto a agir ou não agir, com  relação a esse estado de coisas.  Se Marx  fala do  confronto entre  arma da crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus politicus”  também  recorre  a  termos  bélicos  para 

5  Na ética do discurso de Habermas (1989), o agir estratégico é tido como aquele em que nós argumentamos tão somente para sobrepujar a posição do outro e convencê‐lo, enquanto no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente tendo  como  objetivo  a  busca  da  verdade.  Ainda  segundo analistas dessa teoria, os dois modos de agir não se polarizam de  forma pura e  ideal, mas na prática  logram  influenciar‐se mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou seja, de contradição inter‐constitutiva. 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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dizer  da  liberdade  humana:  “se  numa  Cidade  os cidadãos  não  tomam  das  armas  porque  estão aterrados  pelo medo,  não  se  pode  dizer  que  aí exista paz e  sim mera  ausência de  guerra. A paz não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma Cidade onde a paz é efeito da  inércia dos súditos tangidos  como um  rebanho e  feitos  apenas para servir merece antes o nome de solidão do que de Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56). 

FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS (1)  Aleksis Nikolaevitch  Leontiev  (1903‐1979);  (2)  Lidia  Il’initchna  Bojovitch(1908‐1981);  (3) Aleksandr Romanovitch Luria  (1902‐1977);  (4) Serguei Leo‐nidovitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984). 

 Não  é  necessário nos alongarmos a‐qui  no  diagnósti‐ co  da  sociedade contemporânea, dita  “pós‐moder‐na”,  também  de‐nominada  “neoli‐iberal”.  Trata‐se de  conteúdo  cor‐rente  nas  refle‐xões críticas sobre políticas públicas e as que dedicam‐se a  algum  tipo  de análise  das  insti‐tuições  atuais. Contudo,  fica  pos‐ta uma  tensão en‐tre  os  valores  que são o fundamento da ética da abordagem históri‐co‐cultural, tal como a  lemos, e os valores privile‐giados no mundo contemporâneo, de modo geral, mais drasticamente em países periféricos e subal‐ternos  como  o  Brasil.  Como  agir  de  acordo  com valores  como  os  da  psicologia  vigotskiana,  num país  em  que  tais  valores  hegemonicamente  são tidos como antiquados ou mesmo utópicos, quan‐do não  inexistentes ou totalmente  ignorados? De fato, o marcador  semântico para nós  importante nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que é  “hegemônico”  é  predominante,  o  que mais  se destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐rias, mas  não  é  o  “absoluto”,  não  prevalece  de modo  homogêneo,  não  existe  sem  fissuras  –  as quais podem  surgir  como  contestações organiza‐das,  como  desobediência  civil,  ou  ainda  como fraturas e convulsões de cunho  retrógrado. A  so‐ciedade  na  qual  foi  criada  a  teoria  histórico‐cultural não existe mais, foi derrotada na chamada “Guerra Fria”. Ela mesma, por sua vez, durante o 

tempo  que  existiu  não  chegou  a  atingir  todo  o projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja indício justo disso.  Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐res  soviéticos  como Vigotski,  Luria,  Leontiev, Ru‐binstein,  Elkonin  e  Bojovitch  (ver  figura  1)  vêm cobrar  sentido,  o  ser  humano  nem  sempre  é  o valor  central  e,  quando  sim,  geralmente  o  é  em termos  liberais  ou  ingênuos.  Nossa  atitude  não pode  ser  muito  mais  que  a  de  distanciamento 

crítico.  Como  disse meu  colega  o  pro‐fessor  Luiz  Lastória (com.  pessoal, 1998),  parafrasean‐do Adorno: “Se não há  cura,  aprofunda o diagnóstico”. Pro‐postas  apressadas de  “cura”,  sem  o conhecimento  real do  que  gera  os “sintomas”  pode implicar  fatores etiológicos  hiatro‐gênicos,  isto  é,  fa‐tores  patológicos gerados  pela  pró‐pria  ação  do  trata‐mento.  O  que  nos 

remete  também  ao  alerta  presente  em Hipócra‐tes, para quem a missão do profissional da saúde é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐temente,  estamos  usando  termos  médicos  de modo metafórico, não é esse nosso papel  social. Mas  trata‐se  de  uma  analogia  que  pode  ajudar‐nos  a  refletir. Pode‐se  a ela  adicionar que  “diag‐nosticar” não é um ato passivo e descompromis‐sado. Diagnosticar  é,  na  raiz  grega,  conhecer  “a‐travessando”  a  realidade,  ou  seja,  desde  o  pro‐fundo ao elevado, não  se  trata do  sentido vulgar da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐rio  compromisso,  com  o  ato  de  conhecer  e  com aquele que se deseja conhecer, na relação com o qual passaremos também a nos conhecer melhor, posto que estamos falando de um conjunto social do qual fazemos parte, desde que nascemos. Não são as pessoas com quem trabalhamos objeto de piedade  ou  caridade, mas  sujeitos  co‐autores  do mesmo processo histórico em que estamos inseri‐dos e que (re)produzimos diariamente. 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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Desse  modo,  em  suma,  cabe  destacar  que  aos princípios  éticos  aqui  insinuados,  comentados, acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐te  abordá‐los  com mais  visibilidade.  Trata‐se  do princípio  da  historicidade  dos  valores.  Se  nossas relações com as pessoas, nossos modos de simbo‐lizar  o  mundo  mediante  a  linguagem  e  de  agir sobre  ele  mediante  o  uso  de  instrumentos,  se constituem historicamente, o mesmo se aplica aos nossos valores morais,  isto é, à nossa ética. Nos‐sos valores  se constituem historicamente, e  tam‐bém só historicamente podem se consolidar ou se enfraquecerem  dando  lugar  a  outros.  A  história implica contradições e  lutas entre projetos políti‐cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐ção  a  realização  e/ou  transformação  dos  nossos valores pode ocorrer. A busca de cooperação em função  de  superação  constante,  como  conquista de uma mais potente emancipação humana, cons‐titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas é uma  interpelação que está posta. Trabalhar  ins‐tigados  por  tal  desafio  é  como  assumir  um  dito que  ouvi  de  Paulo  Freire  em  Curitiba,  em  12  de junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer hoje para que o que não é possível fazer hoje seja feito  amanhã”.  Os  limites  do  possível,  segundo Vigotski, se ampliam na relação com o outro6 (ver VIGOTSKI,  1935/1989)7,  tanto  quanto  podem  se estreitar dependendo de  como nos  relacionemos com esse outro e de quem é ele ou pode ser para nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar, se possível, pelas relações mais potencializadoras. Descobrir  quando  é  possível  ou  não,  no mesmo ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio exercício da ética.   1.3 O método construtivo e a psicologia como constitutiva da vida humana  Por  fim,  tendo  já  falado sobre o critério metodo‐lógico  da  crítica  e  o  ontológico  da  historicidade, como suportes para a ética, coloquemos também 

6 Sobre a teorização da superação dos  limites no desenvolvi‐mento  humano  ontogenético  e microgenético, mediante  o conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29. 7 A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a data de quando o  trabalho  teria  sido  concluído. Trata‐se de uma publicação póstuma,  já que Vigotski morreu em 11 de junho de 1934. 

o  critério  do  chamado  “método  construtivo”,  tal como  concebido  por  Vigotski,  pois  elucida  um pouco  o  já  falado  sobre  o  “aprofundamento  do diagnóstico”,  como um  ato no qual nos envolve‐mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma, diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐tência  social e experiência histórica, no papel de psicólogos que não  se desvincula dos nossos de‐mais  lugares  simbólicos.  Vejo  esse momento  da discussão  com um ponto de  conexão  importante entre os valores gerais e a proposta de atuação do psicólogo que se orienta numa perspectiva histó‐rico‐cultural. Nesse sentido retomo uma discussão já proposta anteriormente  (DELARI  JR., 2000), na qual  me  deparava  com  a  trama  de  inter‐constituição  das  linguagens  teóricas  que  assumi‐mos com a constituição de nossa própria subjeti‐vidade,  consciência  e  personalidade.  De  fato,  o vínculo profundo dos valores éticos com a prática social e então com a prática profissional com um momento  importante  dela,  em  psicologia,  está associado ao problema das relações entre o “abs‐trato”  e  o  “concreto”.  Para  o marxismo  não  há como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐ção, porque o concreto não é mais  só o “empíri‐co”, ou  seja, a experiência pela experiência. Para entendermos  determinações  concretas  da  reali‐dade é preciso olhar para além do que se apresen‐ta  diretamente  aos  sentidos,  ver  o  que  não  se mostra,  ouvir  o  que  não  foi  dito,  conectar,  rela‐cionar,  imaginar,  interpretar,  logo “abstrair”. Nes‐se  sentido  entende‐se  a  proposição  de Marx  de que é preciso “ascender ao concreto”. Ele é uma meta elevada, não  só ponto de partida eventual. Mas  para  alcançarmos  o  concreto,  a  abstração não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a vida  social,  com  as necessidades  e  lutas de  cada sociedade.  Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐ria  ao  cientista,  ao  psicólogo  crítico,  também  é certo que nem  sempre conseguimos ascender ao concreto. Para Puzirei, o fato de Vigotski dizer que sua “história do desenvolvimento cultural é a ela‐boração  abstrata  da  psicologia  concreta.”  (1929/ 2000,  p.  35)  seria  como  uma  “autocrítica”  que “não apenas mostra a  liberdade e espírito crítico com que ele avaliava sua própria obra, mas  tam‐bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento teria formulado um projeto no qual Vigotski “via a ‘linha geral’ do desenvolvimento posterior da psi‐

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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cologia  histórico‐cultural.  Esta  tendência  poderia significar  uma  superação  radical  do  ‘academicis‐mo’ na psicologia  tradicional”  (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal projeto para o  futuro, visto do  tempo de Vigotski, nos interessa hoje no século XXI, embora as condições da psicologia atual não sejam muito melhores que as do período em que a perspectiva histórico‐cultural  surgiu.  Trata‐se  de  um  projeto que  solicita:  “um  movimento  em  direção  a  um tipo  completamente  novo  de  investigação,  que, em virtude de alguns dos aspectos  fundamentais do seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em desenvolvimento,  e  de  exigências  fundamentais (derivadas  deste  último)  de  seus métodos,  a  sa‐ber,  externalização  e  análise,  deve,  ele  próprio, ser  implementado  dentro  do  quadro  organizado de alguma prática psicotécnica, servindo como um órgão  necessário  que  torna  possível  a  projeção, realização, reprodução e desenvolvimento dirigido dessa prática. Esse projeto de reestruturação radi‐cal da psicologia permanece essencialmente irrea‐lizado  na  história  subseqüente  da  psicologia.” (PUZIREI, 1989a, p. 76) 

 A psicologia concreta proposta por Vigotski convi‐da, assim, a uma mudança  radical em nossa pró‐pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida e  conduzida  como  um  componente  da  própria constituição dos fenômenos ou processos que ela mesma estuda, como ciência, e com os quais ela atua,  como profissão. Trata‐se de  algo  sério, por evidenciar  nossa  grande  responsabilidade.  Ao mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐tido de ser coerente com o que a própria aborda‐gem postula em seus conceitos sobre a constitui‐ção do humano, como ser social, simbólico e his‐tórico. Coerente  com  seus  conceitos psicológicos (teóricos) e metodológicos  (meta‐teóricos). Psico‐lógicos como os de que “toda a palavra é  já uma teoria”, um modo de generalizar a realidade, e de que a consciência se constitui justamente median‐te o significado da palavra. Metodológicos como o de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste sentido cabe dizer que no começo da ciência esta‐va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita de corpo inteiro, que o humano realiza o específi‐co da  sua existência  social e histórica,  é possível deduzirmos  que  as  palavras  de  uma  abordagem passam,  de  algum modo,  a  ser  constitutivas  das pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐sam a  trabalhar. Na medida em que nosso  traba‐

lho é  também e sempre um  trabalho com os ou‐tros, os nossos valores, os valores da abordagem que  assumimos  justamente  por  serem  condizen‐tes  com os nossos ou por  sentirmos que podem potencializá‐los, passarão a  interagir com os valo‐res  de  nossos  interlocutores,  as  pessoas  com quem  trabalhamos,  tensionando  com  eles, numa relação em que nos enriquecemos mutuamente e nos  refazemos  constantemente,  se  para  tanto houver disposição.  Sobre  o  processo  pelo  qual  nosso  trabalho  com‐põe‐se  com  nossa  própria  personalidade  e  a  da‐queles  com  quem  nele  dialogamos,  deixo  uma última  sugestão  de  reflexão  sobre  o  chamado “método  construtivo”  em  pesquisa  psicológica. Vejo‐o  como  pertinente  também  para  a  prática profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐cava, na  citação acima,  sobre a articulação entre método de  investigação e “prática psicotécnica”8. Vigotski diz que  “um método  construtivo  implica duas  coisas:  (1)  ele  estuda  antes  construções  do que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐trói  um  processo”  (VIGOTSKI,  1929/1989,  p.  55). “Construções” aqui está  como  sinônimo de  “pro‐cessos  constituídos  culturalmente”,  aqueles  que não  são dados pela natureza  em  seu  estado pri‐meiro,  mas  emergem  nela,  pela  transformação dela mediante a ação humana, planejada, dirigida a  metas,  visando  atender  nossas  necessidades básicas e as que  criamos  socialmente, para além delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐co‐culturais,  símbolos,  instrumentos,  modos  de usá‐los,  relações humanas, papéis  sociais, experi‐ências  partilhadas,  modos  de  organizar  nossas rotinas, procedimentos  institucionais ou a contes‐tação deles, enfim. Criações que, ao  serem  reali‐zadas por nós,  realizam  ao mesmo  tempo o que somos. Trata‐se então de um método de  investi‐gação,  e  porque  não  dizer  de  trabalho  também, no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐bém  os  construímos  culturalmente,  com  nossos atos,  nossa  linguagem  e  nossa  sensibilidade.  Tal 

8 Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐técnica”, também traduzido como “psicotecnia” (em VIGOTS‐KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐a”,  como  se  tornou  comum  no  nosso  contexto  cultural. Ao contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente com  relação  à  aplicação  prática  da  psicologia  frente  às  de‐mandas concretas da sociedade, na educação, na clínica, no mundo do trabalho, etc.  

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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concepção sustenta a afirmação anterior de Puzi‐rei  de  que  a  perspectiva  iniciada  por  Vigotski  se orienta para uma superação do academicismo em psicologia. Trata‐se  justamente de uma psicologia que não recorre à “assepsia” para lidar com a rea‐lidade de  seu  trabalho, mas a  toca “de mãos nu‐as”, assumindo com ela um compromisso de com‐posição  partilhada.  Dessa maneira  os  valores  de que  falamos  aqui  estão  implicados na  ação  e no método, orientado às metas que eles definem. E abre‐se  para  nós  o  convite  para  produzir  uma prática  profissional  do  psicólogo  que  pronuncia uma “palavra que realmente significa e é respon‐sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196).   2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histórico‐cultural 

 “Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐cam o problema da psicologia geral como um problema de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não partem dos  filósofos  (...) nem dos psicólogos  teóricos, mas  dos  psicólogos  práticos,  que  estudam  aspectos concretos da psicologia aplicada (...)” 

 — Vigotski (1927/1996, p. 203) 

 O conceito de psicologia geral na obra de Vigotski, tanto quanto na tradição russo‐soviética como um todo, diferencia‐se do conceito escolar de “psico‐logia  geral”  com  o  qual  comumente  lidamos  nas faculdades dessa área, e que nos faz lembrar uma série de conteúdos  introdutórios superficiais, não necessariamente  conectados numa  lógica  teórica mais  abrangente  que  lhes  confira  coerência.  As‐sim,  na  psicologia  acadêmica  que  conhecemos, “psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐mico  por  sobre  um  território  desconhecido,  do que  como  área  científica  relevante  para  o  nosso trabalho do profissional. Na psicologia soviética o significado da palavra é distinto. Psicologia geral é o campo da ciência psicológica que  trata de seus fundamentos,  de  seus  princípios  articuladores mais profundos, das categorias meta‐teóricas que visam organizar  a discussão,  como: o  “objeto de estudo”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de análise” necessária para e investigação; e o “modo de proceder” a própria análise, ligado às interven‐ções  sobre  a  realidade  que  ele  comporta.  Com inspiração nessa orientação, como eu  já disse em outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐ta do psicólogo não é sinônimo de saber “introdu‐

tório”  ou  “abreviado”  sobre  cada  aspecto  da  vi‐vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas o que  implica uma visão articulada e profunda do conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐tornos de alguns princípios essenciais na psicolo‐gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐fundamento  desses  princípios  se  desenvolverá com  o  nosso  estudo  posterior,  tendo  em  vista  a prática  social  do  psicólogo  e  os  princípios  éticos que  a  orientam.  Organizei  a  exposição  aqui  se‐gundo os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐de psicofísica;  (2.2) Princípio da determinação da consciência  pela  existência  social;  (2.3)  Princípio da  consciência  como  psiquismo  propriamente humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐ciência  mediante  unidades;  (2.5)  Princípio  da compreensão do psiquismo humano mediante sua gênese.  2.1 Princípio da unidade psicofísica  Segundo  Serguei  Rubinstein  “O  princípio  da  uni‐dade psicofísica é o princípio mais  importante da psicologia  soviética”  (1972, p. 40). Estamos habi‐tuados a formar a partir da palavra “psicofísica” a imagem do trabalho de laboratório com os aspec‐tos fisiológicos do funcionamento mental humano ou  animal. Contudo,  aqui o  significado do  termo posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐fico  e  de  orientação  genérica.  Lembremos  que “psikhe”  para  os  antigos  gregos  era  o  “sopro  vi‐tal”,  nosso  “impulso  de  vida”,  “aquilo  que  nos move”,  e  depois  para  alguns  também  “alma”  ou “mente”,  e  que  “physis”  denotava  a  natureza, todo o mundo natural. Intuiremos então que uma unidade entre o psíquico e o  físico é a uma  inte‐gração entre o que chamamos de funções mentais e a natureza como um todo. Dito de outro modo, nada  na  psique  humana  é  considerado,  nessa  a‐bordagem,  como  “sobrenatural”,  “sobre‐huma‐no”,  substancialmente distinto do que  compõe o âmbito  tangível  e  inteligível  do  real.  No  que  a perspectiva  histórico‐cultural  vai  numa  direção diferente de grande parte das psicologias surgidas no final do século XIX e desenvolvidas ao longo do século  XX,  as quais  trazem  fortes  traços do dua‐lismo mente  e  corpo,  psíquico  e  físico,  herança platonista e  cartesiana. O mesmo monismo, des‐tacado  por  Rubinstein,  aparece  também  em  Vi‐gotski, para quem  “a psique não aparece  isolada do mundo  ou  dos  processos  do  organismo  nem por  um  milésimo  de  segundo”  (1926/1991,  p. 

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150). É preciso olhar com atenção para essa pro‐posição, pois  já entrou para o senso comum aca‐dêmico o conceito de que “o homem não é um ser biológico, mas  sim  social,  cultural, histórico”.  Tal oposição,  embora  esteja  correta  no  seu  sentido  mais geral, não pode  ser  tomada ao pé da  letra. Posto que sem a materialidade corporal, sem nos‐sos  órgãos  vitais,  sem  nossa  existência material, também não há ser humano algum. O que a frase acima  significaria,  se  apresentada  de  um  modo mais criterioso, é que “a constituição biológica do homem  é  de  tal  ordem  que  ela  não  basta  a  si mesma  e  exige  dele  que  disponha  de  recursos para além de seus traços orgânicos hereditários”. O animal Homo sapiens precisa  recorrer a outros de sua espécie para realizar a sua existência, para fazê‐lo  utiliza‐se  de  mediações  próprias  a  uma dada  cultura,  criadas,  transmitidas  e  desenvolvi‐das  historicamente. O  bebê  humano  não  desen‐volve  funções psíquicas  superiores  sem  a media‐ção do outro e da cultura, linguagem e instrumen‐tos. Mas  também,  por mais meios  culturais  que déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐co para isso.  O  princípio  da  unidade  psicofísica marca  filosofi‐camente  que  somos  uma  totalidade  psíquica  e física,  mental  e  corporal,  biológica  e  cultural.  E esses pares não jogam seus papéis complementa‐res como “substâncias” opostas de modo antagô‐nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só existem um em  relação ao outro,  contradizendo‐se  e  compondo‐se mutuamente,  na medida  em que  juntos  formam  uma  só  realidade.  Trata‐se, assim, de aspectos, momentos, modos de ser, de uma  mesma  substância,  uma  mesma  unidade dinâmica, extremamente complexa e contraditória que é a realidade material – a totalidade da exis‐tência em suas múltipas determinações e diversos planos de organização. É  interessante, nesse sen‐tido, o resgate de Vigotski à obra de Espinosa, ao valorizar  o  papel  do  corpo:  “até  hoje  ninguém definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem que  seria  impossível  deduzir  apenas  das  leis  da Natureza,  uma  vez  considerada  exclusivamente como corpórea, as causas das edificações arquite‐tônicas,  da  pintura  e  coisas  afins  que  só  a  arte humana produz, e que o corpo humano não con‐seguiria construir nenhum templo se não estivesse determinado e dirigido pela alma, mas eu já mos‐trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o 

corpo e o que  concluir do  simples exame de  sua natureza”  (apud  VIGOTSKI  1925/1999,  p.  IX).  É difícil para nós, habituados ao dualismo platônico e  cartesiano presente na  formação do psicólogo, concebermos  isto: como pode um corpo produzir obras de arte? Como pode um ser humano produ‐zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐ma”  que  o  guie? Mas  entendamos  apenas  o  se‐guinte: não se trata de que autor nos veja criando realidades  culturais  como  se  fôssemos  “autôma‐tos”, sem  imaginar, conceber, projetar, sem o ato de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo monismo de Espinosa entender que “o corpo age, pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐bém o  sentir, das  emoções mais básicas  às mais sutis,  tais quais  as de  cunho  estético. Não preci‐samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐tural,  insondável,  inexplicável,  incompreensível, para que nos  reconhecermos  capazes de  realiza‐ções culturais diversas, no  interior das  leis dialéti‐cas da própria natureza, no sentido amplo da pa‐lavra, da qual não estamos  isolados “nem por um milésimo de segundo”. Nesse princípio se apóia o posterior  quanto  às  relações  entre  consciência  e existência,  sobretudo  entendida  como  existência social.  2.2 Princípio da determinação da consciência pela existência social  No  tópico  anterior destacamos que não estamos alienados da natureza, não somos seres sobrena‐turais,  supra‐ordenados,  reinando  sobre  toda  a criação.  Precisamos  pertencer  à  natureza  para nela poder viver e virmos a entender que estamos vivos,  que  morreremos.  Fenômenos  físicos  são necessários para existir vida na Terra,  fenômenos biológicos  são  constitutivos  da  vida  humana,  se não  por  inúmeras  condições  orgânicas,  que  seja tão  somente  pelo  falto  dela  ser  ainda  “vida”  – “bios”  (βίος  ). Mas a  isto cabe acrescentar que o nosso modo de realizar um momento da realidade material da qual  fazemos parte  tem  sua especifi‐cidade, sua singularidade, seu modo particular de ser  e  devir.  Considerando  a  formação  social  da consciência como tema fundamental para a psico‐logia histórico‐cultural, podemos articular que não apenas somos parte viva da natureza, como tam‐bém nosso modo específico, distintivo de realizar nosso  lugar  dentro  dela,  ao mesmo  tempo,  nos 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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diferencia  das  demais  formas  de  seres  naturais. Um traço marcante para tal distinção está no fato de  que  o  homem  é,  como  diz  Aristóteles,  “zoon politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐ção biológica nos dá bases para que  isso ocorra: por um lado, pela fragilidade do nosso filhote que para  se  desenvolver  e  garantir  sua  própria  exis‐tência demanda mais alguém com quem  interagir por  tempo  prolongado;  por  outro,  pela  grande complexidade  de  nosso  aparato  neurofuncional, que nos permite a utilização  complexa de  instru‐mentos  e  signos  e  nos  demanda  que  eles  sejam utilizados para que nosso próprio  cérebro  se de‐senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐ção  sistêmica.  Sem  entrarmos  no mérito  da  dis‐cussão evolutiva sobre como essas características vieram a surgir gerando os primeiros seres huma‐nos, o  fato é que  somos animais para os quais a existência  sobre o planeta não é possível  sem as relações  sociais. As quais por  sua vez  são media‐das  pela  linguagem,  produto  da  própria  prática humana  e  que  se  materializa  na  cultura  e  se transmite e  se  transforma de  geração para gera‐ção.   Sendo o homem frente à natureza não um “impé‐rio  dentro  do  império”,  como  critica  Espinosa (1979), mas  um momento  singular  de  realização dela,  o  pensamento  marxista  indica  assim  uma relação de determinação da consciência pela vida, entendida como vida social. No seu texto “A cons‐ciência como problema da psicologia do compor‐tamento” Vigotski diz que “a existência determina a consciência”  (VIGOTSKI, 1925/2005, p. 37)9. Ele está parafraseando Marx e Engels em “A ideologia alemã”: “Moral,  religião, metafísica e  todo o  res‐tante da ideologia e suas formas correspondentes de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐to  de  sua  independência.  Elas  não  têm  história nem  evolução;  mas  os  homens,  desenvolvendo sua produção material e seu intercâmbio material, alteram, a par disso, sua existência real, seu pen‐

9  Cito  aqui  versão  russa  apenas  porque  nessa  passagem,  a edição  brasileira  (VIGOTSKI,  1925/1996)  contém  um  erro também  presente  na  edição  espanhola  (VIGOTSKI,  1925/ 1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a experiência determina a consciência”  (VIGOTSKI, 1925/1996, p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI, 1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie) determina a consciência”. 

samento e os produtos deste. A vida não é deter‐minada pela  consciência, mas  esta pela  vida. No primeiro método de abordagem, o ponto de par‐tida  é  a  consciência  tomada  como  o  indivíduo vivo; no segundo, são os próprios indivíduos vivos reais, tal como são na vida concreta, e a consciên‐cia  é  considerada  unicamente  como  consciência deles"  (MARX  &  ENGELS,  1983,  p.  172  –  grifo meu). Os aspectos  ideológicos, culturais, não teri‐am história autônoma, posto que, são produções da  existência  humana,  não  existem  independen‐temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que poderíamos  acrescentar  “o  sentimento  é  o  ho‐mem sentindo” ou “a atividade é homem agindo”, são movimentos nossos, são processos e não en‐tidades com vida própria. Quem toma consciência, sente  e  age  é  o  homem. Mas  quem  é  homem? Nessa  abordagem,  o  homem,  como  já  foi  dito  é um  “ser  social”.  Digamos  que  só  nesses  termos podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o que ele é”.  Dizer que o homem é um ser social  requer ainda algumas especificações, pois há muitos sentidos e muitos modos de existir do social. Essa discussão, como as demais já levantadas, não se esgota aqui, mas para uma organização  introdutória eu gosta‐ria de destacar apenas cinco planos articulados e interdependentes  da  existência  social  com  os quais podemos  trabalhar em psicologia histórico‐cultural, embora outros possam ser acrescentados e alguns deles tenham sido mais abordados que os demais nas obras de Vigotski às quais tenho aces‐so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐ais  institucionais;  (c)  relações  sociais  grupais;  (d) relações  sociais  intersubjetivas;  (e)  relações  soci‐ais no plano do indivíduo, na dinâmica e estrutura de  sua personalidade. Nas obras de Vigotski que tive oportunidade de  ler, desses  cinco pontos os três que mais se destacam e se explicitam são as relações  sociais  de  classe,  as  intersubjetivas  e aquelas no plano do  indivíduo em  sua personali‐dade social. Pensar na articulação com esses pla‐nos  o  papel  dos  grupos  e  das  instituições  é  um desafio importante e atual, de todo modo isso não poderá se dar, nessa abordagem, sem  integração com  os  demais  processos,  aos  quais  nos  detere‐mos aqui. Em primeiro  lugar a abordagem de Vi‐gotski a relação entre a  formação e/ou desenvol‐vimento do psiquismo e a pertença do indivíduo a 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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uma  dada  classe  social  não  é mecanicista.  Se  a pertença  de  cada  um  de  nós  a  uma  classe  nos deixa  as marcas  das  práticas  e  da  ideologia  pró‐prias a ela, o que cada  ser humano particular  in‐ternaliza não são só os traços da formação coleti‐va a qual pertence, mas o conjunto das contradi‐ções  pertinentes  à  luta  entre  classes  no  seio  da sociedade como um todo.  Vigotski, no seu texto “A transformação socialista do  homem”,  de  1930,  entende  que  “do mesmo modo pelo qual a vida de uma sociedade não re‐presenta um  todo singular e uniforme, e a socie‐dade  é  subdividida  em  diferentes  classes,  assim também, durante um dado período histórico, não se pode dizer que a composição das personalida‐des  humanas  represente  algo  homogêneo  e  uni‐forme, e a psicologia deve  levar em consideração o fato básico de que a tese geral que foi formula‐da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão direta:  confirmar  o  caráter  de  classe,  a  natureza de classe e as distinções de classe que são respon‐sáveis pela formação dos tipos humanos. As várias contradições  internas  que  são  encontradas  em diferentes  sistemas  sociais,  têm  sua  expressão tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐ra da psicologia humana naquele período históri‐co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sendo as rela‐ções sociais heterogêneas a formação da persona‐lidade  também não  será homogênea,  assim para compreender os conflitos próprios à nossa consti‐tuição psíquica,  cabe  contextualizá‐los no âmbito dos  conflitos  sociais mais  amplos  que  organizam as condições de nossa existência, e dos quais par‐ticipamos  inevitavelmente,  como  dirigentes  ou subalternos, como opressores ou oprimidos, como expropriadores ou expropriados, na vivência clara de  cada  papel  desses  ou  na mescla  de  posições concomitantes ou alternadas entre um e outro, de modo consciente ou não consciente. A sociedade é heterogênea tanto quanto a personalidade, mas também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐cesso  pelo  qual  se  dão  as  transições  recíprocas entre  relações sociais de classe e  relações sociais de um homem singular consigo mesmo. A relação entre  indivíduo e sociedade não é de simples có‐pia ou repetição mecânica. Há transformações de um plano a outro.   Isso  coloca  questões  para  a  psicologia.  Pois  não basta  saber que determinada pessoa  é de  classe trabalhadora ou burguesa para disso deduzir  sua 

personalidade, seu modo de agir, sentir e pensar, os significados e sentidos que atribui para o mun‐do, para os outros e para si. Senão vejamos o que diz  também Vigotski em outro  texto:  “Queremos comparar o operário  com o burguês. O  fato não consiste como pensava W. Sombart, em que para o burguês o principal seja a avareza, em que tenha havido  uma  seleção  biológica  de  pessoas  avaras para as quais o  fundamental é a mesquinhez e a acumulação.  Admito  que  existem muitos  operá‐rios mais avaros que os burgueses. A essência da questão  não  consiste  em  que  o  papel  social  se deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria‐se  uma  série  de  conexões  caracterológicas.  Os traços sociais e de classe formam‐se no homem a partir  de  sistemas  interiorizados,  que  nada mais são  do  que  os  sistemas  e  relações  sociais  entre pessoas  trasladados  para  a  personalidade”  (VI‐GOTSKI,  1930/1996,  p.  133). Não  há  um  tipo  de personalidade hereditariamente dado que tenda a ser  pertencente  a  uma  classe  ou  outra  por  suas aptidões  inatas,  isso é o mais óbvio, embora não menos verdadeiro. Mas também, e tão  importan‐te quanto, cabe destacar que não há  relação  iso‐mórfica entre a pertença de  classe e a  formação do  caráter  e  personalidade  de  cada  um.  Isso  é mediado por relações complexas no seio de cada interação intersubjetiva que vamos estabelecendo em meio  aos  grupos  de  que  fazemos  parte,  na família, na escola, nas práticas  religiosas, nos cír‐culos de amizade, nas  relações de  trabalho, e as‐sim por diante – nos quais podemos conviver com classes distintas e apreender junto a elas também distintos  modos  de  agir,  sentir  e  significar,  não sempre  de  todo  condizentes  com  os  interesses históricos de nossa própria classe social. Portanto, ao  critério  de  relações  sociais  de  classe,  cabe  a‐crescentar  na  perspectiva  da  teoria  histórico‐cultural ainda o critério das  relações  intersubjeti‐vas, mediante as quais, modos de  conversão das práticas  sociais  públicas  em  práticas  simbólicas privadas são constituídos e postos em movimento.  Como destacado por Melo (2001), duas contribui‐ções importantes da psicologia de Vigotski podem ser trazidas ao diálogo quando precisamos ampliar o  conceito  de  relações  sociais  para  além  do  de “relações  sociais  de  classe”,  mesmo  este  sendo fundamental. Trata‐se de:  (a)  sua  formulação  so‐bre  a  “lei  genética  geral do desenvolvimento”;  e (b)  sua  formulação  sobre a  “psicologia do drama de papéis  sociais”. A  lei genética geral do desen‐

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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volvimento,  também  conhecida  como  “lei da du‐pla  formação”, geralmente é  identificada na obra de  Vigotski  nos  seguintes  termos:  “Um  processo interpessoal é  transformado num processo  intra‐pessoal. Todas as funções no desenvolvimento da criança  aparecem  duas  vezes:  primeiro  no  nível social, e depois, no nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança  (intrapsicológica).  Isso se aplica  igualmen‐te para a atenção voluntária, para a memória lógi‐ca e para a  formação de conceitos. Todas as  fun‐ções  superiores  originam‐se  das  relações  reais entre  indivíduos  humanos”  (VIGOTSKI,  1930/ 1989a,  p.  64)10.  A  personalidade,  dirá  o  próprio Vigotski (1931/2000a) não se pode confundir com cada função particular, nem é a mera  junção arit‐mética de todas, mas uma síntese de ordem supe‐rior na qual o conjunto tem propriedades singula‐res e leis específicas com relação ao funcionamen‐to  das  partes  isoladas. Nesse  sentido  é mais  im‐portante  o  homem  que  tem  essa memória,  essa imaginação ou essa inteligência, do que tais capa‐cidades que o homem  tem. Mas a personalidade como um  todo  também se desenvolve do  interp‐síquico para  intrapsíquico. Ora,  resta deduzir que o desenvolvimento de cada pessoa no conjunto de suas relações com outras não pode se restringir a apenas uma só classe, um só grupo, uma só rela‐ção de pertença. Múltiplas possibilidades de cam‐pos  interpsicológicos  podem  se  estabelecer  para cada um. Tal mulitiplicidade de relações  intersub‐jetivas  pode  ser  abordada  teoricamente  a  partir dos  conceitos de papel  social e drama de papéis sociais.  Nas  suas  anotações  de  1929,  depois  chamadas pelos  editores  de  “Psicologia  concreta  do  ho‐mem”, Vigotski dialoga, entre outros, com o pen‐sador marxista  francês  de  origem  húngara Geor‐ges Politzer (1903‐1942). Este, em dado momento de sua pesquisa, na qual fazia a crítica da “psicolo‐gia abstrata”, dos clássicos do século dezenove, e o  elogio  de  uma  nascente  “psicologia  concreta”, 

10 Os editores da coletânea na qual o texto citado foi editada, no Brasil  intitulada “A  formação social da mente”, dizem ser os quatro primeiros capítulos retirados de “O instrumento e o signo”  –  livro  de  1930.  Contudo,  o  conteúdo  do  capítulo  é muito  semelhante  ao  encontrado  em  “A  história  do  desen‐volvimento das funções psíquicas superiores” – livro de 1931. Manteremos  1930,  confiando  nos  organizadores  da  obra (COLE, JOHN‐STEINER, SCRIBNER e SOUBERMAN, 1989). 

fala do seu conceito de “drama” e  lança‐nos uma espécie  de  provocação:  “O  teatro  deve  imitar  a vida? A psicologia, para escapar de uma  tradição milenar e para retornar à vida, talvez deva imitar o teatro”  (POLITZER  apud  GABBI  JR,  1998,  p.  XII). Isto  se  relaciona  ao  conceito moderno  de  “dra‐ma”, pois  se na antigüidade  clássica essa palavra está relacionada aos textos que podem ser repre‐sentados no teatro, como “ação”, seja ela  trágica ou  cômica,  na modernidade  ela  implicará  princi‐palmente o conflito. Conflito entre algo de trágico e algo de cômico, e assim uma expressão mais fiel “da vida como ela é” – não como a de “deuses” e “heróis”  (típicos  das  tragédias),  nem  como  de seres  “grotescos”  ou  “inferiores”  (típicos  das  co‐médias), mas  como  a  de  “seres  humanos”.  Essa “vida  como ela é”, em  suas múltiplas determina‐ções,  no  choque  entre  diferentes  papéis  sociais possíveis  para  uma  mesma  pessoa  real,  seria  o drama  pertinente  à  psicologia  concreta.  Vigotski usará um exemplo  fictício de um magistrado que deve  julgar a própria esposa. Nessa situação críti‐ca ele vive ao mesmo tempo dois papéis: o de juiz que condena e o de marido que absolve. Em cada caso há uma hierarquia diferente de funções men‐tais, no primeiro a racionalidade tenta prevalecer sobre  a  afetividade,  no  segundo  a  hierarquia  se inverte. Desse modo não se sabe o que prevalece‐rá  e  podemos  dizer  que  nesse  confronto  surge uma “suspensão” ou “epokhé”, uma recorrência à dúvida, uma abertura ao imprevisível e ao mesmo tanto a demanda de uma ação deliberada, volitiva.   A  “psicologia  dos  papéis”  de  Vigotski  convida  a refletir sobre como eles se entrelaçam solicitando, possibilitando, ou  impedindo, adiando,  tais ações deliberadas.  “O papel  social  (juiz, médico) deter‐mina a hierarquia das  funções:  isto é, as  funções mudam a hierarquia nas diferentes esferas da vida social.  Seu  choque  =  o  drama”  (VIGOTSKI,  1929/ 2000, p.  37  –  grifos na  fonte). De  todo modo, o foco está dado no  fato de que em nós diferentes direções para a ação  são possíveis em  função de nossa  inserção  nas  relações  sociais  que marcam nossos  papéis  (pai/filho;  professor/aluno;  subal‐terno/dirigente;  livre/cativo;  etc.),  e  com  isso  vi‐vemos  um  conflito  com  o  qual  se  tecem  nossos próprios sentidos para a vida. Tal conflito é tanto entre significados divergentes dos papéis opostos, quanto entre os sentimentos, conceitos e valores a  eles  amalgamados:  “O  drama  realmente  está repleto de ligações de tal tipo [conflitivo]: o papel 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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da  paixão  da  avareza  dos  ciúmes,  em  uma  dada estrutura da personalidade. Um  caráter divide‐se em  dois  (...) O  drama  realmente  está  repleto  de luta  interna  impossível nos  sistemas orgânicos: a dinâmica da personalidade é o drama  (...) O dra‐ma sempre é a  luta de tais  ligações (dever e sen‐timento, etc.) Senão não pode  ser drama,  isto é, choque dos  sistemas. A psicologia  ‘humaniza‐se’” (VIGOTSKI,  1929/2000,  34‐35  –  grifos  na  fonte). Podemos  interpretar  que  a  psicologia  histórico‐cultural “retorna à vida” como quisera Politzer. Tal “humanização”  da  psicologia  apresenta‐se  assim como  objetivo  da  proposta  de  Vigotski  tanto  no sentido axiológico (ético) como no epistemológico (científico). Para passarmos então das determina‐ções da consciência e personalidade humana pela nossa existência social mais geral, às suas dimen‐sões  mais  particulares,  notamos  que  há  media‐ções,  transições  e  complexidade,  interpõe‐se  o intersubjetivo,  e  na  sua  realização  concreta  per‐cebe‐se  o  drama  da  vida  humana.  Nele  se  for‐mam, se desenvolvem, nossas funções psíquicas e a  consciência  como momento  propriamente  hu‐mano de organização das mesmas, de  estrutura‐ção de nossa ação e pensamento, de vivência du‐plicada de nossos próprios sentimentos. É do que trataremos no próximo tópico.  2.3 Princípio da consciência como psiquismo pro‐priamente humano   É bastante conhecida, e nem por isso deixa de ter valor, a chamada oposição de Vigotski a duas ten‐dências clássicas em psicologia, no final do século XIX e  início do XX: o  “mentalismo” e o  “compor‐tamentalismo”.  Segundo  ele,  ambas  deixam  de estudar cientificamente a  consciência. A primeira porque a vê como  importante, mas  inexplicável a não  ser pela apreensão direta de quem a vive. A segunda  porque  entende  ser  a  consciência  um fenômeno  sem  importância  para  a  compreensão do comportamento que deveria ser explicado por fatores externos diretamente observáveis. Vigots‐ki sugere que este estado de coisas na psicologia é crítico, pois se está deixando de lado justamente o que diferencia o psiquismo humano do psiquismo animal,  nossa  consciência,  nossa  capacidade  de observarmos a nós mesmos, como somos capazes de observar a outra pessoa, dentre as característi‐cas que nela podemos  reconhecer. Tratarei aqui, de modo resumido, alguns pontos pertinentes ao conceito de consciência como psiquismo propria‐

mente  humano:  (a)  consciência  como  conheci‐mento  partilhado;  (b)  consciência  como  vivência de vivências; (c) consciência como reflexo e refra‐ção  da  realidade;  (d)  consciência  como  processo cognitivo  e  afetivo;  (e)  consciência  e  sua  relação com os processos não conscientes.  A noção de consciência como “conhecimento par‐tilhado”,  advém  da  própria  origem  da  palavra. Tanto em russo quanto em português, a etimolo‐gia remete ao latim “conscientia”, que dentre suas várias  acepções,  comporta  tanto  a  idéia  de  “co‐nhecimento  comum  a muitos”  (“co‐conhecimen‐to”), quando a de “reflexão, capacidade de distan‐ciamento”  (“meta‐conhecimento”).  Em  Vigotski, as duas  coisas estão  intimamente  ligadas.  Sobre‐tudo, por a  consciência  só poder  vir a existir em função  de  relações  sociais,  tal  como  dissemos acima.  Ele  afirma,  a  respeito  deste  tema,  que  é “impossível  relacionar‐se  diretamente  consigo mesmo”  (VIGOTSKI,  1929/1989, p.  61), mas  ape‐nas  indiretamente, uma vez que “eu sou uma re‐lação  social  de mim  comigo mesmo”  (VIGOTSKI, 1929/1989,  p.  67).  Além  disso,  utiliza  de  modo ilustrativo a alegoria de Pedro e Paulo, elaborada por Marx e Engels, a qual é  retomada na  íntegra em  nota  de  Andrei  Puzirei:  “Ao  simplesmente referir‐se à pessoa Paulo como alguém semelhan‐te a si próprio, a pessoa Pedro começa a referir‐se a  si próprio  como a uma pessoa. Mas até Paulo, como o todo de sua corporalidade paulina, torna‐se,  para  ele,  uma manifestação  da  espécie  ‘ho‐mem’”  (MARX e ENGELS apud PUZIREI, 1989a, p. 74). Assim,  a  atribuição de  características  ao ou‐tro, no campo “interpsíquico”, cria as possibilida‐des  de  que  as  atribuamos  a  nós mesmos,  como que num espelho sem o qual não podemos obter nossa própria  imagem,  já que não somos capazes de  nos  enxergamos  por  completo  sozinhos.  Ao mesmo  tempo, há algo ainda mais abrangente: a capacidade de reconhecer ao outro e a si mesmo como  componentes  do  gênero  humano,  numa identificação de quem  somos nós  em diferencia‐ção aos outros  seres no mundo. O outro nos no‐meia  primeiro, mesmo  antes  de  nascer  já  pode‐mos  ter  um  nome  escolhido  por  nossos  pais,  de início as crianças podem se referir a elas mesmas do mesmo modo, pelo próprio nome, em terceira pessoa. Mas  o  ato  de  referir‐se  ao  outro  como alguém que tem nome próprio poderá lhe possibi‐litar então perceber que  também  tem nome pró‐prio e que ele pode ser designado por um prono‐

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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me pessoal  singular na primeira pessoa: “eu”.   O compartilhar  o  processo  de  comunicação  e  de significação  sobre  as  posições  das  pessoas  nas relações  umas  com  as  outras,  permitirá  a  emer‐gência da consciência  tal como determinada pela existência social.   Podemos a esta noção acrescentar a de consciên‐cia como “vivência de vivências”, ou “experiência de experiências”, conforme a  tradução. A “vivên‐cia”  (uma  tradução  para  “perejivanie”11),  como veremos a seguir é uma unidade da relação “per‐sonalidade e meio”, uma unidade da consciência. Mas a consciência como tal, assim como é desdo‐bramento  do  conhecimento  sobre  o  próprio  co‐nhecimento, é ainda uma vivência duplicada. Não só viver por estar vivo, como vive ou sobrevive um animal, mas ter a experiência vital com relação ao próprio ato de viver e todas as implicações que ele comporta.  Isso  não  significa  exatamente  um  ato de domínio total sobre tudo que se passa em nos‐so viver, desde as  sensações gerais que emanam dos  órgãos  dos  sentidos  (exterocepção),  ou  das nossas  estimulações  internas  (propriocepção  e interocepção), até os movimentos pelos quais  se organiza  a  própria  lógica  de  nosso  pensamento. Não se  trata de uma onisciência de nós mesmos, mas  o  sentir  a  experiência  presente  para  nós mesmos,  seja  ela  de  qual  fonte  for, mesmo  que não  tenha  ainda um nome preciso que  a defina. Nossa apropriação do mundo e de nossos próprios estados corporais estará posta para nós não como algo  que  nos  é  totalmente  estranho. Mas  como algo  com  o  que,  ao  nos  estranharmos  e  perce‐bermos o peso de  sua  singularidade, poderemos, ao mesmo tempo, nos  identificarmos e sentirmos como  nosso.  Vivo  a  emoção  de  passar  por  uma situação  social  intensa, de dor ou prazer, de ale‐gria  ou  tristeza,  de  esperança  ou  de  medo,  de frustração ou de realização,  isso por si  já é único. Mas,  enquanto  vivo,  experiencio  ainda o  sentido 

11 A palavra russa usada por Vigotski e outros autores como Rubinstein  e  Vasiliuk  é  “переживание”  –  “perejivanie”.  Ela tem  várias  traduções,  como:  “experiência”;  “experiência emocional”;  “experiência  vital”;  “vivência”;  “emoção”;  “afli‐ção”; “provação”; dentre as principais. Eu adotarei “vivência” como na edição espanhola das “Obras Escolhidas” de Vigots‐ki, apenas por ser uma palavra que traz em si um radical para “vida”, e “perejivanie” em russo tem a ver com o verbo arcai‐co “jivat’”: viver. Não é necessariamente a mesma concepção de  “vivência”  da  psicologia  “fenomenológico‐existencial”, embora haja espaço para esse diálogo. 

próprio  dela  para mim  –  naquela  situação  social dada num “aqui e agora”, mas também na memó‐ria posterior do já vivenciado, ampliação, redução, reinvenção do  tempo‐espaço originário da  vivên‐cia em si.  Deste ponto, podemos nos ater à dupla caracteri‐zação  da  função  da  consciência  como  “reflexo  e refração da realidade”. Na concepção de Vigotski a consciência é mediada pela linguagem, a lingua‐gem não é  tida como sua mera  forma de expres‐são  exterior, mas  como  sua própria  “substância” constitutiva,  aquilo  que  lhe  dá  “corpo”.  Falamos em “corpo” de modo metafórico, mas lembramos da poesia de Osip Mandelshtan citada por Vigots‐ki: “esqueci a palavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de  sua  substância,  volta ao reino das sombras”  (apud VIGOTSKI, 1934/1989c, p.  103).  Sendo  então  a  consciência  um  processo semiótico, ou seja, constituído por signos e signifi‐cação, podemos trazer para a compreensão dela a orientação  de  Bakhtin  (1992)  para  quem  todo signo “reflete e  refrata a  realidade”.  Isto é, a  lin‐guagem e, portanto, a consciência, são ao mesmo tempo  capazes  de  nos  proporcionar  um  espelho (reflexo) do  real,  fiel às  suas  contradições objeti‐vas,  quanto  de  nos  proporcionar  imagens  diver‐gentes  (refratárias)  destas mesmas  contradições. Antes de me confrontar com a obra de Zaporojets (2002),  importante  colaborador  de  Vigotski,  eu vinha  compreendendo  o  duplo  aspecto  reflexi‐vo/refratário  da  consciência  como  análogo  à  no‐ção  de  “consciência  como  processo  cognitivo  e afetivo” (ver DELARI, 2000, p. 80‐103). Ocorre que para  Rubinstein  (1972),  o  aspecto  cognitivo  da consciência  está  em  ser  sempre  “consciência  de algo”  (implicando  a  compreensão  de  uma  dada realidade objetiva) e seu aspecto afetivo consiste em  ser  sempre  “consciência  da  alguém”  (sendo relacionada  às  suas  necessidades  e  motivações subjetivas).  Meu  engano  estava  em  pensar  que sempre  o  aspecto  emocional  estivesse  envolvido em  uma  “refração”  do  real,  em  dar  um  colorido particular  à  nossa  leitura  de mundo,  que  fizesse com  que  não  déssemos  conta  da  especificidade concreta do objeto apreendido, mesmo que esse objeto fosse uma ação nossa.  Com  a  leitura  de  Zaporojets  (2002)  fui  levado  a repensar. Pois  segundo ele, as emoções  também têm a função de refletir a realidade, não são ape‐nas um modo  irrealista de  lidar com o mundo.   É 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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possível compreender  isso quando um medo nos livra  de  situações  desagradáveis,  ou  quando  um sentimento de  solidariedade nos permite estabe‐lecer alianças como alguém em função de um bem comum, ou quando um sentimento de responsabi‐lidade para com a fragilidade da vida de um bebê nos impulsiona a estarmos mais atentos no cuida‐do  com ele. Assim o eixo  refração/reflexão pode ter  uma  relação  combinatória  com  o  eixo  afec‐ção/cognição,  mas  não  são  sinônimos.  Diríamos por ora, que as emoções como aspecto inalienável da consciência e como mediadas pela  linguagem, podem assim tanto refletir quanto refratar o real, e a cognição do mesmo modo. Podemos ter emo‐ções  que  não  condizem  com  a  realidade  como uma cólera com quem não nos fez exatamente um mal  efetivo,  assim  como  podemos  ter  cognições que  não  condizem  com  a  realidade,  como  uma teoria  da  conspiração  de  que  o  homem  nunca chegou à lua. De todo modo, fica apenas registra‐do que a  consciência em Vigotski não é um pro‐cesso  de  natureza  exclusivamente  cognitiva  ou racional, e a emoção no homem é momento fun‐damental da formação de seu psiquismo: "O afeto é o alfa e ômega, o primeiro e o último elo, o pró‐logo e o epílogo de  todo o desenvolvimento psí‐quico"  (VIGOTSKI, 1932/2006, p. 299). Está então presente desde as  formações sistêmicas mais bá‐sicas, como o choro de um bebê, às mais comple‐xas  e  sutis,  como  a  responsabilidade moral  para com  a  vida  desse  mesmo  bebê  que  chora.  Um suposto ser humano exclusivamente  racional não poderia ter uma visão realmente realista do mun‐do, estaria alheio às possibilidades de composição que  nos  proporcionam  mais  ou  menos  avanço, potência ou  impotência, prazer ou dor, alegria ou tristeza.  Por  fim, muitas  vezes  ligado  ao  tema  das  emo‐ções, vem o problema da “consciência e sua rela‐ção com os processos não conscientes”. Creio que já esteja claro que “consciência” em Vigotski tem um papel muito diferente que o chamado “consci‐ente”  em  Freud,  sobretudo  o  da  primeira  tópica que  é  tido  apenas  como  algo  superficial  e  sem importância,  uma  “ponta  do  iceberg”.  Quanto  à segunda tópica não cabe nos pronunciarmos aqui, embora  à  consciência  nela  também  não  caiba alguma atribuição muito maior do que a de  lidar com pressões de diferentes  fontes. Mas se a me‐táfora histórico‐cultural fosse também com o gelo poderíamos dizer que a consciência em Vigotski é 

mais  como o  turbilhão de água e gelo produzido quando um navio quebra‐gelo singra um mar gla‐cial. A  consciência não está num  lugar, num  “to‐pos”, não é “tópica”, ela está mais para um movi‐mento,  uma  dinâmica,  um  poder  de  realização, como  se pode deduzir dos parágrafos anteriores. Entretanto,  a  consciência  não  é  tudo  em  nossa personalidade, mesmo para a psicologia histórico‐cultural, até porque não é a consciência que reali‐za o trabalho do homem, mas o homem que reali‐za seu trabalho conscientemente e ao fazê‐lo não pode estar consciente de todos os aspectos de sua ação, o que se ocorresse nos levaria a um colapso. O processo de agir conscientemente  implica uma dialética  com  aspectos  não  conscientes  da  ativi‐dade.  Segundo  Vigotski  na  realização  de  um  de‐terminado  ato,  “a  atividade  da  consciência  pode seguir  rumos  diferentes”  (1934/1989a,  p.  78)12. Tal  foco  não  pode  deter‐se  todo  tempo  num  só objeto,  e  não  pode  de modo  algum  deter‐se  ao mesmo tempo em todos os objetos de seu campo de atuação e percepção. A própria análise do pen‐samento esquizofrênico  leva Vigotski (1933/1987) a  afirmar  que  a  descontinuidade  da  consciência constitui‐se  em  uma  de  suas  funções  saudáveis, ou seja, para um pensamento crítico com relação ao  real,  é  necessário  “mudar  de  assunto”.  Um pensamento  cujo  foco  fosse  indefinidamente  o um mesmo  tema  discreto,  ínfimo,  insignificante, não seria o de uma consciência saudável. Ora, no fluxo  de  nosso  pensamento  não  temos  todo  o domínio de como transitamos de uma associação a outra, a própria motivação para  cada mudança de assunto nem sempre está clara para nós.   Tudo  isso  já é sabido, porém cabe dizer que aqui não será de forma alguma esquecido ou ignorado, embora não nos apressemos em encontrar causas ocultas ou explicações míticas para  como  isso  se dá.  Como  procurei  destacar  em  outro  lugar  (DE‐LARI, 2001), Vigotski vê as formulações teóricas de Freud sobre o tema inconsciente como demasiado biologizantes, reconhecendo o mérito deste autor mais na formulação de boas perguntas do que nas 

12  É  sabido  que  o  livro  “Pensamento  e  linguagem”  é  uma junção de textos anteriores, feita por Vigotski em 1934, mas só  os  capítulos  1  e  7  são  de  1934,  os  demais  são  de  anos anteriores.  Como  no momento  não  tenho  as  datas  dos  de‐mais  capítulos,  os  que  forem  citados  aqui  levarão  a  data original  também  de  1934.  Posteriormente  corrigirei  essa imprecisão. 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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respostas  que  dá  a  elas.  Por  exemplo,  elogia  a dúvida que se pretende responder com a hipótese da  “pulsão  de morte”,  dizendo  não  ser  caminho fácil, mas “uma trilha alpina sobre os abismos para aqueles que não padecem de vertigens” (VIGOTS‐KI, 1991, p. 303). Mas não vê aí resposta apropria‐da e enfatiza que “a ciência também tem necessi‐dade desses  livros:  livros que não descubram ver‐dades, mas que ensinem a buscar a verdade, ain‐da que não a tenham encontrado” (idem – p. 303). Certamente,  a obra do próprio Vigotski  como de outros  clássicos  que  conhecemos  é  também  as‐sim, muitas  vezes mais  instigante  nas  perguntas do  que  conclusiva  nas  respostas.  Desse  modo, aceitando constatações comuns e o valor das dú‐vidas que elas nos trazem, é  interessante  lembrar também um  tema  talvez menos comum. Trata‐se do problema da relação dos conteúdos e modo de operação  da  consciência  com  os  seus motivos  e sua orientação, os impulsos que animam e as me‐tas a que  se dirigem nossas ações. Para Vigotski, como  para  Freud  (ver  VIGOTSKI,  1925/1999  e 1930/1987,),  não  há  emoção  inconsciente:  não tenho como estar triste sem me entristecer, nem alegre  sem me  alegrar.  A  emoção  é  sempre  um fato real e presente à consciência tal como desen‐volvida  socialmente.  Contudo,  posso  estar  triste ou alegre,  incomodado ou  satisfeito,  sem  ter  co‐nhecimento claro do motivo que me levou a estar. É  uma  idéia  simples,  mas  importante,  que  nos conduzirá a discussões posteriores. Por ora, cabe‐ria  apenas  destacar  que  não  temos  domínio  de todo o  conjunto de  relações  sociais nas quais  se constitui  nosso  drama  de  papéis,  e  os  conflitos que  lhes são próprios, mas a significação que da‐mos às coisas, aos outros e a nós mesmos, é cons‐tituída no  interior de tais relações cuja totalidade nos escapa.  Só  isso  já nos dará o que pensar,  se concebermos  o  que  não  nos  é  consciente  como tão social, histórico e cultural quanto nossa cons‐ciência,  em  sua  dialética  com  ela.  Poderíamos  a isso  acrescentar, portanto,  a  contribuição de Ba‐khtin  (2004) de que a natureza mais profunda de nossos  conflitos  é  essencialmente  ideológica  (va‐lorativa)  e  não  biológica  (instintiva),  tal  qual  em outras abordagens. É quanto às motivações e ne‐cessidades  sociais,  aos  valores  ideológicos,  i.e., próprios  a  uma  “visão  de mundo”,  que  nos  per‐guntamos: quais as forças motivadoras dos nossos atos, como tomarmos consciência delas?  Cabe lembrar que o tema da vivência se articula a 

essa  discussão.  Segundo  Vigotski:  “toda  vivência está respaldada por uma influência real, dinâmica, do meio com relação à criança. Desde este ponto de vista, a essência de toda a crise reside na rees‐truturação  da  vivência  interior,  reestruturação que  radica  na  mudança  do  momento  essencial que determina a  relação da  criança  com o meio, isto é, na mudança de  suas necessidades e moti‐vos que são os motores de seu comportamento. O incremento  e  a mudança  dessas  necessidades  e apetências é o aspecto menos consciente e volun‐tário da personalidade e  à medida que a  criança passa de uma  idade  a outra, nascem  nela novos impulsos, novos motivos ou, dito de outro modo, os propulsores de sua atividade experimentam um reajuste de valores. O que antes era essencial para a  criança,  valioso,  apetecível,  faz‐se  relativo  e pouco  importante  na  etapa  seguinte”  (1933‐34/2006, p. 385 – grifo meu). No curso de nosso desenvolvimento  nossas  prioridades  mudam,  e não temos total domínio quanto ao acontecimen‐to dessas mudanças, pois ocorrem no enlaçamen‐to de linhas biológicas e culturais, que não criamos em absoluto e com as quais vamos criando a nós mesmos em nossas vivências. Isso não só na onto‐gênese  com  suas  crises, mas  também no  interior de diversas outras crises próprias à nossa relação tensa com e na realidade  física, biológica e social da qual somos componentes e compositores, mas não  necessariamente  de  modo  confortável  ou harmonioso. Isto por ser a vida drama e drama ser conflito, por definição.  Investigar o  tema das ne‐cessidades,  impulsos, motivos e, sobretudo, valo‐res, na dialética consciência/inconsciente torna‐se tarefa árdua e necessária para o desenvolvimento futuro  da  perspectiva  histórico‐cultural.  Tarefa para cujo cumprimento o suporte reside nos pró‐prios princípios comentados brevemente até aqui, ainda que seu desfecho nos ultrapasse.  2.4 Princípio da  compreensão da  consciência me‐diante unidades  Podemos,  portanto,  definir  consciência  de  dife‐rentes  e  complementares  maneiras,  como:  “co‐nhecimento partilhado”  (co‐conhecimento); “pro‐cesso  reflexivo”  (meta‐conhecimento);  “vivência de vivências”; “ato de reflexão e refração”; e ain‐da  “síntese  afetivo‐cognitiva”.  Mas  cabe  notar ainda  que  nada  disso  é  dado  para  o  homem  de modo  imediato,  instantâneo. Trata‐se de caracte‐rísticas  de  nossa  existência  que  se  adquirem  no 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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curso  de  nossas  relações  com  os  outros,  que  se modificam  ao  longo do desenvolvimento biológi‐co‐cultural, com o suporte de distintas mediações. O conjunto das funções da consciência, não só em suas características gerais, mas também na articu‐lação das  funções mentais, como memória, aten‐ção,  vontade,  percepção,  raciocínio,  e  a  própria linguagem  que  proporciona  relações  inter‐funcionais,  é  um  todo  complexo,  dinâmico  e  sis‐têmico,  semanticamente estruturado. Não  temos como apreendê‐lo de modo direto, nem  instantâ‐neo. A  consciência de alguém  só  se nos dá a ver por  pistas,  indícios,  processos  de  exteriorização que  por  sua  vez  já  transformam  o  que  antes  de serem  realizados  estava  posto  na  esfera  privada do  psiquismo  dessa  pessoa.  Não  podemos  ter acesso  direto  ao  ser  do  outro,  tampouco  temos acesso direto ao nosso próprio  ser, mas  indireto, mediado  por  palavras  que  com  mais  alguém  a‐prendemos.  Vigotski  aborda  esse  problema  não pela via da postulação de um  incomunicabilidade a todo custo de um ser humano com outro, isto é, não pelo chamado “solipsismo”. Mas por uma via indireta. Não se pode dizer que não somos capa‐zes de estudar o átomo  tão somente porque não podemos  vê‐lo,  que  só  o  poderíamos  estudar  se ele  nos  afetasse  os  órgãos  dos  sentidos.  Assim também não se pode abdicar do estudo da cons‐ciência, o que há de especificamente humano em nosso psiquismo, por não  termos acesso direto a ela.  Toma‐se  um  caminho  indireto,  aborda‐se  o objeto de estudo mediante suas manifestações, e com apoio delas se busca reconstruir sua gênese. Nesse  contexto, pode‐se  colocar em pauta a dis‐cussão sobre as chamadas “unidades de análise”. A unidade, para Vigotski, diferente dos  “elemen‐tos”,  contém  de modo  condensado  as  principais contradições do todo. Como uma célula viva pos‐sui as funções principais de um ser vivo completo, como  o  processo  de  produção  de  valor  de  troca possui  as  contradições  principais  da  economia capitalista.  Contudo,  se  a  célula  pode  ser  uma  unidade  da biologia, e a produção de valor de troca uma uni‐dade da economia política, qual seria a unidade de análise da psicologia, para o estudo da  consciên‐cia? Toda uma discussão sobre o método científi‐co se ergue em torno disso, em outras abordagens temos  diversas  unidades.  Na  própria  psicologia marxista  soviética, há mais de uma  formulação e nem todos concordam sobre qual deveria ser essa 

peça  chave  na  compreensão  da mente  humana. Mas, atendo‐nos por enquanto apenas ao próprio Vigotski, entendamos que há duas  formas princi‐pais dele mesmo  compreender  a unidade para  a consciência, uma unidade que é tanto no sentido de como a consciência existe mesmo, se constitui, quando simultaneamente no sentido de como se a pode estudar. No campo das relações entre “per‐sonalidade  e meio”  essa  unidade  é  a  “vivência” (“perejivanie”13),  no  âmbito  das  relações  entre “pensamento e  linguagem” essa unidade é o “sig‐nificado  da  palavra”,  “palavra  significativa”  ou simplesmente  “palavra”,  considerando  que  só pode ser palavra se  tiver significado. No meu en‐tendimento não são “instâncias” separadas, pala‐vra  e  vivência  compõem‐se mutuamente:  com  a palavra  eu  digo  o  que  vivenciei;  com  a  vivência minha palavra tem realmente o que dizer. Contu‐do, o campo das relações “personalidade e meio” não pode deixar de nos parecer mais vasto, posto que meio social está ainda em composição com o meio biológico e o físico, posto que a personalida‐de não envolve  só o que é  consciente, mas  tam‐bém o que não é. Ainda assim, será só mediante a linguagem  que  esse  campo  vasto  poderia  deixar de  ser  apenas  algo  “em  si”  e  tornar‐se  também “para si”, isto é: não só existir como tal, mas tam‐bém para alguém,  significando‐lhe algo,  fazendo‐lhe  algum  sentido.  Desta  forma,  o menos  vasto não é de importância ontológica nem metodológi‐ca menor.  Porém,  pela  ordem  da  exposição,  co‐mentemos  primeiro  algo  sobre  a  vivência  como unidade e em seguida sobre o significado.   Um  dos  principais  momentos  em  que  Vigotski discute a questão da vivência como unidade afeti‐vo‐cognitiva  foi  em  uma  comunicação  oral  sua, cuja  transcrição  posteriormente  recebeu  o  título de  “O  problema  do  ambiente”  (VIGOTSKI,  1935/ 1994)14. Ali Vigotski procura destacar que a  influ‐ência do meio social sobre a criança não é absolu‐ta, mas  relativa  ao  seu momento  de  desenvolvi‐mento e a assim à sua vivência. Isso não se aplica só às crianças, mas o exemplo prático trabalhado pelo  autor  é o de  três  crianças  com dificuldades no processo educativo, que haviam presenciado o adoecimento da mãe, por  alcoolismo, e  todas  as  13 Confira a nota “11”, p. 18. 14 Aqui também, a fonte só fornece o ano da primeira publi‐cação, mas não a data de quando o trabalho teria sido conclu‐ído.

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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conseqüências  desse  processo  nas  relações  dela com  elas. O  que  ele  argumenta  é  que  com  uma influência do meio relativamente estável, a doen‐ça da mãe, as crianças vieram a apresentar atitu‐des  bastante  diversas.  O  mais  novo  desenvolve “sintomas  neuróticos”,  subjugado  pelo  horror acaba por entrar em  “estado de depressão  com‐pleta e desamparo”. O  segundo experimenta um “complexo de mãe‐bruxa”, no qual  “o amor pela mãe e o  terror pela bruxa coexistem”  (VIGOTSKI, 1935/1994, p. 340), o que o levava a um compor‐tamento  contraditório,  como  quando  pediu  para ser levado para casa, mas logo demonstrou terror quando  se  voltou  a  tocar no  assunto.  Por  fim, o terceiro  tinha  habilidade  mental  limitada,  mas “mostrou sinais de maturidade precoce, seriedade e  solicitude”  (VIGOTSKI,  1935/1994,  p.  340),  as‐sumindo um papel de “adulto da casa” e cuidando dos demais. Vigotski entende que “era uma crian‐ça cujo curso do desenvolvimento normal  foi vio‐lentamente cindido, um tipo diferente de criança” (1935/1994,  p.  341)  cujos  interesses  não  eram simples  como  os  próprios  de  sua  idade.  Seriam esses  alguns  exemplos  clínicos  de  vivências  dife‐rentes, momentos  de  desenvolvimento  distintos, mas,  acima  de  tudo,  sínteses  diversas  entre  os momentos de desenvolvimento e as influências do meio  social.  Cabe  ao  psicólogo  histórico‐cultural investigar e  compreender  tais vivências e não ao meio como índice absoluto, nem à bagagem gené‐tica  como  índice  absoluto. Outro  exemplo,  dado por Vigotski no mesmo texto, de cunho mais geral, é o da  influência da  linguagem dos adultos sobre as  crianças.  Posto  que  o modo  como  os  adultos falam uns com os outros na presença da criança, a estrutura  gramatical,  o  vocabulário,  etc.,  não  é distinto para uma criança pequena, para uma pré‐escolar, uma escolar, etc., contudo a  influência é distinta em cada momento. O processo de desen‐volvimento importa para a compreensão de como o meio social pode influir sobre a criança. Embora o  desenvolvimento  não  seja  uma  força  isolada, mas  já um processo  auto‐determinado  geral que sintetiza  tanto  a  influência  do  meio,  quanto  da herança. Tal  idéia será apresentada talvez de mo‐do ainda mais dinâmico em outro texto do autor, também  proveniente  de  uma  conferência minis‐trada  em Moscou,  que  se  intitulou  “a  crise  dos sete anos” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006).15

15  Já  citado  anteriormente  para  discutir  a  questão  das mu‐

Nessa conferência o autor disse claramente: “po‐demos  assinalar  (...)  a unidade para o  estudo da personalidade e o meio. Em psicologia e psicopa‐tologia essa unidade se chama vivência. A vivência da criança é a aquela simples unidade sobre a qual é difícil dizer  se  representa  a  influência do meio sobre  a  criança ou uma peculiaridade da própria criança. A vivência constitui a unidade da persona‐lidade e do entorno  tal como  figura no desenvol‐vimento. Portanto, no desenvolvimento, a unida‐de dos elementos pessoais e ambientais se realiza em uma  série de diversas vivências da criança. A vivência deve ser entendida como a  relação  inte‐rior da criança como ser humano, com um ou ou‐tro momento da  realidade.  Toda  a  vivência  é  vi‐vência de algo. Não há vivências sem motivo, co‐mo  não  há  ato  consciente  que  não  seja  ato  de consciência  de  algo.  Entretanto,  cada  vivência  é pessoal.  A  teoria  moderna  introduz  a  vivência como unidade da consciência, isto é, como unida‐de na qual as possibilidades básicas da consciência figuram como  tais, enquanto que na atenção, no pensamento não se dá tal relação. A atenção não é uma unidade da consciência, senão um elemen‐to  da  consciência,  carente  de  outros  elementos, com  a  particularidade  de  que  a  integridade  da consciência  como  tal  desaparece.  A  verdadeira unidade  dinâmica  da  consciência,  unidade  plena que constitui a base da consciência é a vivência.” (VIGOTSKI,  1933‐34/2006,  p.  383).  Nas  funções psicológicas  isoladas  (atenção,  pensamento, me‐mória, percepção), não se poderia ter uma síntese mais  fiel  do  conjunto  da  ação  da  consciência.  A vivência não é só o que pensamos, ou para o que estamos atentos, mas o ato integral do homem de pensar,  atentar,  sentir,  lembrar,  perceber,  um dado  momento  de  sua  existência,  produzindo sentidos para ela. Nessa direção, entendemos que a mediação da  linguagem está presente na vivên‐cia  como  um  dos modos  de  buscarmos  compre‐ender a dinâmica da consciência da qual a vivência é uma unidade viva essencial.  Assim,  por  um  lado,  a  vivência  é,  como  vimos, uma unidade cognitivo‐afetiva de  interpretação e sentimento  do  real  na  qual  a  consciência  realiza sua potência e ao mesmo  tempo, portanto, uma unidade  “personalidade  e meio”,  uma  vez  que  a consciência  também  poder  ser  definida  como  “a 

danças dos motivos, necessidades e valores na página 20. 

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relação da criança com o meio”  (VIGOTSKI, 1933‐34/2006, p. 386). Por outro, a consciência enten‐dida como referente também a uma relação entre a  linguagem e o pensamento  terá  como  sua uni‐dade o “significado”, que é ao mesmo tempo um fenômeno da comunicação social e da organização sistêmica das funções mentais. Não é um tema de compreensão simples. Poderíamos imaginar que a linguagem  fosse um aspecto do meio, e o pensa‐mento um aspecto da personalidade – para falar‐mos de modo didático  sobre pares distintos que se inter‐relacionam. Assim, como nem tudo que é meio é  linguagem, e nem tudo o que é personali‐dade  é  pensamento,  seria  uma  distinção  apenas quanto  ao  grau  de  abrangência.  Contudo,  como não  se  trata  só  de  “combinação”  ou  “interação” entre os pólos distintos, mas de inter‐constituição e  integração  dialética,  a  divisão  “{meio  (lingua‐gem)}  <‐>  {personalidade  (pensamento)}”  é  im‐precisa e insuficiente. Por quais motivos? Primeiro porque  o  ser  humano  faz  parte  de  seu  próprio meio e “seu meio nunca é externo para ele”  (VI‐GOTSKI,  1933‐34/2006,  p.  382),  depois  porque  a própria personalidade já é definida como “o social em nós”  (VIGOTSKI, 1931/2000, p. 337). Ou  seja, ela  não  é  algo  independente,  pré‐existente  às relações com o meio que pela pressão ou permis‐são  dele  apenas  “é modificada”,  ou  “modelada” como uma massa passiva antes indiferenciada que toma forma pela ação de uma força exterior. Dito de modo metafórico,  a  personalidade  não  seria como uma marionete de uma peça de teatro, sob o  controle  de  uma  manipuladora  “sociedade”, seria  mais  como  a  encarnação  do  ator  situado com relação aos demais na performance do drama da vida social, com toda tensão e conflito que ele envolve.   De modo análogo, embora não  idêntico, a  lingua‐gem também não pode ser considerada como algo totalmente  “externo  a nós”. Quando eu ouço  al‐guém falar, as suas palavras existem, por um lado, independentemente de mim: (a) de meu corpo, na materialidade  sonora  delas,  como  ondas,  como energia que se propaga, etc.; (b) de minha vonta‐de, na sua especificidade semântica como posição ideológica  de  alguém,  com  história  própria,  que não se subordina à minha, mesmo que para falar‐me sempre  leve em conta minha possível réplica. Por outro  lado, nesse mesmo ato de ouvir, a  lin‐guagem só se realiza: (a’) se é produzida em mim uma materialidade  neurofisiológica  que  sustenta 

minha audição e transpõe sua codificação para as áreas  cerebrais  correspondentes;  tanto  quanto (b’) se eu, além disso, atribuo sentidos para o que o outro pronuncia, no próprio ato de dirigir a ele minha réplica, com aprovação e/ou rejeição, com algum  juízo de valor. Pensando assim, como dizer se  a  linguagem  é  algo  do meio  social  ou  de  nós mesmos? Não  seria ao mesmo  tempo de ambos, até porque somos parte desse meio que não nos é externo? Não seria um fenômeno de “interface”? O mesmo  ocorre  ao  falarmos  com  alguém:  falo produzindo  o  signo  de meu  convite  à  réplica  ao outro, mas a um só tempo ouço o que falo como que vindo de “fora”. O signo possui tanto “rever‐sibilidade”  (pode  originar‐se  de mim  e  dirigir‐se também  a mim)  quanto  “simultaneidade”  (pode existir ao mesmo tempo em mim e não apenas em mim).  O  fenômeno  ocorre  em  nossos  cérebros, mas  também  para  além  deles,  em  ligações  que Luria  chamou  de  “extra‐corticais”.  As  fronteiras “interno” e “externo” na linguagem se diluem.   Que dizer então do pensamento? Talvez, em com‐paração com os termos já comentados (personali‐dade, meio,  linguagem), seja aquele ao qual mais comumente possamos atribuir uma  característica privada,  íntima,  “interior”  –  pois  “como  saber realmente  o  que  outra  pessoa  está  pensando?”. Mas também o pensamento é fenômeno de inter‐face. Em primeiro lugar, porque para pensarmos é preciso pensar “sobre algo”. Não há pensamento “puro”, sem  imagens, sem  impressões, sem  influ‐ências,  sem  voltar‐se  à  compreensão  de  alguma coisa  que  não  seja  só  ele mesmo.  Em  segundo lugar, porque também é preciso pensar “de algum modo”. Não há pensamento sem modos de orga‐nizá‐lo,  sem  formas  de  construir  um  argumento, mediante  recursos  retóricos  que  se  voltem  ao convencimento e/ou à busca de consensos, etc. E tais modos  de  organização  também  não  nascem conosco,  precisamos  aprendê‐los  em  práticas partilhadas com outras pessoas. Contudo, não por uma  oposição  externo‐interno, mas  pela  própria complexidade dos fatores envolvidos nas relações de  constituição  mútua  entre  pensamento  e  lin‐guagem, a noção do  significado da palavra  como unidade  dessa  relação  se  faz  importante.  Justa‐mente  porque  uma  palavra  significativa  é  tanto algo que pertence às  relações  sociais quanto aos processos  de  generalização  do  real  próprios  ao funcionamento do pensamento.  

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Na palavra, o seu som ou traço escrito não são um fenômeno que se esgote em sua própria existên‐cia  imediata,  não  são  apenas  uma  “coisa”  entre outras  no mundo,  que  só  pode  nos  afetar  como estímulo aos nossos órgãos sensoriais. Ao contrá‐rio, na palavra, o som ou traço estão ali designan‐do  ou  significando  algo  que  não  eles  mesmos, para além deles e que, mediante eles, de alguma maneira,  torna‐se presente. Se alguém diz:  “cho‐verá”,  a  palavra  evidentemente  não  é  a  própria chuva, mas ela é capaz de nos indicar o que pode vir a acontecer. Se eu digo: “estive em Campinas”, também meus  signos  não  têm  sentido  senão  ao possibilitar a outrem posicionar‐se  frente ao que digo,  perguntando  que  fui  fazer  lá  ou  sugerindo que não  lhe  importa o assunto, por exemplo. As‐sim, a linguagem para significar demanda que seu componente  sensorialmente  presente  remeta  a algo  que  não  está  necessariamente  presente  no campo perceptivo. Seja por nossas palavras reme‐terem a algo distante no tempo e/ou no espaço: a chuva  (aqui, mas  depois);  Campinas  (lá  e  antes). Seja  pelo  dito/escrito  não  poder  traduzir‐se  por imagem sensorial tão nítida, mesmo acontecendo aqui  e  agora:  a  apreensão  pela  proximidade  da chuva; a satisfação pela lembrança da viagem, etc. A  palavra  pode  nos  transportar  à  experiência  da chuva ou da viagem, não apenas por ser  feita de som ou traço, em si, mas por ter um “significado”. Chamemos de “significado” o processo de genera‐lização que nos permite vincular som/traço (signi‐ficante) com aquilo a que ele se refere (referente). Seja esse referente algo conversível em represen‐tação sensorial em nossa  imaginação – como nu‐vens escuras carregadas para a chuva ou a dispo‐sição de estrelas junto à Lua num começo de noite em  Campinas.  Seja  ele  algo mais  dinâmico  e/ou abstrato – como os sentimentos de apreensão ou satisfação com relação à experiência vivida ou por viver. O significado, portanto, não é nem o objeto em si, nem o som/traço em si, mas a nossa ação semiótica em  realizar algum modo de articulação entre  os  dois.  Uma  só  palavra  pode  remeter  e remete  a diferentes objetos:  a palavra  “homem” não  se  refere  somente a  “este”  ser humano que aqui  vejo  e  nomeio,  ela  se  torna  para mim  um conceito geral, aplicável mesmo para pessoas que ainda não vi ou jamais verei. Vigotski (1934/1987; 1934/1989b; 1934/2001) fala do significado como uma  generalização  ou  um  conceito.  E  a  palavra não é palavra se não tem esse poder de generali‐zação, esse poder de remeter a outras realidades 

que não são ela mesma, mas que mediante ela, de diversos modos, são evocadas, desde os mais sin‐créticos,  desorganizados,  aos  mais  conceituais, sistemáticos e ordenados. Por este motivo, dentre outros, o “significado” pode se tornar unidade de análise  para  as  relações  “pensamento  e  lingua‐gem”, unidade para a  compreensão da  consciên‐cia.   Trata‐se, portanto, de um tema essencial na obra de Vigotski,  e  também  repleto de desdobramen‐tos  impossíveis de  retratar detalhadamente aqui. Neste momento,  como algo a  retomar em  segui‐da, vale destacar que junto ao conceito de signifi‐cado situa‐se o de sentido, o qual para Vigotski é uma “região” mais ampla da significação, sendo o significado só “um potencial, que só pode ser rea‐lizado  na  fala  viva,  e  na  fala  viva  o  significado  é apenas uma pedra no edifício do sentido” (Vigots‐ki, 1934/1987 p. 276). A noção de sentido em Vi‐gotski  também é social. Não se  trata exatamente de que apenas o significado seja social e o sentido pessoal. Essa é uma forma de pensar, não é incor‐reta, mas também não é de todo precisa. Se para haver sentido é necessário haver  linguagem, e se o  sentido é  algo próprio da  linguagem não pode deixar  de  ser  um  processo  tanto  pessoal  quanto social. Contudo, o que  leva alguns autores a cate‐gorizar o  sentido  como algo predominantemente “subjetivo”, pode ser o fato de que o sentido  im‐plica uma singularidade mais evidente para o nos‐so modo  de  sentir  e  compreender  cada  palavra, cada  signo. O  sentido  atribuído  por  cada  pessoa em particular para uma mesma “chuva”, para uma mesma  “viagem”,  cujo  significado  já  múltiplo permite a composição de regiões semânticas par‐tilhadas, tende a ser ainda mais diverso e multifa‐cetado.  O  sentido  é  potencialmente  único,  no limite “intransferível” em  sua  totalidade, plasma‐do  possivelmente  à  própria  vivência  singular  de cada pessoa, um acontecimento que não se repe‐te. Ainda  assim, não  é  totalmente precisa  a  afir‐mação de que ele não seja social em sua origem e funcionamento. Por um lado, porque para se fazer tão impar e multifacetado, o sentido comporta em sua  realização  já  toda  a  trajetória  de  vida  de  al‐guém, na qual,  junto aos outros,  se constitui  sua “visão de mundo” (ou ideologia, lato sensu) e está implicado o desenvolvimento de sua personalida‐de,  social  por  definição.  Por  outro,  porque  sua definição envolve o  reconhecimento de uma  ten‐são  constitutiva  do  processo  de  significação  que 

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realiza,  tensão essa  inerente ao drama de papéis sociais assumidos por cada pessoa, e ao ato afeti‐vo‐volitivo necessário para situar‐se nesse drama, assumindo papéis e posições, confrontando moti‐vações  e  necessidades  concorrentes,  transfor‐mando‐as em outras nesse mesmo ato, realizando escolhas  imprescindíveis  para  a  vida  seguir  seu curso.  De qualquer maneira  isso não diminui o  lugar do significado, pois não está isolado da construção do “edifício” do sentido. Não é uma modalidade peri‐férica da significação, mas uma unidade que pode permitir‐nos  compreender  os  campos  mais  am‐plos do sentido, da vivência e da própria consciên‐cia.  De  fato  palavras  como  “chuva”  e  “viagem”, podem  produzir  inumeráveis  efeitos  de  sentido, formações  de  sentido,  em  função  de  quem  está falando, para quem, por quais motivos, com quais orientações,  de  que modo,  com  relação  a  quais referentes, e assim por diante. Contudo, o fato de haver um acordo social relativo à constituição dos campos semânticos para tais palavras, isto é, com relação  que  modalidades  de  generalização  elas mais  comumente  são  postas  a  produzir,  não  é impeditivo  da  singularidade  dos  sentidos,  mas também uma das suas condições de possibilidade. O mesmo se pode dizer para quando é necessário nos fazermos, em meio a toda diversidade inesgo‐tável dos sentidos, entender por alguém, dizer‐lhe algo  que  posicione  nossas motivações  e  necessi‐dades,  nossas  orientações  e  propósitos,  nossos compromissos  e  valores, mesmo  sendo  eles  algo tão nosso, tão privado, tão íntimo e intransferível. Assim  tanto  a  difusão  dos  significados  em  senti‐dos, quanto a condensação dos sentidos em signi‐ficados,  são momentos  dialéticos  de  um mesmo processo que é a  significação, ou a mediação  se‐miótica, ambos os  termos  tomados em sua acep‐ção mais abrangente, como produção de significa‐dos e sentidos mediante o signo, mediante a pala‐vra  como  signo  humano  por  excelência,  seja  ela falada, escrita ou gesticulada. Por  fim, o  tema da unidade de análise em Vigotski, do significado da palavra como unidade de análise é correlato ao da “palavra  significativa”  como  “microcosmo”.  Se‐gundo  este  autor:  “A palavra  se  relaciona  com  a consciência  (...)  como  a  célula  viva  com  o  orga‐nismo, como o átomo com o cosmos.  (...) A pala‐vra  significativa  é  o  microcosmo  da  consciência humana.”  (VIGOTSKI,  1934/1989d,  p.  208  –  grifo na fonte). Quanto a esta passagem devo destacar 

dois  pontos:  (a)  certamente  que  a  palavra  não pode  tomar  todo  o  lugar  da  consciência,  como célula  e  átomo  não  são  mais  importantes  que organismo e cosmos; mas  também  (b) como uni‐dade viva ela não é algo simplesmente “utilizado” pela  consciência de  tal modo que pudesse de al‐guma maneira tornar‐se “dispensável”, ao contrá‐rio,  a  totalidade  não  se  realiza  sem  sua  unidade constitutiva.  2.5 Princípio da compreensão do psiquismo huma‐no mediante  sua  gênese  histórica  (origem  e  de‐senvolvimento)  Discorremos no tópico anterior sobre duas unida‐des possíveis para a definição da própria existên‐cia  da  consciência  (critério  ontológico)  e  para  a definição de como analisá‐la, compreendê‐la  (cri‐tério  metodológico).  Discorrendo  brevemente sobre  o  lugar  do  conceito  de  “significado”  em Vigotski,  pudemos  tocar  no  tema  das  relações pensamento e linguagem, e das relações sentido e significado.  Contudo,  tal  exposição  fica  devendo ainda  a  alusão  a  uma  proposição  que  Vigotski considera um ponto  central  em  sua  teoria  sobre as relações entre pensamento e  linguagem. Refe‐rindo‐se  a  estudos  realizados  por  seu  grupo,  diz que eles:  “mostraram que  tomando o  significado da  palavra  como  uma  unidade  do  pensamento verbal nós criamos o potencial para investigar seu desenvolvimento e explicar sua característica mais importante nos vários estágios de desenvolvimen‐to. O resultado principal deste trabalho, contudo, não é esta tese por ela mesma, mas uma conclu‐são subseqüente que constitui o centro conceitual de  nossa  investigação,  qual  seja,  a  conclusão  de que o significado da palavra desenvolve‐se. A des‐coberta de que o significado da palavra muda e se desenvolve é nossa maior e fundamental contribu‐ição  à  teoria  do  pensamento  e  da  fala.  É  nossa principal  descoberta,  uma  descoberta  que  tem nos permitido superar o postulado da constância e imutabilidade do significado da palavra que garan‐te os fundamentos das teorias anteriores do pen‐samento e da fala” (VIGOTSKI, 1934/1987, p. 245‐245 – grifo na fonte). O desenvolvimento do signi‐ficado das palavras é  tratado ao  longo de  todo o livro  “Pensamento  e  linguagem”  (VIGOTSKI, 1934/1987;  1934/1989b;  1934/2001).  Há  duas formas  importantes  pelas  quais  tal  processo  de desenvolvimento é abordado: uma é o estudo dos “conceitos artificiais”, outra é o estudo da relação 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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entre  os  “conceitos  cotidianos  e  os  científicos”.  Sem entrar em detalhes, do primeiro tipo de estu‐do  se  deduziram  três  grandes  modalidades  de organização dos significados e/ou da relação pen‐samento e  linguagem:  (a)  sincretismo  (aglomera‐ção);  (b)  pensamento  por  complexos  (associa‐ções); (c) conceitos propriamente ditos (sistemati‐zação). Para  a  criança pequena predomina  a pri‐meira,  para  o  adulto  a  última, mas  ao  longo  do tempo ou num mesmo período elas se combinam também. Nada impede que nós adultos tenhamos compreensão  sincrética  de  assuntos  novos  ou difíceis  de  aprender,  nem  que  procedamos  por associações assistemáticas ou pré‐conceituais em alguns temas. O segundo tipo de estudo foi o que procurou  investigar  as  relações  entre  conceitos “cotidianos”  e  “científicos”.  Disto  se  tiraram  as conclusões gerais de que: os conceitos cotidianos avançam do  concreto para o abstrato  com ajuda dos  científicos;  já os  científicos  avançam do  abs‐trato para o concreto, com ajuda dos cotidianos.   É algo semelhante o que pode se passar com um grupo  de  estudos.  Agora  este  texto  pode  estar abstrato, mas com ajuda dos exemplos cotidianos que  vão  surgir  nas  discussões  eles  poderão  se tornar mais potentes, mais concretos, mais capa‐zes de aplicar‐se à vida, à profissão, e de ajudar a organizá‐las.  Isso será retomado constantemente. Por ora, apenas nos cabe deduzir que se a unidade para a análise da  consciência humana é um pro‐cesso  que  se  desenvolve,  a  própria  consciência também  não  permanece  imutável  ao  longo  de nossas  vidas. Desenvolver‐se  é  uma  propriedade fundamental da  consciência  tanto quanto de  sua unidade  de  análise.  Ela  se  transforma  não  só quanto aos seus conteúdos, objeto de sua ação e simbolização, mas  também quanto  aos  seus mo‐dos de organizar‐se, em sua dialética entre forma e  conteúdo.  A  consciência  transforma‐se,  desen‐volvesse‐se ao  longo de períodos sucessivos dife‐renciados, passa por transições críticas entre eles e se constitui, num momento atual (sincrônico) de seu  funcionamento,  da  articulação  entre  suas aquisições  anteriores  e  seu  potencial  futuro,  em relação  com  os  outros.  Do  mesmo  modo,  com respeito a  todo psiquismo humano, a abordagem histórico‐cultural, busca  compreender  sua  forma‐ção  social  como  processo  de  desenvolvimento, auto‐determinado  e  inter‐determinado, múltiplo, complexo  e  que  não  se  dá  de modo  linear, mas “revolucionário”, na dialética entre  linhas “evolu‐

tivas”  e  “involutivas”.  Tal  processo  envolve,  por‐tanto, avanços e  retrocessos, períodos de aquisi‐ções  gradativas,  acúmulos  quantitativos,  mas também  momentos  de  crise  que  podem  rumar para pontos de culminância nos quais se realizem sínteses  dialéticas,  pontos  de  virada,  guinadas, saltos  qualitativos,  nos  quais  as  nossas  motiva‐ções,  orientações  e  valores  se modificam,  inver‐tem‐se,  subvertem‐se  ou  convertem‐se  em  ou‐tros,  como  vimos  anteriormente16. Dito  isso, po‐demos  destacar  ainda,  brevemente, mais  alguns princípios metodológicos gerais que  caracterizam a  orientação  da  teoria  histórico‐cultural  para  a pesquisa das  funções psíquicas superiores,  isto é, propriamente humanas, mas que no nosso ponto de  vista  são  de  valor  primordial  também  para  a prática profissional como um todo.  No capítulo 5 da coletânea “A formação social da mente”,  são  apresentados  por  Vigotski  (1930/ 1989b),  três  parâmetros  básicos  para  pesquisas psicológicas  que  se  proponham  a  compreender seu  objeto  de  estudo  do  ponto  de  vista  de  sua gênese,  sua origem  e desenvolvimento histórico: (a) a análise de processos e não de objetos;  (b) a explicação dinâmico‐causal e não apenas a descri‐ção;  e  (c)  investigar  processos  aparentemente “fossilizados”  mediante  a  reconstituição  da  sua origem  viva. O parâmetro  “a” nos  sugere que  as funções psíquicas, assim como o homem no qual a síntese viva delas se realiza, não podem ser trata‐das como “coisas” que tão somente se possa me‐dir ou pesar, como algo estático e  imutável. Fun‐ções  psíquicas  não  são  objetos,  mas  potências, modos de agir, sentir e pensar, cabendo conside‐rá‐las  sempre  em  seu movimento,  nas  transfor‐mações que as tornaram aquilo que são, e que  já as estão tornando aquilo que serão. Uma apreen‐são  instantânea de qualquer manifestação psíqui‐ca  isolada da processualidade da atividade huma‐na, não poderá ser suficiente para compreender a dinâmica que a gerou, tampouco aquilo que agora ela é e pode vir a  ser.  Isso conduz ao parâmetro “b”  que  indica,  em  Vigotski,  uma  diferenciação entre “explicar” e apenas “descrever”. Para expli‐car  também  é preciso descrever, mas  esse  é um movimento insuficiente para a explicação. Descre‐vendo superficialmente uma baleia podemos igua‐lá‐la  a  um  peixe,  ou  falando  das  características 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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externas  de  um morcego,  poderemos  igualá‐lo  a um pássaro. Mas do ponto de vista de sua origem, baleia  e morcego  são  os mais  próximos  um  do outro do que dos pares similares em sua aparên‐cia. Vigotski recorre à contribuição de Marx, para quem  “se  as  aparências  coincidissem  com  a  es‐sência, a  ciência não  seria necessária”. Assim ex‐plicar é buscar a essência, e a isso só se chega pela compreensão  da  gênese,  origem  e  desenvolvi‐mento.  Quanto  ao  parâmetro  “c”,  trata‐se  tam‐bém  de  algo  que  se  desdobra  do  dito  anterior‐mente. Contudo, o  foco está em que pode haver comportamentos,  hábitos  motores  ou  intelectu‐ais,  modos  de  organizar  talvez  nossos  próprios sentimentos, que tenham se tornado  já tão auto‐máticos,  aparentemente  tão  “naturais”,  que  não percebamos  que  tiveram  uma  origem  histórica, social, cultural, mediada. Assim a tais organizações “cristalizadas” do funcionamento psíquico, Vigots‐ki nomeou com a metáfora do “fóssil”. Um fóssil é algo sem vida que trás as marcas de que algo vivo esteve ali antes e  lhe deu origem. Contudo trata‐se  de  algo  apenas  aparentemente  sem  vida.  O papel do psicólogo é reconstituir a origem media‐da e viva desses processos tornados “imediatos” e “sem vida”.  Na  fusão desses  três parâmetros  reside a análise “genético‐causal”.  Ela  estuda processos  e não  só objetos.  Busca  as  causas  e  não  só  os  efeitos,  a explicação e não só a descrição, a essência e não só a aparência, bem como o vivo e não o fossiliza‐do.  Ela  o  faz  pelo  recurso  ao  estudo  da  gênese. Uma última consideração sobre a abordagem dos fenômenos  pela  gênese,  ou,  se  preferirmos,  por sua  história,  é  a  de  que  há,  pelo menos,  quatro planos  (ou domínios) genéticos, conceitos de his‐tória, encontrados nas pesquisas de Vigotski, por parte  de  seus  estudiosos  contemporâneos  (ver WERTSCH, 1985; e  SCRIBNER, 1985). Aqui os no‐mearemos  como:  filogênesse;  sociogênese; onto‐gênese;  e  microgênese.  A  filogênese  define‐se como  história  do  desenvolvimento  da  espécie. Esse domínio diz respeito ao  longo processo evo‐lutivo pelo qual viemos a surgir como espécie com traços  distintivos  decisivos  para  a  organização biológica que possuímos hoje. Organização neces‐sária, mas  não  suficiente  para  nos  desenvolver‐mos como  indivíduos,  já que  se  trata  justamente de  uma  constituição  orgânica  de  grande  plastici‐dade  e  abertura  às  transformações  próprias  da cultura. Vigotski (1931/1989) ressalta que do pon‐

to  de  vista  da  espécie  todos  os  grupos  culturais possuem o mesmo aparato e, portanto, o mesmo potencial  para  desenvolver  o  que  qualquer  ser humano  é  capaz  de  desenvolver.  As  diferenças entre  os  sucessos  ou  insucessos  dos  povos  nada teriam a ver com os  indivíduos que os compõem terem menor ou maior  capacidade orgânica para desenvolver este ou aquele aparato simbólico ou técnico.  Chamaremos  de  Sociogênese  a  própria história  do  desenvolvimento  dos  diferentes  gru‐pos  sociais,  ou  seja,  a  história  no  sentido  mais específico  do  termo,  a  história  humana.  Certa‐mente, mesmo  pertencendo  todos  os  seres  hu‐manos à mesma espécie, as sociedades  têm suas características  culturais  distintas,  seus  códigos peculiares,  seu  próprio  domínio  da  técnica  e  da linguagem. Assim também uma mesma cultura, ao longo  do  tempo,  terá  sua  própria  trajetória,  sua tradição  específica,  avanços  e  retrocessos,  sua formação  política,  seus  inimigos  e  aliados,  seus conflitos internos e com outros povos, seus dispo‐sitivos de controle e suas lutas por emancipação, e assim  por  diante.  Certamente,  ao  longo  desse longo  tempo  histórico,  formas  de  significar  o mundo  são  desenvolvidas,  modos  de  educar  os mais novos, tanto quanto. De modo que a forma‐ção social do psiquismo individual também decor‐re das propriedades esse plano genético, embora não sejam coincidentes.   Chamamos de ontogênese a história do desenvol‐vimento do ser humano singular. Trata‐se do pro‐cesso histórico que compreende todo o tempo de vida de uma pessoa, de um  indivíduo, de um  ser único. Para Vigotski  “de nenhuma maneira  (...)  a ontogênese repete de alguma forma ou reproduz a  filogênese  ou  constitui  seu  paralelo”  (1931/ 1989, p. 93). Não repete basicamente pelo motivo de  que  ao  surgirem  os  primeiros  representantes adultos  da  espécie  Homo  sapiens,  havia  ainda adiante  deles  todo  o  desenvolvimento  histórico das  civilizações  e  culturas  humanas  por  se  dar. Enquanto que a criança em seu desenvolvimento ainda não é um adulto em termos biológicos, mas já está imersa numa cultura com todo seu acúmu‐lo  simbólico  e  técnico  disponível  para  ela  –  fun‐dindo‐se seu desenvolvimento biológico com o da apropriação dos meios  culturais que  a  sociedade lhe  fornece. Num  exemplo  prosaico,  poderíamos imaginar que para a humanidade  ter chegado ao domínio da  tecnologia que permite criar os com‐putadores  teve que passar por um  longo  avanço 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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técnico, desde o domínio do  fogo, à siderurgia, à eletrônica, etc.. Entretanto, é bem provável que a uma  criança  seja  primeiro  permitido  usar  um mouse  ou  teclado  de micro‐computador  do  que lidar  com  um  fogão  de  cozinha  ou  uma  churras‐queira. A ontogênese do psiquismo humano não repete as mesmas etapas pelas quais a humanida‐de passou,  justo por nossa capacidade de  intera‐girmos desde crianças com um mundo cultural  já constituído –  com  instrumentos,  técnicas e  siste‐mas de  linguagem que  jamais descobriríamos ou criaríamos  sozinhos  numa  só  geração,  dos  quais podemos nos apropriar no tempo de apenas uma vida humana, com ajuda de outras pessoas já inse‐ridas  na  cultura,  e  das  práticas  sociais  nas  quais ela se organiza. O tema da ontogênese está articu‐lado ao da periodização do desenvolvimento.  Muito se discutiu sobre Vigotski conceber ou não o desenvolvimento em  termos de “fases”, por tal conceito em geral ser muito ligado à idéia bastan‐te  criticada  de  uma  “universalidade”,  ou  caráter “trans‐cultural”,  das mesmas  fases,  cuja  explica‐ção remeteria, via de regra, à determinação bioló‐gica  no  sentido  restrito  do  termo.  É  certo  que Vigotski não concebe  fases do mesmo modo que Piaget  ou  Freud,  contudo  também  é  certo  que assume  a  existência  de  distinções  qualitativas entre os diferentes momentos de  vida do  indiví‐duo. Vigotski não apresenta termos como “perío‐do  sensório‐motor,  pré‐operatório,  operatório concreto e operatório formal” (Piaget), nem como “fase oral, anal,  fálica, período de  latência e  fase genital” (Freud). Em geral nota‐se que ele fala em termos mais prosaicos como “crianças pequenas”, “crianças  pré‐escolares”,  “crianças  escolares”, “adolescentes”,  “adultos”.  Mas  tais  termos  não ganham, digamos um estatuto de rótulo fixo para cada  idade,  e  cada  idade  não  deixa  de  ser  com‐preendida em função das relações sociais que  lhe são predominantes e com as quais estão articula‐das  as  principais mudanças  no  desenvolvimento. Como  as  relações  afetivas  com  os  pais  para  as crianças  pequenas,  a  brincadeira  para  as  pré‐escolares,  a  escolarização  para  as  escolares,  a eleição de um projeto de vida para os adolescen‐tes,  a  atividade  trabalho  para  os  adultos,  por  e‐xemplo. De qualquer maneira,  cabe  lembrar o  já dito  anteriormente,  quanto  ao  ser  humano  ser componente  das  próprias  relações  sociais  que  o impulsionam para novos patamares de desenvol‐vimento. Além disso, um delimitador para as mu‐

danças  qualitativas  no  desenvolvimento  ontoge‐nético, pode ser encontrado no conceito de “crise de desenvolvimento”. Segundo estudiosos de sua obra, Vigotski  indicou que “o processo de  involu‐ção domina sobre o de evolução durante os perí‐odos etários de  ‘crise’. Contudo,  cada  ‘crise’  tem seu próprio ‘ponto de culminância’ (kulminatsion‐naia totchka) que é o locus no qual a síntese dialé‐tica  se  completa”  (VALSINER  e  VAN  DER  VEER 1991, p. 9). Além disso, “os pontos exatos de início e fim das crises não podem ser noticiados de mo‐do  exato, mas  os  períodos  durante  os  quais  as transformações atuais das estruturas psicológicas têm  lugar podem  ser definidos por  causa de  sua aparência  desorganizada  e  natureza  caótica.  Seis períodos de  crise no desenvolvimento da  criança foram  sublinhados  por  Vigotski:  aquele  da  idade dos  recém‐nascidos, o primeiro, o  terceiro, o  sé‐timo, o décimo terceiro, e o décimo sétimo anos. É  durante  estes  períodos  que  a  emergência  de níveis  mais  elevados  de  organização  psicológica têm  lugar”  (VALSINER e VAN DER VEER, 1991, p. 8).   Tais  pontos  de  “culminância”  podem  ser  vistos como pontos de “mudança de rumo” e não como um ápice que atingido estabeleceria pleno equilí‐brio,  total  ausência  de  tensão,  suspendendo  o drama  da  existência  humana.  Justamente  pela visão de alternância nas relações de predominân‐cia entre as  linhas e  fatores de desenvolvimento,  e não um avanço de simples superação progressi‐va  linear,  cabem  ainda  algumas  considerações com  relação à  “ontogênese”.  Leitores  contempo‐râneos dos conceitos de Vigotski sobre este domí‐nio genético  ressaltam não haver  “modelo  ideal” de  desenvolvimento  a  ser  atingido  por  todas  as pessoas. Tampouco  a  criança é  vista  como  “ape‐nas alguém que ainda não atingiu esse modelo”. Cada momento de nossas vidas, singular no tempo e espaço, tem seu próprio valor, seu modo de ser e significar, suas motivações e necessidades. Con‐tudo,  também  vale  lembrar  que  Vigotski  estava ocupado em pensar uma educação, uma interven‐ção social sobre o desenvolvimento que contribu‐ísse para a conquista e manutenção de uma vida tão  saudável  e  autônoma  quanto  possível.  Por certo,  se  não  há  “modelo  ideal”  de  desenvolvi‐mento, “etapa  final” preconcebida a ser necessa‐riamente atingida, também não é qualquer moda‐lidade  de  relação  social  que  se  incentiva,  como aquelas mais coercitivas e limitantes que a injusti‐

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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ça  social,  a  intolerância  e  o  abuso  de  poder  im‐põem a muitas pessoas,  inclusive às que têm me‐nos  força  física  para  se  defender.  Ter  clareza  de que  o  ser  humano  sempre  se  desenvolverá  de algum modo, atribuirá sentidos às coisas, mesmo que  sofra  severas  adversidades,  não  é  o mesmo que  assumir um  relativismo de que  todo  e qual‐quer modo de as pessoas conviverem com as ou‐tras seja igualmente desejável e aceitável do pon‐to de vista de nossos valores éticos e nossa visão de mundo.  Por fim, o termo microgênese refere‐se à história do desenvolvimento de processos psíquicos parti‐culares de dada pessoa  junto a outras num  inter‐valo de  tempo relativamente curto. Por exemplo, o aprendizado de regras necessárias para solucio‐nar um problema lógico‐matemático novo, a com‐preensão  e uso de  táticas  até  então desconheci‐das para se participar de um jogo de estratégia,  o ato de emocionarmo‐nos com a leitura de um livro ou uma peça de teatro, podem envolver processos microgenéticos.  Pois  funções  psíquicas  estão  em jogo na  aprendizagem de  regras ou procedimen‐tos assim como na  fruição da obra de arte. Diga‐mos, ainda, que atos de “tomada de consciência” com  relação  a um  conceito  relevante para nossa atuação profissional, a direitos nossos como cida‐dãos  ou  ainda  à  concepção  quanto  aos  nossos cuidados com a saúde, também podem ser vistos como  “ponto  de  culminância”  de  processos mi‐crogenéticos.  Trata‐se,  por  assim  dizer,  da  onto‐genênese “em ato”, realizada no tempo presente, e “em potência”, abrindo caminhos para a aquisi‐ção  do  novo,  num  futuro  próximo17. Não  é  algo 

17 O avanço do desenvolvimento humano em termos ontoge‐néticos e microgenéticos pode ser conceituado, em Vigotski, como  relativo à chamada “zona blijaishiego  razvitia”. Termo que literalmente pode ser traduzido como “A zona do desen‐volvimento mais próximo”, mas que tem ganhado diferentes traduções  para  fins  editoriais,  como:  “zona  de  desenvolvi‐mento proximal”  (da  trad. americana); “zona de desenvolvi‐mento  próximo”  (da  trad.  espanhola);  “zona  de  desenvolvi‐mento  imediato”  (da  trad.  brasileira  de  Paulo  Bezerra);  e “zona de desenvolvimento eminente”  (da  trad. brasileira de Zóia Prestes). Em Vigotski, a ZBR  indica a “distância” entre o desenvolvimento  “real”  (posto em  jogo pela pessoa em  sua atividade  individual) e o desenvolvimento “potencial” (emer‐gente  da  atividade  partilhada  da  pessoa  com  alguém mais experiente que  lhe proporciona mediações necessárias para extrapolar  seus  limites  individuais)  (VIGOTSKI,  1935/1989). Para  Leontiev  (1989) na ontogênese há mudanças na  “ativi‐dade principal”, que não é a que ocupa necessariamente mais 

“instantâneo”, pois gênese envolve duração, pro‐dução e não “criação do nada”. Mas subentende‐se que inscreva‐se num tempo relativamente bre‐ve,  articulado  com processos  concomitantes. Co‐mo  nos  domínios  citados  antes,  o  foco  principal não é a culminância, mas o próprio processo. Con‐tudo,  na  ontogênese  as  crises  de  idades  podem dar talvez mais visibilidade sobre o curso geral do desenvolvimento.   A  investigação  dos  diferentes momentos  de  um processo microgenético parece mais exeqüível  se notamos  que  a  ontogênese  é  um  processo  que dura o  tempo de  toda uma vida e por vezes só a vislumbramos retrospectivamente. Por outro lado, a microgênese, por sua dinâmica e simultaneidade de  diferentes  aspectos  inter‐funcionais  em  jogo, também coloca dificuldades se pretendemos noti‐ciar seu exato surgimento, seus diferentes e des‐contínuos  momentos  constitutivos  (avanços,  re‐trocessos, mudanças)  ou  sua  exata  “conclusão”, ponto  de  culminância  ou  “mudança  de  rumo”. Como a vida é  ininterrupta e as conquistas e per‐das anteriores estão sempre envolvidas no modo de  funcionamento atual, nem  sempre  será possí‐vel discernir  claramente  tal  gênese. Ainda  assim, os  processos microgenéticos  emergem  como  im‐portante objeto de pesquisa e talvez também foco de atuação profissional. Estudiosos vêm desenvol‐vendo  a  chamada  “análise microgenética”  como aporte metodológico  rico  em possibilidades. Vol‐taremos  a  esse  ponto  em  breve.    Por  ora,  estes são  os  princípios  teóricos  básicos  em  psicologia geral  de  orientação  histórico‐cultural  que  nos coube destacar. Em seguida trataremos de refletir sobre  sua  ligação bem como a dos princípios éti‐cos com a reflexão sobre a atuação do psicólogo.     

tempo, mas  aquela  com  a  qual  se  relacionam  as  principais mudanças  no  desenvolvimento. O  jogo  de  papéis  na  idade pré‐escolar, e a  instrução na  idade escolar, são exemplos de atividades principais. Pode‐se relacionar a ZBR com tais ativi‐dades: o jogo gera ZBR (VIGOTSKI, 1933/1989), o processo de ensino‐aprendizagem  escolar  gera  ZBR  (VIGOTSKI,  1935/ 1989). Ademais, as relações afetivas com a mãe para o bebê e os sonhos com um projeto de vida para o adolescente  tam‐bém são considerados fonte de ZBR (VALSINER, com. pessoal, jun. 1992). 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa abordagem histórico‐cultural.  “O princípio da prática e sua  filosofia se  impõem uma vez mais: a pedra que  foi  rejeitada pelos construtores, esta veio a ser a pedra angular”18

 — Vigotski (1927/1996, p. 346)  O que vem por último na exposição não é o menos importante,  e  pode  fazer‐se  a  pedra  angular  de todo  nosso  trabalho,  sem  a  qual  sua  arquitetura se torna  frágil. Cabe dizer, contudo, que na cons‐trução de um edifício teórico é preciso evitar tan‐to  excessiva  flexibilidade,  quanto  excessiva  rigi‐dez. A  primeira,  para  não  abrirmos mão  daquilo sem o que nossa visão de mundo em nada se dife‐renciará do  senso  comum ou da alienação. A  se‐gunda, para não nos afeiçoarmos a certas  formu‐lações dogmáticas, que tudo devem “explicar”, às quais tentemos fazer a realidade se adequar para não  contradizê‐las.  Não  é  para  isso  que  devem servir  as  teorias,  senão  para  permitir  compreen‐der  a  própria  realidade,  tanto  quanto  possível, como ela é, mesmo que não  seja  como  imaginá‐vamos ou desejávamos que fosse – e é a  isso que chamamos de “crítica”. É um desafio colossal pen‐sar a dimensão prática de todo e qualquer enunci‐ado teórico, e nenhuma abordagem em psicologia é ainda hoje  capaz de  fazê‐lo  sem deixar alguma lacuna ou  forçar a  situação. No entanto, o modo possível  de  articular  os  princípios  com  a  prática não  há  de  ser  o  de  tudo  operacionalizar  previa‐mente, o de  tudo colocar em  termos de  técnicas ou  procedimentos  especificamente  desenhados para toda e qualquer situação  imaginável – tiran‐do do profissional  a  capacidade de  analisar  criti‐camente  as  situações  diversas  e  formular  seus próprios planos de trabalho para agir com relação a elas. Como há muito se tem tido, nos cursos de psicologia, “não estamos numa profissão que para tudo  tenha  receitas  de  bolo”.  Ou  hoje  se  diria “não  temos  para  cada  relação  humana  um  algo‐ritmo computacional”. Mas essa é apenas parte da verdade.  Pois  também  está  claro  que  não  dar qualquer  orientação  sobre  a  atuação  prática  e simplesmente  dizer  ao  profissional  que  ele  deve 

18 Vigotski está deve estar se referindo ao Salmo 117, ver. 22 (para os judeus salmo 118). O mesmo verso que é retomado numa  fala  de  Jesus,  narrada  no  Evangelho  de Mateus,  cap. 21, ver. 42. 

“usar a sua criatividade”, certamente não é a ati‐tude mais correta. Como diz Vigotski (1930/1987), a  imaginação tem como sua fonte a realidade e a experiência acumulada. Deixar tudo ao critério de um  abstrato  “ser  criativo”,  sem  necessidade  de pesquisar, estudar, passar por experiências  ante‐riores, pode nos condenar a só repetir o já apren‐dido sem necessidade de ciência alguma. Corren‐do o risco de ficar‐se no senso comum e, por fim, propor  o  que  poderia  ser  feito  sem  que  estivés‐semos lá, sem que a psicologia como ciência fosse necessária.  Assim  nos  colocamos  diante  de  um desafio, não podemos fornecer um algoritmo, mas também não podemos nos omitir de pensar sobre a ação, discutir a ação, formular exemplos de mo‐dos possíveis de agir. O caminho que adotei aqui é intermediário entre a teoria e a técnica. Não pro‐porei  para  cada  princípio  teórico  anterior  uma técnica  que  o  realiza,  pois  isso  seria  demasiado artificial, sem o contexto da atuação de cada pes‐soa. Mas,  ao mesmo  tempo  tentarei  traduzir  os princípios de psicologia geral em breves reflexões sobre  atitudes  necessárias  ao  agir  do  psicólogo que  se orienta pela  abordagem  histórico‐cultural em  psicologia,  tal  como  a  concebo  hoje,  neste momento  histórico.  Reflexões  que  o  convido  o leitor a fazer e refazer comigo.  Façamos, então, um exercício de pensar as diretri‐zes de ação profissional do psicólogo condizentes com cada um dos princípios éticos e teóricos cita‐dos antes já aqui neste texto.  

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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PRÍNCÍPIOS  EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA I ‐ Princípios éticos  O psicólogo pode trabalhar: 1 ‐ Critérios axiológicos:  * Orientando seu método por suas metas 

 a) O valor da superação     * Em função de metas que vão além dos  limites  individuais atuais das pessoas e 

dos  seus  próprios  –  participando  da  produção  de  “zonas  de  desenvolvimento proximal”19.  

b) O valor da cooperação  * Propondo modalidades de atividades nas quais as potencialidades de uns con‐tribuam para a superação dos limites dos outros e as dos outros para a superação dos de cada um.   

c) O valor da emancipação  * Sugerindo, proporcionando e participando de atividades que permitam às pes‐soas ampliar os limites de sua autonomia, sua capacidade de compor, de superar criticamente  superstições,  de  propor  alternativas  e  engajar‐se  ativamente  em ações para concretizá‐las.   

2 ‐ Critério ontológico pa‐ra a ética: 

* Dimensionando suas metas no horizonte dos limites e possibilida‐des históricos  

d) A historicidade dos valores  * Avaliando criticamente a possibilidade de agir em conformidade com seus prin‐cípios e a tensão que isso envolve. * Não utilizando meios contrários aos fins a que se propõe. * Sabendo que fins sem meios que os realizem tornam‐se fins inócuos. * Compreendendo as contradições presentes no espaço de  intervenção entre o que joga a favor dos potenciais humanos e o que os restringe. * Compreendendo que  tanto propor o  inalcançável, quanto apenas  repetir o  já alcançado são ações que geram frustração. * Propondo, portanto, desafios  condizentes  com  as possibilidades  concretas de transformação da situação social, no momento histórico dado. * Lembrando, por fim, as palavras de Paulo Freire de que “devemos fazer o que é possível  fazer hoje para que aquilo que não é possível  fazer hoje seja  feito ama‐nhã”...  

3 ‐ Critério metodológico para a ética 

* Agindo como um componente constitutivo da própria realidade na qual se está intervindo.  

e) A intervenção como constru‐ção 

*  Encaminhando  sua  própria  atuação  profissional  como  processo  de mediação que participa da construção das situações sociais às quais que se propõe a enten‐der  e  sobre  as  quais pretende  agir  –  situações  não  existentes  até  a  efetivação dessa mesma mediação. * Percebendo, portanto,  sua própria ação e consciência como processos que  se transformam juntamente com a realidade social sobre a qual se intervém, fazen‐do parte dela também, tendo assim a transformação de si mesmo como um obje‐tivo profissional e ético.  

     

19 Conferir nota “17”, p. 29. 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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PRÍNCÍPIOS  EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA II ‐ Princípios de psicolo‐gia geral 

O psicólogo pode trabalhar: 

1 ‐ Princípio da unidade psicofísica  

*  Entendendo mente  e  corpo  como  aspectos  da mesma  realidade  complexa  e contraditória, que é a existência humana concreta. * Dialogando com outros saberes que permitam compreender melhor essa totali‐dade e suas condições de possibilidade.  

2 ‐ Princípio da determi‐nação da consciência pela existência social  

* Sendo psicólogo do homem concreto, que em sua existência social se faz cons‐ciente, e não  apenas  “psicólogo da  consciência ou do  inconsciente” de um ho‐mem, nem “psicólogo das funções mentais” de um homem. * Atuando na identificação e compreensão da multiplicidade de fatores que com‐põem a vida social da qual a consciência humana emerge e na qual ela cumpre função. * Entendendo o próprio ser humano como componente de sua existência social, não sendo ela externa a ele. * Situando seu foco de ação com as pessoas na articulação dos diferentes modos de existir do social frente aos quais/no interior dos quais suas vivências se consti‐tuem (classes, instituições, grupos, intersubjetividade e indivíduo).  * Elegendo as  táticas possíveis em  cada plano da existência  social, assim  como priorizando os planos em que transformações mais eficazes sejam exeqüíveis no momento histórico dado em função das condições disponíveis. {por exemplo: tra‐balhar com indivíduos não é deixar de trabalhar com o ser social, etc., nem sem‐pre se pode intervir com o mesmo peso com relação a todos os planos de articu‐lação da existência social} * Identificando, registrando e buscando compreender a dinâmica geral do drama de relações e papéis sociais próprios dos diferentes espaços  intersubjetivos, gru‐pais,  institucionais, de  classe e  ainda de  gênero, de etnia e de  geração. Drama esse que, com suas regras próprias de prescrição e performance de papéis sociais, implica redes de ações partilhadas, complementares e/ou antagônicas, que cons‐tituem a própria produção situada, contextualizada, de mediações simbólicas nas quais cada pessoa, como ator social, se constitui – se  limita, se delimita e se po‐tencializa.  

3 ‐ Princípio da consciên‐cia como psiquismo pro‐priamente humano   

* Privilegiando ações que viabilizem a potencialização das funções psíquicas pro‐priamente humanas, ou  seja, aquelas nas quais o homem  se  realiza  como  tal e que  são  a  um  só  tempo:  (a)  voluntárias  –  que  exigem  tomada  de  decisão;  (b) conscientes – que exigem pensar sobre o pensamento, sobre a emoção e a ação; (c) mediadas  – que  exigem  recorrer  à  linguagem;  e  (d) de origem  social  – que implicam modos de participação de um outro e de ver a si mesmo como um ou‐tro.  

a) Consciência como conheci‐mento partilhado   

* Sendo um organizador e participante de situações em que as pessoas comuni‐cando‐se com demais (sobre o mundo, sobre os outros, sobre si mesmas) possam ir reorganizando seu modo de agir e também sua própria consciência do real e de si. * Possibilitando ações em que a  linguagem partilhada entre as pessoas  trate de situações  relevantes, do ponto de vista vital, para as pessoas envolvidas, desco‐lando‐se das  formas mais  automatizadas  e  imediatas de  entendimento  e  senti‐mento para a realidade, desarticulando‐as e permitindo o surgimento de novas e mais potentes formações de sentido.  

b) Consciência como vivência de vivências  

* Produzindo e dando visibilidade a situações em que a comunicação social permi‐ta um ato de “espelhar” a ação, a fala e a emoção de cada um, proporcionando uma  relação de suspensão, estranhamento e distanciamento necessários para a tomada de consciência da situação vivida junto com outros e junto a si mesmo. 

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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c) Consciência como reflexo e refração da realidade  

* Atentando para que na sua própria consciência e na daqueles com quem atua, tanto se “reflete” uma imagem do mundo real (já que toda consciência é “consci‐ência de algo”), quanto se “refrata” essa mesma imagem (já que toda consciência é “consciência de alguém”, ou seja, permeada pelas necessidades e orientações desse alguém). * Percebendo e  lidando  com  a  contradição dialética de  a  consciência  tanto  ser poder de ação e compreensão quanto limite para agir e compreender – de forma a não tratá‐la nem como  impotente nem como onipotente no plano da transfor‐mação da realidade.  

d) Consciência como processo cognitivo e afetivo  

* Considerando que a compreensão que as pessoas têm da realidade não é ape‐nas intelectual, mas nuançada por afetos, os quais compõem a realidade concreta do homem consciente. Que a compõem não só como algo que pode atrapalhar sua visão mais crítica da realidade, mas também como algo que permite que tal visão se construa – se houvesse uma consciência totalmente desprovida de afeto, ela não teria como lidar de modo realista com o mundo. * Não operando no  sentido da  simples  contenção dos processos afetivos  como garantia da emergência de ações eficazes e adaptadas, mas no da potencialização das emoções propriamente humanas necessárias para a ampliação da capacidade das pessoas de comporem com o mundo, com mais bem estar e alegria. * Com atitude de empatia em  relação às emoções do outro, no sentido de que mesmo as causas das emoções sendo imaginárias, as próprias emoções continua‐rão sendo reais e merecem consideração e respeito. * Com atitude também de distanciamento com relação às emoções do outro, no sentido de que, mesmo elas sendo reais, isso não quer dizer que se tenha claro o que as está motivando. Além do que, sermos totalmente impregnados pelas emo‐ções do outro não sempre os ajudará a lidar melhor com elas.  

e) Consciência e o problema dos processos não conscientes  

* Tendo conhecimento da dialética entre as  funções da consciência e sua nega‐ção, não só pelo fato de que para saber de algo não é possível saber de tudo a um só  tempo, como  também pelo  fato de que, como diz Vigotski “mesmo sabendo exatamente  como  agir,  podemos  agir  de modo  diferente”  –  pois  nem  sempre conhecemos  as motivações  das  nossas  ações,  sentimentos  e  pensamentos  ou dominamos a disposição deles/para eles em nós.  * Proporcionando momentos de simbolização, comunicação e ação partilhada que permitam tomada de consciência quanto aos motivos até então não evidentes e amparando,  na  relação  com  o  outro,  as  dimensões  afetiva,  cognitiva  e  volitiva constitutivas desse ato simbólico. * Desmistificando  tanto para  si quanto para aqueles com quem  se  trabalha  (na medida em que se tornem crenças despotencializadoras do desenvolvimento da autonomia humana) as noções animistas dos processos  inconscientes  (tomados como  forças com vida própria) e valorizando o homem como a unidade vida de suas funções mentais conscientes ou não.  

4 ‐ Princípio da compre‐ensão da consciência me‐diante unidades  

* Tomando diante das realidades sociais e pessoais com as quais se vai trabalhar uma atitude de  investigação e compreensão crítica sobre sua origem e funciona‐mento,  sob  o  foco  de  fenômenos  particulares  (unidades)  que  as  constituam  e possibilitem  uma  visão  integrada  e  sistêmica  do  psiquismo  humano  como  um todo.  

a) Consciência e relações  Personalidade   Meio  = a vivência como unidade... 

 

*  Buscando  formas  de  compreender  e  estar  sensível  às  vivências  (experiências vitais dinâmicas e singulares) das pessoas, as quais no curso e na situação social de seu desenvolvimento proporcionam uma síntese dialética dos traços caracte‐rísticos  de  formação  da  sua  personalidade  com  as  influências  de  todo  o meio social, do qual a própria pessoa também faz parte. * Estabelecendo oportunidades e recursos de simbolização pelos quais tais vivên‐cias sejam partilháveis e presentes ao diálogo das pessoas com os outros e com 

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elas próprias. * Procurando não destituir as vivências de seu caráter de acontecimento, isto é de processo único, incomparável, irrepetível, no qual o homem se engaja literalmen‐te  “em  pessoa”,  como  personalidade  social  concreta,  numa  condição  em  que nenhum outro pode estar em seu lugar. * Procurando, ao mesmo tempo, não fechar as vivências no campo do insondável, incompreensível e impossível de ser partilhado ou recriado. * Buscando para si, como profissional responsável, e para o outro, como  interlo‐cutor essencial, recursos para visualizar as conexões entre experiência acumulada histórica, social, e pessoal (auto‐biográfica), com as vivências no “aqui e agora” e suas marcas na memória de cada um, tanto quanto contribuindo para a reorgani‐zação do caráter dessas conexões na direção de mais saúde e autonomia.   

b) Consciência e relações  Pensamento   Linguagem  = o significado da palavra como unidade... 

 

* Tomando uma atitude de dedicação sistemática à compreensão dos múltiplos significados da palavra do outro,  como  síntese dialética da  linha do desenvolvi‐mento  da  fala  com  a  do  pensamento,  tomando  tal  síntese  em  suas  diferentes variações funcionais e etapas de desenvolvimento, como mediação por excelência para  a  gênese  da  consciência,  tanto  quanto  como  suporte  à  articulação  inter‐semiótica com outras formas de significação verbais e não verbais. * Mantendo atitude de respeito ao universo vocabular, sintático e semântico do outro, aos gêneros discursivos próprios das diferentes situações e grupos sociais com os quais está habituado, sem negar‐se a contribuir sempre que possível para a ampliação desse universo, reconhecendo que ao fazê‐lo também amplia o seu o seu próprio. * Procurando, assim,  compreender os  significados de  suas palavras  tanto  como múltiplos e  inesgotáveis, quanto como passíveis de designações objetivas  tangí‐veis, desde que  articuladas  às  condições de produção das  trocas dialógicas  em que tais palavras se inserem. * Compreendendo que o significado mais objetivo das palavras não esgota toda a dinâmica da produção de sentidos que implica ainda o todo de sua visão de mun‐do e sua personalidade. * Pautando‐se na orientação de Vigotski de que para compreender o significado das palavras é preciso ainda buscar compreender o pensamento e/ou o seu sub‐texto, e que para compreender o pensamento cabe ainda buscar saber das moti‐vações e da esfera afetivo‐volitiva de quem pronuncia tais palavras. * Criando situações de comunicação social e ação partilhada contextualizada, nas quais indícios desses diferentes modos de funcionamento dos processos de signi‐ficação possam ser colhidos,  interpretados e devolvidos ao fluxo do diálogo com as pessoas envolvidas.  

5 ‐ Princípio da compre‐ensão do psiquismo hu‐mano mediante sua gêne‐se histórica (origem e de‐senvolvimento)  

* Orientando sua prática com uma permanente atitude investigativa com relação ao funcionamento, a estrutura e a origem mais próxima e mais distante das vivên‐cias e processos de significação que se articulam e/ou se chocam na constituição social da personalidade daqueles com quem se está trabalhando.  

a) Compreender os processos psíquicos pela sua gênese:   

* Entendendo que para compreender o desenvolvimento de alguém se passa ao mesmo tempo a participar dele, já que saber do desenvolvimento não se restringe a registrar uma anamnese, assim como a história da humanidade não se restringe ao nosso passado.  

i. Não estudar objetos fixos, mas processos  

* Buscando demover de si e daqueles com quem se trabalha a pré‐concepção de que uma doença, um sintoma, uma capacidade, uma habilidade, um preconceito, um sentimento, um conflito, uma  lei, uma determinação  institucional, um gesto ou um sentido, a visão de mundo de alguém ou os traços de sua personalidade, sua  consciência,  sua  inteligência  e  seus  sistemas  afetivos,  sejam  algum  tipo de 

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objeto estático, algo pronto e acabado, que  sempre esteve ali daquele modo e assim sempre haverá de estar. * Portanto, não vendo esses processos como “coisas”, como “entidades”, como algo que  tão  somente  se  classifica,  se mede ou  se enquadra,  se  tria,  se usa,  se descarta,  se  conserta ou  reforma, mas  como movimentos produzidos por  seres humanos vivos, concretos. * Agindo  com  relação a  tais processos entendendo‐os  como  tais, portanto  com cautela  no  estabelecimento de  juízos,  e  com  compromisso  para  com  a  própria constituição social dos mesmos – como sob a orientação de Aristóteles de que “só em movimento é que um corpo mostra o que é”. * Produzindo  técnicas sistemáticas para obtenção de pistas que permitam com‐preender e atuar com relação ao psiquismo humano na sua processualidade, por mais focais que precisem ser as intervenções.  

ii. Não ficar nas aparências, mas buscar a essência  

*  Estando  atento  para  o  fato  de  que  dois  processos  aparentemente  idênticos podem ter origens bem diferentes, e de que processos com origens semelhantes podem não dar a vê‐lo, por na aparência mostrarem‐se diferentes. {válido para os mesmos exemplos dados logo acima, uma doença, um sintoma, uma capacidade, etc.}  

iii. Olhar o já cristalizado pelas marcas de sua origem viva.  

* Estando atento para o fato de que algo hoje  já tido como automático, natural, cristalizado,  simples de  fazer, ou  simples de dizer que não pode  ser  feito,  teve também  um  processo  histórico  de  constituição  que  o  trouxe  até  esse  estado, processo  esse  cujas marcas  de  vida  anterior  podem  estar  cristalizados  no  que parece sem vida, como ocorre no caso de um “fóssil” (“comportamentos fossiliza‐dos, diz Vigotski”).  

iv. Lançar mão da análise gené‐tico‐causal  

* Conhecendo a metodologia de pesquisa da investigação da mente humana pro‐posta pela abordagem, para  lançar mão de seus  recursos como aporte aos pro‐cessos diagnósticos da realidade e de compreensão da realidade durante o pró‐prio trabalho de intervenção, com isso subsidiando avaliações futuras e reorienta‐ção da prática. * Permitindo  situações de  interação nas quais  se produzam, em diferentes mo‐mentos no tempo, processos nos quais novos recursos simbólicos sejam introdu‐zidos  para dar  conta  de uma  tarefa  significativa  (num processo  educativo  para prevenção de doenças, por exemplo – a apropriação dos conceitos não se dá de modo instantâneo), tendo assim dimensão da origem de novas formações ampa‐radas pela utilização/apropriação desses recursos. * Buscando, portanto, compreender as causas dos processos por  intermédio do acompanhamento sistemático de sua origem (gênese) tal como ela se dá em sua própria intervenção sobre ela.  

b) Compreender a articulação de diferentes planos genéticos ou históricos  

* Entendendo que em teoria histórico‐cultural quando se fala de “história” consi‐dera‐se  tanto  o  seu  conceito mais  geral  de  processo  dialético  de  constituição processual do real, quanto de história no sentido estrito ou história da humanida‐de. Procurando ampliar os princípios anteriores para os diferentes planos e domí‐nios do conceito de história.  

i. Filogênese ou história do desenvolvimento da espécie  

* Tomando conhecimento do fato de que nossa espécie tem tanto limites quanto possibilidades, que a evolução é um processo que  continua em  curso, mas que por hora ainda somos “Homo sapiens”. O que significa entender que temos tam‐bém determinações biológicas e não somos onipotentes com relação a elas, tanto quanto entender que a própria espécie é provida de aparatos biológicos, em ge‐ral, e neuro‐funcionais, em particular, que permitem e  solicitam a mediação do outro e da linguagem para seu desenvolvimento efetivo e potencial.   

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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ii. Sociogênese ou história do desenvolvimento dos diferentes grupos sociais  

* Procurando sistematicamente compreender a história da sociedade na qual se está inserido assim como o estão as pessoas com quem se vai trabalhar – no sen‐tido geral das lutas que a compõem, tanto quanto no sentido específico das narra‐tivas sobre a cultura dos grupos e setores sociais específicos dentro da configura‐ção societária mais ampla. * Agindo com relação às pessoas como sujeitos do processo de constituição cole‐tiva de sua história tanto quanto como constituídos por relações que vão além da interferência de suas vontades individuais.  

iii. Ontogênese ou história do desenvolvimento do ser huma‐no singular – envolve a questão da periodização.  

* Assumindo que compreender sobre desenvolvimento ontogenético e seus perí‐odos não é só para quem “lida com crianças”, mas que todo ser humano para ser tal como é hoje e para poder ser algo distinto amanhã, só o pode fazer com base nas conquistas e incompletude de seu desenvolvimento anterior. Com as sucessi‐vas crises que esse processo envolve  (não só na adolescência, como às vezes se imagina, mas em toda a ontogênese), com o modo particular pelo qual tais crises são vividas de acordo com a relação que cada um estabelece com o contexto no qual se desenvolve e realiza seu constante “tornar‐se humano”. * Sendo um agente que participa do processo de desenvolvimento do outro, por intermédio  de  sua  intervenção,  cooperando  com  ele,  nas  suas  atividades  –dirigidas a metas, dotadas de sentido e significados pertinentes à sua vivência e sua história,.  * Sendo, sobretudo, um “organizador do meio social” que proporciona as media‐ções necessárias para que o desenvolvimento se dê. Lembrando para o trabalho do psicólogo o mesmo que Vigotski  fala para o  trabalho do  educador, ou  seja: “quem educa, não é apenas o professor, mas sim o meio social educativo”, o pro‐fessor é só o seu organizador. Assim também quem pode promover um desenvol‐vimento psicológico tão saudável quanto possível, não é apenas o psicólogo, é um “meio social promotor de  relações saudáveis”... Ao psicólogo cabe um papel de organizador desse meio social.  

iv. Microgênese ou história do desenvolvimento de processos psíquicos particulares de uma dada pessoa ou grupo num intervalo de tempo relativa‐mente curto.  

* Atuando como partícipe da produção, formação, constituição conjunta de pro‐cessos psíquicos particulares (como a resolução de um problema cognitivo; como a  transformação catártica de um dado sistema de afetos; como a aprendizagem de um conceito novo; como uma tomada de decisão quanto a um tema de impor‐tância vital; como a tomada de consciência de modos de agir prejudiciais à própria saúde; ou como a  tomada de consciência de capacidades que até então não  se entendia ter ou não se valorizava como aptas a promover ações eficazes sobre o real, sobre o outro e sobre si...). Compreendendo sua emergência relativamente rápida não como algo mágico ou mecânico, mas como  fruto de uma articulação com os demais domínios, ou planos, genéticos envolvidos na totalidade do desen‐volvimento psíquico das pessoas, em sua constituição como tais. 

   

   

          

          

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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Para continuar o diálogo   Foram  expostos  alguns  princípios  éticos,  outros em psicologia geral e  feito um breve exercício de reflexão sobre a atuação de um psicólogo genera‐lista  a partir de  tais princípios.  Feito  isto,  só nos cabe  relembrar a necessidade de  fazermos nossa própria  leitura de referências clássicas disponíveis em psicologia histórico‐cultural, tanto quanto dos estudos mais  recentes que procurem  assumir  al‐guns dos desafios que as primeiras nos  colocam. Justamente no confronto dessas  linhas  introdutó‐rias  traçadas  aqui  com  a  densidade  dos  textos mais complexos e profundos, é que este trabalho ganhará sentido e cumprirá sua  função social pri‐meira:  convidar à  leitura de Vigotski e  seus  cola‐boradores.  Se  retomarmos  a  citação  de Vigotski, em  epígrafe  neste  texto,  nos  depararemos  com uma  constatação  talvez  paradoxal, mas  bastante instigante,  desafiadora.  Ele  nos  diz  que  “a  nova psicologia”, aquela que  tem na dialética um prin‐cípio  geral  organizador,  “se  parecerá  tão  pouco com a atual,  como,  segundo as palavras de Espi‐nosa,  a  constelação do Cão  se parece  com o  ca‐chorro,  animal  ladrador”  (VIGOTSKI,  1927/1991). Como vimos, ele mesmo reconhece que sua “his‐tória do desenvolvimento cultural é a elaboração abstrata da psicologia concreta.” (VIGOTSKI, 1929/ 2000, p. 35). E assim a constituição de uma psico‐logia  concreta  de  orientação  histórico‐cultural, sobre  a  base  de  uma  epistemologia materialista dialética,  não  é  pressuposto  para  o  avanço  da história da psicologia, mas objeto de busca,  algo por ser criado ao longo dessa mesma história. Por certo, os psicólogos do século XXI têm, cada qual, suas próprias  leituras dos clássicos, seus próprios projetos, necessidades  e  aspirações. Cedendo ou não às conveniências da ideologia política neolibe‐ral  e/ou  da  dita  “pós‐modernidade”,  expressão cultural  importante da primeira, estão todos ocu‐pados  de  constituir  seus  próprios  espaços  de  in‐terlocução,  mesmo  para  resistir  àquelas  forças hegemônicas.   Trata‐se de um mundo complexo o nosso, povoa‐do  de  composições  diversas  e  formas  de  luta  e resistência  nem  sempre  convencionais.  Não  se pode, portanto, tomar Vigotski ou qualquer autor como  um  oráculo,  fonte  explicações  absolutas  e verdades definitivas, que se segue como dogmas. Cabe  lê‐lo em  sua  radicalidade, naquilo que  suas palavras nos vêm interpelar ainda hoje em tom de 

desafio, fazendo‐nos sentir até um tanto antiqua‐dos em nossas  idéias e práticas,  lançando‐nos um convite  ao  futuro.  Ao  depararmo‐nos  com  a  ne‐cessidade de produzirmos o que ainda não há, é emblemática a  imagem do trabalho do poeta ela‐borando versos que atinjam seus leitores do modo mais  fecundo. Como Carlos Drummond:  “Eu pre‐paro  uma  canção  /  em  que minha mãe  se  reco‐nheça (...)” – uma linguagem na qual as pessoas se vejam  como  tais,  tão  crítica  e  afetuosa  que  faça “acordar os homens” e “adormecer as crianças”. A busca  de  uma  psicologia  concreta,  reivindicada por  Politzer  em  analogia  à  arte,  é  também  a  da produção de um discurso no qual  a humanidade se  reconheça,  em  que  as  vozes  das  pessoas  te‐nham  lugar eqüipolente, não sejam sobrepujadas e mortificadas pelas categorias  teóricas. Em geral a psicologia parece falar de muitas coisas: de pro‐cessos mentais,  de  determinações  inconscientes, de  contingências  de  reforço,  mas  poucas  vezes fala  de  “pessoas”,  tampouco  “com”  elas.  É  uma crítica que não deve ser feita só apontando erros alheios, mas,  sobretudo,  como  “autocrítica”. Não somos  ainda  a  “constelação”  pretendida,  somos mais como o “animal  ladrador”. Nossa psicologia, certas vezes, é também um saber que “ladra, mas não morde”, que promete, mas não cumpre. Co‐mo  no  discurso  já  vulgarizado  do  “compromisso social”, que não  sempre orienta práticas  correla‐tas. Ou se alia a  ideologias como a da “morte do homem”  e/ou  do  desprezo  para  com  qualquer consistência  epistemológica,  satisfazendo‐se  em mudar de referências ao sabor da conjuntura e/ou com reduzir sua função social a “produzir efeitos”. Tais atitudes apontam talvez para uma “morte da psicologia”,  tida  como  sem  objeto  nem método próprios, sustentada como instituição só por inte‐resses  corporativos  de  agências  formadoras  e entidades  de  classe.  Contraposta  a  tal  tendência hegemônica está a psicologia histórico‐cultural de Vigotski  com  seus  valores  éticos,  seus  princípios de psicologia  geral e  sua  vinculação  com  a  cons‐trução  de  uma  psicologia  aplicada  coerente  com eles. Convidar o leitor ao diálogo sobre esta busca, e a assumir um papel social ativo dentro dela, de modo crítico e criativo, foi o nosso objetivo aqui.  Achilles Delari Junior Umuarama, 17 de fevereiro de 2009.  

Última revisão em 07 de junho de 2009. Passará por revisões posteriores. Produção voluntária e independente.  

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Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão)      —      Achilles Delari Junior  

 

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