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A Ciência e as ciências por Olga Pombo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa http://cfcul.fc.ul.pt Se olharmos hoje para a ciência, o que vemos são as ciências. Não vemos a floresta, vemos as árvores. Não vemos a árvore, vemos as folhas. Vemos as disciplinas, as subdisciplinas, as especialidades. Por outras palavras, o que vemos é uma poeira, mais ou menos caótica, de programas e projectos de investigação altamente especializados, apoiados financeiramente por decisores, também eles especializados, e enquadrados em instituições nacionais e internacionais, públicas e privadas, umas de carácter político, outras militar, outras empresarial 1 . Trata-se de uma situação recente. Ela teve a sua origem no século XIX e a sua máxima potenciação em meados do século XX. A título meramente indicativo, a National Science Foundation repertoreava na década de quarenta, nos EUA, cerca de 54 especialidades; em 1954, dava conta, só na Física, de 74 especialidades e, em 1969, também só na Física, de 154. A partir da década de oitenta, as especialidades passam a contar-se aos milhares. Uma situação explosiva cujos efeitos se fazem sentir a diferentes níveis da ciência contemporânea, nomeadamente, nas suas formas institucionais, nas suas estruturas 1 Referimo-nos à Science Policy, área de especialização na qual, hoje, os organismos públicos e privados que financiam a investigação procuram uma base “científica” capaz de legitimar as suas decisões em termos de financiamento da ciência. Daí que os objectivos dessa nova disciplina, a política da ciência, sejam, não tanto, como seria de esperar, a análise das relações entre a ciência e a política, mas a análise dos mecanismos de controle da ciência pela política. Para um estudo clássico, cf., por exemplo, Salomon (1977). 1

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Unity of Science

A Cincia e as cinciaspor

Olga Pombo

Centro de Filosofia das Cincias da Universidade de Lisboahttp://cfcul.fc.ul.ptSe olharmos hoje para a cincia, o que vemos so as cincias. No vemos a floresta, vemos as rvores. No vemos a rvore, vemos as folhas. Vemos as disciplinas, as subdisciplinas, as especialidades. Por outras palavras, o que vemos uma poeira, mais ou menos catica, de programas e projectos de investigao altamente especializados, apoiados financeiramente por decisores, tambm eles especializados, e enquadrados em instituies nacionais e internacionais, pblicas e privadas, umas de carcter poltico, outras militar, outras empresarial.

Trata-se de uma situao recente. Ela teve a sua origem no sculo XIX e a sua mxima potenciao em meados do sculo XX. A ttulo meramente indicativo, a National Science Foundation repertoreava na dcada de quarenta, nos EUA, cerca de 54 especialidades; em 1954, dava conta, s na Fsica, de 74 especialidades e, em 1969, tambm s na Fsica, de 154. A partir da dcada de oitenta, as especialidades passam a contar-se aos milhares.

Uma situao explosiva cujos efeitos se fazem sentir a diferentes nveis da cincia contempornea, nomeadamente, nas suas formas institucionais, nas suas estruturas organizacionais, na sua capacidade heurstica e na sua dimenso cultural.

O balano crtico desta situao est feito j h bastante tempo. Em 1929, no livro Rebellion de las Massa, Ortega Y Gasset denunciava j, com extremo vigor, o que designava por barbrie especialista: "Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sbios, em mais ou menos sbios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista no pode ser subsumido por nenhuma destas duas categorias. No um sbio, porque ignora formalmente tudo quanto no entra na sua especialidade; mas tambm no um ignorante porque um "homem de cincia" e conhece muito bem a sua pequenssima parcela do Universo. Teremos que dizer que um sbio-ignorante - coisa extremamente grave - pois significa que um senhor que se comportar em todas as questes que ignora, no como um ignorante, mas com toda a petulncia de quem, na sua especialidade, um sbio" (1929: 173-174).

Precisamente trinta anos depois, em 1959, Lord Snow, no seu clebre ensaio The Two Cultures considerou como uma evidncia sociolgica a ruptura entre as cincias naturais e humanas. Ruptura tal que, como escreve: Os cientistas nunca leram uma nica obra de Shakespeare e os intelectuais literatos no conhecem a segunda lei da Termodinmica (1959: 15)

Ao mesmo tempo, os prprios homens de cincia tomam conscincia da gravidade das consequncias da especializao que praticam e inscrevem as suas palavras contra essa situao. Por exemplo, como escrevia Norbert Wiener em 1948, h hoje poucos investigadores que se possam proclamar matemticos ou fsicos ou bilogos sem restrio. Um homem pode ser um topologista ou um acusticionista ou um coleopterista. Estar ento totalmente mergulhado no jargo do seu campo, conhecer toda a literatura e todas as ramificaes desse campo mas, frequentemente, olhar para o campo vizinho como qualquer coisa que pertence ao seu colega trs portas abaixo no corredor e considerar mesmo que qualquer manifestao de interesse da sua parte corresponderia a uma indesculpvel quebra de privacidade" (Wiener, 1948: 2). Uma mesma apreciao crtica est presente nas palavras de Oppenheimer: Hoje no s os nossos reis que no sabem matemtica mas tambm os nossos filsofos que no sabem matemtica e, para ir um pouco mais longe, so tambm os nossos matemticos que no sabem matemtica. Cada um deles conhece apenas um ramo do assunto, e escutam-se uns aos outros com o respeito simplesmente fraternal e honesto. (...) O que temos em comum so os simples meios pelos quais aprendemos a viver, falar e trabalhar juntos. Alm disso, desenvolveram-se as disciplinas especializadas como os dedos da mo: unidas na origem mas j sem contacto algum. (Oppenheimer, 1955: 55)

A questo a seguinte: a especializao ainda que condio necessria ao progresso do conhecimento altera a prpria natureza da actividade cientfica. As cincias especializadas deixam de ter o Mundo como seu objecto de estudo e investigao. Para as disciplinas particulares e para as especialidades, a prpria ideia de Mundo deixa de ser til. Elas podem virar costas totalidade e, com esse movimento, entrar alegremente no reino da positividade prtica, procurar performances eficientes ainda que fragmentrias. Numa palavra, a especializao tem como efeito paralelo o compromisso da cincia com uma razo instrumental que reduz a cincia ao clculo de entidades quantificveis e ao abandono da tentativa de explicao do Mundo, isto , ao abandono da ideia reguladora de Unidade da Cincia.

Thomas Kuhn nos anos 60 tornou estridente este diagnstico ao evidenciar, na sua famosa The Structure of Scientific Revolutions (1962), o fechamento da cincia no interior do paradigma. A cincia deixa ento de aparecer como a vitria, cada dia renovada, de uma racionalidade crtica movida pelo amor verdade para ser pensada como actividade paradigmtica, inteiramente obediente a um modelo terico-prtico que estabelece teorias e princpios, determina mtodos e procedimentos, dita perguntas legtimas, impe critrios para validar respostas. E o debate sobre a ps-modernidade que polarizou a comunidade filosfica dos anos 70 e 80 do sculo XX fez tambm desta concepo cnica (e cptica) da cincia um dos seus cavalos de batalha fundamentais na anlise da nossa actualidade. Lyotard e Habermas mesmo se em pontos opostos da fronteira que divide modernos e ps-modernos concordam na considerao de que, a partir da segunda guerra mundial, a cincia passou a definir-se como actividade orientada, no tanto pelo desejo de verdade, mas pela capacidade de produo de resultados prticos imediatamente aplicveis na esfera poltica, militar ou econmica, ou seja, deixou de se legitimar pela procura sempre unitria da verdade e passou a determinar-se pela proliferao dos seus efeitos e aplicaes tcnicas. O que tem como efeito colateral mas decisivo colocar a cincia na dependncia dos financiamentos provenientes da actividade intervencionista do poder poltico e econmico. Quer isto dizer que, por um lado, porque passam a ser os efeitos que determinam o valor do conhecimento e porque essa performatividade depende de financiamentos "no h prova, no h verificao dos enunciados e no h verdade sem dinheiro. Os jogos da linguagem cientfica tornam-se jogos de ricos, onde o mais rico tem mais possibilidades de ter razo. Desenha-se uma equao entre riqueza, eficincia e verdade" (Lyotard, 1979:88). Por outro lado, como Habermas sublinha em Technick und Wissenschaft als Ideologie, essa extrema dependncia que caracteriza hoje a cincia face aos poderes econmicos refora a especializao e fragmentao do tecido cientfico: a realidade da autonomia das disciplinas o correlato epistemolgico da realidade da no-autonomia da cincia no seu todo face ao mundo tcnico onde ela se legitima (cf. Habermas, 1968, pp. 72 e segs).

Por outras palavras, hoje tudo parece indicar que a ausncia de unidade que caracteriza a actividade cientfica. medida que a cincia evolui, ela iria perdendo a sua primitiva unidade. Quanto mais desenvolvida, mais especializada.Digo parece porque - essa a hiptese que aqui pretendo defender - a unidade da cincia no pode ser banida to facilmente do discurso e da actividade cientfica. certo que existe um efeito de superfcie que nos pode levar a declarer a morte da Unidade da Cincia, assim como foi declarada porventura de forma demasiado espedita a morte de Deus, a morte da Arte, a morte das Ideologias, o fim da Filosofia ou mesmo o fim da Histria.

Mas, a Unidade da Cincia uma fora pertinaz, uma tendncia que percorre toda a histria da cincia, sempre em tenso e constante alternncia com a tendncia contrria para a especializao. E embora a especializao seja mais fcil de ver, isso no significa que a tendncia unidade no esteja l, como sempre esteve, a produzir silenciosamente os seus efeitos.

Digamos que a cincia feita de ambas as tendncias, de ambos os ingredientes. A especializao favorece a delimitao precisa do objecto de investigao, permite o rigor e a profundidade da anlise, reduz o nmero de metodologias e tcnicas necessarias investigao numa disciplina especfica, torna mais acessvel o conhecimento da bibliografia, restringe a extenso das comunidades cientficas e facilita uma melhor comunicao entre os investigadores de cada especialidade, ajuda ao estabelecimento dos conceitos tcnicos necessrios construo teortica de cada especialidade. No entanto, a Unidade da Cincia corresponde ao projecto compreensivo que est subjacente a toda a actividade cientfica. Como escrevem Prigogine e Stengers em Entre le Temps et l'ternit, algumas pessoas procuram reduzir toda a cincia a uma simples pesquisa de relaes gerais, permitindo prever e dominar os fenmenos. Mas esta concepo adulta e desencantada da racionalidade nunca pde calar a convico em que se enraza a paixo dos fsicos: a sua pesquisa visa compreender o mundo, tornar inteligvel o devir da natureza, e no simplesmente descrever a maneira como ela se comporta" (1988: 208).Trata-se tambm de compreender que o progresso do conhecimento no se d apenas pela especializao crescente, como estvamos habituados a pensar. Como recorda Gilbert Durand "Os sbios criadores do fim do sculo XIX e dos dez primeiros anos do sculo XX (esse perodo ureo da criao cientfica, em que se perfilam nomes como os Gauss, Lobatchevski, Riemann, Poincar, Hertz, Becquerel, os Curie, Rutherford, Pasteur, Max Planck, Bohr, Einstein) no eram especialistas. Pelo contrrio, tiveram toda uma alargada formao pluridisciplinar, herdeira do velho trivium (as humanidades) e do quadrivium (os conhecimentos quantificveis, e portanto tambm a msica) medievais, prudente e parcimoniosamente organizados pelos colgios dos jesutas, dos frades oratrios e das pequenas escolas dos jansenistas" (1991: 36).

H que olhar para o lado para ver outras coisas, ocultas a um observador rigidamente disciplinar. Por outras palavras, a cincia um processo que exige um olhar transversal. Sabemos que grande parte da Qumica que hoje conhecemos seria impossvel sem os desenvolvimentos da Fsica Quntica, que os dispositivos matemticos de Riemann foram decisivos para a Fsica da Relatividade, que a Biologia de Darwin devedora da Economia concorrencial de Adam Smith. Ora, mais uma vez, o que est na raiz dessa racionalidade transversal, o fundamento da fertilizao heurstica de umas disciplinas por outras, a Unidade da Cincia.Assim se compreende que, aps um perodo em que a Unidade da Cincia pareceu estar ultrapassada pelo processo de especializao crescente dos sculos XIX e XX, ela possa apareer outra vez, com uma fora renovada, a partir da dcada de setenta do sculo passado. E aparea como ela : a manifestao teortica, prtica e institutional da racionalidade transversal que hoje como ontem, agora mais do que dantes liga as diferentes disciplinas.Em que me baseio para fazer esta afirmao? No facto de, a partir das ltimas dcadas do sculo XX, terem comeado a aparecer uma srie de sinais, quer ao nvel da produo, quer da transmisso e aplicao do conhecimento cientfico, que podem ser interpretados desta maneira.

1 sinal A emergncia de novos tipos de arranjos disciplinares resultantes da reorganizao interna da cartografia dos saberes.

Disciplinas hbridas, construdas nas fronteiras de duas disciplinas tradicionais, seja no mbito interno das cincias da natureza (a Bioqumica, a Biofsica, a Geofsica, a Geobotnica ou Biomatemtica) ou das cincias sociais e humanas (a Psicolingustica, a Psicosociologia, a Histria Econmica), seja no cruzamento das cincias da natureza e das cincias sociais e humanas (Biologia Social, Etologia, Geografia Econmica). Inter-disciplinas - aquelas que resultam da confluncia entre cincias puras e cincias aplicadas, entre a cincia e as reas da indstria e da organizao. O primeiro exemplo foi o da investigao operacional constituda nos EUA em 1952 e em Inglaterra em 1964. O caso mais eloquente o da engenharia gentica. Em ambos os casos, estamos perante duas reas cuja mistura era impensvel h 60 ou 70 anos.Inter-cincias - construdas na confluncia de diversas reas, as intercincias so conjuntos de disciplinas que se ligam, de forma descentrada, assimtrica, irregular, numa espcie de patchwork combinatrio visando resolver um problema preciso. O melhor exemplo o das cincias cognitivas. Elas no so especialmente a Psicologia e a Lingustica ou a Inteligncia artificial; so as Neurocincias, so a Filosofia, so a Matemtica, so a Biologia molecular, so as Cincias da computao. Ou seja, so conjuntos de disciplinas que se encontram de forma irregular e descentrada para colaborar na investigao de um problema comum: a cognio.

2 sinal O apelo interdisciplinaridade que se comea a fazer sentir nas trs ltimas dcadas do sculo XX entre as diversas comunidades cientficas. Claro est que me no estou a referir ao largo conjunto de prticas superficiais e vazias que se reclamam da palavra interdisciplinaridade mas que, de facto, no so mais do que formas de fuga s exigncias que todo o trabalho disciplinar implica. Estou sim a referir-me ao apelo interdisciplinar que atravessa a actividade cientfica e que constitui condio do prprio progresso especializado e da criatividade dos seus investigadores. Refiro-me natureza interdisciplinar da actual comunicao cientfica (qual o colquio cientfico que hoje no interdisciplinar?), aos efeitos, ainda em grande parte por estudar, da comunicao electrnica sobre a comunidade cientfica e sobre a construo do conhecimento cientfico e, mais importante do que isso, ao facto de o progresso do conhecimento cientfico ser cada vez mais resultante de novos tipos de prticas interdisciplinares (por exemplo, da existncia de centros de investigao interdisciplinar, de projectos interdisciplinares, da migrao conceptuais entre diferentes disciplinas, da transferncia de metodologias, de processos heursticos de fertilizao cruzada, etc. Ou seja, um conjunto de prticas que poderamos apresentar esquematicamente como:

Prticas de importao, decorrentes de limites sentidos no interior das disciplinas especializadas. O aprofundamento da investigao numa disciplina leva cooptao, a favor da disciplina importadora, de conceitos, mtodos, instrumentos j provados noutras disciplinas; Prticas de convergncia na anlise de um terreno comum. Conhecida tambm pelo nome de estudos por reas, e posta em prtica pelas cincias sociais com grande frequncia, este tipo de investigao toma frequentemente por objecto regies geograficamente circunscritas dotadas de unidade cultural, histrica ou lingustica; Prticas de descentrao que tm na sua origem a irrupo de problemas impossveis de reduzir s disciplinas tradicionais: problemas novos como o ambiente em grande parte resultantes dos prprios desenvolvimentos cientficos e da capacidade tecnolgica que o homem adquiriu para perturbar a ordem natural ( o caso da ecologia), problemas que, como o clima ou os sismos, envolvem o tratamento de dados gigantescos, e que portanto implicam colaborao internacional, uma rede de participantes situados em vrios pontos do globo, produzindo informao que tem de ser depois centralizada e tratada por processos automticos de clculo; Prticas de comprometimento que visam questes extremamente vastas e complexas que resistem a todos os esforos desenvolvidos ao longo dos sculos com vista sua soluo mas que reclamam solues urgentes (por exemplo, a fome) .3 sinal As importantes experincias de ensino visando a flexibilidade e o cruzamento dos saberes disciplinares que, a partir da dcada de 70, tm tido lugar na generalidade das escolas, nomeadamente, das universidades. Trata-se de um conjunto de transformaes curriculares que se vo continuar a desenvolver cada vez mais no futuro prximo (veja-se o crescente nmero de programas inter-departamentais de licenciatura, mestrado e doutoramento, as diversas redes e grupos inter-universitrios, nacinais e internacionais, etc.) e que, anteriores produo do conhecimento cientfico propriamente dito, se revestem de grande significado para a preparao de futuros cientistas com perfil cultural alargado.

4 sinal a implementao generalizada de metodologias interdisciplinares ao nvel da produo tcnica e tecnolgica. Digamos que, a aplicao do conhecimento cientfico posterior sua construo est, cada vez mais, entregue a equipas provenientes de diferentes disciplinas que cooperam na concepo, planificao e produo de produtos avanados (refira-se apenas o caso da gesto de empresas, onde alguma coisa designada por interdisciplinaridade usada como processo expedito de gesto e deciso).

5 sinal a existncia paralela, agora fora dos espaos em que a cincia se produz, legitima e comunica, de diversos tipos de fenmenos civilizacionais a que hoje assistimos, tais como a integrao poltica e econmica, os efeitos de internacionalizao e globalizao produzidos pelas novas tecnologias de comunicao, etc.

Um conjunto de sinais que indicam que a Unidade da Cincia mais do que um tpico entre outros, mais do que um ideal antiquado, mais do que uma ideia ultrapassada. Como escreve o grande naturalista americano Edward O. Wilson, ainda que constantemente criticada, (a unidade da cincia) nunca foi abandonada (1998: 12). Pelo contrrio, enquanto mecanismo de integrao e unificao, pode mesmo dizer-se que a Unidade da Cincia coincide com a prpria ideia de cincia. De facto, na sua descrio mais breve, a Unidade da Cincia a unificao do conhecimento, das experincias, das regularidades, das leis e teorias. Por seu lado, a cincia no se resume nunca a uma soma de frmulas e resultados avulsos, a uma acumulao de conhecimentos. Cada cincia supe sempre a unidade de um sistema: os seus diversos enunciados devem poder associar-se e encadear-se para formar conjuntos de complexidade crescente e crescente capacidade explicativa (as leis) que, por sua vez, se associam e encadeiam em sistemas de proposies (as teorias), o mais simples possveis, como Mach diria. Nesse sentido, a Unidade da Cincia d-se a ver como a tarefa cognitiva central da prpria cincia. Que significa conhecer o mundo seno identificar similaridades e formular leis universais, leis capazes de dele fornecer uma descrio mnima isto , unificada? E, em termos conceptuais, o que que se pode entender por Unidade da Cincia? A que nveis pode ela ser pensada? Quais os contornos pelos quais a ideia de Unidade da Cincia se tem deixado pensar?*** .

Sem pretender traar, ou mesmo sequer esboar a histria da ideia de Unidade da Cincia e dos diferentes programas a que deu origem e digo programas em sentido forte, enquanto actos de antecipao metodolgica pelos quais se procura promover, construir, ou pelo menos facilitar, o processo histrico da unificao das cincias irei apenas referir dois momentos fundamentais: um, no comeo do sculo XVII, contemporneo da constituio da cincia moderna; outro, que teve o seu desenvolvimento a partir dos anos trinta do sculo XX.

No primeiro momento, enfrentam-se dois programas muito diferentes, cada um dos quais ligado a uma cincia fundamental: a Instauratio Magna de Francis Bacon (1561- 1626) e a Mathesis Universalis formulada por Descartes e Leibniz. No caso de Bacon, a Unidade da Cincia ter como base a lgica indutiva que preside constituio das cincias da natureza, particularmente da fsica; no caso de Leibniz e Descartes, a primazia dada matemtica.

A Instauratio Magna de Bacon a declarao proclamatria da cincia moderna e da futura descoberta (leia-se, explorao) do mundo natural e humano. A cincia a definida como uma tarefa colectiva, cuja unidade resultante de uma pluralidade de determinaes: 1) um objecto comum, a unidade do mundo que a cincia deve espelhar; 2) uma comum finalidade hedonstica, a felicidade da humanidade, 3) uma estrutura organizacional comum, a comunidade orgnica de homens cuja vida inteiramente devotada cincia, e, por ltimo, 4) uma nova e universal metodologia que pretende apoiar a viagem que ento se inicia unicamente na frgil luz dos sentidos. Bacon est consciente da importncia e novidade da sua lgica indutiva enquanto novo suporte metodolgico de toda a cincia moderna, em especial da fsica. imensa a audcia de Bacon quando escreve no Novum Organon (1620): Assim como a lgica comum, que tudo cobre pelo silogismo, se no aplica s cincias da natureza mas a todas as cincias sem excepo, assim tambm, este mtodo indutivo ser usado por todas as cincias (Bacon, 1620: 127).

Por seu lado, a Mathesis Universalis visa a constituio de uma cincia totalmente formalizada, nica, universal, isenta de erro, dvida e incerteza. Uma cincia que reunisse todo o conhecimento humano de forma integrativa. No por acumulao aditiva mas por um processo de deduo e engendramento lgico a partir de um conjunto de categorias primordiais, conceitos puros ou termos primitivos. Dois grandes postulados esto aqui presentes: 1) a realidade pode ser inteiramente aprendida pela razo; 2) a matemtica a chave, o mtodo e o modelo desse inteligibilidade.

No segundo momento que queria referir, e que teve a sua mxima expresso nas primeiras dcadas do sculo XX, encontramos a mesma oposio entre programas que visam constituir a Unidade da Cincia a partir do modelo da matemtica e da lgica ou a partir do modelo da fsica.

De um lado, o movimento de renovao da lgica. Iniciado por Leibniz no sculo XVII e continuado no sculo XIX, com Morgan e Boole, este movimento sofre um grande impulso no incio do sculo XX, nomeadamente com Frege, Russell e Whitehead que se propem resolver os problemas levantados pela teoria dos conjuntos de Cantor e, assim, dar lgica-matemtica a espessura necessria sua constituio como fundamento de todas as cincias.Do outro lado, o movimento neo-positivista do Crculo de Viena que toma a Fsica e no a Matemtica como a cincia exemplar e bsica, aquela qual todas as outras podem ser reduzidas. Exemplar na medida em que, tal como a fsica, todas as cincias devem constituir-se como sistemas de enunciados experimentalmente verdadeiros (verificacionismo); bsica, na medida em que se defende que todos os acontecimentos aos quais se aplicam as leis ou teorias de uma qualquer cincia so acontecimentos fsicos e, portanto, todas as cincias podem ser reduzidas a uma cincia unificada, designadamente, a Fsica (fisicalismo)A Unidade da Cincia adquire aqui o carcter de um verdadeiro movimento. De facto, com o neo-positivismo, a expresso "Unified Science" corresponde, no apenas a uma posio terica relativa aos problemas tcnicos da Unidade da Cincia (um conjunto articulado, se bem que nem sempre coerente, de teses inspiradas pelo empirismo-lgico do Crculo de Viena) mas a um conjunto de iniciativas concretas realizadas com vista a promover a Unidade da Cincia (a organizao de 6 colquios internacionais sobre a Unidade da Cincia; a fundao, primeiro em Haia do Mundanaeum Institut e, depois, nos USA, do Institute for the Unity of Science; a publicao da coleco Library of Unified Science; a edio, depois de 1930, da famosa revista Erkenntnis por Rudolf Carnap e Hans Reichenbach, e, acima de tudo, o projecto da International Encyclopaedia of Unified Science de que Otto Neurath foi a grande locomotiva. O que importa porm salientar que todo este movimento toma a fsica como modelo, exemplo e cincia bsica qual todas as outras se podem reduzir. A par das dificuldades suscitadas pelo programa lgico e matematicista (dos paradoxos de Russell ao teorema da incompletude de Gdel), sabemos que o programa fisicalista sofreu tambm inmeras crticas e revelou inmeras dificuldades. Poder-se- considerar a Qumica como um ramo da Fsica, pergunta Mario Bunge, num artigo clebre Is Chemistry a Branch of Physics? (1982). Podero as propriedades qumicas do hidrognio ser descritas em termos puramente fsicos? Ser o princpio Darwiniano da seleco natural um princpio fsico? Ser legtimo procurar vencer a barreira entre o mundo vivo e o mundo no vivo? Prolongando a controvrsia do sculo XIX entre mecanicistas (que aceitam a reduo dos fenmenos vitais s leis da Fsica e da Qumica) e vitalistas (que reclamam a necessidade de recorrer a um princpio vital, organsmico, no redutvel s leis da Fsica e da Qumica), perguntar-se- se no haver sempre um resduo biolgico para l de todas as redues fsico-qumicas? No entanto, e para l destas dificuldades, o fisicalismo tem importantes formulaes actuais, isto , continua a ser susceptvel de reequacionamentos diversos. Por exemplo, no contexto das cincias cognitivas, o debate entre reducionistas e no reducionistas coloca-se hoje em termos muito semelhantes: sero os processos mentais redutveis a processos neuronais e, portanto, fisiolgicos, bioqumicos, qumicos e, em ltima anlise, fsicos? Na vasta bibliografia sobre esta questo que define grande parte da agenda filosfica actual, refiram-se apenas, do lado reducionista, Daniel Dennett (1997), e Antnio Damsio (1994) e, do lado, no reducionista, Jerry Fodor (1975) e John Searle (1997).Como explicar esta proximidade da Fsica ao ideal da Unidade da Cincia? Permitam-me que recorde a passagem j citada de Prigogine e Stengers, algumas pessoas procuram reduzir toda a cincia a uma simples pesquisa de relaes gerais, permitindo prever e dominar os fenmenos. Mas esta concepo "adulta" e desencantada da racionalidade nunca pde calar a convico em que se enraza a paixo dos fsicos: a sua pesquisa visa compreender o mundo, tornar inteligvel o devir da natureza, e no simplesmente descrever a maneira como ela se comporta" (1988: 208). curioso que Prigogine e Stengers que no so fsicos (ele prmio Nobel da Qumica, ela faz filosofia da cincia) se refiram aos fsicos. Talvez porque a fsica a cincia que melhor encarna o destino unitrio da cincia no seu conjunto enquanto compreenso do mundo, isto , daquilo que est face ao homem, como seu ob - jectum primordial de conhecimento e que, simultaneamente, o lugar do homem, a sua ptria, a sua casa, o seu ethos. Na prpria origem etimolgica da palavra fsica estaria inscrito esse seu destino unitrio.

Assim se compreende que, como reconhecido por todas as histrias da filosofia, os primeiros filsofos fossem fsicos, fisilogos ou fisiocratas, isto , naturalistas que procuravam uma explicao unificada do mundo que no recorresse a entidades divinas ou foras ocultas. Refiro-me aos Miletanos do sculo VI a.C., de Thales a Anaximandro e Anaxmenes, aos sbios jnios como Heraclito de feso ou Xenfanes de Eleia. Os seus esforos vo no sentido da busca racional de um princpio primordial, nico, universal, comum diversidade das coisas e ordem que as habita, isto , aquilo a que hoje chamaramos a procura de uma explicao cientfica do mundo. Digamos que a Filosofia a Fsica tm, na sua raiz, e desde a sua origem, uma mesma paixo: a compreenso integral do que .

Assim se compreende que os grandes sbios do sculo XVII e XVIII fossem simultaneamente fsicos, matemticos e filsofos. Nomes como Leonardo da Vinci, Kircher, Galileu, Kepler, Descartes, Leibniz ou Newton, so exemplos eloquentes de um perodo da histria da cincia em que a Unidade da Cincia era uma realidade tangvel. Perodo tambm em que era ainda muito claro que a filosofia e a fsica tm o mundo como seu destino comum.Assim se compreende que a Fsica seja a cincia onde se produziram os casos mais fortes de unificao, que na Fsica tenha havido, ao longo dos sculos, um esforo determinante no sentido de trazer cada vez mais fenmenos para o mbito de um conjunto limitado de leis, de articular as leis umas s outras para formar grandes teorias e de procurar uma teoria unitria de que aquelas fossem manifestao. o caso da unificao pela teoria da gravitao de Newton das leis da queda dos graves de Galileu e das leis do movimento dos planetas de Kepler; da unificao, pelo electromagnetismo de Maxwell, das leis da electricidade e magnetismo de Faraday e Ampre; da unificao, ainda que sob diferentes formas, pela teoria da relatividade de Einstein, dos conceitos de espao e tempo e de massa e energia.

Assim se compreende que, hoje, o ideal da unificao se mantenha como um objectivo reclamado sobretudo pelos fsicos. Depois de todas as rupturas internas de que a fsica esteve durante sculos alheada mas que, no nosso sculo, feriram tambm a sua unidade interna como disciplina, nomeadamente as que separam a Relatividade da Mecnica Quntica, significativo que ela responda, no pela desistncia de compreender, pela entrega pura eficincia tecnolgica, mas que continue a indagao de uma compreenso superior, o mesmo dizer, de uma unidade mais elevada; que ela no tenha abandonado a sua aspirao unificadora mas que, pelo contrrio, a continue a perseguir com designaes cada vez mais superlativas. Refiro-me obviamente teoria da grande unificao (GUT ou Grand Unified Theory), isto , a procura de integrao das interaces fortes, fracas e electromagnticas, ou procura de uma grande teoria unificada das quatro foras da Natureza, a Teoria Unificada Completa, Teoria Final ou Teoria do Tudo (TOE ou Theory of Everything) para que apontam, entre outros, Abdus Salam (1990), Stephen Hawking (1990) e Steven Weinberg (1992). ***Se, desde os gregos, o homem faz cincia para, em ltima anlise, compreender o mundo em que vive e compreender-se a si como habitante desse mundo. tambm por essa razo que o homem faz filosofia, faz religio, faz literatura, faz arte. Ora, o que est em causa , em todos os casos, a sua relao com um mesmo e nico mundo. Um mundo que um sistema coerente: as partes que o compem no esto isoladas umas das outras nem agrupadas em diversos sub mundos independentes ele no um pluriverso mas um universo. Um mundo que estruturado, dotado de regularidades, invarincias, similaridades, simetrias ele no um caos mas um cosmos.

tambm por isso que, para l de as cincias, continua a fazer sentido falar de a Cincia. Referncias BibliogrficasBacon, F., (1620), Novum Organon, in The Works of Francis Bacon, edited by J. Spedding, vol IV, 39-248, London: Ellis and Heath, (1857-1874).

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Como escreve Jean Hamburger, a atitude em relao cincia deixa de ser o "laisser-faire" da cincia humboltiana para passar a ser o "faire faire" (Hamburger, 1991: 8).

Para uma apresentao desenvolvida desta tese veja-se o nosso estudo Unidade da Cincia. Programas, Figuras e Metforas (no prelo)

Na verdade, com a distribuio activa entre colegas dos resultados preparatrios da investigao, com a disponibilizao das verses preliminares dos papers, acessvel a todos os interessados e aberta a todo o tipo de feed-back, com a criao de revistas cientficas electrnicas de divulgao instantnea, cujos textos podem ser arquivados, consultados, modificados, corrigidos, criticados, com a irrupo incontrolada de grupos de discusso e laboratrios multimdia, o prprio conceito de par que sai questionado, so os limites do trabalho individual e colectivo que se apagam, so as fronteiras entre as disciplinas que se tornam insignificantes, so os mecanismos de filtragem e controle de qualidade que tendem a desaparecer. Resta saber se, como dizem os mais pessimistas, as novas formas de comunicao electrnica vo criar uma tal sobrecarga de informao que vai produzir o colapso por imploso da prpria cincia, se uma tal nihilizao do valor dos textos vai conduzir a uma desorientao generalizada face massa gigantesca da informao, se um tal alargamento da comunidade cientfica ter como efeito a sua diluio numa comunidade virtual incontrolada e incontrolvel em que novos pares, de novos autores, novas vozes desconhecidas se podem fazer ouvir, se podem pronunciar sobre tudo, num regime bablico de perdio e rudo generalizado? Ou, se, pelo contrrio, as novas formas de comunicao electrnica vo permitir que a cincia se aproxime de novo da sua vocao universalista. No tornam elas vivel uma mais vasta e rpida distribuio das ideias, uma mais ampla, aberta e democrtica cooperao interactiva e interdisciplinar? No facilitam elas o reforo do carcter comunicativo e colectivo da cincia? No ser que, o que se est a dar a recusa do fechamento da comunidade cientfica sobre si prpria, a sua abertura ilimitada e descentrada, contra os poderes disciplinares e acadmicos institudos, contra os poderes dos referees e da big science? No ser que, numa verso optimista, o que est em marcha recuperao do prazer do dilogo, desse dilogo que, na raiz da actividade cientfica, marca a proximidade primordial entre a cincia e Homem? Na sua interactividade, a estrutura dialogada dos papers on line, mais no faria ento que repetir o gesto dos dilogos de Plato.

Para maiores desenvolvimentos sobre os novos arranjos disciplinares e as novas prticas de interdisciplinares, veja-se o nosso estudo Interdisciplinaridade. Ambies e Limites (Pombo, 2004: respectivamente, 75-87 e 91-97).

Proclamada em Frana durante os acontecimentos de Maio de 68 como reivindicao estudantil, a interdisciplinaridade vai efectivamente estar na base de mltiplas experincias, de mbito e amplitude variada. Para uma apresentao de algumas experincias interdisciplinares de ensino ento realizadas, cf. Pombo (2004: em especial, p. 125 (nota 5) e pp.125-127 (notas 8 e 9)).

No que respeita universidade, trata-se, no fundo, de retomar, sob difrentes modalidades de trabalho, a vocao da Universidade enquanto instituio votada convergncia das diferentes vias de acesso verdade, como Kant a apresentou no clebre opsculo Der Streit der Fakultten de (1798). Sabemos que, mais tarde, a universidade foi teorizada enquanto metfora da prpria articulao e unidade dos conhecimentos por Fichte, Schelling, Schleiermacher, Hegel e Humboldt a quem coube institucionalizar o modelo delineado pelo idealismo alemo na fundao da Universidade de Berlim em 1810. Como dizia Schleiermacher, compete universidade "examinar o particular, no em si mesmo, mas na rede das relaes cientficas, inscrev-lo num vasto conjunto sem jamais o cortar da unidade e da totalidade do conhecimento" (1808: 270). De algum modo no interior desta tradio, Habermas (1987), reconhece tambm a capacidade ainda integradora da Universidade que define como o lugar de uma "interaco convergente" (Habermas, 1987: 8), a "conscincia subjectivamente partilhada de que uns fazem coisas diferentes dos outros mas que, todos juntos, fazendo de uma ou de outra forma trabalho cientfico, preenchem, no uma funo, mas um feixe de funes convergentes" (cf. Habermas, 1987: 9). Para mais desenvolvimentos, cf. Pombo (2002: 91-313)

Trabalho que, mais uma vez, se apresenta de forma desenvolvida em Unidade da Cincia. Programas, Figuras e Metforas (no prelo)

Sobre o projecto leibniziano da Mathesis Universalis, cf. Pombo, Leibniz e o Problema de uma Lngua Universal (1997: 223-254).

Aps um primeiro encontro internacional realizado em Praga em 1929, o 1 International Congress on the Unity of Science realizou-se em Paris em 1935, o 2 em Copenhague, 1936, o terceiro em 1937 novamente em Paris, o 4 em 1938, em Cambridge (Inglaterra), o quinto nos EUA, Cambridge (Massachusetts) em 1939 e o sexto em Chicago, em 1941.

Posteriormente designado por Journal of Unified Science.

Cit. in Hegselmann (1987: xxi). Sobre o papel determinante de Neurath como ponto de encontro e de colaborao de vrios pensadores seus contemporneos e motor capaz de impulsionar, orientar e manter em actividade o Movimento para a Unidade da Cincia durante os anos difceis da guerra, veja-se tb. Morris (1969) e Haller (1991).

Physis (em latim Natura), significa nascer, fluir, emergir, ou seja, aquilo que tem em si a sua prpria fora, aquilo que se desenvolve por si mesmo.

significativo que o colquio internacional promovido pela Unesco, em Paris, em 1965, para comemorar dez anos da morte de Einstein e cinquenta anos da teoria da relatividade generalizada, tenha tido como tema justamente da unidade das leis e teorias na Fsica. assim que, no volume das actas do referido colquio, organizado por Maheu (1967) e intitulado Science et Synthse, se renem textos sobre o tema da Unidade da Cincia de nomes como Gonseth, Oppenheimer, Heisenberg, Louis de Broglie, Holton, Kedrov, Dominique Dubarle, Le Lionnais, Pierre Auger ou Julien Huxley.

Por exemplo, Niels Bohr (1962: 28), referindo-se no s fsica mas a todas as cincias, escreve: "a unidade de todas as cincias resulta do facto de elas terem por objectivo a descrio do mundo exterior".

O esforo unificador que continua a orientar a investigao em Fsica est reconhecido na pgina inicial relativa Fsica do site da National Science Foundation (EUA). A se inclui The Quest for the Ultimate Unity na lista dos cinco temas mais significativos da actual investigao em Fsica (acedido em Maio de 2005).